quarta-feira, 30 de agosto de 2023

CALENDÁRIO ACADÊMICO DO CURSO DE HISTÓRIA DA FILOSOFIA MEDIEVAL

 




FACULDADE CATÓLICA DO AMAZONAS

 

AGOSTO-DEZEMBRO 2023

 

AGOSTO

3: apresentação do curso. Início da primeira parte: apresentação geral da história e cultura da época medieval

10: Os argumentos bíblicos que influenciaram a filosofia medieval. Filo de Alexandria e o método alegórico com referências ao platonismo

17: Início da segunda parte: dos apologistas até as últimas batalhas cristologicas.

Gnosticismo, carta a Diogneto e Justino

24: Clemente e Origenes. Os grandes Concílios de Éfeso, Niceia e Constantinopla: a contribuição da filosofia na formulação dos artigos do Credo.

31: Gregório de Nisa e os Padres Capadócios. Pseudo Dioniso Areopagita. Máximo o Confessor.

 

SETEMBRO

7: Dia da Independência do Brasil. Grito dos excluídos.

 14: IV encontro eco teológico

21: Primeira hora: Prova. Debate na sala sobre os assuntos enfrentados até agora.

Início da terceira parte: A Patrística latina: de Tertuliano até Agostinho. Introdução a Santo Agostinho.

28: Santo Agostinho

 

OUTUBRO

5: Prova na sala. Último período: finalização do pensamento de Santo Agostinho.

12: Aparecida: Feriado.

19: Quarta parte: O surgimento da escolástica: de Boécio a Escoto Eriugena até Santo Thomas.

26: Anselmo de Aosta

 

NOVEMBRO

2: FERIADO

9: As escolas de Chartres e de são Vitor. Prova: entrega do trabalho sobre uma obra dos auotres estudados

16: A Escolástica de Santo Thomas

23: A Escolástica de Santo Thomas

30: A Escolástica de Santo Thomas. Quinta parte. O movimento franciscano e Boaventura de Bagnoregio até a Escolástica do século XIV.

 

DEZEMBRO

7: Prova conclusiva do curso

14: A escolástica no século XIV e a ruptura do equilíbrio entre razão e fé. Ockham e Mestre Eckhart 

terça-feira, 29 de agosto de 2023

CALENDÁRIO ACADÊMICO DO CURSO DE ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA 2023

 



FACULDADE CATÓLICA DO AMAZONAS-MANAUS



AGOSTO

7: Início da primeira parte: parte histórica. A antropologia da época clássica

14: a antropologia da época medieval

21: Humanismo de Pico da Mirandola e de Erasmo de Rotterdam

28: a Antropologia filosófica da época moderna: Descartes e Pascal

 

SETEMBRO

4: A antropologia na época do iluminismo e Kant

11: Prova: entrega do esquema do artigo. A proposta antropológica na pós-modernidade: a modernidade liquida de Bauman

18: Início da segunda parte: as antropologias contemporâneas.  antropologias pós-modernas

25: Antropologia pós-moderna: a reflexão de Gianni Vattimo

 

OUTUBRO

2 prova na sala

9 Antropologias pós-modernas: o antropoceno

16 : trabalhos de grupo na sala para avaliar os trabalhos de antropologia filosofica Latino-americana, indigena e feminista. 

23. Correntes contemporâneas de antropologia filosófica (neopositivismo logico, a nouvelle histoire) Inicio da terceira parte: Propostas de filosofia antropologica contemporaneas de cunho cristão.A proposta de filosofia antropologica de Edith Stein

30 A proposta de Max Scheler

 

NOVEMBRO

6 A proposta antropológica de Emmanuel Mounier

13: V congresso Missionário

20: Dia da Consciência Negra Feriado

27 Jean Luc Marion e o fenomeno saturo 

 

DEZEMBRO

4 Quais os caminhis de antropologia filosófica. A proposta do curso. Entre Simone Weil e Abraham Joshua Heschel

11 Prova: Apresentação da antropologia indígena, Latino-americana e  da antropologia feminista. 

CALENDÁRIO ACADÊMICO DO CURSO DE HOMILÉTICA E COMUNICAÇÃO AGOSTO-DEZEMBRO 2023

 




FACULDADE CATÓLICA DO AMAZONAS


 

AGOSTO

1: introdução ao curso e início da primeira parte (O Magistério da Igreja): homilética no Vaticano II (primeira parte)

8: homilética no Vaticano II

15: Evangelii Gaudium

22: Diretório Homilético

29: Lecionário

 

SETEMBRO

5: Desiderio Desideravi 

12:trabalho na sala: construímos uma homilia juntos

19: A interpretação da Bíblia na Igreja

26: Seminário Missiologia

 

OUTUBRO

3: Análise na sala de algumas pregações que se encontram na internet 

10Início da segunda parte (Parte Patrística)  A homilética Mistagogia: primeira parte. Leitura de homilias de Ambrósio e Agostinho

17: Inicio da terceira parte: a homiletica no Novo Testamento e nos profetas

24: Feriado Manaus

31: trabalho na sala: construímos uma homilia juntos

NOVEMBRO

Início da quarta parte: indicações da Igreja sobre os meios de comunicação. 

14: Como construir um blog para publicar homilias e material biblico 

21:  Alguns documentos da Igreja sobre os meios de comunicação (continuação)

28: resumo coletivo do percurso realizado

DEZEMBRO

5:  Prova final: exposição das homilias realizadas para os alunos

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

⁠BLAISE PASCAL (1623-1662)´

 




 

Textos

 

Quando considero a duração mínima da minha vida, absorvida pela eternidade precedente e seguinte, o espaço diminuto que ocupo, e mesmo o que vejo, abismado na infinita imensidade dos espaços que ignoro e me ignoram, assusto-me e assombro-me de me ver aqui e não lá. Quem me pôs aqui? Por ordem de quem me foram destinados este lugar e este espaço?

O que é, então, que este desejo e essa incapacidade nos proclamam, mas que houve uma vez no homem uma verdadeira felicidade da qual agora resta a ele apenas a marca e o traço vazio, que ele em vão tenta preencher de todo o seu entorno, buscando de coisas ausentes a ajuda ele não obtém nas coisas presentes? Mas estes são todos inadequados, porque o infinito abismo só pode ser preenchido por um objeto infinito e imutável, isto é, somente pelo próprio Deus.

Todos os homens buscam a felicidade. E não há exceção. Independentemente dos diversos meios que empregam, o fim é o mesmo. O que leva um homem a lançar-se à guerra e outros a evitá-la é o mesmo desejo, embora revestido de visões diferentes. O desejo só dá o último passo com este fim. É isto que motiva as ações de todos os homens, mesmo dos que tiram a própria vida.

Os homens têm um instinto secreto, que os leva a procurar divertimentos e ocupações exteriores, nascido do ressentimento de suas contínuas misérias; e têm outro instinto secreto, resto da grandeza de nossa primeira natureza, que os faz conhecer que a felicidade só está, de fato, no repouso, e não no tumulto; e desses dois instintos contrários, forma-se neles um projeto confuso, que os leva a procurar o repouso pela agitação... E assim se passa toda a vida.

O homem é apenas um caniço, o mais fraco da natureza; mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota de água, são suficientes para matá-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que o que o mata, porque ele sabe que morre, e conhece a vantagem que o universo tem sobre ele; e disso o universo nada sabe. Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. É a partir dele que nos devemos elevar e não do espaço e da duração, que não saberíamos ocupar.

 

Se você acredita em Deus e nas Escrituras e estiver certo, será beneficiado com a ida ao paraíso.

Se você acredita em Deus e nas Escrituras e estiver errado, não terá perdido nada.

Se você não acredita em Deus e nas Escrituras e estiver certo, não terá perdido nada.

Se você não acredita em Deus e nas Escrituras e estiver errado, você irá para o fogo eterno.

Quando penso na pequena duração da minha vida, absorvida na eternidade anterior, no pequeno espaço que ocupa, fundido na imensidade dos espaços que ignora e que me ignoram, aterro-me e me assombro de ver-me aqui e não alhures, pois não há razão alguma para que esteja aqui e não alhures, agora e não em outro qualquer momento. Quem me colocou nessas condições? Por ordem e obra e necessidade de quem me foram designados esse lugar e esse momento? Memoria hospitis unius diei praetereuntis. (A lembrança de hóspede de um dia que passa. Sabedoria, V, 15.)

 

Ante a cegueira e a miséria do homem, diante do universo mudo, do homem sem luz, abandonado a si mesmo e como que perdido nesse rincão do universo, sem consciência de quem o colocou aí, nem do que veio fazer, nem do que lhe acontecerá depois da morte, ante o homem incapaz de qualquer conhecimento, invade-me o terror e sinto-me como alguém que levassem, durante o sono, para uma ilha deserta, e espantosa, e aí despertasse ignorante de seu paradeiro e impossibilitado de evadir-se. E maravilho-me de que não se desespere alguém ante tão miserável estado. Vejo outras pessoas ao meu lado, aparentemente iguais; pergunto-lhes se se acham mais instruídas que eu, e me respondem pela negativa; no entanto, esses miseráveis extraviados se apegam aos prazeres que encontram em torno de si. Quanto a mim, não consigo afeiçoar-me a tais objetos e, considerando que no que vejo há mais aparência do que outra coisa, procuro descobrir se Deus não deixou algum sinal próprio.

 

O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora. Quantos reinos nos ignoram!

 

Por que são limitados meu conhecimento, minha estatura, a duração de minha vida a cem anos e não a mil? Que motivos levaram a natureza a fazer-me assim, a escolher esse número em lugar de outro qualquer, desde que na infinidade dos números não há razões para tal preferência, nem nada que seja preferível a nada?

(...) A vida humana é apenas uma ilusão perpétua; o que fazemos é enganar-nos e iludir-nos mutuamente. Ninguém fala de nós na nossa presença como na nossa ausência. A união que existe entre os homens é fundada sobre este mútuo embuste; e poucas amizades subsistiriam se cada um soubesse o que o seu amigo diz dele quando não está presente, ainda que ele fale então sinceramente e sem paixão.

O homem é apenas disfarce, engano e hipocrisia em si mesmo e para com os outros. Não quer que lhe digam a verdade e evita dizê-la aos outros; e todas estas disposições tão afastadas da justiça e da razão têm uma raiz natural no seu coração.

Agitação, descanso. Quando me ponho às vezes a considerar as diversas agitações dos homens, e os perigos e trabalhos a que eles se expõem, na corte, na guerra, donde nascem tantas querelas, paixões, cometimentos ousados e muitas vezes nocivos, etc., descubro que toda a miséria dos homens vem duma só coisa, que é não saberem permanecer em repouso, num quarto. Um homem que tenha o bastante para viver, se fosse capaz de ficar em sua casa com prazer não sairia para ir viajar por mar ou pôr cerco a uma praça-forte. Ninguém compraria tão caro um posto no exército se não achasse insuportável deixar-se estar quieto na cidade; e quem procura a convivência e a diversão dos jogos é porque é incapaz de ficar, em casa, com prazer.

Mas quando pensei melhor, e que, depois de ter encontrado a causa de todos os nossos males, quis descobrir a razão desta, achei que há uma bem efetiva, que consiste na natural infelicidade da nossa condição frágil e mortal, e tão miserável que nada nos pode consolar quando nela pensamos a fundo.

Há homens que passam a vida sem aborrecimento, jogando todos os dias alguma coisa, e que se julgariam infelizes, se lhes dessem todas as manhãs o dinheiro que pudesse ganhar a cada dia, com a condição de não jogar.

Dir-se-á talvez que é o divertimento do jogo que procuram e não o ganho.

Mas se o fizerem jogar de graça, não de apaixonam, e aborrecer-lhe-ão.

Não é então o divertimento que procuram: um divertimento frio e sem paixão aborrecê-los-á.

É preciso que se apaixonem, e que se excitem a si mesmos, imaginando que seriam felizes, se ganhassem o que não queriam que se lhes desse com a condição de não jogar; que formem um objeto de paixão que lhes excite o desejo,  a cólera, o medo, a esperança.

Assim, os divertimentos que fazem a felicidade dos homens não são somente baixos: são ainda falsos e enganosos…

Quando considero a curta duração da minha vida, engolida pela eternidade que passou e passará antes e após o pequeno intervalo que preencho, ou que possa ver, engolfado pela imensidão infinita de espaços que me são inescrutáveis e que não me conhecem, tenho medo, e me surpreendo de estar aqui e não acolá, agora e não antes ou depois. Quem me pôs aqui? Quem deu a ordem e direção para que este espaço e este intervalo de tempo sejam ocupados por mim?

Quando queremos reprovar de forma útil,  e mostrar ao outro que está errado, devemos observar que lado  do  problema  ele  considera,  pois  provavelmente  tem  razão daquele ponto de vista. Reconhecendo então que ele está certo, mas descobrindo-lhe ao mesmo tempo o outro lado da questão, agradamos-lhe e convencemo-lo, pois percebe que não estava errado, mas apenas deixara de ver todos os lados.

Nós fazemos parte da natureza e nos localizamos entre dois infinitos dela, o infinitamente pequeno e o infinitamente grande e somos incapazes de entender ambos. Somos ainda impossibilitados de entender o nada de onde viemos e entender o infinito onde estamos imersos. Nós somos alguma coisa, mas não tudo. Nós conhecemos algumas coisas, mas nunca conheceremos tudo, pois os nossos sentidos não percebem as coisas extremas. Nós estamos situados entre o ser e o nada.

Assim como não sei de onde venho, também não sei para onde vou Sei, apenas, que, ao sair deste mundo, cairei para sempre no nada ou nas mãos de um Deus irritado, sem saber em qual dessas duas situações deverei ficar eternamente. Eis a minha condição, cheia de miséria, de fraqueza, de obscuridade. Concluo, de tudo isso, que devo passar todos os dias da minha vida sem pensar em descobrir o que me deve acontecer. Talvez pudesse encontrar algum esclarecimento nas minhas dúvidas, mas não quero dar-me a esse trabalho, nem dar um passo nesse sentido. Tratando com desprezo os que com isso se preocupam, quero experimentar esse grande acontecimento sem previdência e sem temor, deixando-me passivamente conduzir à morte, na incerteza da eternidade da minha condição futura.

É injusto que se apeguem a mim, embora o façam com prazer e voluntariamente. Eu iludiria aqueles em quem despertasse desejo, pois não sou o fim de ninguém e não tenho com o que satisfazê-los. Não estou eu pronto a morrer? E, assim, o objeto de apego dessas pessoas logo morrerá. Logo, quando não seria eu culpado por fazer crer numa falsidade, embora eu a adoçasse a acreditasse nela com prazer, e que ela me desse prazer, ainda assim sou culpado de me fazer amar. E, se atraio as pessoas para que se apeguem a mim, devo advertir aqueles que estariam prontos a consentir na mentira de que não devem acreditar, qualquer que seja a vantagem que daí me advenha.

 

A persistência é a força geradora da vida dentro de nós;

a persistência é o combustível para as grandes realizações,

a persistência é a fé que nos faz acreditar no impossível,

a persistência é a coragem que nos faz enfrentar obstáculos que parecem maior do que nós,

persistência é garantia de vitória após combate;

Seja persistente, porque enquanto existir vida nada é impossível para aquele que persiste ignorando o impossível e acreditando em Deus.

Mas, quanto aos que passam a vida sem pensar nesse último fim da existência, de forma que, por essa razão, não descobrem em si próprios as luzes que os persuadam, deixando de procurá-las em outra parte e de examinar a fundo se essa opinião é daquelas que o povo recebe com uma simplicidade crédula ou daquelas que, embora obscuras por natureza, possuem, contudo, um fundamento bastante sólido e inabalável, eu os considero de maneira diferente.

É, por conseguinte, um grande mal permanecer nessa dúvida, sendo ao menos um dever indispensável investigar quando ela existe, porque aquele que duvida e não investiga se torna, então, não só infeliz, mas também injusto. Com efeito, se com isso se mostra tranquilo e satisfeito, se disso faz profissão e se por isso se sente orgulhoso, fazendo disso o motivo de sua alegria e de sua vaidade, não tenho termos para qualificar tão extravagante criatura.

Mas mesmo limitados, somos os únicos seres pensantes da natureza. Somos também um dos seres mais fracos da natureza, mas somos fracos pensantes e é no pensamento que está nossa dignidade, nossa nobreza e superioridade frente à natureza. Nós somos miseráveis e mortais, mas sabermos que somos miseráveis e mortais e nisso está nossa grandeza.

 

A FILOSOFIA E O DUALISMO ANTROPOLOGICO DE DESCARTES

 



1. Ponto de partida: a busca de um método de pensamento eficaz e universal

2. Descartes acredita ter encontrado isso em um método modelado no matemático: partindo de proposições óbvias e deduzindo outras a elas ligadas

3. Mas, uma vez que tudo pode ser posto em dúvida, em que se baseiam as evidências? das proposições por onde começar?

4. Descartes resolve o problema argumentando que existe uma grande certeza (Eu existo como ser pensante), no qual todos os outros podem se basear:

- a existência da alma, como res cogitans independente da matéria

- a existência de Deus

- a existência de matéria e corpos (mas ele não é realista ingênua, mas crítica porque admite a distinção entre qualidades primárias e secundárias), existência garantida por Deus → o problema do erro

5. A filosofia de Descartes está na origem de um duplo dualismo sobre o qual os filósofos subsequentes irão refletir:

a) dualismo entre substância infinita e substância finita (→ Spinoza e a singularidade da substância)

b) dualismo entre res cogitans e res extensa (→ ocasionalismo, paralelismo psicofísico, harmonia pré-estabelecida).

Resolvi fingir que todas as coisas que já passaram pela minha mente não eram mais verdadeiras do que as ilusões dos meus sonhos. Mas, logo a seguir, percebi que no momento em que quis pensar que tudo era falso, era necessariamente necessário que eu, que estava pensando, fosse alguma coisa. E notando que esta verdade: penso, logo existo, é tão firme e firme que todas as suposições mais extravagantes dos céticos foram incapazes de abalá-la, decidi que poderia aceitá-la, sem escrúpulos, como o primeiro princípio da filosofia. Eu estava procurando”. (Descartes, Discurso sobre o método)

1/ Da dúvida à certeza

A desorientação da qual nasceu a filosofia cartesiana - Ao sair do colégio em que seguiu estudos, Descartes sente-se desorientado e desconfiado da cultura. Na verdade, as diversas disciplinas que estudou não lhe dão a ideia de que certezas possam ser alcançadas nos diversos campos do conhecimento. A única disciplina que o fascinou foi a matemática, esta capaz de alcançar certezas porque parte de verdades óbvias (os axiomas) e deriva todas as outras verdades por dedução. Que seria bom – é o que pensa Descartes – se fosse possível aplicar o método matemático a todos eles as demais disciplinas (moral, teologia, etc.) para alcançar certezas também nestes campos.

É assim que Descartes inicia sua pesquisa filosófica: deve ser desenvolvido um método de pensamento aplicável em todos os campos do conhecimento, que tenha a matemática como modelo. Este método deve ser, portanto, do tipo dedutivo, partindo de princípios verdadeiros e evidentes para obter longas cadeias de raciocínios e demonstrações que conduzem a outras verdades. O modelo de raciocínio matemático-dedutivo, segundo ele, deve se tornar o ponto de referência para todos os demais ramos do conhecimento. Desta forma, Descartes torna-se o iniciador do racionalismo, isto é, daquela corrente filosófica que exalta o raciocínio dedutivo, que terá muito sucesso na filosofia do século XVII. As características do método de pensamento, modelado por Descartes na matemática, que permite sair da desorientação – Descartes elabora, portanto, um método de pensar, tomando como modelo o método da matemática, a ser aplicado a todos os ramos do conhecimento. Vamos ver como isso é feito. Isso acontece com base em quatro regras básicas:

1. a regra da evidência (aceitar apenas proposições óbvias no raciocínio)

2. a regra de análise (dividir os problemas complexos nos mais simples que os compõem)

3. a regra da síntese (sempre examine primeiro o conhecimento mais simples à medida que avança gradualmente em direção aos mais complexos)

4. a regra de enumeração e revisão (revise todas as passagens do meu raciocínio para certifique-se de que nada seja ignorado)

Ou seja: cada vez que me deparo com um problema filosófico, moral, etc., tenho que aplicar este método e isto é, devo antes de mais nada certificar-me de que parto de afirmações óbvias; Eu então tenho que quebrar os problemas mais complexos em mais simples; Tenho que resolver primeiro os problemas mais simples e depois os mais complexos; por último, tenho que refazer todos os passos que realizei, para verificar se não omiti nenhum. Se eu proceder assim, poderei resolver todos os problemas corretamente. A dificuldade constituída pela primeira regra, a da evidência: pode-se duvidar que uma verdade evidente o seja realmente - Até aqui tudo parece correr bem, mas surge imediatamente uma primeira dificuldade.

A primeira regra, a da evidência, coloca de facto um problema: eu disse que tenho que partir de verdades óbvias, mas quem me garante que uma verdade é óbvia? Na verdade, quando sinto algo tão evidente (por exemplo, é evidente, ou seja, tenho certeza, que estou lendo esta frase agora), quem me garante que na realidade não está me enganando? Na verdade, posso duvidar que ele esteja realmente lendo e que esteja realmente tendo alucinações ou que esteja realmente sonhando. Posso essencialmente duvidar de todas as afirmações óbvio e acho que estou me enganando.

Porém, colocar tudo em dúvida pode nos ajudar a encontrar certezas: A dúvida de Descartes é metódica, não cética - Para sair dessa dificuldade Descartes decide seguir o caminho da dúvida. Ou seja, ele decide tentar duvidar de tudo para ver se há algo que resista ao duvidar e provar ser realmente evidente e indubitável. Enquanto ele mesmo escreve descrevendo seu caminho de busca da verdade, neste momento tratava-se de “rejeitar tudo como absolutamente falso o que eu poderia insinuar a menor dúvida, para ver se, no final, sobrou alguma coisa em minha mente absolutamente indubitável". Descartes sustenta, portanto, que a sua dúvida não é do tipo cético, isto é, como a dos antigos filósofos que o usaram para negar a existência da verdade, mas metódico: isto é, é um meio para descobri-la: colocar tudo em dúvida serve para ver se podemos encontrar algo certo e verdadeiro que resistir à dúvida.

A hipótese do gênio maligno – Tudo portanto pode ser questionado, até as coisas que nos parecem mais certas, como verdades matemáticas, cuja verdade aparentemente não podemos duvidar, porque eles continuariam a ser válidos mesmo que nos aparecessem em um sonho. Na verdade, é verdade que

1+1 ainda seria igual a 2, mesmo que você estivesse simplesmente sonhando em fazer essa soma.

Para demonstrar que neste caso também podem surgir dúvidas, Descartes elabora uma espécie de experiência mental, ou seja, uma experiência fantasiosa, que não pode realmente ser realizada, mas que, no entanto, nos ajuda a pensar e a esclarecer as nossas ideias. Então vamos imaginar que fomos criados por um "gênio do mal, astuto e enganador" (genius aliquem malignum) que também gostava de nos fazer pensar que era óbvio coisas que realmente não são, desde as verdades mais simples (por exemplo, posso estar me enganando pensando que estou lendo esta frase agora, mas na verdade estou tendo alucinações), até as mais complexas, incluindo as verdades da própria matemática (posso me enganar quando penso que 1+1=2).

Em essência, podemos duvidar que toda a nossa realidade nada mais seja do que um sonho enganoso produzido pelo gênio do mal. Tudo é ilusório, tudo pode ser duvidado, não há verdade (esta dúvida extrema que reveste toda a realidade é definida por Descartes como dúvida hiperbólica, ou seja, exagerada, extrema precisamente). Como sair desta situação angustiante em que todas as nossas certezas parecem desmoronar?

A descoberta de uma verdade indubitável: penso, logo existo – Descartes argumenta que é a dúvida ele mesmo para nos ajudar a encontrar uma saída para as incertezas. Na verdade, através da dúvida chegamos a uma grande certeza (na qual Descartes mais tarde basearia todas as outras): é a certeza da nossa existência como seres pensantes. Na verdade, vamos até supor que estamos enganados sobre tudo e que nada é certo. No entanto, há uma coisa da qual não podemos absolutamente duvidar: é a nossa existência como seres que eles pensam e duvidam. Em outras palavras, a dúvida pode infiltrar-se em tudo, mas ao fazê-lo ainda estamos duvidando e através deste ato adquirimos uma única certeza incontestável: a de existir como seres duvidando, pensando.

Descartes extrai assim da própria dúvida a certeza indubitável que o homem tem de si mesmo como estar pensando. Ele escreve, portanto, que a grande verdade indubitável é que “Penso, logo existo”, em latim: ego cogito ergo sum. Aqui está a passagem em que Descartes conta como, através do exercício da dúvida de que tudo é falso, chegou à grande certeza de existir como sujeito pensante:

Resolvi fingir que todas as coisas que alguma vez passaram pela minha mente não eram mais verdadeiras do que as ilusões dos meus sonhos. Mas, logo a seguir, percebi que no momento em que quis pensar que tudo era falso, era necessariamente necessário que eu, que estava pensando, fosse alguma coisa. E notando que esta verdade: penso, logo existo, é tão firme e firme que todas as suposições mais extravagantes dos céticos foram incapazes de abalá-la, decidi que poderia aceitá-la, sem escrúpulos, como o primeiro princípio da filosofia. Eu estava procurando.

Essa ideia já estava presente em Santo Agostinho – A ideia da dúvida como fundamento da certeza da existência já estava presente em Santo Agostinho, que a utilizou como objeção contra os céticos. Na verdade, argumentavam que podemos estar errados sobre tudo e que, portanto, não existe verdade: Agostinho respondeu “se estou errado, eu existo" (em latim, si fallor, sum): isto é, posso estar errado sobre tudo, mas pelo menos posso fazer tenha certeza: há alguém que está errado, portanto tenho certeza da minha existência. Não se trata, portanto, de uma ideia nova na história do pensamento (foi retomada também por São Tomás), mas Descartes faz dela o fulcro de sua filosofia e de todas as outras certezas, iniciando uma corrente de pensamento que influenciará os séculos seguintes.

Descartes como inovador no que diz respeito à tradição e fundador da filosofia moderna - Ao identificar o ser com o pensamento (existimos como seres pensantes, o ser é acima de tudo pensamento), Descartes torna-se o precursor daquele subjetivismo gnoseológico para o qual a verdade não é mais uma realidade oposta ou pressuposto pelo pensamento, mas algo encontrado na realidade do próprio pensamento (identidade do ser e pensar). Ele não diz eu existo, logo penso, mas o oposto – penso, logo existo – e ao fazê-lo não ele funda o pensamento no ser, mas o ser no pensar: a realidade da qual tudo deriva é o sujeito pensante.

Uma pedra angular da metafísica tradicional é derrubada e a filosofia moderna de natureza subjetivista é inaugurada. Para esclarecer o raciocínio de Descartes, a seguinte ilustração (retirada de volume: M. Tanaka, A maravilhosa vida dos filósofos, Milão, Vallardi, 2018). Antes de Descartes sim ele concebeu o mundo, isto é, o conjunto das coisas, como uma totalidade de seres existentes em si, incluindo o sujeito que os pensou (parte superior da ilustração). Depois que Descartes questionou a existência de tudo, a única certeza que resta é o sujeito e todo o resto é algo dele é pensado (a parte inferior da ilustração, onde os objetos são hachurados; observe como também delineia-se o corpo do tema da escrita: entenderemos o motivo disso mais tarde).

2/ Todas as outras derivam da certeza do “Penso, logo existo”.

Uma vez encontrada a certeza do cogito, todas as outras certezas podem ser fundadas nela: a existência da alma, de Deus e do mundo - Encontrada uma primeira certeza, pode-se partir dela para obter todas elas as outras certezas, seguindo o método de pensamento modelado na matemática que Descartes desenvolveu no início de sua jornada filosófica. A partir da evidência do “cogito ergo sum” (“Penso, logo existo”). Descartes deduz assim toda uma série de outras verdades:

1/ em primeiro lugar, do cogito podemos deduzir que a mente ou alma existe – Provado que penso e que, portanto, tenho certeza de que existo, isso é certo de que sou alguma coisa, é uma questão de ver o que sou. Descartes começa observando que posso duvidar de que sou algo material, isto é, que tenho um corpo (mãos, braços, pernas, etc.), e que também posso duvidar de andar, de me alimentar, etc. O único o que não posso duvidar de ser é o pensamento: na verdade, se isso me for tirado, deixo de existir. Sou, portanto, um ser, uma coisa que pensa (res cogitans em latim, ou seja, “coisa que pensa”). Daí a conclusão de que existimos como “almas” ou “mentes”, seres imateriais, pensantes e conscientes. Todo o nosso ser reside apenas no pensamento e não tem nada a ver com o corpo. Só se pode ter autoconsciência exercitando o pensamento, que não está ligado às sensações corporais, mas independente deles porque “este eu, isto é, a mente pela qual sou o que sou, é inteiramente distinto do corpo, e é realmente mais fácil conhecermo-nos uns aos outros do que isso; e não deixaria de ser tudo o que é mesmo que o corpo não existisse" Podemos ler na íntegra a passagem em que Descartes expõe estes conceitos:

E observando que esta verdade: penso, logo existo, era tão firme e certa que todas as suposições mais extravagantes dos céticos não poderiam abalá-la, julguei que poderia aceitá-la sem medo como o primeiro princípio da filosofia que buscava. . Então, examinando exatamente o que eu era e vendo que poderia fingir que não tinha corpo e que não estava ali era o mundo ou qualquer lugar em que me encontrava, mas que não poderia, portanto, fingir que não estava lá; e que, pelo contrário, pelo próprio facto de pensar que duvidava da verdade de outras coisas, seguia com absoluta evidência e certeza que eu existia; enquanto, assim que parei de pensar, mesmo que todo o resto do que sempre imaginei fosse verdade, eu não teria nenhuma razão para acreditar que existia: por tudo isso eu sabia que era uma substância cuja essência ou natureza reside apenas no pensamento e que, para existir não tem necessidade não tem lugar nem depende de algo material. De modo que este eu, isto é, a mente pela qual sou o que sou, é inteiramente distinto do corpo, do qual é ainda mais fácil saber do que isso; e não deixaria de ser tudo o que é, mesmo que o corpo não existisse.” (Descartes, Discurso sobre o método, IV).

 

É possível ter autoconsciência sem o corpo?

Para Descartes, é possível ter autoconsciência independentemente do corpo e das percepções, apenas exercitando o pensamento (Penso, logo existo). Esta ideia já tinha aparecido na filosofia medieval com o que hoje chamaríamos de experiência mental do homem voador concebida pelo filósofo árabe Avicena (980-1037), que é considerada uma antecipação das ideias de Descartes. Imaginemos – argumenta Avicena – que um homem seja criado e que esteja suspenso no ar, desligando-o completamente de qualquer contato sensorial,incluindo a capacidade de tocar partes de seu próprio corpo. Tendo acabado de ser criado, este homem também não tem memória de experiências sensoriais anteriores. Perguntemo-nos: será que este homem, na ausência das sensações atuais e da memória das sensações anteriores, teria a consciência do seu próprio ego? Segundo Avicena (e também segundo Descartes) este homem ainda conseguiria tê-lo. A consciência do ego não está ligada às sensações corporais.

 

O problema do dualismo cartesiano: mente e corpo são realidades independentes

Esta visão do ego como um ser essencialmente espiritual, composto apenas de pensamento e que não necessita de corpo para existir, abriu na filosofia de Descartes e na seguinte o problema da relação entre a mente e o corpo. Na verdade, para Descartes, o corpo é uma realidade distinta da mente e da qual esta não precisa ter consciência de si mesma.

Descartes demonstra que mesmo o corpo (isto é, o nosso ser entendido como algo que ocupa um espaço, isto é, como uma realidade material) não é uma alucinação, mas uma certeza indubitável porque a sua existência é garantida por Deus. permanece, no entanto, o fato de que, em sua concepção, alma e corpo são duas realidades separadas e independentes: a alma nada tem a ver com o corpo porque para conceber a alma posso fazer sem me referir ao corpo. Minha alma é uma realidade totalmente espiritual, autossuficiente, que nada tem a ver com a matéria, da qual o corpo é feito (como vimos, mesmo que o corpo fosse uma alucinação, para Descartes a alma ainda existiria sozinha). A mente é concebida por Descartes como espírito puro e não como algo incorporado em um corpo, ideia que foi aceita na filosofia anterior, por exemplo, por Aristóteles ou por São Tomás de Aquino, e que ainda hoje muitos filósofos aceitam, apesar das convicções de Descartes

.

Se são duas realidades diferentes, como podem interagir entre si? Surge então o problema de compreender como estas duas realidades diferentes (corpo e alma) estão ligadas entre si. Na verdade, é também evidente, segundo Descartes, que a minha mente é capaz de interagir com o meu corpo (quando, por exemplo, decido levantar um braço ou deitar-me). Como podem essas duas substâncias tão diferentes uma da outra interagir? Por um lado, está a nossa alma, substância imaterial ou pensante (res cogitans, “coisa pensante”); do outro está o corpo que é uma substância material, isto é, que se estende no espaço (res extensa, “coisa estendida”). Como algo imaterial pode agir sobre algo material? Na verdade, a alma é uma substância de natureza espiritual, que não ocupa espaço, não tem peso, não tem forma, etc.; o corpo é, em vez disso, uma substância que se estende no espaço, tem um peso, uma forma, etc.

São duas substâncias extremamente diferentes, tanto que podemos tratá-las e descrevê-las de maneiras extremamente diferentes: por exemplo, posso pesar o cérebro, mas não posso pesar os pensamentos que ele produz. Posso dizer que a minha cabeça está a dois metros da cabeça de outra pessoa, mas não faz sentido dizer que os meus pensamentos estão a dois metros da outra pessoa.

Mente e corpo são, portanto, duas coisas extremamente diferentes. No entanto, permanece o facto de que estão interligados e que – segundo uma concepção bem conhecida e difundida – a minha mente dá ordens ao meu corpo, e assim por diante. Como essa conexão pode ocorrer? Como essas duas substâncias extremamente diferentes podem interagir uma com a outra?

Na verdade, se é claro que uma substância pode agir sem dificuldade sobre uma substância do mesmo tipo, não é claro como duas substâncias diferentes podem interagir uma com a outra. É claro, por exemplo, que uma bola de bilhar que atinge outro faz com que ele se mova porque é uma relação entre dois objetos físicos, feitos da mesma substância e que, portanto, podem interagir entre si. Mas quando temos de explicar o facto de a minha alma, o meu pensamento, poder comandar os músculos do meu braço para se levantarem, temos dificuldade em explicar esta relação entre duas coisas diferentes. Por exemplo, posso usar a minha mão para mover a minha caixa (a mão é material e actua sobre a caixa que é algo material, como acontece entre as duas bolas de bilhar), mas se eu quisesse mover a minha caixa usando não a mão, mas meu pensamento, eu não poderia fazer isso. E, no entanto, segundo Descartes, a relação entre a minha mão e o meu pensamento que a faz mover é a mesma que existe entre o caso e o meu pensamento que o move. A mão é algo material exatamente como o caso, o pensamento não. Então, por que o pensamento deveria ser capaz de agir na mão de maneira diferente do que acontece com o caso?

É um problema que Descartes resolve de forma um tanto simplista, referindo-se a uma glândula presente em nosso corpo, a glândula pineal, que se encontra na base do cérebro e que tem a função de conectar mente e corpo. No entanto, a glândula ainda é uma parte material do nosso corpo e, portanto, permanece sempre um mistério como ela pode se comunicar com a mente.

Os filósofos subsequentes tentarão então esclarecer ainda mais este problema, elaborando várias soluções alternativas para ele. de Descartes (ver capítulo: Soluções para o dualismo cartesiano):

 

- a teoria do ocasionalismo (Geulinx, Malebranche);

- a teoria do paralelismo psicofísico (Spinoza);

- a teoria da harmonia pré-estabelecida (Leibniz).

 

2/ do cogito podemos também deduzir a existência de Deus: do eu penso podemos deduzir não só a minha existência (e, em particular, a minha existência como pensamento, mente ou alma), mas também a existência de Deus. , posso pensar em Deus, ou seja, sua ideia está presente em minha mente e isso segundo Descartes nos permite demonstrar que Deus realmente existe.

Descartes elabora três demonstrações da existência de Deus a partir do fato de que sua ideia se encontra em nossa mente:

a/ a primeira demonstração baseia-se na ideia de que um ser finito e imperfeito não pode criar um ser infinito e perfeito (é uma prova também definida como “a marca do fabricante”: não poderíamos ter a ideia de Deus se ele o fizesse não 'impresso em nós) – Se analisarmos o conteúdo da nossa mente, descobrimos que existem três tipos nela:

• ideias adventícias ("estrangeiras e de fora"; elas são aprendidas com experiência e com os sentidos: por exemplo, a casa, a árvore)

• ideias factuais (elas são "feitas e inventadas por nós": o unicórnio, o Pato Donald)

• ideias inatas (“nasceram connosco”; não são aprendidas através da experiência, mas já encontramos presentes em nossa alma antes de termos qualquer experiência, ou seja, são inatos: são os conceitos matemáticos, por ex. o teorema de Pitágoras ou a ideia de Deus, que todos os homens são capazes de formular).

Tal como as ideias factuais, que são criadas por nós e não coincidem com uma realidade externa, mesmo as adventícias não nos dão qualquer garantia de que correspondam a algo que realmente existe fora de nós: de facto, poderíamos sempre pensar que nós os criamos ou que eles dependem de nossa alucinação. Já a ideia de Deus apresenta-se como algo singular em relação às duas primeiras: é a ideia de algo perfeito e infinito, claramente superior a nós.

Descartes então, retomando um princípio da filosofia medieval (“nenhum ser pode produzir um efeito ontologicamente superior a si mesmo”, isto é, a causa nunca pode produzir um efeito superior a si mesmo) aponta que o homem, um ser finito, não pode criar o ideia de um ser infinito, ou seja, Deus, que é “uma substância infinita, eterna, imutável, independente, onisciente, onipotente”. Conclui, portanto, que, observando a presença em nós da ideia de Deus como um ser infinito, eterno, imutável, etc., devemos admitir que ela se encontra em nós, mas que não pode tirar sua origem de nós mesmos.

que somos substâncias finitas; portanto, deve ter sido “colocado em nós por alguma substância verdadeiramente infinita”.

b/ a segunda prova é baseada na ideia de que não podemos ter criado a nós mesmos

A segunda demonstração está ligada à anterior porque retoma a ideia de que nós, seres finitos, temos em mente a ideia de perfeição e infinito, ou seja, de Deus. Isso nos obriga a pensar que Deus existe porque foi ele quem nos criou. Na verdade, se assumissemos que nos criamos, excluindo a existência de Deus, isso não explicaria por que nos teríamos criado imperfeitos apesar de termos dentro de nós a ideia de perfeição: teria sido mais lógico e sensato nos criarmos perfeito tendo em mente a ideia de perfeição. Em vez disso, somos imperfeitos e isso mostra que não somos a nossa própria causa e que a nossa causa é Deus.

c/ a terceira e última demonstração é uma retomada da prova ontológica de Santo Anselmo -

Partindo sempre da observação de que nos meus pensamentos existe a ideia de Deus, devo admitir que ele existe porque senão me contradiria: assim como não posso pensar uma triângulo e argumentar que a soma de seus ângulos não é igual a 180°, da mesma forma Não posso pensar em Deus, ou seja, “o ser perfeito e completo de tudo”, e depois argumentar que existe apenas na minha mente, mas não na realidade: seria uma contradição, como afirmar que a soma dos ângulos do triângulo não é igual a 180°! Se de fato eu acho que Deus como o ser perfeito que possui tudo, então ele também possuirá a existência e, portanto, não existirá apenas em minha mente, mas também na realidade. Esta é a recuperação por Descartes da chamada prova ontológica de Santo Anselmo, segundo a qual, tendo a O conceito de Deus em nossa mente implica que ele também existe na realidade.

3/ finalmente, do cogito também podemos deduzir a existência da matéria, dos corpos (incluindo o nosso próprio corpo) e de todo o mundo exterior a nós, que inicialmente questionamos. O o cogito na verdade nos permite provar que Deus existe e, através de Deus, também podemos ter certeza da existência do mundo que nos rodeia. A certeza da existência de Deus como ser perfeito, de fato, faz dele o fiador da evidência de todas as minhas verdades, ou o fundamento da verdade de todas as minhas verdades as coisas que duvidamos no início. Em outras palavras, estabelecido que Deus existe, é fácil reconhecer que “ele é  impossível que ele nos engane”, pois no engano se encontra a imperfeição. É portanto inimaginável que Deus nos criou e continuamente nos engana fazendo-nos perceber um mundo ao nosso redor que na verdade não existe

. Deus é concebido por Descartes, como em toda a tradição ocidental, como o perfeição suprema: ele é onipotente, onisciente, bom, justo e por isso não pode nos enganar.

O problema do erro: Deus não nos engana, então por que às vezes erramos? Neste ponto, porém, surge um problema: se Deus é o fiador da verdade, então como é possível o erro? Segundo Descartes, deriva do conflito entre o intelecto e a vontade do homem. O intelecto humano é limitado, na verdade podemos pensar em um intelecto mais poderoso que o nosso, que é a de Deus. A vontade humana, por outro lado, é livre, ou seja, ilimitada: na verdade, a nossa vontade depende dela escolhas e se a vontade fosse limitada, ou seja, não totalmente livre, não poderíamos escolher. Nós na verdade, sentimo-nos responsáveis ​​pelas nossas escolhas porque sentimos que somos livres para as fazer ou não: se não nos sentíssemos completamente livres, por exemplo, se sentíssemos que estávamos condicionados por algo maiores do que nós, não poderíamos nos sentir responsáveis. Portanto: a vontade é completamente livre e sem limitações, o intelecto pode ser limitado. Quando escolhemos, tanto a vontade quanto o intelecto entram em jogo. Se o intelecto não conseguir  percebendo as coisas com clareza, a vontade não tem critérios óbvios de orientação e pode até escolher os errados.

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Rionaldo Azzi, Razão e Fé. O discurso da dominação colonial

 


 


 

Síntese elaborada por Pe. Paolo

 I

O Domínio Humano Sobre Cosmo

         A ultura indígena, de fato, ao mesmo tempo que se sobrepunha à natureza, procuravaadaptar-se a ela. Dir-se-ia que o indígena, separado da natureza pelo lume de razão um fogo

que se acendera dentro dele  procurava por outro lado permanecer unido à própria natureza, com sua mãe e nutris. Na cosmovisão indígena, de fato, o homem era considerado parte integrante do mundo da natureza, vivendo assim em comunhão com os demais seres da terra. Em conseqüência desse modo de vida, todos os seres da natureza eram considerados na cosmovisão indígena como interligados, exercendo, conforme o caso, influências recíprocas, benéficas ou maléficas. Em certos rituais de dança, por exemplo, os indígenas imitavam os gestos de determinados animais ou suas formas, visando seja facilitar sua caça, seja preservar o grupo de seus ataques.

 

       Enquanto os indígenas viam o mundo a partir de sua inserção nele, os conquistadores

e evangelizadores o contemplavam a partir de um distanciamento, típico da perspectiva européia. Para eles, a nova terra e seus habitantes eram primordialmente um " objeto " de estudo, algo que se lhes deparava como totalmente fora de sua realidade. Trata-se, evidentemente, de um " outro" mundo e esses " outros" habitantes do território passaram a ser analisados com base nas categorias cosmológicas e antropológicas vigentes na Europa.

 

      Cabe bem aqui a penetrante observação de Keith Thomas

 

      É exatamente essa vontade decidida de explorar a natureza dos novos territórios descobertos, a fim de transferir seus produtos para metrópole, que marca a atuação inicial dos conquistadores.

 

     O universo, portanto, é visto como uma " construção material ", análoga aquelas

que os homens estão fazendo em suas cidades. O homem urbano não é mais agricultor, mas artífice, e Deus é visto, portanto, como o " Soberano Artífice ".

 

     Enquanto na concepção indígena de raiz agrária o cosmo é sentido como dotado de vida, da qual o próprio homem participa, na concepção européia o universo passa a ser visto como pura materialidade. Com resultado da mentalidade urbana e comercial da época, opera-se uma verdadeira" coisificação " da natureza. Esta é vista primordialmente como objeto de " conquista", de "posse" de "compra e venda" e, ao mesmo tempo, como "material" a ser utilizado para as realizações humanas.

   Paradoxalmente, embora Deus seja considerado nessa época pelos intelectuais como puro

espírito, o seu reino ocupa um lugar inquestionado: é acima das nuvens e do céu, tal qual                   

é visto pelos homens.

 

     Dessa perspectiva filosófica européia e cristã, o mundo natural existe, não só para dar

glória a Deus, mas também para servir o homem. Esse direito do homem ao domínio sobre a natureza é enfatizado por André Thevet na reflexão filosófica com que inicia a descrição de sua viagem ao Brasil.  Todos os elementos, e tudo o mais que existe entre a Lua e o centro da Terra, parecem Ter sido feitos ( como aliás o foram ) para o homem.

 

    É importante ter presente que esse eurocentrismo cosmológico facilitava também os interesses econômicos de exploração e depredação do mundo natural que estivesse fora dos limites da Europa, nessa época de expansão comercial.

 

    Para aqueles que se integravam cada vez mais na terra brasileira, era importante insistir nessa luta filosófica pela revisão da antiga cosmologia de matriz aristotélica, a qual tivera grande aceitação na Europa medieval. Era necessário provar aos europeus não só que o Brasil era habitável, mas até mesmo gozava de um clima saudável dentro dos critérios vigentes na época.

 

   Entre os que se alinham nessa tarefa revisionista está Frei Vicente do Salvador, baiano de nascimento, que retoma a argumentação de Thevet:

 

   Opinião foi de Aristóteles e de outros filósofos antigos que a zona tórrida era inabitável, porque como o sol passa põe ela cada ano duas vezes para os trópicos, parecia-lhes que com tanto calor não poderia alguém viver.

 

   Mas ele nega a teoria aristotélica, declarando com ufanismo . Porém a experiência têm já mostrado que a Zona tórrida é habitável, e que algumas partes dela vivem os homens com mais saúde que em toda a Zona temperada, principalmente no Brasil.

 

                                    

                                  II

                

                      A Racionalidade Indígena Em Questão

 

 

    A exploração do continente americano foi realizada não só com base no pressuposto

de uma relativa desmoralização da natureza, mas também simultaneamente em conseqüência de uma  progressiva sacralização do homem. Se, por um lado, a natureza ia sendo destituída de seu caráter divino, por outro o próprio homem passava a ser revestido dele.

 

       Em suma, o ponto básico nessa perspectiva filosófica era a afirmação do direito

humano sobre uma natureza cada vez mais retificada. Assim sendo, desencanto do mundo natural  correspondia um processo de encantamento do próprio homem.

 

      Para Aristóteles, por seguinte, o fundamental era a manutenção da subordinação do corpo ao espírito, uma exigência da própria natureza, segundo ele. Em modo análogo a Platão, também Aristóteles desprestigia o componente físico do ser humano, para exaltar o componente psíquico. Essa visão antropológica era plenamente coerente com a atitude que o homem urbano assumia com relação ao cosmo. Se a missão do homem era  verdadeiramente exercer o domínio sobre a natureza a fisis, nada mais lógico que essa atuação  cameçasse a ser realizada a partir da relação do ser humano com o seu próprio corpo, ou seja, o seu elemento físico.

 

     Por isso, Aristóteles prega a contenção dos prazeres corporais, em vista da maior

satisfação proveniente dos prazeres do espírito. Visto que o homem é um ser fundamentalmente racional, a sua verdadeira felicidade deveria consistir nas atividades e no pensamento.

 

     Assim sendo, a perfeição humana exige como requisito fundamental o distanciamento das coisas terrenas, perecíveis, mortais e sujeitas à desagregação e á morte, para um envolvimento  sempre maior com os valores do espírito.

 

     Platão deixa bem claro em seus escritos que a luz da razão brilha com mais força entre  os gregos do que entre os povos considerados bárbaros. Assim sendo, os gregos eram seres mais próximos do divino que os demais. Por conseguinte, competia a esses seres superiores exercer a dominação sobre os demais seres humanos inferiores. Aristóteles, por sua vez, continua mantendo e explicitando essa mesma linha de pensamento.

 

    O pensamento grego foi difundido nos primórdios da Idade média sobretudo por meio de Agostinho. Ele utiliza algumas das matrizes gregas, sobretudo platônicas, para construir a visão de mundo, com base em uma perspectiva cristã.

 

    Em sua concepção antropológica, Agostinho não só mantém o princípio clássico da

superioridade do espírito sobre a matéria, da alma sobre o corpo, mas também enfatiza sobretudo a negatividade existente no corpo humano como conseqüência do pecado original. Assim sendo, sua visão de homem é marcadamente pessimista. Nessa análise, ele privilegia o aspecto psicológico. Interessa-lhe sobretudo colocar em relevo a força do mal que atinge o corpo por meio das paixões, obnubilando o espírito e dificultando assim o domínio do homem sobre sua existência.

 

   Na antropologia platônico-agostiniana, enfatiza-se a fragilidade do homem diante das

amarras do corpo. Já na perspectiva da antropologia aristotélico-tomista, prevalece a confiança no poder da razão humana enquanto reguladora das forças físicas.

 

   A visão antropológica dos conquistadores e colonizadores permanece mais próxima da  concepção aristotélico-tomista, embora não se deva descartar também a influência platônico-agostiniana.

 

       Os colonizadores, em geral, se julgavam seres capazes de colocar ordem na natureza,

exatamente porque dotados das luzes da razão. Essa consciência era fortalecida ainda mais quando eles se confrontavam com as populações indígenas. Por esta razão, assumiam diante

dessas tribos a mesma posição de superioridade que os gregos mantinham sobre os demais povos, considerados por eles como "bárbaros". Essa afirmação de superioridade, aliás, era essencial para o seu projeto  imperialista, que suponha não só o domínio sobre a natureza, mas também sobre os habitantes da nova terra. Dessa forma, o conceito de superioridade dos lusitanos como seres plenamente racionais garantia-lhes o exercício da conquista material e espiritual tanto do território como dos povos nele existente.

 

         Nesse aspecto, era fundamental ressaltar as diferenças existentes entre a cultura indígena e a cultura européia. Mais importante ainda, porém, era atribuir essas diferenças a uma inferioridade estrutural dos primitivos habitantes do território. Por isso, os conquistadores atribuem-se a plenitude da racionalidade humana e assemelham o mais possível o modo de vida dos índios a dos seres considerados inferiores na ordem da criação.

 

        Na ordem da racionalidade humana, tanto os indígenas como os negros trazidos em seguida como escravos são considerados como pertencentes ao ínfimo grau, bem próximos da pura animalidade. Salvo poucas exceções, é essa a tese mais generalizada entre os colonizadores tanto eclesiásticos como leigos.

 

       Em quase todos os discursos missionários, o índio é descrito como um ser bestial, selvagem com um tipo de vida bem próximo ao dos animais. Os religiosos não poupam palavras para apresentar de forma bastante dramática a condição indígena como totalmente distante dos padrões humanos da vida civilizada.

 

      Para os colonos, a diferença era uma justificativa para a escravidão do indígena, e

quando necessária até para o seu extermínio, em vista dos interesses econômicos da exploração do território. Para os religiosos, a preocupação era evidenciar a importância da atividade missionária.

 

      Na perspectiva clerical, é a dedicação e o sacrifício dos religiosos que conseguem

transformar esses seres animalescos em cidadãos lusitanos e bons cristãos. Quanto mais,portanto, fosse ressaltada a selvageria dos indígenas, mais patenteada ficava a necessidade de promotores da fé no novo território colonial.

 

      É interessante observar que, mesmo entre os missionários, a afirmação da racionalidade indígena varia conforme os interesses e os êxitos obtidos em sua tarefa. Martinho de Nantes, de fato, denuncia que outros religiosos se opunham à missão dos capuchinhos franceses,apelando para a irracionalidade dos índios.

 

     De início o religioso, homem dotado de fé e de razão, se defronta com grupos indígenas, considerados sem fé e sem uso da racionalidade. Cria-se assim uma oposição bem nítida: de um lado a fé e a razão do missionário; do outro, a descrença e a desrazão do indígena. Daí a  justificativa da dominação, seja através do intimidamento moral. Este processo de dominação passa  a ser conhecido como "redução" do gentio. É por meio da ação missionária que o indígena é transformado num ser verdadeiramente humano, dotado de fé e de razão. Por conseguinte, está  apto a ser declarado fiel da Igreja e súdito da Coroa, ou seja, integrado no serviço do Estado lusitano.

                 

                                      

                                          III

                

                         A Antropofagia E A Unidade Perdida

 

 

        Na mentalidade indígena, portanto, prevalece a idéia da circularidade existente na

natureza entre a morte e a vida, uma das concepções mais antigas da humanidade.

 

      Convém ter presente que a antropofagia ritual só se realizava após um combate ou uma guerra entre as tribos. Mas essa prática tinha também um fundamento sagrado, originário da própria percepção da natureza como algo divino. É por isso que o ato antropofágico era precedido de um longo cerimonial, separando-o, portanto, de uma simples alimentação comum.

 

    A prática do canibalismo era um momento solene na vida da tribo. Não se tratava de uma ação individual, mas de um ato comunitário, marcado por uma densidade social.

 

   Para os conquistadores, a manducarão da carne de inimigo morto era uma expressão da animalidade diabólica. Na mente dos indígenas, representava uma participação e uma integração no mundo sagrado da própria vida.

 

    Para os primeiros, o ato era considerado repugnante à própria natureza humana; segundo os outros, tratava-se de uma dignificação dessa mesma natureza. Vivendo em sociedades tribais ainda colocadas sobre o próprio mundo da natureza, os indígenas não tinham ainda consciência nítida da separação entre a esfera natural e a esfera  cultural. Mantinham, portanto, uma concepção de circularidade entre a morte e a vida, decorrente

da própria inserção do ser humano na natureza e de sua profunda dependência desta.

 

    Tudo leva  a crer que, na elaboração primitiva do mito do paraíso terrestre, a felicidade do ser humano consistiria no seu retorno a um jardim ou a um horto povoado de animais, voltando assim a conviver de forma integrada com a flora e com a fauna. Seria o retorno do homem ao se hábitat  primordial, ao paraíso natural do qual fora extra-jetado pela emergência da consciência.

 

    Não obstante, como resultado de uma elaboração sucessiva, o mito bíblico judaico-cristão acrescentou a presença de um "deus criador" nesse éden primitivo. A presença de uma divindade acima da natureza já era o resultado de uma significativa evolução da cultura humana, em que a consciência da racionalidade se tornara uma aquisição definitiva.

Segundo a cosmosição Judaíco- Cristã, o homem e o cosmo eram o resultado da atividade de um ser divino, colocado fora e acima do próprio mundo. Esse ser dotado de vontade e de razão era o reflexo da evolução cultural de  algumas antigas sociedades, como a civilização egípcia e a mesopotâmica, com as quais os judeus mantiveram contato mais ou menos prolongado.

                               

 

                                      IV

 

                        A Afirmação Do Conhecimento Letrado

 

 

      O que se verifica na realidade, era um profundo distanciamento entre a cultura indígena e a cultura letrada dos europeus. Daí a dificuldade de intercâmbio entre as duas.Vivendo numa cultura marcada pela imitação da natureza e ela intimamente entrelaçada, os indígenas tinham os sentidos do corpo bastante desenvolvidos, sendo extremamente sensíveis á cor ao cheiro, ao sabor, ao som e ao contato com os objetos. Mas eram avessos a formulações  teóricas. De fato, inseridos no mundo da natureza, o homem indígena tinha uma consciência  muito forte de sua fragilidade diante dos demais seres vivente e sensitivos. Daí a importância do  fortalecimento para fazer frente aos desafios à sobrevivência humana.

  

      Não obstante uma profunda sensibilidade aos aspectos físicos do cosmo, os indígenas mantinham, por outra parte, em níveis muitos baixos, sua capacidade de abstração. Seus pensamentos, portanto, eram articulados de forma concreta, sem generalizações.

 

      Tendo moldado sua cultura em formas de imitação da natureza, os povos indígenas

viviam marcados profundamente por suas origens. Dentro dessa perspectiva, o maior esforço era  orientado  para perseverar os conhecimentos já adquiridos no passado.

 

      Em geral, os selvagens atribuíam seus conhecimentos a uma origem "sagrada", divina.  Nos rituais indígenas, a memória ocupa também um papel fundamental, revestido de sacralidade. A evocação dos fatos passados faz com que eles se tornem presentes. Não se trata apenas de uma lembrança do que já ocorreu anteriormente, mas se opera efetivamente a sua reatualização.

 

      Se o fundamental na cultura indígena era a perseverança dos conhecimentos já

adquiridos, os europeus do século XVI mostravam-se mais interessados em expandir seu horizonte cultural.

 

     Essa é a oposição do Jesuíta Simão de Vasconcelos, cronista do instituto. Após

afirmar que Deus criara o homem e fundara o paraíso terrestre na parte do orbe terrestre

formado por Europa, Ásia e África, acrescentava com relação à  outra parte da terra, ou seja, a América: "Deixou-a ficar em esquecimento, sem paraíso, sem patriarcas, sem sua divina presença humana; sem luz da fé e salvação".

 

  Por essa razão, um dos compromissos pela Coroa Lusitana, ao receber da Santa Sé o

direito de padroado sobre as novas terras descobertas, era a conversão dos indígenas. Para isso, era necessário que fossem instruídos nas verdades da fé católica.

 

       Nessa perspectiva, o conhecimento religioso era considerado o mais importante para o ser humano, o único capaz de torná-lo verdadeiramente feliz nesta e na vida futura, após a morte. Esse conhecimento não fora resultado de uma conquista humana, mas era considerado uma dádiva divina. Havia, portanto, por parte dos missionários, a crença generalizada de que eles estavam na posse exclusiva da verdade divina. Só na Igreja Católica , de fato, se conservara o patrimônio da verdadeira revelação divina.

 

     Duas principais teorias de conhecimento haviam sido transmitidas ao mundo ocidental pela civilização grega: uma marcadamente idealista, outra inspirada num realismo moderado. A matriz idealista tinha Platão como seu principal representante; na concepção realista imperava o pensamento aristotélico.

 

     Ao privilegiar o mundo ideal como fonte do conhecimento humano, a filosofia platônica refletia bem o estado de espírito de um importante segmento da sociedade grega: a aristocracia de origem de origem rural. Essa forma de pensamento trazia embutida em sua elaboração uma atitude de desencanto e pessimismo em relação às novas estruturas sociais, de cunho mais burguês e democrático, as quais progressivamente passavam a dominar nas cidades gregas. Na nova sociedade em  formação, os valores econômicos assumiam grande importância, e a ciência passava a ser desenvolvida em benefício do bem material da população. Para a antiga aristocracia, marcada por sua origem guerreira e pela influência religiosa, o povo grego estava perdendo os seus valores morais. Daí a importância da memória no pensamento platônico. Descrentes dos rumos políticos da sociedade de sua época, Platão e seus discípulos se refugiavam no passado. Dessa forma, em oposição ao interesse pelo estudo da natureza, apelavam para a busca dos fundamentos religiosos e social. Era necessário voltar às origens, às raízes da cultura humana, modificadas no mundo hiperurâneo

 

                                                      V

 

              A Sexualidade Humana: O Desafio Ético

 

      Ao desembarcar no continente americano, conquistadores e missionários vinham imbuídos da convicção de que o homem era um ser distinto da natureza, caracterizado por um espírito que fazia dele o rei da criação, encarregado pela própria divindade de exercer o domínio sobre todos os demais seres do cosmo. Essa elaboração teórica fora o resultado de um longo processo cultural resultante da vida urbana em expansão da Europa, sobretudo a partir da baixa Idade Média.

 

     Os habitantes do novo mundo, porém, apresentavam-se como um questionamento e até mesmo como uma navegação dessa tese. De fato, eles evidenciavam que era possível ao ser humano construir uma cultura aderente à natureza, e não necessariamente separada dela. Mais ainda:  mediante o seu comportamento prático, os indígenas demonstravam com sua nudez que podiam conviver em paz com o corpo, sem Ter necessariamente que reprimi-lo ou nega-lo. Esse aspecto, por sua vez, entrava em choque com a ética cristã medieval, empenhada na medida do possível em negar o valor do corpo, e sobretudo da sexualidade. Isso explica por que a questão da nudez indígena tenha despertado tanto a atenção e envolvido tantos cuidados na atuação missionária, e tenha provocado também tantos discursos sobre o tema.

             

       Enquanto para os europeus era fundamental estabelecer a distância existente entre o homem e as demais espécies do reino animal, os indígenas não se consideravam diminuídos em colocar em evidência as marcas de sua animalidade. De fato, a sexualidade representa um dos mais fortes elos que vinculam o ser humano ao mundo animal.

 

     Para melhor garantir a continuidade da espécie, quase todos os grupos humanos antigos passaram a sacralizar os atos preparatórios destinados à reprodução. A sacralização da sexualidade constitui uma das principais expressões culturais das antigas civilizações agrárias do Oriente Médio. Essa concepção sagrada do sexo, por sua vez, estava intimamente vinculada aos próprios ciclos agrários da natureza.

 

     Nesse contexto de vida agrária, o aspecto fundamental era a sobrevivência do homem sobre a terra. Ele luta contra a morte que o ameaça a cada instante. Somente tornando propícias as forças hostis da natureza controladas pelas divindades, consegue o homem a própria sobrevivência. Para ele, gerar é sinônimo de viver; gerar significa perenizar a vida humana sobre a terra. Gerar, Por outro lado, é também participar da vida divina. Unido à geração, o sexo mantém assim o seu caráter sagrado e mesmo divino.

 

    Com a afirmação da sociedade urbana, no mundo clássico greco-romano, dá-se uma evolução significativa: a cidade Polis ou Civitas representou um esforço decisivo do ser humano em estabelecer um distanciamento do mundo da natureza.

 

    Perdendo contato direto com a natureza, o homem desvinculou-se também da visão constante da fecundação da terra, preocupação contínua dos povos antigos. Se a geração perdia o seu fascínio primitivo, a festa do sexo continuou a manter toda a sua força de atração. Dessa forma, nessa nova etapa histórica os homens passaram a distinguir  e até mesmo separar o sexo da idéia da geração. A fecundidade perdeu a supremacia como centro de interesse, e a atividade sexual passou a ser considerada como uma realização à parte.

 

     Nas sociedades agrárias, em que a mortalidade infantil era muito grande por causa das precárias condições de saúde, a prole numerosa era uma exigência em vista da necessidades de braços para os trabalhos do campo. Na sociedade urbana que se implantava, pelo contrário, era urgente impor as restrições à procriação, pois os limites da cidade não comportavam crescimento demográfico intenso, como já assinalavam tanto Platão como Aristóteles. Daí as recomendações para que se reduzisse o número de filhos.

 

       Entre os gregos, e em seguida entre os romanos, introduziu-se assim um ethos ou prática de vida resultante de uma opção, de uma decisão histórica do homem: a afirmação da superioridade do exercício da atividade sexual controlada pelo ser humano, tendo em vista o prazer, sobre o intercurso sexual motivado pelo instinto animal, com finalidade procriativa

 

       Não obstante isso, os riscos da escolha desse caminho de libertação do prazer não passaram despercebidos aos filósofos considerados clássicos, Platão e Aristóteles. Segundo eles, de fato, a marca registrada do ser humano devia ser a racionalidade.    O ser humano deveria expressá-la mediante a capacidade de distanciar-se do mundo da natureza. E estabelecer sobre o domínio. Para ambos, o valor ético da conduta se manifestava exatamente no exercício do controle dos instintos e paixões, cuja raiz última era exatamente a corporiedade da natureza humana.

 

     Assim sendo, a maior expressão humana seria realizada por meio da atividade intelectual, em sua função criadora. Isso se tornava difícil numa sociedade em que a sexualidade, estimulada pelo próprio homem, se transformava num grande vulcão de forças instintivas em erupção, rompendo com seu ímpeto os próprios balizamentos sociais penosamente estabelecidos. Vitorioso por um lado da natureza, ao separar-se dela por meio dos muros da cidade, o ser humano acabava por outro sendo vítima do ímpeto avassalador de uma sexualidade incontida e incontrolada uma espécie de vingança da natureza dentro das próprias trincheiras culturais por ele estabelecidas.

 

      Daí, evidentemente, a indicação de um novo caminho a ser palmilhado pela sociedade urbana: a restrição, a contenção, a ascese em relação às atividades sexuais, consideradas atividades menos humanas e mais vinculadas à própria animalidade.

 

     Inserida no mundo romano em seus primeiros séculos de existência, a religião católica, cuja matriz espiritualizante era bastante forte em sua origem, sentiu necessidade de contrapor-se com firmeza à difusão do erotismo. Herdeira da tradição judaica, de raízes pastoris e agrárias, a fé católica continuava insistindo na importância da reprodução humana, sendo os filhos considerados uma bênção divina. Ao mesmo tempo, introduzindo progressivamente na Civitas romana, o catolicismo começa a declarar guerra à desvinculação realizada pela cultura clássica entre prazer e reprodução humana. Passa, portanto, a afirmar que o uso da sexualidade só tem sentido quando vinculado diretamente à finalidade procriativa.

 

    A opção platônico- agostiniana, como já foi ressaltado, privilegiava a dimensão racional ou espiritual, ou seja, a dimensão extracorpórea como tipicamente humana. Assim sendo, a satisfação dos apelos da natureza e das exigências fisiológicas passou a ser considerada como manifestação da degradação humana, ou seja, de uma descida, de uma queda. Dessa forma, o homem distanciava-se de sua unidade primeira e natural, de caráter espiritualizante.

 

     Agostinho elabora sua tese do pecado original bem dentro da concepção mítica das antigas religiões, em que os grandes eventos da história humana já se haviam realizado de maneira exemplar, como protótipos, numa etapa primordial, ou seja, nos primeiros tempos. Por conseguinte, o ser humano estava de certa forma vinculado a uma determinação pré-histórica.

 

              O grande destaque dado pelo pensador de Hipona à sexualidade como grande mal social tinha relações específicas tanto como sua experiência pessoal, como também com a própria tradição cultural norte-africana, influenciada pelas antigas religiões vigentes no Império Romano.

 

               A evocar sua adolescência como o natural despertar das forças da sexualidade, Agostinho traça um quadro trágico, atribuindo esses instintos e paixões ao domínio do demônio. De fato, recordando as “ torpezas e as depravações carnais “, ele afirma que na adolescência ardeu em desejos de se satisfazer “ em prazeres infernais”, ousando até entregar-se a “ vários e tenebrosos amores”.

 

             Ao longo de toda a Idade Média, a concepção agostiniana a respeito do pecado original e das suas conseqüências permaneceu como norma de conduta cristã. As expressões da sexualidade humana foram sempre vistas como negativas, incentivando-se por todas as formas o seu controle e a sua repressão, o que passa a ser uma característica marcante da Idade média, sob a influência da ótica cristã.

 

            Na realidade , a crença católica desvincula-se progressivamente do mundo da natureza, e a geração perdia consequentemente o seu caráter sacral. Por outro lado, essa fé não se encarnava também na mentalidade urbana, não aceitando, portanto, a exaltação do prazer como realização suprema da vida.

 

            O homem primitivo se sentia pequeno diante da natureza, imerso e às vezes até mesmo submerso no espaço territorial. Gerar significa garantir a sobrevivência humana sobre a terra. Esse homem agrícola sentia-se parte da natureza, procurando os instrumentos para tornar propícias as forças naturais. Sua vida desenvolvia-se em função do espaço territorial. Já o homem urbano não se sente parte da natureza, mas destacado dela, mediante os muros da cidade. A vida das cidades o faz despertar para a dimensão do tempo, para a fugacidade da existência. Vivendo em função do tempo, quer usufruí-lo sempre mais.

 

           Paradoxalmente, os cristãos de tradição agrária passam também a se instalar dentro dos limites urbanos. Não obstante unir a mentalidade agrária à mentalidade urbana, o cristianismo em sua raiz mais profunda deprecia ambas as realidades. O cristão não deve viver nem em função do espaço nem do tempo, mas em função de uma nova dimensão: a eternidade.

 

           Afastando-se de ambas as concepções, a religião cristã procura incentivar um novo valor: a virgindade, um prenúncio de eternidade. Foi este o grande ideal apregoado no período medieval.

 

           Após séculos de repressão sexual, a ótica cristã viu-se atingida, a partir do século XV, pelos movimentos da Renascença e do humanismo, com a revalorização da cultura grega e, consequentemente, pela importância dada à sexualidade. As obras de Bocaccio são uma indicação dessa tendência.

 

            Contra esse movimento de valorização da sexualidade o catolicismo reagiu de forma intransigente mediante a reforma moral imposta pelo Concílio de Trento, no século XVI. Uma das expressões significativas dessa nova etapa de repressão da sexualidade aparece na atitude pontifica, ao mandar cobrir toda a nudez dos quadros e estátuas existentes no Vaticano.

 

         A ocultação da gentilidade no âmbito da vida social tornou-se assim um elemento importante na tarefa  de auto-afirmação empreendida pelo ser humano, visando assegurar de forma definitiva seu rompimento com o mundo natural, para considerar-se como criatura eminentemente espiritual.

 

          Sob a influência do cristianismo, outro aspecto passou a ser considerado fundamental no uso do vestuário: a cobertura da nudez era uma exigência da própria conduta moral. 

 

          Nada mais natural do que essa interferência de uma visão cristã do mundo nos costumes sociais, na sociedade lusitana, em que o político e o religioso se interligavam profundamente. É  a partir desse horizonte que se organiza a sociedade colonial. Na matriz do ethos lusitano, porém, influem não só orientações de natureza religiosa, mas também concepções oriundas de uma perspectiva racional.

 

         Do ponto de vista do colonizador, o problema da sexualidade assume uma importância singular. A questão sexual constitui uma das preocupações dos líderes encarregados de organizar a sociedade colonial.

 

         Segundo os Jesuítas, dois problemas momentosos deveriam ser resolvidos o mais rapidamente possível: o primeiro era a nudez dos índios; o segundo, a mancebia dos portugueses.

 

       Esses aspectos são já bordados por Nóbrega em sua primeira carta endereçada ao provincial  Simão Rodrigues, em abril de 1549, poucos dias depois da chegada  a Salvador.

 

      A nudez cotidiana habitual e manifesta dos indígenas era um questionamento permanente para todo o esforço desenvolvido pela moral católica em favor da repressão e do ocultamento da sexualidade humana.

 

      Tratava-se, na verdade, de um confronto entre duas perspectivas éticas. Para os indígenas, a nudez era um valor e expressão da liberdade, numa cultura marcada pela imitação da natureza. Para os conquistadores e missionários, estruturados numa sociedade distanciada do mundo natural, a nudez representava a negação dos valores morais, vinculando o homem à sensualidade típica dos animais. Cobrir a nudez dos índios torna-se, portanto, uma das tarefas fundamentais dos missionários.

 

    A partir de uma reflexão especificamente cristã, a cobertura da nudez fora a conseqüência do pecado dos primeiros pais da humanidade. A vergonha provocada pela nudez tinha sua origem do sentimento da culpa original. Como todos os homens eram considerados descendentes de Adão e Eva, todos deviam necessariamente sentir vergonha de expor a própria nudez diante de outrem.

 

            A existência de comportamentos diversos oferecia a oportunidade para se questionar essa teoria ética. Partindo de uma fidelidade irrestrita a esse dogma, muitos missionários analisam a nudez indígena como conseqüência de uma depravação da natureza.

 

            A nudez indígena, longe de ser uma expressão de inocência, passava a ser considerada o resultado do progressivo embrutecimento da razão, reduzindo essas criaturas humanas a um tipo de vida quase animal.

 

          Essa reação negativa diante da nudez fez com que os índios fossem considerados seres marcados pela sensualidade e pela brutalidade.

 

          D’ Abbeville, por sua vez, numa perspectiva ao mesmo tempo teológica e racional, procura entender a consciência dos indígenas com base em sua própria realidade. Segundo ele, a vergonha da nudez era proveniente de uma prescrição cultural de que os seres humanos deviam andar vestidos. Não conhecendo essa lei, os indígenas não podiam sentir acanhamento de sua atitude:

 

        De fato, longe de ser considerada algo negativo, a nudez representava para os indígenas uma condição de liberdade : liberdade na locomoção, liberdade para os exercícios físicos, liberdade na prática de higiene, liberdade para os combates. A nudez típica dos animais era assumida dessa forma como um valor, numa cultura marcadamente imitativa da natureza. Viver na nudez fazia parte do ethos, dos costumes, da tradição, da moral indígena. Cobria-se o corpo apenas com adornos e enfeites, em dias de festa solenes. Mesmo nessas oportunidades, os órgãos sexuais ficavam normalmente expostos. Apenas alguns velhos costumavam cobrir o pênis, ao que tudo indica, por razões sanitárias.

 

      Mas o processo de colonização representou de fato uma imposição cultural violenta nas tradições e costumes dos índios, e eles foram obrigados a andar vestidos. Os missionários transferiram assim para os indígenas seus condicionamentos e seus temores à sexualidade.

 

     Com a chegada dos missionários, a separação entre os dois sexos, sobretudo nos ritos litúrgico, passou a ser norma comum.

 

     Já desde o início, Nóbrega percebe que a nudez não representava um problema para os índios, mas sim para os portugueses. A nudez indígena, de fato, era um desafio à virtude dos cristãos portugueses.

 

    A igreja era o lugar de Deus, lugar sagrado, e a nudez, sobretudo feminina, constituía um atentado moral numa religião hegemonicamente masculina.

 

    Na realidade, era sobretudo para os clérigos, revestidos do voto de castidade, que a nudez indígena constituía um forte desafio.

 

     O capuchinho Martinho de Nantes julgava que o problema da nudez dos índios era mais grave para os religiosos brasileiros do que para os europeus.

         Essa tese, de que aqueles que nasciam na Colônia já tinham uma inclinação imoderada para a sensualidade foi utilizada pela Companhia de Jesus e por outros institutos para restringir o ingresso de brasileiros na vida religiosa, fortalecendo desse modo o domínio colonial também nas ordens e congregações. Mas não faltaram também os que contestaram essa tese.

 

        Ao que tudo indica, a observância do celibato por parte dos missionários chegou a criar entre os indígenas a idéia de que fossem seres vindos do céu, e não vinculados à geração biológica

 

        Se o grande inimigo da virtude dos cristãos e sobretudo dos religiosos era o despertar da atração sexual pela visão da nudez feminina, nada mais importante do que procurar domar esses impulsos da carne, sobretudo por meio da penitência. Daí a importância que os missionários deram desde o início ao ritual das disciplinas e flagelações corporais. Essa prática, aliás, fora muito incentivada na tradição medieval.  

 

                   

                                       VI

 

                    A FÉ COMO CONQUISTA ESPIRITUAL .

 

     Um dos aspectos bastante enfatizados pelos conquistadores na análise da cultura indígena é a falta das letras f, r e l em seu alfabeto. Segundo eles, isso significava que os índios viviam sem fé, sem rei e sem lei. Em outra palavras, as tribos indígenas careciam de uma concepção teológica, de uma organização política e de um estatuto jurídico.

 

    Assim sendo, a atuação lusitana sobre a cultura indígena passa a ser considerada extremamente benéfica e salutar no sentido de dar-lhes uma fé, um rei e uma lei, introduzindo-os assim na civilização cristã.

 

   Em termos filosóficos, dir-se-ia que se negava aos indígenas uma “ entidade” religiosa, política e jurídica, e esse vácuo do “ não-ser” era preenchido pela colonização lusitana. Em outras palavras, segundo a perspectiva dos colonizadores, os indígenas careciam de identidade como povo e, por conseguinte, eram beneficiados com a aquisição da identidade lusitana e católica.

 

   Na dimensão religiosa, a preocupação básica dos missionários foi incutir nos indígenas a idéia de um deus único, puramente espiritual e situado acima do mundo da natureza por ele criada.

 

    A fé católica nascera encravada na cultura judaica. Uma das características específicas do judaísmo era a afirmação de um deus único, defensor e Co- responsável do destino do próprio povo. Não obstante, a religião judaica não tinha pretensões de universalidade. Enquanto os outros povos mantinham os seus deuses, para os judeus Javé era o único verdadeiro. Essa concepção de unidade de crença, evidentemente, contribuiu muito para formação e a consolidação da própria unidade política e cultural das tribos judaicas, uma população constituída inicialmente de pastores seminôades

 

         Com o cristianismo, surgiu a idéia da universalidade da fé. O Evangelho, ou seja, a “Boa Nova” transmitida por Cristo deveria ser levada a todos os povos. Daí a dimensão apostólica ou missionária da fé cristã.

 

        Os intelectuais romanos, simpatizantes com os antigos cultos, não deixaram de ver na progressiva decadência do Império uma conseqüência da fé cristã, acusada de Ter desfibrado o antigo poder político.

 

        Os templos católicos, instrumentos de “ salvação” para o povo, torna-se a expressão visível da própria instituição católica, a cidade sagrada, a cidade de Deus.

 

        É na cidade santa que se manifesta a justiça divina, da qual são porta-vozes os ministros eclesiásticos. A Igreja passa a ser vista basicamente como um poder sagrado, mantendo, portanto, e até mesmo expandindo a expressão política que conquistara a partir da era constantiniana.

 

        A concepção agostiniana da cidade de Deus passou a se corporificar no Estado franco, marcado pela fé católica. Daí a designação de cristandade, aplicada à nova realização de Estado cristão. Á medida que se expandiam as fronteiras do império carolíngio, dilatava-se também a cristandade, a qual passou a ser considerada, portanto, como a cidade de Deus em expansão.

 

       Os resultados dessa política de expansão da fé, mediante a ação missionária e a atividade conquistadora do Estado, foram extremamente eficazes, e pouco a pouco o catolicismo passou a  ser considerada, portanto, como a cidade de Deus em expansão.

 

        Por sua vez, a ação dos carolíngios conseguiu pôr um dique à expansão dos árabes muçulmanos, restringindo sua presença à península Ibérica.

 

        Mais tarde, a idéia da cristandade foi retomada pelos imperadores alemães da dinastia dos Otões e dos Hoenstaufen

 

       A partir dessa perspectiva, os imperadores deviam vencer as resistências dos pagãos e dos infiéis por meio das armas. Segundo o ritual católico, a espada era conferida ao imperador pelo ministro religioso, com estas palavras: “ Recebe a espada das mãos dos apóstolos ! Extermina os inimigos do nome cristão e aniquila-los!”.

 

      Em seguida, a tese da cristandade passou a ser assumida também pelas monarquias da península Ibérica.

 

     Durante o século XVI, em plena época de dominação colonialista, o espanhol Juan Gines de Sepúlveda  retomava. A tese da expansão da cristandade, tese esta assim sintetizada por Hoffner.

 

      É exatamente na sua atribuição de chefes da cristandade que os reis de Portugal iniciam a aventura da conquista de novas terras.

 

      Nessa expansão do imperialismo colonizador ibérico, entrelaçavam-se os interesses políticos, econômicos e religiosos. Tanto a monarquia hispânica como a lusitana haviam recebido dos pontífices romanos da época os direitos de padroado sobre as terras descobertas e futuras conquistadas. Por força desses privilégios, a Santa Sé confiava a esses reis a missão de converter à fé católica os diversos povos submetidos pelo processo de dominação colonial. Dessa maneira, expansão imperialista e conversão cristã caminhavam de mãos dadas.

 

    Em vista de delegação pontifícia, os missionários, ao realizar sua tarefa religiosa, se colocavam diretamente a serviço dos monarcas católicos, prestando-lhes juramento de fidelidade. Comprometiam-se assim a defender os interesses régios no exercício de sua atuação evangelizadora. É nesse contexto de vinculação

 de atuação religiosa com o poder político que se desenvolve a tarefa missionária de conquista das almas, redução dos gentios e doutrinamento na fé.

 

    Tanto os missionários de origem hispânica como os de nacionalidade lusa estavam conscientes de que sua atuação religiosa se inseria num projeto maior visando ao estabelecimento da cristandade colonial, ou seja, um prolongamento da cidade de Deus, à frente da qual deviam permanecer os reis da Espanha e de Portugal.

 

    Clérigos e leigos deviam colaborar juntos na empresa missionária, como membros desse Estado sacral.

 

     A cruz e a espada deviam, atuar juntas, segundo Vieira

 

     O projeto colonizador, de fato, visava não só oficializar a conquista das novas terras como propriedade dos reinos ibéricos, como também transformar os seus respectivos habitantes em súditos das Coroas espanhola e lusitana.

 

     Cabia ás tropas militares assegurar por meio da força, se necessário, a conquista material. Ás milícias clericais competia, mediante a persuasão, levar os indígenas a aceitar a dominação política e religiosa das metrópoles ibéricas.

 

     A partir do século XVI, com a realização do Concílio de Trento, emerge com força especial o papel dos clérigos, ressaltado pelos documentos dessa assembléia católica, a saber: o cuidado pastoral das almas.

 

     Ao lado, portanto, da visão unitária tão bem expressa por Vieira, segundo a qual clérigos e leigos continuavam comprometidos com o projeto religioso da metrópole, surge também um enfoque que privilegia a atuação clerical no aspecto específico de conquista espiritual, ou seja, de salvação das almas. Retomam-se, portanto, com muita ênfase, as concepções platônico- agostiniana e aristótelico-tomistas que privilegiavam  as atividades espirituais e o valor da alma com relação ao corpo.

 

    É, pois, em nome da salvação das almas, e não dos corpos, que os missionários do século XVI se lançam no movimento de evangelização da América Latina.

 

       O discurso missionário, portanto, é articulado com base em duas matrizes complementares.

 

        Mediante a primeira, já assinalada no início, se afirma a carência de uma fundamentação religiosa para a cultura indígena. Não se tratava, portanto, do encontro da fé católica com outra crença religiosa, a ser levada em consideração e respeitada.Tratava-se, segundo a ideologia católica, de um espaço religioso vazio, a ser preenchido pela religião dos colonizadores. A conquista espiritual das almas dos indígenas significava explicitamente a ocupação desse vácuo, desse não-ser.

 

         Simultaneamente, também a atuação a atuação missionária trabalha com outra vertente ideológica. Não podendo negar totalmente a existência das crenças indígenas, tira-lhes o estatuto da religião e as transforma em manifestações demoníacas. Em outras palavras, o “ vácuo religioso” é substituído pela idéia da “ negatividade religiosa”, vista exclusivamente a partir do horizonte católico. Assim sendo, as crenças indígenas nada significavam, sendo desvirtuamentos da verdadeira fé, através das quais os indígenas se haviam transformado eminfiéis

 

          Em  termos filosóficos, os cultos indígenas não são considerados realidade em si, mas passam a ser incluídos no todo positivo da fé católica, sua parte negativa e, portanto, devendo ser expurgada.

 

          Na perspectiva teológica, a crença indígena é representada como a intromissão demoníaca nos domínios de Deus, único senhor das criaturas, e como tal necessitava ser extirpada.

 

           O que mais interessava aos missionários era desarticular ou destruir os cultos indígenas. Para isso, envidaram sobretudo esforços para desmoralizar os ministros religiosos dos índios acusados de imoralidade, de fraude e sobretudo de possessão demoníaca.

 

           Criava-se assim, uma antítese bem nítida: os rituais cristãos eram os rituais de Deus; os rituais indígenas, os rituais do demônio. Os ministros  cristãos eram ministros de Deus; os ministros indígenas, ministros do diabo.

 

            Em última análise, portanto, a guerra entre os missionários e os pajés pela hegemonia religiosa era transfigurada numa guerra entre Deus e o diabo.

 

           Ao mesmo tempo em que afirmavam a presença diabólica no culto indígena, os missionários procuravam estimular os índios a praticar a religião cristã, sobretudo tendo em vista a futura promessa do paraíso.

 

           Mas, ao contrário dos rituais da santidade, em que as esperanças de uma vida melhor eram oferecidas para um futuro próximo, e cuja concretização se realizaria ainda nesta terra, a teologia católica apresentava um projeto  salvífico cuja efetivação era transferida para o mundo futuro. Além disso, obtenção desse prêmio no além-túmulo ficava condicionada ao exercício de uma ascese a ser praticada na vida presente.

 

                          

 

                                                   VII

 

                   A SACRALIDADE DO ESTADO LUSO

 

      Uma das críticas mais constantes dos conquistadores sobre os indígenas era a sua falta de organização política. Na ótica dos colonizadores, os primitivos habitantes do território colonial viviam dispersos, em desordem completa, em liberdade incontida, caminho aberto para a libertinagem.

 

        Os colonizadores, tanto leigos como missionários, não percebiam--- e na maior parte dos casos desprezavam--- a organização vigente nas tribos indígenas, marcada pelo seu caráter agreste, ritual.

 

       Tendo como hábitat a imensidão das matas e dos campos, os índios inseriam-se no contexto da natureza, sem limites espaciais rígidos para o exercício de suas atividades. As tabas e malocas ocupavam clareiras nas matas ou junto aos rios, mas sem um afastamento significativo da geografia natural.

 

       Para os europeus, porém, herdeiros da tradição grega veiculada por Aristóteles, cultura significava exatamente rompimento com a natureza. O homem devia viver separado, segredado do mundo natural. Ao gregos, aliás, iam mais além: habituados a viver em suas cidades-estados, consideravam bárbaros aqueles que ainda permaneciam marcados por uma cultura rural.

 

      Segundo a concepção aristotélica, o ser humano fora destinado por sua própria natureza a viver na cidade, na polis. Daí considerar o homem um animal político.

 

      Seguindo as pegadas de Aristóteles, também Tomás de Aquino torna-se um enaltecedor das virtudes da civitas medieval.

 

      Joseph  Hoffner sintetiza a concepção tomista nestes termos:

 

      O homem em si, e não apenas o cristão, repetia sem cessar Tomás de Aquino, é “por natureza um ente social”. Por isso, os homens vivem reunidos em famílias, que por sua vez, estão polarizadas para formar a  “sociedade perfeita”, a “civitas”. O bem comum da civitas é especificamente diverso do bem comum dos indivíduos , formando um valor novo, especial. Por isso afirmamos ser a civitas “perfeita”, porque somente nela e por ela as necessidades corporais e espirituais da natureza humana podem encontrar a sua total realização. Paz, unidade e ordem da civitas devem contribuir para transformar o homem em personalidade ética, e proporciona-lhe também um bem estar material, o mais elevado possível

 

       Assim como Deus fora colocado fora da ordem natural, para ser constituído como seu criador e regulador, pouco a pouco se desenvolve na Idade Média a tese da monarquia construída acima do todo social como seu próprio fundador e instituidor. Esse pensamento, explicitado por Dante nos primórdios do século XIV, fora articulado ao longo da Idade Média, como resultado da sacralização da monarquia.

 

     Essa sacralização realizada sob a influência cristã tem início com Constantino, o imperador que permitiu à Igreja compartilhar com o poder, dentro da esfera religiosa. Mas atingiu o seu ponto alto na época de Carlos Magno, mediante o qual o Estado cristão  passa a ser enaltecido.

 

      Em seguida, o mito da cristandade é retomado pelos monarcas da península Ibérica, na época expansão colonialista. Tanto os reis da Espanha como os de Portugal buscavam expandir o seu domínio político e isso suponha, em ambos os casos, o aumento de súditos para a Coroa. Portanto, a descoberta das novas terras americanas foi o de uma decisão política. Duas foram as principais matrizes filosófico-teológicas que  justificaram essa expansão imperialista: em primeiro lugar, o conceito da sacralidade do poder, colocando a autoridade régia acima de qualquer constatação humana; em segundo lugar, o princípio da superioridade dos povos cristãos sobre os infiéis, em nome do qual era possibilitada a implantação da dominação colonial.

 

     Após o pecado de Adão, Deus escolhera Abraão para ser pai de um novo povo, no qual seria mantida a esperança de salvação. Daí o caráter de povo eleito atribuído ao povo judeu.

 

     Os portugueses se esmeraram também em enfatizar o aspecto unitário e divino da fundação de sua nacionalidade. Portugal portanto, surge como nação por meio da figura de Afonso Henriques. Este, por sua vez, fora escolhido diretamente por Deus para torna-se o primeiro monarca, arregimentando ao redor de si o povo português. Ao escolher Afonso Henriques como seu filho predileto, Deus fazia também a eleição do povo lusitano para objeto de sua especial complacência. Mediante a sacralização do poder, operava-se também a sacralização do povo. Essa sacralização será reforçada durante o período de dominação colonial, sobretudo por meio das figuras de Dom Sebastião e de Dom João IV.

 

    Rocha Pita expõe em detalhes esse evento fundamental do poder político lusitano:

 

    É bem autêntica entre os naturais, e recebida entre os estrangeiros (posto que impugnada por alguns castelhanos), aquela misteriosa aparição de Cristo Nosso Senhor ao príncipe lusitano Dom Afonso Henriques, o qual na noite precedente  ao dia em que havia de dar no Campo de Ourique, batalha a Ismael e a outros quatro reis mouros, triste e pensativo por ver a gente a gente portuguesa temerosa da multidão bárbara, pegando em uma Bíblia que tinha na tenda, e achando nela a vitória que alcançou Gedeão com só trezentos soldados, matando mais de cento e vinte mil madianitas, pediu a Deus favor, por ser aquela guerra por seu amor empreendida e contra os blasfemos do seu santo nome; e adormecendo sobre o livro, lhe apareceu em sonhos um ancião, que lhe assegurou que venceria e destruiria aqueles reis infiéis, e que o mesmo Deus lhe apareceria; e acordado pelo seu camareiro para dar audiência a um velho que o buscava, introduzindo na tenda, viu que era o mesmo que lhe falara no sonho.

 

    A monarquia portuguesa tem sua origem, portanto, numa guerra de portugueses contra bárbaros, ou dito em outras palavras, dos cristãos contra os infiéis.

 

         O historiador acrescenta que o velho, além de ratificar o sonho, garantiu a Afonso Henriques que Deus lhe daria prova de especial piedade, por meio do sinal de uma campainha:

 

        Ficando em oração o piedoso príncipe, e ouvindo o sinal na Segunda vela da noite, saiu fora [sic] da tenda e viu para a parte do oriente um raio, que resplandecendo pouco a pouco foi formando uma cruz mais que o sol brilhante, e nela se lhe mostrou o Senhor crucificado, a cuja divina presença prostrado o príncipe, lhe rogou pelos seus vassalos [...] e que aqueles súditos animasse e ajudasse a vencer aos inimigos da sua santa fé, e se lembrasse não só dos seus sucessores, mas de toda gente de Portugal.

 

           Em seguida, o rei esperado passou a ser identificado com Dom Sebastião. Mas o príncipe morreu muito jovem, na primeira expedição em que tomou parte na África. Visto que o seu corpo não foi identificado com facilidade, logo surgiram vozes afirmando que ele teria desaparecido a cavalo, para voltar posteriormente e salvar o reino.

 

         Dado que nas trovas de Bandarra havia alusões ao “rei encoberto”, o salvador de Portugal passou a ser identificado como Dom Sebastião, o Encoberto, que haveria de reaparecer para realizar a expansão lusitana sobre o mundo, difundindo a fé católica.

 

          Vieira foi um dos maiores propagandistas do sebastianismo. Após 1640, esse jesuíta passava a se identificar a restauração da monarquia lusa como realização de uma série de profecias divinas. Dom João IV foi considerado o Encoberto e o Salvador prometido por Deus. É dentro desse contexto, portanto, que se realizava a dominação colonial, estando os portugueses com a missão de difundir a civilização e a fé cristã.

 

           Existe um certo consenso no meio intelectual sobre o fato de que a filosofia clássica teve como berço a polis---- a cidade-estado grega. Daí, evidentemente, a dimensão política da filosofia, enquanto uma análise da realidade com base no horizonte urbano, contrapondo-se assim à primitiva leitura do cosmo, de caráter mítico, típica das sociedades agrárias. É também com base na cidade lusitana que se constrói a ideologia da expansão do império, justificativa teórica da ação conquistadora do projeto colonizador

 

           Um dos pilares do projeto expansionista lusitano consiste exatamente na necessidade de difundir os valores da civitas---- a civilização---- naquelas regiões do mundo ainda dominadas por valores agrestes, considerados segundo a ótica urbana como expressões da barbárie. Dessa forma, se estabelece um contraste entre as primitivas culturas agrárias, consideradas bárbaras e, portanto, expressões da animalidade, e a sociedade urbana emergente, considerada manifestação da racionalidade, ou seja, do desabrochamento humano por excelência.

 

          Daí as expedições marítimas lusitanas “por mares nunca dantes navegados”, visando implantar os valores da razão e debelar as forças da animalidade bárbara. Nessa tarefa de expansão conquistadora, existe uma matriz que deve ser reproduzida fielmente na implantação das novas colônias: a civitas lusitana, o verdadeiro modelo de valores civilizadores.

 

          Na medida em que se negava aos povos indígenas qualquer tipo de organização política e social, operava-se a redução simplificadora deles à categoria da barbárie cuja dominação e expulsão deveria ser realizada em nome da razão civilizadora. Em termos políticos, os indígenas eram assim reduzidos ao estado de tabula rasa, ou seja, de carência total e, por conseguinte, em completa disponibilidade para serem moldados pelos valores políticos lusitanos.

 

         Assim sendo, esse discurso ideológico fazia com que a dominação perdesse o seu caráter radical de violência e desumanidade, apresentando-se, pelo contrário, com os títulos honoríficos de obra de civilização e racionalidade. Mediante a conquista lusitana, o “bruto” indígena seria transformado em ser plenamente humano e verdadeiramente racional.

 

        É importante ressaltar toda a distorção da realidade que se opera sob a ideologia da dominação. O discurso oficial lusitano não fala de dominação de um povo sobre o outro, de sujeição do mais fraco ao mais forte, mas simplesmente de agregação progressiva de seres bárbaros---- sem lei e sem rei---- ao poder real, agregação que possibilita sua ascensão à categoria de homens civilizados.

 

       Para que essa transformação seja operada, requer-se simplesmente a sua vassalagem ao rei de Portugal. Assim sendo, a violência da conquista é transfigurada na imagem suave da dilatação do reino lusitano, realizada mediante uma figura ainda mais idealizada, através da geração de novos filhos no território brasileiro.

 

      Dessa maneira, a destruição da organização política e social indígena, mediante o processo de desorganização tribal e familiar, passa a ser vista e apresentada como um simples trânsito, prenhe de benefícios, da barbárie para a civilização, das trevas da brutalidade para as luzes da razão.

 

      O cunho militar das expedições coloniais com suas “armas e barões” é transmutado num processo político de agregação de novos vassalos ao reino lusitano.

 

      Um dos elementos mais importantes desse processo de racionalização é a redução do universalismo da fé cristã---- bem expresso pelo adjetivo “católico”---- às dimensões do reino lusitano.

 

      Segundo essa perspectiva, Portugal passa a ser considerada como nação católica por excelência, como novo povo de Deus, objeto de uma escolha divina privilegiada. Eleição divina, é bom Ter presente, concretizada no próprio fundador da monarquia lusitana. Dessa maneira, o cristianismo renasce mediante a escolha do povo lusitano para ser o portador da mensagem divina; um povo que tem no monarca seu pai e patriarca, como o judaísmo nascera da divina promessa a Abraão

 

     A matriz política da nova construção mítica lusitana permite sua instrumentalização em nível social: trata-se de um príncipe escolhido por Deus para ser o chefe de um povo, para conduzi-lo à vitória contra os seus inimigos, para expandir pelo mundo a fé cristã.

 

       O adealmento era, portanto, como a condição fundamental para que os indígenas se tornassem de fato racionais e cristãos.

 

       A empresa missionária, de fato, mantinha vínculos estruturais com os interesses políticos e econômicos das Coroas ibéricas, não obstante sua finalidade especificamente espiritual.

 

      Se, por um lado, a ação missionária se situava na luta entre o reino de Deus e reino de Satanás, por outro era mediante a submissão às cortes de Portugal e Espanha que os povos ameríndios deviam manifestar concretamente sua adesão á fé, pois competia aos monarcas de ambos os países, à força da concessão do padroado, gerenciar a implantação da fé na América Latina.

 

       O esforço de politização empregado pelos missionários não visava preparar o indígena para a sua autonomia, mas, bem ao contrário, tinha como meta específica colocá-lo sob a dependência do poder lusitano. A tarefa missionária consistia fundamentalmente em inserir os indígenas na estrutura da organização colonial, preparando assim novos súditos para a Coroa.

 

      Tal atitude, aliás, se justificava de modo pleno, pelo que já foi ressaltado com relação ao caráter sacral e apostólico da monarquia lusa. Somente como súditos do rei os indígenas poderiam ser beneficiados pelas graças e dons da fé cristã, reservados exclusivamente àqueles que estavam efetivamente vinculados ao organismo eclesial, identificado, no caso lusitano, com o próprio Estado cristão.

 

    Tendo em vista contribuir para a salvação e a civilização dos indígenas, os missionários procuravam, portanto, reuni-los em povoados ou aldeamentos, onde a ação educativa e catequética pudesse ser mais eficaz.

 

    Para tirar os índios do mato e atraí-los para os aldeamentos, os religiosos multiplicavam as promessas se bem-estar material.

 

     A união entre interesses políticos e religiosos era, na verdade, muito nefasta para o trabalho missionário, porque a boa vontade dos missionários era logo deturpada pelos interesses dos colonizadores.

 

     Embora à revelia das intenções dos missionários, com freqüência o processo de evangelização constituía um instrumento de redução dos indígenas ao cativeiro dos brancos.

 

      Era, portanto, bastante dramático o quadro apresentado pelo jesuíta a respeito da situação dos índios reunidos nos aldeamentos pelos missionários. Na maior parte dos casos, homens e mulheres acabavam sendo vítimas da exploração dos brancos, reduzidos à condição de escravos.

 

         Por conseguinte, se para os lusitanos a Coroa era símbolo de libertação política e expansão da fé, para os indígenas, bem como para os negros trazidos da África à força, a política lusitana resultou efetivamente em escravidão e morte, na maior parte das vezes.

 

                                             VIII

 

        A LEGITIMIDADE JURÍDICA DA ESCRAVIDÃO

 

       Na época das conquistas, a escravidão já não era considerada primordialmente uma questão ética, mas sim jurídica. De fato, enquanto a atitude indígena com relação à nudez era analisada com base em princípios éticos, já a ação escravocrata dos colonizadores passava a ser considerada segundo as normas legais vigentes. Em ambos os casos, predominava nessa avaliação a perspectiva européia.

 

       Para o europeu, a cobertura e o ocultamento das partes do corpo vinculadas à sexualidade era uma expressão do domínio do espírito sobre a matéria, da alma incorruptível sobre o corpo fadado á corrupção. Era, em último análise, o estabelecimento da “ordem” cristã na própria existência humana.

 

     A escravidão era vista apenas como um ato de subordinação, ou seja, de colocação do indivíduo debaixo de uma “ordem” estabelecida pela sociedade. A principal base teórica da escravidão, ou seja, a sua nacionalização, foi constituída pela divulgação do pensamento aristotélico, a partir do século XII.

 

      Também neste caso, a expansão colonial e mercantil estava fundamentada na filosofia grega clássica, assumida e reelaborada pelos pensadores cristãos da Idade Média.

 

      A base da fundamentação aristotélica com relação à legitimidade da escravidão era decorrente de sua própria concepção do homem como um ser da cidade, da polis. Com essa afirmação, de fato, Aristóteles fazia um segundo recorte a respeito das relações entre o homem e a natureza.

 

      O próprio recorte, como já foi analisado no início deste estudo, consistiu na divulgação da tese que apresentava o ser humano como uma criatura predestinada para exercer o domínio sobre a natureza, como se dela estivesse desligado. O homem, portanto, passou a ser visto como superior ao mundo natural, devendo dispor dele para o seu serviço.

 

       A concepção aristotélica, porém, vai mais além. Segundo o pensador grego, o ser humano podia viver de duas formas: ou inserido no mundo natural, conforme a tradição das antigas civilizações agrárias, ou separado do contato com a natureza, conforme o modo de viver introduzindo nas cidades-estados da Grécia. Esta última forma de vida passou a ser apresentada como própria da natureza humana. Em outras palavras, os gregos passavam a ser considerados os homens por excelência, e aquilo que era tido como bom e natural para eles deveria ser automaticamente estendido para todos os homens.

 

        Aristóteles nada mais fez do que estender, no nível social, o seu conceito antropológico. Se, individualmente, o espírito humano devia afirmar o seu domínio sobre o corpo, mantendo este último em submissão, era “natural” que na esfera social fosse mantida uma ordem análoga, ou seja, o domínio das pessoas dotadas de espírito “superior”, nas quais o elemento corporal ou físico se apresentava como predominante. A concepção de razão, como uma ordem antropológica, confirmava, portanto, a necessidade de uma idêntica ordem social.

 

        É mediante o trabalho manual dos escravos que os cidadãos podem dedicar-se aos problemas do espírito mais condizentes com a natureza humana. Por isso, Aristóteles considera o cuidado dos escravos, adidos aos trabalhos materiais, como uma ciência de pouco valor.

 

      Com relação à divisão entre o trabalho manual e o trabalho intelectual, Aristóteles mantém-se bem próximo de        Platão: quanto mais o homem se vincula à matéria, mais “inferior” ele se torna.

 

       A natureza, na perspectiva aristótelica, criou homens “superiores” e homens “inferiores”. Os homens superiores estavam destinados a ocupar-se dos valores do espírito, enquanto os inferiores haviam nascido para ocupar-se das tarefas “inferiores”, ou seja, relativas á ordem material.

 

       Da perspectiva aristótelica, portanto, o próprio trabalho manual passa a ser aviltado justamente com o ser humano reduzido á escravidão. Por isso, Aristóteles afirma que determinados trabalhos são “naturalmente” mais adequados aos escravos.

 

       Inserida cada vez mais no mundo grego e no mundo romano, a Igreja católica passou a conviver pacificamente com a escravidão. Não obstante poucas vozes discordantes, seus pensadores mais insignes não só aprovaram o sistema vigente, mas passaram também a legitimá-lo.

 

       Pode-se dizer que os teólogos católicos desse período atribuem a existência da escravidão a uma verdadeira predestinação: ela é vista como conseqüência do pecado original. Em outras palavras, somente no paraíso terrestre fora possível ao homem viver em plena liberdade. Mas desde que ocorrera o pecado de Adão, a escravidão passara a fazer parte da natureza humana decaída.

 

         Em termos filosófico, a questão poderia ser apresentada da seguinte maneira: embora não fosse conveniente á natureza ideal do homem, a escravidão era, contudo, uma exigência da natureza humana real.

 

        A escravidão, portanto, justificada pelos gregos por motivos racionais, era agora reconhecida pelos cristãos mediante argumentos de fé, pois passava a Ter um fundamento metafísico, religioso.

 

       A escravidão se transformava assim numa realidade da própria condição humana, marcada pelo pecado de Adão.

 

       Essa mesma argumentação foi sucessivamente desdobrada em outros enfoques mais específicos, utilizados de modo especial como justificativa da escravidão dos africanos. Passou-se, dessa forma a afirmar que os negros eram descendentes de Caim, assassino brutal de seu irmão Abel. Segundo o mito bíblico, Deus colocara um síntese no corpo de Caim, para que ele não fosse morto, mas pagasse até o fim da vida pelo seu crime, mediante o desprezo e repúdio dos homens. Em conseqüência, a cor negra ficou identificada como o sinal da maldição divina, e a escravidão imposta aos negros como a expressão do castigo celeste.

 

       Segundo outra versão, os negros pertenciam á genealogia dos descendentes de Cam, filho de Noé, amaldiçoado também por este, por Ter ridicularizado a nudez do pai, que estava embriagado. Tanto Abel como Noé eram figuras prediletas de Deus, e a maldição viera aos opositores de tal favor divino, inspirados pelas forças do mal.

 

      Dessa forma, a escravidão dos negros, longe de ser vista como algo indigno do ser humano, passava a ser considerada a própria realização da justiça divina. Assim sendo, os que a praticavam tornavam-se na realidade os instrumentos da divindade na aplicação do castigo divino.

 

      Mas o pensamento católico, em sua lógica interna, chegou mesmo a assumir uma posição paradoxal. Visto ser a escravidão um  instrumento de “expiração do pecado, a sua aceitação voluntária tornava-se um instrumento de purificação, de libertação, de salvação para a alma. Essa salvação, por outro lado, seria facilitada quando o escravo estivesse a serviço dos senhores cristãos.

 

      Três foram os motivos principais aduzidos como justificativa da escravidão voluntária, ou seja, quando alguém, em caso de extrema necessidade para a própria sobrevivência, se entregasse a outrem na condição de escravo. Havia também uma extensão desse princípio no âmbito familiar: os pais também poderiam vender os filhos como escravos em circunstâncias análogas. Como se pode observar, permanecia vigente a concepção de que os filhos eram”propriedade” dos pais.

 

      Em segundo lugar, a escravidão era também admitida como pena ou castigo imposto por culpas consideradas graves. Houve mesmo um período da Idade Média em que, no esforço de revalorizar o celibato eclesiástico muito pouco observado, a legislação eclesiástica chegou a prever penas de escravidão para mulheres e filhos de sacerdotes.

 

     A terceira razão justificadora da escravidão era a guerra justa. Nesse caso, os prisioneiros poderiam ser reduzidos á escravidão, ao invés de serem mortos sumariamente. Esta terceira justificativa merece uma análise mais prolongada, porque foi a mais amplamente difundida na época das conquistas ibéricas.

 

     As diversas argumentações de ordem religiosa, racional e jurídica, referidas anteriormente, passaram a ser usadas na legitimação da sociedade colonial escravocrata, seja para os indígenas, seja principalmente para os africanos.

 

    Toda essa concepção da escravidão como castigo do pecado e instrumento de salvação tinha um apoio bastante significativo na própria concepção platônica, que considerava o corpo como a prisão da alma. Assim sendo, o processo de libertação do espírito passava necessariamente pelo desprezo das qualidades corporais. Por conseguinte, se para o sábio o processo de crescimento na verdade implicava um esforço voluntário em  não se deixar enredar pelas ilusões do corpo, nada mais coerente de que o ignorante fosse coagido a assumir uma atitude de repressão ao corpo, pelo menos para que seu comportamento  não viesse a impedir o progresso espiritual dos demais.

 

      A partir do início da Idade Média, a reflexão sobre a conquista da verdade foi transfigurada pela fé católica em ascensão da alma para o reino da graça; a resistência a esse movimento, por sua vez, passou a ser vista através das paixões dos sentidos, atraindo o ser humano para o pecado. Assim sendo, a ascese corporal, assumida deliberadamente, era considerada como o caminho para a virtude percorrido pelos justos. Em contrapartida, parecia justificado obrigar os pecadores a reprimir também o próprio corpo, em vista de sua instrumentalização para o mal. Por meio da escravidão, portanto, não só se diminuía o espaço seja da negatividade da matéria como da maldade do pecado, e também se garantia o domínio “social” da verdade e do bem.

 

       Dessa forma, a própria atuação dentro da sociedade escravocrata passava a assumir uma conotação positiva, podendo os senhores de escravos ser considerados não só como os mantenedores da ordem exigida pela natureza, mas também como os justiceiros de Deus. Para isso, era apenas necessário que a prática da escravidão se mantivesse dentro das normas jurídicas.

 

      Uma vez estabelecida dentro dos critérios exigidos pela lei, a escravidão passa a ser considerada não só legítima, mas também sacralizada, pois representa um componente da própria cristandade.

 

     É o que transparece claramente no pensamento de Vieira, segundo o qual a fuga de um escravo deve ser considerada não só a transgressão de uma lei, mas um verdadeiro pecado. De fato, na resposta dada ao provincial dos Jesuítas sobre a possibilidade de se atender aos negros dos Palmares, desejosos de Ter um padre para administrar os sacramentos e celebrar a missa, Vieira elenca cinco razões para recusar o pedido, das quais a última é a seguinte:

 

Quinta e total, porque sendo rebelados os cativos, estão e perseveram em pecado contínuo e atual, de que não podem ser absolvidos, nem receber as graças de Deus, sem se restituírem ao serviço e obediência de seus senhores, o que de modo algum hão de fazer.

 

      A permanência na escravidão, portanto, é uma exigência ética que se aplica aos escravos, e o regime escravocrata fica sendo reconhecido como uma ordem social aprovada por Deus.

 

      Ao receber pleno apoio do governador Mem de Sá para realizar a tarefa missionária, Nóbrega chegou a sugerir guerra de punição contra os índios rebeldes, como forma de ampliar o território português na costa brasileira, obtendo-se ao mesmo tempo legítima mão-de-obra escrava. Eis suas palavras:

 

       Sujeitando-se o gentio, cessarão muitas maneiras de haver escravos mal havidos e muitos escrúpulos, porque terão os homens escravos legítimos, tomados em guerra justa, e terão serviço e vassalagem dos índios, e a terra se povoará, e Nosso Senhor ganhará muitas almas, e S.A. terá muita renda nesta terra, porque haverá muitas criações e muitos engenhos, já que não havia muito ouro nem prata.

 

        Conjugavam-se, assim, plenamente os interesses da conquista espiritual das almas com os da conquista espiritual das almas com os da conquista política, mediante o aumento dos súditos do rei, redundando disso tudo grande proveito econômico em virtude de expansão das terras produtivas trabalhadas pelo braço escravo.

 

                                                IX

     FAMÍLIA E EDUCAÇÃO NA SOCIEDADE COLONIAL

 

      Os padrões sociais vigentes no reino lusitano foram transferidos para a Colônia, e as populações indígenas, na medida em que eram subjugadas e subordinadas á dominação política da Coroa, tiveram também de submeter-se ás novas regras de estruturação da sociedade. O mesmo processo de dominação, e de forma ainda mais violenta, foi estabelecido para os negros trazidos para a Colônia como escravos.

 

        Em ambos os casos, o método de imposição dos novos padrões sociais obedeceu a duas linhas convergentes de atuação: em primeiro lugar, desorganização das antigas formas de organização tribal, seja por meio de um discurso extremamente crítico, seja mediante ações repressoras e coercitivas; em segundo lugar, incorporação dos grupos subjugados á sociedade colonial lusitana em formação.

 

       De fato, a preocupação dos lusitanos não era a valorização da sociedade indígena, mas apenas a expansão da sociedade lusitana.

 

      Na concepção aristotélica, a família é composta de três partes primitivas e estruturais, a saber: o senhor e o escravo, o marido e a mulher, os pais e os filhos. Para Aristóteles, a família, como o Estado, representa o todo em relação aos indivíduos que a compõem. E o todo deve, necessariamente, ser colocado antes das partes.

 

        Visto constituir a família uma determinada “origem”, ela requer a existência do princípio de autoridade, que Aristóteles reserva exclusivamente para o homem:

 

        Segundo Aristóteles, algumas pessoas já nasceram por sua própria constituição natural predestinadas para o mando, enquanto outras igualmente foram predestinadas para a obediência. A manutenção dessa ordenação familiar é fundamental para o bem-estar social. Mesmo quando enfatiza a necessidade da prática da virtude entre os cidadãos. Aristóteles volta a enfatizar essa hierarquização. Segundo ele, o “artista deve sobressair-se tanto sobre os seus semelhantes, quanto o homem sobre a mulher, o pai sobre os filhos, o senhor sobre o escravo”.

 

        Assim como a cidade, a família também é apresentada por Aristóteles como uma construção; o arquiteto dessa construção familiar deve ser o homem. Como autor e realizador da família, compete ao homem o exercício da autoridade, uma decorrência do próprio direito de propriedade.

 

       Segundo a concepção aristotélica, a ordem familiar é estabelecida mediante três subordinações diversas: subordinações dos escravos ao senhor, da esposa ao marido, dos filhos ao pai.

 

       O ideal dos colonizadores lusos era transferir para a colônia ao padrões sociais vigentes na metrópole. Segundo frei Manuel Calado, as mulheres portuguesas “eram exemplo de honestidade a todas as outras nações”, a tal ponto que “para se pôr um freio ás mulheres desencaminhadas, pintavam em hieroglífico [ sic] da compostura uma mulher vestida e toucada ao modo português, a que chamavam portuguesa honesta”.

 

      Um dos aspectos que mais chama a atenção dos colonizadores e dos missionários lusitanos que chegavam á Colônia com essa visão do papel da mulher é o espírito de liberdade que reina na organização familiar indígena.

 

     A falta de uma estrutura familiar marcadamente masculina nas tradições indígenas é motivo de desprezo e reprovação da parte dos missionários.

 

     O papel importante ocupado pela mulher na vida social das comunidades indígenas parece ter sua origem em dois aspectos básicos: a hegemonia que ela desempenha na atividade agrícola e o espaço que começa a conquistar no domínio sagrado.

 

     A forte participação das mulheres indígenas no controle do sagrado espanta e irrita sobremaneira os colonizadores, habituados a uma expressão religiosa totalmente dominada pelos homens.

 

    Para o capuchinho Martinho de Nantes, essa liberdade em que vivia a mulher na sociedade indígena era símbolo de anarquia. Por isso, mediante o processo educacional, procurou estabelecer a desejada subordinação das mulheres aos homens: “As mulheres estão agora submissas ao marido”.

 

    A educação lusitana imposta aos indígenas, portanto, passou a dispor a subordinação da mulher ao homem, e o domínio desta sobre aquela, conforme a norma vigente na sociedade européia. Essa tradição medieval, aliás, tinha raízes na própria sociedade grega, na qual Platão e Aristóteles, com suas reflexões filosóficas, haviam “oficializado” esse tipo de dominação.

 

    A superioridade do homem sobre a mulher faz parte da concepção aristotélica, em que o cosmo é apresentado como uma ordem hierarquizada.

 

   Criando á imagem de Deus, o homem devia ser uno em sua origem, como o próprio Deus.

 

    De modo análogo a Platão, Agostinho defende, como já foi lembrado, a superioridade do uno sobre o múltiplo, do anterior sobre o posterior. Assim sendo, Eva representa a introdução do múltiplo na espécie humana, constituindo ao mesmo tempo uma criatura inferior, uma parte apenas do todo, simbolizado pelo homem.

 

    Progressivamente, ao longo da Idade Média, foi dado um passo a mais pelos intelectuais católicos, em sua maioria clérigos, no esforço de diminuir ou apagar a influência da mulher na vida social, decorrente, em geral, de sua hegemonia nos antigos rituais de caráter agrário. Divulgou-se, assim, a idéia da demonização da mulher.

 

    Dessa forma, as mulheres que continuavam a exercer funções sagradas nos antigos cultos de tradição rural passaram a ser vistas como bruxas ou feiticeiras, cujo poder religioso advinha de seus contatos com os espíritos do mal. Quando os processos de inquisição, de origem medieval, foram transplantados para o Brasil, não poucas denúncias ou confissões versavam sobre o caráter demoníaco atribuído ás mulheres. Segundo a crença popular, muitas delas tinham pacto com o demônio.

 

      Pelo imaginário popular se fixava a idéia de que qualquer mulher que atribuísse a si poderes especiais vinculados normalmente á esfera do sagrado tinha alguma relação com o demônio.

 

     Prevaleceram, como em  outros aspectos, a idéia da supremacia da cultura branca e a necessidade de subordinar os valores indígenas á sua hegemonia. Dessa maneira, a diferença nos processos educativos foi reduzida á perspectiva unitária da educação ministrada pelos colonizadores. Para isso, evidentemente, era necessário transformar os valores indígenas em contravalores, a virtude em vício, a positividade em negatividade.

 

   Educar é fundamentalmente colocar o indivíduo dentro de um molde, dentro de uma forma pré-fabricada.

 

    Durante a Idade Média, a educação mediante um processo repressivo tornou-se a norma geral, não só sob a influência do pensamento grego, mas sobretudo pela tradição do patriarcalismo judaico. Nesse caso, a necessidade do castigo era vista como uma conseqüência do pecado.

 

     Uma preocupação fundamental dos missionários foi separar os meninos do ambiente familiar, no qual viviam em regime de liberdade, procurando trazê-lo na medida do possível para os internatos, onde mais facilmente seriam pressionados ao adotar os costumes e as atitudes próprias da cultura lusitana e cristã.

 

     Assim sendo, os missionários passaram a se convencer de que um trabalho efetivo, com duração a médio e longo prazo, só seria possível se os índios fossem amoldados desde a infância aos novos padrões de fé católica e cultura lusitana.

 

     O resultado foi muitas vezes satisfatório. Diversos meninos fizeram uma opção pela cultura luso-cristã, renunciando a seus costumes tradicionais.

 

 

                                          X

     OS INTERESSES ECONÔMICOS DA METRÓPOLE

 

    Não foram poucos os espantos dos conquistadores ao se defrontarem com o mundo indígena, como já tive oportunidade de ressaltar. Entre essa surpresas, deve-se registrar também a  admiração dos lusos diante de seres humanos que não eram ávidos de riqueza, e nem sequer pensavam na acumulação de bens.

 

    Embora o discurso da dominação colonial tenha dado relevo muito grande á finalidade religiosa das conquistas é inegável que o motor primeiro da expansão lusitana não era a conversão dos infiéis, mas sim a procura de ouro, especiarias e escravos. Tais expedições continuavam a ser comparadas ás cruzadas e, dessa forma, a receber os favores e privilégios concedidos pela Santa Sé; não obstante, esses empreendimentos marítimos tinham um caráter marcadamente econômico. Tratava-se, na verdade, de verdadeiras empresas comerciais, visando antes de tudo ampliar o mercado lusitano.

 

    Por outro lado, não se deve olvidar que essa expansão política e econômica era também acompanhada pela “empresa” espiritual da propagação da fé, como muito bem definira Manuel da Nóbrega a tarefa missionária da companhia de Jesus: “esta terra é nossa empresa”.

 

   É exatamente essa conjugação entre os interesses políticos e econômicos, de um lado, e os interesses religiosos, do outro, que faz com que todo empreendimento colonizador seja revestido de um manto de sacralidade, até na sua dimensão tipicamente econômica e material.

 

    Assim, mediante a bula Dum Diversas, datada de 18 de junho de 1452, o papa Nicolau V concedia ao rei de Portugal o poder de adquirir domínios muçulmanos e infiéis, bem como de se apossar de seus bens públicos e particulares, mediante a recomendação de que sempre tivessem em mira o aumento da Cristandade e a exaltação da fé.

 

    Extremamente importante é também a bula Romanus Pontifex, de 9 de janeiro de 1454, do mesmo papa, confirmando os direitos já concedidos e afirmando ser interesse do povo cristão o alargamento do “grêmio” da fé católica, a fim de que se pudesse “navegar por este oceano até ás praias longínquas do Oriente”. O papa elogiava, ainda, o ideal do infante Dom Henrique de entrar em contato com os povos da Índia “que julgamos submissos a Cristo.

 

      Era exatamente em nome da liberdade de comércio e do caráter laico da economia que os holandeses se recusavam a aceitar o imperialismo político-religioso da Coroa hispano-lusitana.  

 

      Se nas conquistas holandesas os guerreiros estavam a serviço dos interesses econômicos, nos empreendimentos lusitanos os militares estavam a serviço da fé, afirmava Vieira.

 

      A partir de um raciocínio bem elaborado, simultaneamente filosófico e teológico, justificava-se toda a expoliação econômica dos vencidos, resultante das conquistas lusitanas.

 

       Ainda mesmo nos primórdios do século XVIII, quando já  as minas de ouro haviam sido descobertas, patenteando as riquezas do solo brasileiro, de um lado, e a avidez da Coroa, de outro, o jesuíta João Antônio Andreoni continua a apregoar a sacralidade da empresa colonial. Numa obra de cunho marcadamente econômico, ele reserva um capítulo inteiro para falar da obrigação moral de “pagar a El Rei Nosso Senhor a Quinta parte do ouro que se tinha das minas do Brasil. O pagamento dessa taxa ao fisco, a seu ver, estava impregnado de caráter ético.

 

   O rei é o senhor legítimo das minas, por doação que lhe fez delas com a conquista do Brasil o Sumo Pontífice, e por outros títulos. As minas, por sua vez, pertencentes ao direito real e parte do seu patrimônio são destinadas “a sua manutenção, e gastos que faz em prol da república, e para a conservação e aumento de fé.

 

    Como o monarca sempre as reservou para si, dando licença para se tirar ouro delas apenas com a condição que se lhe pague a Quinta parte do que se tirar, “claro está que esta obrigação está fundada em justiça comutativa”. Portanto, ainda que a lei não acrescentasse pena aos transgressores, “sempre deviam pagar estes quintos por ser obrigação intrínseca”.

 

   Como se pode observar, a justificativa básica continua apoiando na concepção sacral da conquista, vinculando a essa sacralidade os interesses econômicos.  O discurso colonizador, portanto, continuava ressaltando que os interesses econômicos da Coroa estavam vinculados ao compromisso de expansão da fé. Na realidade, bem depressa ficara patente que o maior interesse dos lusitanos pela nova terra era principalmente econômico, e que os demais aspectos, tão enfaticamente proclamados, eram com freqüência formas de ocultar a violenta exploração aqui se fazia.

 

           

 

    

 

 

    

     

       

 

    

 

      

 

 

 

 

 

                   

 

        

      

 

   

 

                  

 

              

 

                 

 

                   

 

 

 

               

 

                   

 

       

 

            

            

                

 

 

   

   

                     

 

 

 

                     

 

           

 

                         

 

                               

                                  

 

 

                          

                   

 

            

     

 

                

                

                        

 

 

 

                         

 

 

 

 

 

          

         

 

 

 

 

         

 

      

         

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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