Síntese
elaborada por Pe. Paolo
I
O Domínio Humano
Sobre Cosmo
A ultura indígena, de fato, ao mesmo
tempo que se sobrepunha à natureza, procuravaadaptar-se a ela. Dir-se-ia que o indígena, separado
da natureza pelo lume de razão um fogo
que se acendera dentro dele procurava por outro lado permanecer unido à
própria natureza, com sua mãe e nutris. Na
cosmovisão indígena, de fato, o homem era considerado parte integrante do mundo
da natureza, vivendo assim em comunhão com os demais seres da terra. Em
conseqüência desse modo de vida, todos os seres da natureza eram considerados
na cosmovisão indígena como interligados, exercendo, conforme o caso, influências
recíprocas, benéficas ou maléficas. Em certos rituais de dança, por exemplo, os
indígenas imitavam os gestos de determinados animais ou suas formas, visando
seja facilitar sua caça, seja preservar o grupo de seus ataques.
Enquanto
os indígenas viam o mundo a partir de sua inserção nele, os conquistadores
e evangelizadores o contemplavam a partir de um
distanciamento, típico da perspectiva européia. Para eles, a nova terra e seus
habitantes eram primordialmente um " objeto " de estudo, algo que se
lhes deparava como totalmente fora de sua realidade. Trata-se, evidentemente,
de um " outro" mundo e esses " outros" habitantes do
território passaram a ser analisados com base nas categorias cosmológicas e
antropológicas vigentes na Europa.
Cabe bem aqui a penetrante observação de
Keith Thomas
É
exatamente essa vontade decidida de explorar a natureza dos novos territórios
descobertos, a fim de transferir seus produtos para metrópole, que marca a
atuação inicial dos conquistadores.
O universo, portanto, é visto como uma
" construção material ", análoga aquelas
que os homens estão fazendo em suas cidades. O homem
urbano não é mais agricultor, mas artífice, e Deus é visto, portanto, como o
" Soberano Artífice ".
Enquanto na
concepção indígena de raiz agrária o cosmo é sentido como dotado de vida, da
qual o próprio homem participa, na concepção européia o universo passa a ser
visto como pura materialidade. Com resultado da mentalidade urbana e comercial
da época, opera-se uma verdadeira" coisificação " da natureza. Esta é
vista primordialmente como objeto de " conquista", de
"posse" de "compra e venda" e, ao mesmo tempo, como
"material" a ser utilizado para as realizações humanas.
Paradoxalmente, embora Deus seja considerado nessa época pelos
intelectuais como puro
espírito, o seu reino ocupa um lugar inquestionado: é
acima das nuvens e do céu, tal qual
é visto pelos homens.
Dessa
perspectiva filosófica européia e cristã, o mundo natural existe, não só para
dar
glória a Deus, mas também para servir o homem. Esse
direito do homem ao domínio sobre a natureza é enfatizado por André Thevet na
reflexão filosófica com que inicia a descrição de sua viagem ao Brasil. Todos os elementos, e tudo o mais que existe
entre a Lua e o centro da Terra, parecem Ter sido feitos ( como aliás o foram )
para o homem.
É importante
ter presente que esse eurocentrismo cosmológico facilitava também os interesses
econômicos de exploração e depredação do mundo natural que estivesse fora dos
limites da Europa, nessa época de expansão comercial.
Para aqueles
que se integravam cada vez mais na terra brasileira, era importante insistir
nessa luta filosófica pela revisão da antiga cosmologia de matriz aristotélica,
a qual tivera grande aceitação na Europa medieval. Era necessário provar aos
europeus não só que o Brasil era habitável, mas até mesmo gozava de um clima
saudável dentro dos critérios vigentes na época.
Entre os que
se alinham nessa tarefa revisionista está Frei Vicente do Salvador, baiano de
nascimento, que retoma a argumentação de Thevet:
Opinião foi
de Aristóteles e de outros filósofos antigos que a zona tórrida era inabitável,
porque como o sol passa põe ela cada ano duas vezes para os trópicos, parecia-lhes
que com tanto calor não poderia alguém viver.
Mas ele nega
a teoria aristotélica, declarando com ufanismo . Porém a experiência têm já
mostrado que a Zona tórrida é habitável, e que algumas partes dela vivem os
homens com mais saúde que em toda a Zona temperada, principalmente no Brasil.
II
A Racionalidade Indígena Em Questão
A exploração
do continente americano foi realizada não só com base no pressuposto
de uma relativa desmoralização da natureza, mas também
simultaneamente em conseqüência de uma
progressiva sacralização do homem. Se, por um lado, a natureza ia sendo
destituída de seu caráter divino, por outro o próprio homem passava a ser
revestido dele.
Em suma,
o ponto básico nessa perspectiva filosófica era a afirmação do direito
humano sobre uma natureza cada vez mais retificada.
Assim sendo, desencanto do mundo natural
correspondia um processo de encantamento do próprio homem.
Para
Aristóteles, por seguinte, o fundamental era a manutenção da subordinação do
corpo ao espírito, uma exigência da própria natureza, segundo ele. Em modo
análogo a Platão, também Aristóteles desprestigia o componente físico do ser
humano, para exaltar o componente psíquico. Essa visão antropológica era
plenamente coerente com a atitude que o homem urbano assumia com relação ao
cosmo. Se a missão do homem era
verdadeiramente exercer o domínio sobre a natureza a fisis, nada mais
lógico que essa atuação cameçasse a ser
realizada a partir da relação do ser humano com o seu próprio corpo, ou seja, o
seu elemento físico.
Por isso,
Aristóteles prega a contenção dos prazeres corporais, em vista da maior
satisfação proveniente dos prazeres do espírito. Visto
que o homem é um ser fundamentalmente racional, a sua verdadeira felicidade
deveria consistir nas atividades e no pensamento.
Assim
sendo, a perfeição humana exige como requisito fundamental o distanciamento das
coisas terrenas, perecíveis, mortais e sujeitas à desagregação e á morte, para
um envolvimento sempre maior com os
valores do espírito.
Platão
deixa bem claro em seus escritos que a luz da razão brilha com mais força
entre os gregos do que entre os povos
considerados bárbaros. Assim sendo, os gregos eram seres mais próximos do
divino que os demais. Por conseguinte, competia a esses seres superiores
exercer a dominação sobre os demais seres humanos inferiores. Aristóteles, por
sua vez, continua mantendo e explicitando essa mesma linha de pensamento.
O pensamento
grego foi difundido nos primórdios da Idade média sobretudo por meio de
Agostinho. Ele utiliza algumas das matrizes gregas, sobretudo platônicas, para
construir a visão de mundo, com base em uma perspectiva cristã.
Em sua
concepção antropológica, Agostinho não só mantém o princípio clássico da
superioridade do espírito sobre a matéria, da alma
sobre o corpo, mas também enfatiza sobretudo a negatividade existente no corpo
humano como conseqüência do pecado original. Assim sendo, sua visão de homem é
marcadamente pessimista. Nessa análise, ele privilegia o aspecto psicológico.
Interessa-lhe sobretudo colocar em relevo a força do mal que atinge o corpo por
meio das paixões, obnubilando o espírito e dificultando assim o domínio do
homem sobre sua existência.
Na
antropologia platônico-agostiniana, enfatiza-se a fragilidade do homem diante
das
amarras do corpo. Já na perspectiva da antropologia
aristotélico-tomista, prevalece a confiança no poder da razão humana enquanto
reguladora das forças físicas.
A visão
antropológica dos conquistadores e colonizadores permanece mais próxima da concepção aristotélico-tomista, embora não se
deva descartar também a influência platônico-agostiniana.
Os colonizadores,
em geral, se julgavam seres capazes de colocar ordem na natureza,
exatamente porque dotados das luzes da razão. Essa
consciência era fortalecida ainda mais quando eles se confrontavam com as
populações indígenas. Por esta razão, assumiam diante
dessas tribos a mesma posição de superioridade que os
gregos mantinham sobre os demais povos, considerados por eles como
"bárbaros". Essa afirmação de superioridade, aliás, era essencial
para o seu projeto imperialista, que
suponha não só o domínio sobre a natureza, mas também sobre os habitantes da
nova terra. Dessa forma, o conceito de superioridade dos lusitanos como seres
plenamente racionais garantia-lhes o exercício da conquista material e
espiritual tanto do território como dos povos nele existente.
Nesse
aspecto, era fundamental ressaltar as diferenças existentes entre a cultura
indígena e a cultura européia. Mais importante ainda, porém, era atribuir essas
diferenças a uma inferioridade estrutural dos primitivos habitantes do
território. Por isso, os conquistadores atribuem-se a plenitude da
racionalidade humana e assemelham o mais possível o modo de vida dos índios a
dos seres considerados inferiores na ordem da criação.
Na ordem
da racionalidade humana, tanto os indígenas como os negros trazidos em seguida
como escravos são considerados como pertencentes ao ínfimo grau, bem próximos
da pura animalidade. Salvo poucas exceções, é essa a tese mais generalizada
entre os colonizadores tanto eclesiásticos como leigos.
Em quase todos
os discursos missionários, o índio é descrito como um ser bestial, selvagem com
um tipo de vida bem próximo ao dos animais. Os religiosos não poupam palavras
para apresentar de forma bastante dramática a condição indígena como totalmente
distante dos padrões humanos da vida civilizada.
Para os
colonos, a diferença era uma justificativa para a escravidão do indígena, e
quando necessária até para o seu extermínio, em vista
dos interesses econômicos da exploração do território. Para os religiosos, a
preocupação era evidenciar a importância da atividade missionária.
Na
perspectiva clerical, é a dedicação e o sacrifício dos religiosos que conseguem
transformar esses seres animalescos em cidadãos
lusitanos e bons cristãos. Quanto mais,portanto, fosse ressaltada a selvageria
dos indígenas, mais patenteada ficava a necessidade de promotores da fé no novo
território colonial.
É
interessante observar que, mesmo entre os missionários, a afirmação da
racionalidade indígena varia conforme os interesses e os êxitos obtidos em sua
tarefa. Martinho de Nantes, de fato, denuncia que outros religiosos se opunham
à missão dos capuchinhos franceses,apelando para a irracionalidade dos índios.
De início o
religioso, homem dotado de fé e de razão, se defronta com grupos indígenas,
considerados sem fé e sem uso da racionalidade. Cria-se assim uma oposição bem
nítida: de um lado a fé e a razão do missionário; do outro, a descrença e a
desrazão do indígena. Daí a justificativa
da dominação, seja através do intimidamento moral. Este processo de dominação
passa a ser conhecido como
"redução" do gentio. É por meio da ação missionária que o indígena é
transformado num ser verdadeiramente humano, dotado de fé e de razão. Por
conseguinte, está apto a ser declarado
fiel da Igreja e súdito da Coroa, ou seja, integrado no serviço do Estado
lusitano.
III
A Antropofagia E A
Unidade Perdida
Na
mentalidade indígena, portanto, prevalece a idéia da circularidade existente na
natureza entre a morte e a vida, uma das concepções
mais antigas da humanidade.
Convém ter
presente que a antropofagia ritual só se realizava após um combate ou uma
guerra entre as tribos. Mas essa prática tinha também um fundamento sagrado,
originário da própria percepção da natureza como algo divino. É por isso que o
ato antropofágico era precedido de um longo cerimonial, separando-o, portanto,
de uma simples alimentação comum.
A prática do
canibalismo era um momento solene na vida da tribo. Não se tratava de uma ação
individual, mas de um ato comunitário, marcado por uma densidade social.
Para os
conquistadores, a manducarão da carne de inimigo morto era uma expressão da
animalidade diabólica. Na mente dos indígenas, representava uma participação e
uma integração no mundo sagrado da própria vida.
Para os
primeiros, o ato era considerado repugnante à própria natureza humana; segundo
os outros, tratava-se de uma dignificação dessa mesma natureza. Vivendo em
sociedades tribais ainda colocadas sobre o próprio mundo da natureza, os
indígenas não tinham ainda consciência nítida da separação entre a esfera
natural e a esfera cultural. Mantinham,
portanto, uma concepção de circularidade entre a morte e a vida, decorrente
da própria inserção do ser humano na natureza e de sua
profunda dependência desta.
Tudo
leva a crer que, na elaboração primitiva
do mito do paraíso terrestre, a felicidade do ser humano consistiria no seu
retorno a um jardim ou a um horto povoado de animais, voltando assim a conviver
de forma integrada com a flora e com a fauna. Seria o retorno do homem ao se
hábitat primordial, ao paraíso natural
do qual fora extra-jetado pela emergência da consciência.
Não
obstante, como resultado de uma elaboração sucessiva, o mito bíblico
judaico-cristão acrescentou a presença de um "deus criador" nesse
éden primitivo. A presença de uma divindade acima da natureza já era o
resultado de uma significativa evolução da cultura humana, em que a consciência
da racionalidade se tornara uma aquisição definitiva.
Segundo a cosmosição Judaíco- Cristã, o homem e o
cosmo eram o resultado da atividade de um ser divino, colocado fora e acima do
próprio mundo. Esse ser dotado de vontade e de razão era o reflexo da evolução
cultural de algumas antigas sociedades,
como a civilização egípcia e a mesopotâmica, com as quais os judeus mantiveram
contato mais ou menos prolongado.
IV
A Afirmação Do
Conhecimento Letrado
O que se
verifica na realidade, era um profundo distanciamento entre a cultura indígena
e a cultura letrada dos europeus. Daí a dificuldade de intercâmbio entre as
duas.Vivendo numa cultura marcada pela imitação da natureza e ela intimamente
entrelaçada, os indígenas tinham os sentidos do corpo bastante desenvolvidos,
sendo extremamente sensíveis á cor ao cheiro, ao sabor, ao som e ao contato com
os objetos. Mas eram avessos a formulações
teóricas. De fato, inseridos no mundo da natureza, o homem indígena
tinha uma consciência muito forte de sua
fragilidade diante dos demais seres vivente e sensitivos. Daí a importância
do fortalecimento para fazer frente aos
desafios à sobrevivência humana.
Não
obstante uma profunda sensibilidade aos aspectos físicos do cosmo, os indígenas
mantinham, por outra parte, em níveis muitos baixos, sua capacidade de
abstração. Seus pensamentos, portanto, eram articulados de forma concreta, sem
generalizações.
Tendo
moldado sua cultura em formas de imitação da natureza, os povos indígenas
viviam marcados profundamente por suas origens. Dentro
dessa perspectiva, o maior esforço era
orientado para perseverar os
conhecimentos já adquiridos no passado.
Em geral,
os selvagens atribuíam seus conhecimentos a uma origem "sagrada",
divina. Nos rituais indígenas, a memória
ocupa também um papel fundamental, revestido de sacralidade. A evocação dos
fatos passados faz com que eles se tornem presentes. Não se trata apenas de uma
lembrança do que já ocorreu anteriormente, mas se opera efetivamente a sua
reatualização.
Se o
fundamental na cultura indígena era a perseverança dos conhecimentos já
adquiridos, os europeus do século XVI mostravam-se
mais interessados em expandir seu horizonte cultural.
Essa é a
oposição do Jesuíta Simão de Vasconcelos, cronista do instituto. Após
afirmar que Deus criara o homem e fundara o paraíso
terrestre na parte do orbe terrestre
formado por Europa, Ásia e África, acrescentava com
relação à outra parte da terra, ou seja,
a América: "Deixou-a ficar em esquecimento, sem paraíso, sem patriarcas,
sem sua divina presença humana; sem luz da fé e salvação".
Por essa
razão, um dos compromissos pela Coroa Lusitana, ao receber da Santa Sé o
direito de padroado sobre as novas terras descobertas,
era a conversão dos indígenas. Para isso, era necessário que fossem instruídos
nas verdades da fé católica.
Nessa perspectiva, o conhecimento religioso
era considerado o mais importante para o ser humano, o único capaz de torná-lo
verdadeiramente feliz nesta e na vida futura, após a morte. Esse conhecimento
não fora resultado de uma conquista humana, mas era considerado uma dádiva
divina. Havia, portanto, por parte dos missionários, a crença generalizada de
que eles estavam na posse exclusiva da verdade divina. Só na Igreja Católica ,
de fato, se conservara o patrimônio da verdadeira revelação divina.
Duas
principais teorias de conhecimento haviam sido transmitidas ao mundo ocidental
pela civilização grega: uma marcadamente idealista, outra inspirada num
realismo moderado. A matriz idealista tinha Platão como seu principal
representante; na concepção realista imperava o pensamento aristotélico.
Ao
privilegiar o mundo ideal como fonte do conhecimento humano, a filosofia
platônica refletia bem o estado de espírito de um importante segmento da
sociedade grega: a aristocracia de origem de origem rural. Essa forma de
pensamento trazia embutida em sua elaboração uma atitude de desencanto e
pessimismo em relação às novas estruturas sociais, de cunho mais burguês e
democrático, as quais progressivamente passavam a dominar nas cidades gregas.
Na nova sociedade em formação, os
valores econômicos assumiam grande importância, e a ciência passava a ser
desenvolvida em benefício do bem material da população. Para a antiga
aristocracia, marcada por sua origem guerreira e pela influência religiosa, o
povo grego estava perdendo os seus valores morais. Daí a importância da memória
no pensamento platônico. Descrentes dos rumos políticos da sociedade de sua
época, Platão e seus discípulos se refugiavam no passado. Dessa forma, em
oposição ao interesse pelo estudo da natureza, apelavam para a busca dos
fundamentos religiosos e social. Era necessário voltar às origens, às raízes da
cultura humana, modificadas no mundo hiperurâneo
V
A Sexualidade Humana: O Desafio
Ético
Ao desembarcar no continente americano,
conquistadores e missionários vinham imbuídos da convicção de que o homem era
um ser distinto da natureza, caracterizado por um espírito que fazia dele o rei
da criação, encarregado pela própria divindade de exercer o domínio sobre todos
os demais seres do cosmo. Essa elaboração teórica fora o resultado de um longo
processo cultural resultante da vida urbana em expansão da Europa, sobretudo a
partir da baixa Idade Média.
Os
habitantes do novo mundo, porém, apresentavam-se como um questionamento e até
mesmo como uma navegação dessa tese. De fato, eles evidenciavam que era
possível ao ser humano construir uma cultura aderente à natureza, e não
necessariamente separada dela. Mais ainda:
mediante o seu comportamento prático, os indígenas demonstravam com sua
nudez que podiam conviver em paz com o corpo, sem Ter necessariamente que
reprimi-lo ou nega-lo. Esse aspecto, por sua vez, entrava em choque com a ética
cristã medieval, empenhada na medida do possível em negar o valor do corpo, e
sobretudo da sexualidade. Isso explica por que a questão da nudez indígena
tenha despertado tanto a atenção e envolvido tantos cuidados na atuação
missionária, e tenha provocado também tantos discursos sobre o tema.
Enquanto
para os europeus era fundamental estabelecer a distância existente entre o
homem e as demais espécies do reino animal, os indígenas não se consideravam
diminuídos em colocar em evidência as marcas de sua animalidade. De fato, a
sexualidade representa um dos mais fortes elos que vinculam o ser humano ao
mundo animal.
Para melhor
garantir a continuidade da espécie, quase todos os grupos humanos antigos
passaram a sacralizar os atos preparatórios destinados à reprodução. A
sacralização da sexualidade constitui uma das principais expressões culturais
das antigas civilizações agrárias do Oriente Médio. Essa concepção sagrada do
sexo, por sua vez, estava intimamente vinculada aos próprios ciclos agrários da
natureza.
Nesse
contexto de vida agrária, o aspecto fundamental era a sobrevivência do homem
sobre a terra. Ele luta contra a morte que o ameaça a cada instante. Somente
tornando propícias as forças hostis da natureza controladas pelas divindades,
consegue o homem a própria sobrevivência. Para ele, gerar é sinônimo de viver;
gerar significa perenizar a vida humana sobre a terra. Gerar, Por outro lado, é
também participar da vida divina. Unido à geração, o sexo mantém assim o seu
caráter sagrado e mesmo divino.
Com a
afirmação da sociedade urbana, no mundo clássico greco-romano, dá-se uma
evolução significativa: a cidade Polis ou Civitas representou um esforço
decisivo do ser humano em estabelecer um distanciamento do mundo da natureza.
Perdendo
contato direto com a natureza, o homem desvinculou-se também da visão constante
da fecundação da terra, preocupação contínua dos povos antigos. Se a geração
perdia o seu fascínio primitivo, a festa do sexo continuou a manter toda a sua
força de atração. Dessa forma, nessa nova etapa histórica os homens passaram a
distinguir e até mesmo separar o sexo da
idéia da geração. A fecundidade perdeu a supremacia como centro de interesse, e
a atividade sexual passou a ser considerada como uma realização à parte.
Nas
sociedades agrárias, em que a mortalidade infantil era muito grande por causa
das precárias condições de saúde, a prole numerosa era uma exigência em vista
da necessidades de braços para os trabalhos do campo. Na sociedade urbana que
se implantava, pelo contrário, era urgente impor as restrições à procriação,
pois os limites da cidade não comportavam crescimento demográfico intenso, como
já assinalavam tanto Platão como Aristóteles. Daí as recomendações para que se
reduzisse o número de filhos.
Entre os gregos, e em seguida entre os
romanos, introduziu-se assim um ethos ou prática de vida resultante de uma
opção, de uma decisão histórica do homem: a afirmação da superioridade do
exercício da atividade sexual controlada pelo ser humano, tendo em vista o prazer,
sobre o intercurso sexual motivado pelo instinto animal, com finalidade
procriativa
Não obstante isso, os riscos da escolha
desse caminho de libertação do prazer não passaram despercebidos aos filósofos
considerados clássicos, Platão e Aristóteles. Segundo eles, de fato, a marca
registrada do ser humano devia ser a racionalidade. O ser humano deveria expressá-la mediante a capacidade de
distanciar-se do mundo da natureza. E estabelecer sobre o domínio. Para ambos,
o valor ético da conduta se manifestava exatamente no exercício do controle dos
instintos e paixões, cuja raiz última era exatamente a corporiedade da natureza
humana.
Assim sendo, a maior expressão humana
seria realizada por meio da atividade intelectual, em sua função criadora. Isso
se tornava difícil numa sociedade em que a sexualidade, estimulada pelo próprio
homem, se transformava num grande vulcão de forças instintivas em erupção,
rompendo com seu ímpeto os próprios balizamentos sociais penosamente
estabelecidos. Vitorioso por um lado da natureza, ao separar-se dela por meio
dos muros da cidade, o ser humano acabava por outro sendo vítima do ímpeto
avassalador de uma sexualidade incontida e incontrolada uma espécie de vingança
da natureza dentro das próprias trincheiras culturais por ele estabelecidas.
Daí, evidentemente, a indicação de um
novo caminho a ser palmilhado pela sociedade urbana: a restrição, a contenção,
a ascese em relação às atividades sexuais, consideradas atividades menos
humanas e mais vinculadas à própria animalidade.
Inserida no mundo romano em seus primeiros
séculos de existência, a religião católica, cuja matriz espiritualizante era
bastante forte em sua origem, sentiu necessidade de contrapor-se com firmeza à
difusão do erotismo. Herdeira da tradição judaica, de raízes pastoris e
agrárias, a fé católica continuava insistindo na importância da reprodução
humana, sendo os filhos considerados uma bênção divina. Ao mesmo tempo,
introduzindo progressivamente na Civitas romana, o catolicismo começa a
declarar guerra à desvinculação realizada pela cultura clássica entre prazer e
reprodução humana. Passa, portanto, a afirmar que o uso da sexualidade só tem
sentido quando vinculado diretamente à finalidade procriativa.
A opção platônico- agostiniana, como já foi
ressaltado, privilegiava a dimensão racional ou espiritual, ou seja, a dimensão
extracorpórea como tipicamente humana. Assim sendo, a satisfação dos apelos da
natureza e das exigências fisiológicas passou a ser considerada como
manifestação da degradação humana, ou seja, de uma descida, de uma queda. Dessa
forma, o homem distanciava-se de sua unidade primeira e natural, de caráter
espiritualizante.
Agostinho elabora sua tese do pecado
original bem dentro da concepção mítica das antigas religiões, em que os
grandes eventos da história humana já se haviam realizado de maneira exemplar,
como protótipos, numa etapa primordial, ou seja, nos primeiros tempos. Por
conseguinte, o ser humano estava de certa forma vinculado a uma determinação
pré-histórica.
O grande destaque dado pelo
pensador de Hipona à sexualidade como grande mal social tinha relações
específicas tanto como sua experiência pessoal, como também com a própria
tradição cultural norte-africana, influenciada pelas antigas religiões vigentes
no Império Romano.
A evocar sua adolescência como o
natural despertar das forças da sexualidade, Agostinho traça um quadro trágico,
atribuindo esses instintos e paixões ao domínio do demônio. De fato, recordando
as “ torpezas e as depravações carnais “, ele afirma que na adolescência ardeu
em desejos de se satisfazer “ em prazeres infernais”, ousando até entregar-se a
“ vários e tenebrosos amores”.
Ao longo de toda a Idade Média, a
concepção agostiniana a respeito do pecado original e das suas conseqüências
permaneceu como norma de conduta cristã. As expressões da sexualidade humana
foram sempre vistas como negativas, incentivando-se por todas as formas o seu
controle e a sua repressão, o que passa a ser uma característica marcante da
Idade média, sob a influência da ótica cristã.
Na realidade , a crença católica
desvincula-se progressivamente do mundo da natureza, e a geração perdia
consequentemente o seu caráter sacral. Por outro lado, essa fé não se encarnava
também na mentalidade urbana, não aceitando, portanto, a exaltação do prazer
como realização suprema da vida.
O homem primitivo se sentia pequeno
diante da natureza, imerso e às vezes até mesmo submerso no espaço territorial.
Gerar significa garantir a sobrevivência humana sobre a terra. Esse homem
agrícola sentia-se parte da natureza, procurando os instrumentos para tornar
propícias as forças naturais. Sua vida desenvolvia-se em função do espaço
territorial. Já o homem urbano não se sente parte da natureza, mas destacado
dela, mediante os muros da cidade. A vida das cidades o faz despertar para a
dimensão do tempo, para a fugacidade da existência. Vivendo em função do tempo,
quer usufruí-lo sempre mais.
Paradoxalmente, os cristãos de
tradição agrária passam também a se instalar dentro dos limites urbanos. Não
obstante unir a mentalidade agrária à mentalidade urbana, o cristianismo em sua
raiz mais profunda deprecia ambas as realidades. O cristão não deve viver nem em
função do espaço nem do tempo, mas em função de uma nova dimensão: a
eternidade.
Afastando-se de ambas as concepções,
a religião cristã procura incentivar um novo valor: a virgindade, um prenúncio
de eternidade. Foi este o grande ideal apregoado no período medieval.
Após séculos de repressão sexual, a
ótica cristã viu-se atingida, a partir do século XV, pelos movimentos da
Renascença e do humanismo, com a revalorização da cultura grega e,
consequentemente, pela importância dada à sexualidade. As obras de Bocaccio são
uma indicação dessa tendência.
Contra esse movimento de
valorização da sexualidade o catolicismo reagiu de forma intransigente mediante
a reforma moral imposta pelo Concílio de Trento, no século XVI. Uma das
expressões significativas dessa nova etapa de repressão da sexualidade aparece
na atitude pontifica, ao mandar cobrir toda a nudez dos quadros e estátuas
existentes no Vaticano.
A ocultação da gentilidade no âmbito
da vida social tornou-se assim um elemento importante na tarefa de auto-afirmação empreendida pelo ser
humano, visando assegurar de forma definitiva seu rompimento com o mundo
natural, para considerar-se como criatura eminentemente espiritual.
Sob a influência do cristianismo,
outro aspecto passou a ser considerado fundamental no uso do vestuário: a
cobertura da nudez era uma exigência da própria conduta moral.
Nada mais natural do que essa
interferência de uma visão cristã do mundo nos costumes sociais, na sociedade
lusitana, em que o político e o religioso se interligavam profundamente. É a partir desse horizonte que se organiza a
sociedade colonial. Na matriz do ethos lusitano, porém, influem não só
orientações de natureza religiosa, mas também concepções oriundas de uma
perspectiva racional.
Do ponto de vista do colonizador, o
problema da sexualidade assume uma importância singular. A questão sexual
constitui uma das preocupações dos líderes encarregados de organizar a
sociedade colonial.
Segundo os Jesuítas, dois problemas momentosos
deveriam ser resolvidos o mais rapidamente possível: o primeiro era a nudez dos
índios; o segundo, a mancebia dos portugueses.
Esses aspectos são já bordados por
Nóbrega em sua primeira carta endereçada ao provincial Simão Rodrigues, em abril de 1549, poucos
dias depois da chegada a Salvador.
A nudez cotidiana habitual e manifesta
dos indígenas era um questionamento permanente para todo o esforço desenvolvido
pela moral católica em favor da repressão e do ocultamento da sexualidade
humana.
Tratava-se, na verdade, de um confronto
entre duas perspectivas éticas. Para os indígenas, a nudez era um valor e
expressão da liberdade, numa cultura marcada pela imitação da natureza. Para os
conquistadores e missionários, estruturados numa sociedade distanciada do mundo
natural, a nudez representava a negação dos valores morais, vinculando o homem
à sensualidade típica dos animais. Cobrir a nudez dos índios torna-se,
portanto, uma das tarefas fundamentais dos missionários.
A partir de uma reflexão especificamente
cristã, a cobertura da nudez fora a conseqüência do pecado dos primeiros pais
da humanidade. A vergonha provocada pela nudez tinha sua origem do sentimento
da culpa original. Como todos os homens eram considerados descendentes de Adão
e Eva, todos deviam necessariamente sentir vergonha de expor a própria nudez
diante de outrem.
A existência de comportamentos
diversos oferecia a oportunidade para se questionar essa teoria ética. Partindo
de uma fidelidade irrestrita a esse dogma, muitos missionários analisam a nudez
indígena como conseqüência de uma depravação da natureza.
A nudez indígena, longe de ser uma
expressão de inocência, passava a ser considerada o resultado do progressivo
embrutecimento da razão, reduzindo essas criaturas humanas a um tipo de vida
quase animal.
Essa reação negativa diante da nudez
fez com que os índios fossem considerados seres marcados pela sensualidade e
pela brutalidade.
D’ Abbeville, por sua vez, numa perspectiva ao mesmo tempo teológica e
racional, procura entender a consciência dos indígenas com base em sua própria
realidade. Segundo ele, a vergonha da nudez era proveniente de uma prescrição
cultural de que os seres humanos deviam andar vestidos. Não conhecendo essa
lei, os indígenas não podiam sentir acanhamento de sua atitude:
De fato, longe de ser considerada algo
negativo, a nudez representava para os indígenas uma condição de liberdade :
liberdade na locomoção, liberdade para os exercícios físicos, liberdade na
prática de higiene, liberdade para os combates. A nudez típica dos animais era
assumida dessa forma como um valor, numa cultura marcadamente imitativa da
natureza. Viver na nudez fazia parte do ethos, dos costumes, da tradição, da
moral indígena. Cobria-se o corpo apenas com adornos e enfeites, em dias de
festa solenes. Mesmo nessas oportunidades, os órgãos sexuais ficavam
normalmente expostos. Apenas alguns velhos costumavam cobrir o pênis, ao que
tudo indica, por razões sanitárias.
Mas o processo de colonização representou
de fato uma imposição cultural violenta nas tradições e costumes dos índios, e
eles foram obrigados a andar vestidos. Os missionários transferiram assim para
os indígenas seus condicionamentos e seus temores à sexualidade.
Com a chegada dos missionários, a
separação entre os dois sexos, sobretudo nos ritos litúrgico, passou a ser
norma comum.
Já desde o início, Nóbrega percebe que a
nudez não representava um problema para os índios, mas sim para os portugueses.
A nudez indígena, de fato, era um desafio à virtude dos cristãos portugueses.
A igreja era o lugar de Deus, lugar
sagrado, e a nudez, sobretudo feminina, constituía um atentado moral numa religião
hegemonicamente masculina.
Na realidade, era sobretudo para os
clérigos, revestidos do voto de castidade, que a nudez indígena constituía um
forte desafio.
O capuchinho Martinho de Nantes julgava
que o problema da nudez dos índios era mais grave para os religiosos
brasileiros do que para os europeus.
Essa tese, de que aqueles que nasciam
na Colônia já tinham uma inclinação imoderada para a sensualidade foi utilizada
pela Companhia de Jesus e por outros institutos para restringir o ingresso de
brasileiros na vida religiosa, fortalecendo desse modo o domínio colonial
também nas ordens e congregações. Mas não faltaram também os que contestaram
essa tese.
Ao que tudo indica, a observância do
celibato por parte dos missionários chegou a criar entre os indígenas a idéia
de que fossem seres vindos do céu, e não vinculados à geração biológica
Se o grande inimigo da virtude dos
cristãos e sobretudo dos religiosos era o despertar da atração sexual pela
visão da nudez feminina, nada mais importante do que procurar domar esses
impulsos da carne, sobretudo por meio da penitência. Daí a importância que os
missionários deram desde o início ao ritual das disciplinas e flagelações
corporais. Essa prática, aliás, fora muito incentivada na tradição
medieval.
VI
A FÉ COMO CONQUISTA
ESPIRITUAL .
Um dos aspectos bastante
enfatizados pelos conquistadores na análise da cultura indígena é a falta das
letras f, r e l em seu alfabeto. Segundo eles, isso significava que os índios
viviam sem fé, sem rei e sem lei. Em outra palavras, as tribos indígenas
careciam de uma concepção teológica, de uma organização política e de um
estatuto jurídico.
Assim sendo, a atuação lusitana sobre a
cultura indígena passa a ser considerada extremamente benéfica e salutar no
sentido de dar-lhes uma fé, um rei e uma lei, introduzindo-os assim na
civilização cristã.
Em termos filosóficos, dir-se-ia que se
negava aos indígenas uma “ entidade” religiosa, política e jurídica, e esse
vácuo do “ não-ser” era preenchido pela colonização lusitana. Em outras
palavras, segundo a perspectiva dos colonizadores, os indígenas careciam de
identidade como povo e, por conseguinte, eram beneficiados com a aquisição da
identidade lusitana e católica.
Na dimensão religiosa, a preocupação básica
dos missionários foi incutir nos indígenas a idéia de um deus único, puramente
espiritual e situado acima do mundo da natureza por ele criada.
A fé católica nascera encravada na cultura
judaica. Uma das características específicas do judaísmo era a afirmação de um
deus único, defensor e Co- responsável do destino do próprio povo. Não
obstante, a religião judaica não tinha pretensões de universalidade. Enquanto
os outros povos mantinham os seus deuses, para os judeus Javé era o único
verdadeiro. Essa concepção de unidade de crença, evidentemente, contribuiu
muito para formação e a consolidação da própria unidade política e cultural das
tribos judaicas, uma população constituída inicialmente de pastores seminôades
Com o cristianismo, surgiu a idéia da
universalidade da fé. O Evangelho, ou seja, a “Boa Nova” transmitida por Cristo
deveria ser levada a todos os povos. Daí a dimensão apostólica ou missionária
da fé cristã.
Os intelectuais romanos, simpatizantes
com os antigos cultos, não deixaram de ver na progressiva decadência do Império
uma conseqüência da fé cristã, acusada de Ter desfibrado o antigo poder
político.
Os templos católicos, instrumentos de “
salvação” para o povo, torna-se a expressão visível da própria instituição
católica, a cidade sagrada, a cidade de Deus.
É na cidade santa que se manifesta a
justiça divina, da qual são porta-vozes os ministros eclesiásticos. A Igreja
passa a ser vista basicamente como um poder sagrado, mantendo, portanto, e até
mesmo expandindo a expressão política que conquistara a partir da era
constantiniana.
A concepção agostiniana da cidade de
Deus passou a se corporificar no Estado franco, marcado pela fé católica. Daí a
designação de cristandade, aplicada à nova realização de Estado cristão. Á
medida que se expandiam as fronteiras do império carolíngio, dilatava-se também
a cristandade, a qual passou a ser considerada, portanto, como a cidade de Deus
em expansão.
Os resultados dessa política de expansão
da fé, mediante a ação missionária e a atividade conquistadora do Estado, foram
extremamente eficazes, e pouco a pouco o catolicismo passou a ser considerada, portanto, como a cidade de
Deus em expansão.
Por sua vez, a ação dos carolíngios
conseguiu pôr um dique à expansão dos árabes muçulmanos, restringindo sua
presença à península Ibérica.
Mais tarde, a idéia da cristandade foi
retomada pelos imperadores alemães da dinastia dos Otões e dos Hoenstaufen
A partir dessa perspectiva, os
imperadores deviam vencer as resistências dos pagãos e dos infiéis por meio das
armas. Segundo o ritual católico, a espada era conferida ao imperador pelo
ministro religioso, com estas palavras: “ Recebe a espada das mãos dos
apóstolos ! Extermina os inimigos do nome cristão e aniquila-los!”.
Em seguida, a tese da cristandade passou
a ser assumida também pelas monarquias da península Ibérica.
Durante o século XVI, em plena época de
dominação colonialista, o espanhol Juan Gines de Sepúlveda retomava. A tese da expansão da cristandade,
tese esta assim sintetizada por Hoffner.
É exatamente na sua atribuição de chefes
da cristandade que os reis de Portugal iniciam a aventura da conquista de novas
terras.
Nessa expansão do imperialismo
colonizador ibérico, entrelaçavam-se os interesses políticos, econômicos e
religiosos. Tanto a monarquia hispânica como a lusitana haviam recebido dos
pontífices romanos da época os direitos de padroado sobre as terras descobertas
e futuras conquistadas. Por força desses privilégios, a Santa Sé confiava a
esses reis a missão de converter à fé católica os diversos povos submetidos
pelo processo de dominação colonial. Dessa maneira, expansão imperialista e
conversão cristã caminhavam de mãos dadas.
Em vista de delegação pontifícia, os
missionários, ao realizar sua tarefa religiosa, se colocavam diretamente a
serviço dos monarcas católicos, prestando-lhes juramento de fidelidade.
Comprometiam-se assim a defender os interesses régios no exercício de sua
atuação evangelizadora. É nesse contexto de vinculação
de atuação religiosa com o poder político que
se desenvolve a tarefa missionária de conquista das almas, redução dos gentios
e doutrinamento na fé.
Tanto os missionários de origem hispânica
como os de nacionalidade lusa estavam conscientes de que sua atuação religiosa
se inseria num projeto maior visando ao estabelecimento da cristandade colonial,
ou seja, um prolongamento da cidade de Deus, à frente da qual deviam permanecer
os reis da Espanha e de Portugal.
Clérigos e leigos deviam colaborar juntos
na empresa missionária, como membros desse Estado sacral.
A cruz e a espada deviam, atuar juntas,
segundo Vieira
O projeto colonizador, de fato, visava não
só oficializar a conquista das novas terras como propriedade dos reinos
ibéricos, como também transformar os seus respectivos habitantes em súditos das
Coroas espanhola e lusitana.
Cabia ás tropas militares assegurar por
meio da força, se necessário, a conquista material. Ás milícias clericais
competia, mediante a persuasão, levar os indígenas a aceitar a dominação
política e religiosa das metrópoles ibéricas.
A partir do século XVI, com a realização
do Concílio de Trento, emerge com força especial o papel dos clérigos,
ressaltado pelos documentos dessa assembléia católica, a saber: o cuidado
pastoral das almas.
Ao lado, portanto, da visão unitária tão
bem expressa por Vieira, segundo a qual clérigos e leigos continuavam
comprometidos com o projeto religioso da metrópole, surge também um enfoque que
privilegia a atuação clerical no aspecto específico de conquista espiritual, ou
seja, de salvação das almas. Retomam-se, portanto, com muita ênfase, as
concepções platônico- agostiniana e aristótelico-tomistas que
privilegiavam as atividades espirituais
e o valor da alma com relação ao corpo.
É, pois, em nome da salvação das almas, e
não dos corpos, que os missionários do século XVI se lançam no movimento de
evangelização da América Latina.
O discurso missionário, portanto, é
articulado com base em duas matrizes complementares.
Mediante a primeira, já assinalada no
início, se afirma a carência de uma fundamentação religiosa para a cultura
indígena. Não se tratava, portanto, do encontro da fé católica com outra crença
religiosa, a ser levada em consideração e respeitada.Tratava-se, segundo a
ideologia católica, de um espaço religioso vazio, a ser preenchido pela
religião dos colonizadores. A conquista espiritual das almas dos indígenas
significava explicitamente a ocupação desse vácuo, desse não-ser.
Simultaneamente, também a atuação a
atuação missionária trabalha com outra vertente ideológica. Não podendo negar
totalmente a existência das crenças indígenas, tira-lhes o estatuto da religião
e as transforma em manifestações demoníacas. Em outras palavras, o “ vácuo
religioso” é substituído pela idéia da “ negatividade religiosa”, vista exclusivamente
a partir do horizonte católico. Assim sendo, as crenças indígenas nada
significavam, sendo desvirtuamentos da verdadeira fé, através das quais os
indígenas se haviam transformado eminfiéis
Em
termos filosóficos, os cultos indígenas não são considerados realidade
em si, mas passam a ser incluídos no todo positivo da fé católica, sua parte
negativa e, portanto, devendo ser expurgada.
Na perspectiva teológica, a crença
indígena é representada como a intromissão demoníaca nos domínios de Deus,
único senhor das criaturas, e como tal necessitava ser extirpada.
O que mais interessava aos
missionários era desarticular ou destruir os cultos indígenas. Para isso,
envidaram sobretudo esforços para desmoralizar os ministros religiosos dos
índios acusados de imoralidade, de fraude e sobretudo de possessão demoníaca.
Criava-se assim, uma antítese bem
nítida: os rituais cristãos eram os rituais de Deus; os rituais indígenas, os
rituais do demônio. Os ministros
cristãos eram ministros de Deus; os ministros indígenas, ministros do
diabo.
Em última análise, portanto, a
guerra entre os missionários e os pajés pela hegemonia religiosa era
transfigurada numa guerra entre Deus e o diabo.
Ao mesmo tempo em que afirmavam a
presença diabólica no culto indígena, os missionários procuravam estimular os
índios a praticar a religião cristã, sobretudo tendo em vista a futura promessa
do paraíso.
Mas, ao contrário dos rituais da
santidade, em que as esperanças de uma vida melhor eram oferecidas para um
futuro próximo, e cuja concretização se realizaria ainda nesta terra, a
teologia católica apresentava um projeto
salvífico cuja efetivação era transferida para o mundo futuro. Além
disso, obtenção desse prêmio no além-túmulo ficava condicionada ao exercício de
uma ascese a ser praticada na vida presente.
VII
A SACRALIDADE DO ESTADO LUSO
Uma das críticas mais constantes
dos conquistadores sobre os indígenas era a sua falta de organização política.
Na ótica dos colonizadores, os primitivos habitantes do território colonial
viviam dispersos, em desordem completa, em liberdade incontida, caminho aberto para
a libertinagem.
Os colonizadores, tanto leigos como
missionários, não percebiam--- e na maior parte dos casos desprezavam--- a
organização vigente nas tribos indígenas, marcada pelo seu caráter agreste,
ritual.
Tendo como hábitat a imensidão das matas
e dos campos, os índios inseriam-se no contexto da natureza, sem limites
espaciais rígidos para o exercício de suas atividades. As tabas e malocas
ocupavam clareiras nas matas ou junto aos rios, mas sem um afastamento
significativo da geografia natural.
Para os europeus, porém, herdeiros da
tradição grega veiculada por Aristóteles, cultura significava exatamente
rompimento com a natureza. O homem devia viver separado, segredado do mundo
natural. Ao gregos, aliás, iam mais além: habituados a viver em suas
cidades-estados, consideravam bárbaros aqueles que ainda permaneciam marcados
por uma cultura rural.
Segundo a concepção aristotélica, o ser
humano fora destinado por sua própria natureza a viver na cidade, na polis. Daí
considerar o homem um animal político.
Seguindo as pegadas de Aristóteles,
também Tomás de Aquino torna-se um enaltecedor das virtudes da civitas
medieval.
Joseph
Hoffner sintetiza a concepção tomista nestes termos:
O homem em si, e não apenas o cristão,
repetia sem cessar Tomás de Aquino, é “por natureza um ente social”. Por isso,
os homens vivem reunidos em famílias, que por sua vez, estão polarizadas para
formar a “sociedade perfeita”, a “civitas”.
O bem comum da civitas é especificamente diverso do bem comum dos indivíduos ,
formando um valor novo, especial. Por isso afirmamos ser a civitas “perfeita”,
porque somente nela e por ela as necessidades corporais e espirituais da
natureza humana podem encontrar a sua total realização. Paz, unidade e ordem da
civitas devem contribuir para transformar o homem em personalidade ética, e
proporciona-lhe também um bem estar material, o mais elevado possível
Assim como Deus fora colocado fora da
ordem natural, para ser constituído como seu criador e regulador, pouco a pouco
se desenvolve na Idade Média a tese da monarquia construída acima do todo
social como seu próprio fundador e instituidor. Esse pensamento, explicitado
por Dante nos primórdios do século XIV, fora articulado ao longo da Idade
Média, como resultado da sacralização da monarquia.
Essa sacralização realizada sob a
influência cristã tem início com Constantino, o imperador que permitiu à Igreja
compartilhar com o poder, dentro da esfera religiosa. Mas atingiu o seu ponto
alto na época de Carlos Magno, mediante o qual o Estado cristão passa a ser enaltecido.
Em seguida, o mito da cristandade é
retomado pelos monarcas da península Ibérica, na época expansão colonialista.
Tanto os reis da Espanha como os de Portugal buscavam expandir o seu domínio
político e isso suponha, em ambos os casos, o aumento de súditos para a Coroa.
Portanto, a descoberta das novas terras americanas foi o de uma decisão
política. Duas foram as principais matrizes filosófico-teológicas que justificaram essa expansão imperialista: em
primeiro lugar, o conceito da sacralidade do poder, colocando a autoridade
régia acima de qualquer constatação humana; em segundo lugar, o princípio da
superioridade dos povos cristãos sobre os infiéis, em nome do qual era
possibilitada a implantação da dominação colonial.
Após o pecado de Adão, Deus escolhera
Abraão para ser pai de um novo povo, no qual seria mantida a esperança de
salvação. Daí o caráter de povo eleito atribuído ao povo judeu.
Os portugueses se esmeraram também em
enfatizar o aspecto unitário e divino da fundação de sua nacionalidade.
Portugal portanto, surge como nação por meio da figura de Afonso Henriques.
Este, por sua vez, fora escolhido diretamente por Deus para torna-se o primeiro
monarca, arregimentando ao redor de si o povo português. Ao escolher Afonso
Henriques como seu filho predileto, Deus fazia também a eleição do povo
lusitano para objeto de sua especial complacência. Mediante a sacralização do
poder, operava-se também a sacralização do povo. Essa sacralização será
reforçada durante o período de dominação colonial, sobretudo por meio das
figuras de Dom Sebastião e de Dom João IV.
Rocha Pita expõe em detalhes esse evento
fundamental do poder político lusitano:
É bem autêntica entre os naturais, e
recebida entre os estrangeiros (posto que impugnada por alguns castelhanos),
aquela misteriosa aparição de Cristo Nosso Senhor ao príncipe lusitano Dom
Afonso Henriques, o qual na noite precedente
ao dia em que havia de dar no Campo de Ourique, batalha a Ismael e a
outros quatro reis mouros, triste e pensativo por ver a gente a gente
portuguesa temerosa da multidão bárbara, pegando em uma Bíblia que tinha na
tenda, e achando nela a vitória que alcançou Gedeão com só trezentos soldados,
matando mais de cento e vinte mil madianitas, pediu a Deus favor, por ser
aquela guerra por seu amor empreendida e contra os blasfemos do seu santo nome;
e adormecendo sobre o livro, lhe apareceu em sonhos um ancião, que lhe
assegurou que venceria e destruiria aqueles reis infiéis, e que o mesmo Deus
lhe apareceria; e acordado pelo seu camareiro para dar audiência a um velho que
o buscava, introduzindo na tenda, viu que era o mesmo que lhe falara no sonho.
A monarquia portuguesa tem sua origem,
portanto, numa guerra de portugueses contra bárbaros, ou dito em outras
palavras, dos cristãos contra os infiéis.
O historiador acrescenta que o velho,
além de ratificar o sonho, garantiu a Afonso Henriques que Deus lhe daria prova
de especial piedade, por meio do sinal de uma campainha:
Ficando em oração o piedoso príncipe, e
ouvindo o sinal na Segunda vela da noite, saiu fora [sic] da tenda e viu para a
parte do oriente um raio, que resplandecendo pouco a pouco foi formando uma
cruz mais que o sol brilhante, e nela se lhe mostrou o Senhor crucificado, a
cuja divina presença prostrado o príncipe, lhe rogou pelos seus vassalos [...]
e que aqueles súditos animasse e ajudasse a vencer aos inimigos da sua santa
fé, e se lembrasse não só dos seus sucessores, mas de toda gente de Portugal.
Em seguida, o rei esperado passou a
ser identificado com Dom Sebastião. Mas o príncipe morreu muito jovem, na
primeira expedição em que tomou parte na África. Visto que o seu corpo não foi
identificado com facilidade, logo surgiram vozes afirmando que ele teria
desaparecido a cavalo, para voltar posteriormente e salvar o reino.
Dado que nas trovas de Bandarra havia
alusões ao “rei encoberto”, o salvador de Portugal passou a ser identificado
como Dom Sebastião, o Encoberto, que haveria de reaparecer para realizar a
expansão lusitana sobre o mundo, difundindo a fé católica.
Vieira foi um dos maiores
propagandistas do sebastianismo. Após 1640, esse jesuíta passava a se
identificar a restauração da monarquia lusa como realização de uma série de
profecias divinas. Dom João IV foi considerado o Encoberto e o Salvador
prometido por Deus. É dentro desse contexto, portanto, que se realizava a
dominação colonial, estando os portugueses com a missão de difundir a
civilização e a fé cristã.
Existe um certo consenso no meio
intelectual sobre o fato de que a filosofia clássica teve como berço a
polis---- a cidade-estado grega. Daí, evidentemente, a dimensão política da
filosofia, enquanto uma análise da realidade com base no horizonte urbano,
contrapondo-se assim à primitiva leitura do cosmo, de caráter mítico, típica
das sociedades agrárias. É também com base na cidade lusitana que se constrói a
ideologia da expansão do império, justificativa teórica da ação conquistadora
do projeto colonizador
Um dos pilares do projeto
expansionista lusitano consiste exatamente na necessidade de difundir os
valores da civitas---- a civilização---- naquelas regiões do mundo ainda dominadas
por valores agrestes, considerados segundo a ótica urbana como expressões da
barbárie. Dessa forma, se estabelece um contraste entre as primitivas culturas
agrárias, consideradas bárbaras e, portanto, expressões da animalidade, e a
sociedade urbana emergente, considerada manifestação da racionalidade, ou seja,
do desabrochamento humano por excelência.
Daí as expedições marítimas lusitanas
“por mares nunca dantes navegados”, visando implantar os valores da razão e
debelar as forças da animalidade bárbara. Nessa tarefa de expansão
conquistadora, existe uma matriz que deve ser reproduzida fielmente na
implantação das novas colônias: a civitas lusitana, o verdadeiro modelo de
valores civilizadores.
Na medida em que se negava aos povos
indígenas qualquer tipo de organização política e social, operava-se a redução
simplificadora deles à categoria da barbárie cuja dominação e expulsão deveria
ser realizada em nome da razão civilizadora. Em termos políticos, os indígenas
eram assim reduzidos ao estado de tabula rasa, ou seja, de carência total e,
por conseguinte, em completa disponibilidade para serem moldados pelos valores
políticos lusitanos.
Assim sendo, esse discurso ideológico
fazia com que a dominação perdesse o seu caráter radical de violência e
desumanidade, apresentando-se, pelo contrário, com os títulos honoríficos de
obra de civilização e racionalidade. Mediante a conquista lusitana, o “bruto”
indígena seria transformado em ser plenamente humano e verdadeiramente racional.
É importante ressaltar toda a distorção
da realidade que se opera sob a ideologia da dominação. O discurso oficial
lusitano não fala de dominação de um povo sobre o outro, de sujeição do mais
fraco ao mais forte, mas simplesmente de agregação progressiva de seres
bárbaros---- sem lei e sem rei---- ao poder real, agregação que possibilita sua
ascensão à categoria de homens civilizados.
Para que essa transformação seja
operada, requer-se simplesmente a sua vassalagem ao rei de Portugal. Assim
sendo, a violência da conquista é transfigurada na imagem suave da dilatação do
reino lusitano, realizada mediante uma figura ainda mais idealizada, através da
geração de novos filhos no território brasileiro.
Dessa maneira, a destruição da organização
política e social indígena, mediante o processo de desorganização tribal e
familiar, passa a ser vista e apresentada como um simples trânsito, prenhe de
benefícios, da barbárie para a civilização, das trevas da brutalidade para as
luzes da razão.
O
cunho militar das expedições coloniais com suas “armas e barões” é transmutado
num processo político de agregação de novos vassalos ao reino lusitano.
Um dos elementos mais importantes desse
processo de racionalização é a redução do universalismo da fé cristã---- bem
expresso pelo adjetivo “católico”---- às dimensões do reino lusitano.
Segundo essa perspectiva, Portugal passa
a ser considerada como nação católica por excelência, como novo povo de Deus,
objeto de uma escolha divina privilegiada. Eleição divina, é bom Ter presente,
concretizada no próprio fundador da monarquia lusitana. Dessa maneira, o
cristianismo renasce mediante a escolha do povo lusitano para ser o portador da
mensagem divina; um povo que tem no monarca seu pai e patriarca, como o
judaísmo nascera da divina promessa a Abraão
A matriz política da nova construção
mítica lusitana permite sua instrumentalização em nível social: trata-se de um
príncipe escolhido por Deus para ser o chefe de um povo, para conduzi-lo à vitória
contra os seus inimigos, para expandir pelo mundo a fé cristã.
O adealmento era, portanto, como a
condição fundamental para que os indígenas se tornassem de fato racionais e
cristãos.
A empresa missionária, de fato, mantinha
vínculos estruturais com os interesses políticos e econômicos das Coroas
ibéricas, não obstante sua finalidade especificamente espiritual.
Se, por um lado, a ação missionária se
situava na luta entre o reino de Deus e reino de Satanás, por outro era mediante
a submissão às cortes de Portugal e Espanha que os povos ameríndios deviam
manifestar concretamente sua adesão á fé, pois competia aos monarcas de ambos
os países, à força da concessão do padroado, gerenciar a implantação da fé na
América Latina.
O
esforço de politização empregado pelos missionários não visava preparar o
indígena para a sua autonomia, mas, bem ao contrário, tinha como meta
específica colocá-lo sob a dependência do poder lusitano. A tarefa missionária
consistia fundamentalmente em inserir os indígenas na estrutura da organização
colonial, preparando assim novos súditos para a Coroa.
Tal atitude, aliás, se justificava de
modo pleno, pelo que já foi ressaltado com relação ao caráter sacral e
apostólico da monarquia lusa. Somente como súditos do rei os indígenas poderiam
ser beneficiados pelas graças e dons da fé cristã, reservados exclusivamente
àqueles que estavam efetivamente vinculados ao organismo eclesial,
identificado, no caso lusitano, com o próprio Estado cristão.
Tendo em vista contribuir para a salvação e
a civilização dos indígenas, os missionários procuravam, portanto, reuni-los em
povoados ou aldeamentos, onde a ação educativa e catequética pudesse ser mais
eficaz.
Para tirar os índios do mato e atraí-los para
os aldeamentos, os religiosos multiplicavam as promessas se bem-estar material.
A união entre interesses políticos e
religiosos era, na verdade, muito nefasta para o trabalho missionário, porque a
boa vontade dos missionários era logo deturpada pelos interesses dos
colonizadores.
Embora à revelia das intenções dos
missionários, com freqüência o processo de evangelização constituía um
instrumento de redução dos indígenas ao cativeiro dos brancos.
Era, portanto, bastante dramático o quadro
apresentado pelo jesuíta a respeito da situação dos índios reunidos nos
aldeamentos pelos missionários. Na maior parte dos casos, homens e mulheres
acabavam sendo vítimas da exploração dos brancos, reduzidos à condição de
escravos.
Por conseguinte, se para os lusitanos
a Coroa era símbolo de libertação política e expansão da fé, para os indígenas,
bem como para os negros trazidos da África à força, a política lusitana
resultou efetivamente em escravidão e morte, na maior parte das vezes.
VIII
A LEGITIMIDADE JURÍDICA DA ESCRAVIDÃO
Na época das conquistas, a escravidão já
não era considerada primordialmente uma questão ética, mas sim jurídica. De
fato, enquanto a atitude indígena com relação à nudez era analisada com base em
princípios éticos, já a ação escravocrata dos colonizadores passava a ser
considerada segundo as normas legais vigentes. Em ambos os casos, predominava
nessa avaliação a perspectiva européia.
Para o europeu, a cobertura e o
ocultamento das partes do corpo vinculadas à sexualidade era uma expressão do
domínio do espírito sobre a matéria, da alma incorruptível sobre o corpo fadado
á corrupção. Era, em último análise, o estabelecimento da “ordem” cristã na própria
existência humana.
A escravidão era vista apenas como um ato
de subordinação, ou seja, de colocação do indivíduo debaixo de uma “ordem”
estabelecida pela sociedade. A principal base teórica da escravidão, ou seja, a
sua nacionalização, foi constituída pela divulgação do pensamento aristotélico,
a partir do século XII.
Também neste caso, a expansão colonial e
mercantil estava fundamentada na filosofia grega clássica, assumida e
reelaborada pelos pensadores cristãos da Idade Média.
A base da fundamentação aristotélica com
relação à legitimidade da escravidão era decorrente de sua própria concepção do
homem como um ser da cidade, da polis. Com essa afirmação, de fato, Aristóteles
fazia um segundo recorte a respeito das relações entre o homem e a natureza.
O próprio recorte, como já foi analisado
no início deste estudo, consistiu na divulgação da tese que apresentava o ser
humano como uma criatura predestinada para exercer o domínio sobre a natureza,
como se dela estivesse desligado. O homem, portanto, passou a ser visto como
superior ao mundo natural, devendo dispor dele para o seu serviço.
A concepção aristotélica, porém, vai
mais além. Segundo o pensador grego, o ser humano podia viver de duas formas:
ou inserido no mundo natural, conforme a tradição das antigas civilizações
agrárias, ou separado do contato com a natureza, conforme o modo de viver
introduzindo nas cidades-estados da Grécia. Esta última forma de vida passou a
ser apresentada como própria da natureza humana. Em outras palavras, os gregos
passavam a ser considerados os homens por excelência, e aquilo que era tido
como bom e natural para eles deveria ser automaticamente estendido para todos
os homens.
Aristóteles nada mais fez do que
estender, no nível social, o seu conceito antropológico. Se, individualmente, o
espírito humano devia afirmar o seu domínio sobre o corpo, mantendo este último
em submissão, era “natural” que na esfera social fosse mantida uma ordem
análoga, ou seja, o domínio das pessoas dotadas de espírito “superior”, nas
quais o elemento corporal ou físico se apresentava como predominante. A
concepção de razão, como uma ordem antropológica, confirmava, portanto, a
necessidade de uma idêntica ordem social.
É mediante o trabalho manual dos
escravos que os cidadãos podem dedicar-se aos problemas do espírito mais
condizentes com a natureza humana. Por isso, Aristóteles considera o cuidado
dos escravos, adidos aos trabalhos materiais, como uma ciência de pouco valor.
Com relação à divisão entre o trabalho
manual e o trabalho intelectual, Aristóteles mantém-se bem próximo de Platão: quanto mais o homem se vincula à
matéria, mais “inferior” ele se torna.
A natureza, na perspectiva aristótelica,
criou homens “superiores” e homens “inferiores”. Os homens superiores estavam
destinados a ocupar-se dos valores do espírito, enquanto os inferiores haviam
nascido para ocupar-se das tarefas “inferiores”, ou seja, relativas á ordem
material.
Da perspectiva aristótelica, portanto, o
próprio trabalho manual passa a ser aviltado justamente com o ser humano
reduzido á escravidão. Por isso, Aristóteles afirma que determinados trabalhos
são “naturalmente” mais adequados aos escravos.
Inserida cada vez mais no mundo grego e no
mundo romano, a Igreja católica passou a conviver pacificamente com a
escravidão. Não obstante poucas vozes discordantes, seus pensadores mais
insignes não só aprovaram o sistema vigente, mas passaram também a legitimá-lo.
Pode-se dizer que os teólogos católicos
desse período atribuem a existência da escravidão a uma verdadeira
predestinação: ela é vista como conseqüência do pecado original. Em outras
palavras, somente no paraíso terrestre fora possível ao homem viver em plena
liberdade. Mas desde que ocorrera o pecado de Adão, a escravidão passara a
fazer parte da natureza humana decaída.
Em termos filosófico, a questão
poderia ser apresentada da seguinte maneira: embora não fosse conveniente á
natureza ideal do homem, a escravidão era, contudo, uma exigência da natureza
humana real.
A escravidão, portanto, justificada
pelos gregos por motivos racionais, era agora reconhecida pelos cristãos
mediante argumentos de fé, pois passava a Ter um fundamento metafísico,
religioso.
A
escravidão se transformava assim numa realidade da própria condição humana,
marcada pelo pecado de Adão.
Essa mesma argumentação foi
sucessivamente desdobrada em outros enfoques mais específicos, utilizados de
modo especial como justificativa da escravidão dos africanos. Passou-se, dessa
forma a afirmar que os negros eram descendentes de Caim, assassino brutal de
seu irmão Abel. Segundo o mito bíblico, Deus colocara um síntese no corpo de
Caim, para que ele não fosse morto, mas pagasse até o fim da vida pelo seu
crime, mediante o desprezo e repúdio dos homens. Em conseqüência, a cor negra
ficou identificada como o sinal da maldição divina, e a escravidão imposta aos
negros como a expressão do castigo celeste.
Segundo outra versão, os negros
pertenciam á genealogia dos descendentes de Cam, filho de Noé, amaldiçoado
também por este, por Ter ridicularizado a nudez do pai, que estava embriagado.
Tanto Abel como Noé eram figuras prediletas de Deus, e a maldição viera aos
opositores de tal favor divino, inspirados pelas forças do mal.
Dessa forma, a escravidão dos negros,
longe de ser vista como algo indigno do ser humano, passava a ser considerada a
própria realização da justiça divina. Assim sendo, os que a praticavam
tornavam-se na realidade os instrumentos da divindade na aplicação do castigo
divino.
Mas o pensamento católico, em sua lógica
interna, chegou mesmo a assumir uma posição paradoxal. Visto ser a escravidão
um instrumento de “expiração do pecado,
a sua aceitação voluntária tornava-se um instrumento de purificação, de
libertação, de salvação para a alma. Essa salvação, por outro lado, seria
facilitada quando o escravo estivesse a serviço dos senhores cristãos.
Três foram os motivos principais aduzidos
como justificativa da escravidão voluntária, ou seja, quando alguém, em caso de
extrema necessidade para a própria sobrevivência, se entregasse a outrem na
condição de escravo. Havia também uma extensão desse princípio no âmbito
familiar: os pais também poderiam vender os filhos como escravos em
circunstâncias análogas. Como se pode observar, permanecia vigente a concepção
de que os filhos eram”propriedade” dos pais.
Em segundo lugar, a escravidão era também
admitida como pena ou castigo imposto por culpas consideradas graves. Houve
mesmo um período da Idade Média em que, no esforço de revalorizar o celibato
eclesiástico muito pouco observado, a legislação eclesiástica chegou a prever
penas de escravidão para mulheres e filhos de sacerdotes.
A terceira razão justificadora da
escravidão era a guerra justa. Nesse caso, os prisioneiros poderiam ser
reduzidos á escravidão, ao invés de serem mortos sumariamente. Esta terceira
justificativa merece uma análise mais prolongada, porque foi a mais amplamente
difundida na época das conquistas ibéricas.
As diversas argumentações de ordem
religiosa, racional e jurídica, referidas anteriormente, passaram a ser usadas
na legitimação da sociedade colonial escravocrata, seja para os indígenas, seja
principalmente para os africanos.
Toda essa concepção da escravidão como
castigo do pecado e instrumento de salvação tinha um apoio bastante
significativo na própria concepção platônica, que considerava o corpo como a
prisão da alma. Assim sendo, o processo de libertação do espírito passava
necessariamente pelo desprezo das qualidades corporais. Por conseguinte, se
para o sábio o processo de crescimento na verdade implicava um esforço
voluntário em não se deixar enredar
pelas ilusões do corpo, nada mais coerente de que o ignorante fosse coagido a
assumir uma atitude de repressão ao corpo, pelo menos para que seu
comportamento não viesse a impedir o
progresso espiritual dos demais.
A partir do início da Idade Média, a
reflexão sobre a conquista da verdade foi transfigurada pela fé católica em
ascensão da alma para o reino da graça; a resistência a esse movimento, por sua
vez, passou a ser vista através das paixões dos sentidos, atraindo o ser humano
para o pecado. Assim sendo, a ascese corporal, assumida deliberadamente, era
considerada como o caminho para a virtude percorrido pelos justos. Em
contrapartida, parecia justificado obrigar os pecadores a reprimir também o
próprio corpo, em vista de sua instrumentalização para o mal. Por meio da
escravidão, portanto, não só se diminuía o espaço seja da negatividade da
matéria como da maldade do pecado, e também se garantia o domínio “social” da
verdade e do bem.
Dessa forma, a própria atuação dentro da
sociedade escravocrata passava a assumir uma conotação positiva, podendo os
senhores de escravos ser considerados não só como os mantenedores da ordem
exigida pela natureza, mas também como os justiceiros de Deus. Para isso, era
apenas necessário que a prática da escravidão se mantivesse dentro das normas
jurídicas.
Uma vez estabelecida dentro dos critérios
exigidos pela lei, a escravidão passa a ser considerada não só legítima, mas
também sacralizada, pois representa um componente da própria cristandade.
É o que transparece claramente no
pensamento de Vieira, segundo o qual a fuga de um escravo deve ser considerada
não só a transgressão de uma lei, mas um verdadeiro pecado. De fato, na
resposta dada ao provincial dos Jesuítas sobre a possibilidade de se atender
aos negros dos Palmares, desejosos de Ter um padre para administrar os
sacramentos e celebrar a missa, Vieira elenca cinco razões para recusar o
pedido, das quais a última é a seguinte:
Quinta
e total, porque sendo rebelados os cativos, estão e perseveram em pecado
contínuo e atual, de que não podem ser absolvidos, nem receber as graças de
Deus, sem se restituírem ao serviço e obediência de seus senhores, o que de
modo algum hão de fazer.
A
permanência na escravidão, portanto, é uma exigência ética que se aplica aos
escravos, e o regime escravocrata fica sendo reconhecido como uma ordem social
aprovada por Deus.
Ao receber pleno apoio do governador Mem
de Sá para realizar a tarefa missionária, Nóbrega chegou a sugerir guerra de
punição contra os índios rebeldes, como forma de ampliar o território português
na costa brasileira, obtendo-se ao mesmo tempo legítima mão-de-obra escrava.
Eis suas palavras:
Sujeitando-se o gentio, cessarão muitas
maneiras de haver escravos mal havidos e muitos escrúpulos, porque terão os
homens escravos legítimos, tomados em guerra justa, e terão serviço e
vassalagem dos índios, e a terra se povoará, e Nosso Senhor ganhará muitas
almas, e S.A. terá muita renda nesta terra, porque haverá muitas criações e
muitos engenhos, já que não havia muito ouro nem prata.
Conjugavam-se, assim, plenamente os
interesses da conquista espiritual das almas com os da conquista espiritual das
almas com os da conquista política, mediante o aumento dos súditos do rei,
redundando disso tudo grande proveito econômico em virtude de expansão das
terras produtivas trabalhadas pelo braço escravo.
IX
FAMÍLIA E EDUCAÇÃO NA SOCIEDADE COLONIAL
Os padrões sociais vigentes no
reino lusitano foram transferidos para a Colônia, e as populações indígenas, na
medida em que eram subjugadas e subordinadas á dominação política da Coroa,
tiveram também de submeter-se ás novas regras de estruturação da sociedade. O
mesmo processo de dominação, e de forma ainda mais violenta, foi estabelecido
para os negros trazidos para a Colônia como escravos.
Em ambos os casos, o método de
imposição dos novos padrões sociais obedeceu a duas linhas convergentes de
atuação: em primeiro lugar, desorganização das antigas formas de organização
tribal, seja por meio de um discurso extremamente crítico, seja mediante ações
repressoras e coercitivas; em segundo lugar, incorporação dos grupos subjugados
á sociedade colonial lusitana em formação.
De fato, a preocupação dos lusitanos não
era a valorização da sociedade indígena, mas apenas a expansão da sociedade
lusitana.
Na concepção aristotélica, a família é
composta de três partes primitivas e estruturais, a saber: o senhor e o
escravo, o marido e a mulher, os pais e os filhos. Para Aristóteles, a família,
como o Estado, representa o todo em relação aos indivíduos que a compõem. E o
todo deve, necessariamente, ser colocado antes das partes.
Visto constituir a família uma
determinada “origem”, ela requer a existência do princípio de autoridade, que
Aristóteles reserva exclusivamente para o homem:
Segundo Aristóteles, algumas pessoas já
nasceram por sua própria constituição natural predestinadas para o mando,
enquanto outras igualmente foram predestinadas para a obediência. A manutenção
dessa ordenação familiar é fundamental para o bem-estar social. Mesmo quando
enfatiza a necessidade da prática da virtude entre os cidadãos. Aristóteles
volta a enfatizar essa hierarquização. Segundo ele, o “artista deve
sobressair-se tanto sobre os seus semelhantes, quanto o homem sobre a mulher, o
pai sobre os filhos, o senhor sobre o escravo”.
Assim como a cidade, a família também é
apresentada por Aristóteles como uma construção; o arquiteto dessa construção
familiar deve ser o homem. Como autor e realizador da família, compete ao homem
o exercício da autoridade, uma decorrência do próprio direito de propriedade.
Segundo a concepção aristotélica, a
ordem familiar é estabelecida mediante três subordinações diversas: subordinações
dos escravos ao senhor, da esposa ao marido, dos filhos ao pai.
O ideal dos colonizadores lusos era
transferir para a colônia ao padrões sociais vigentes na metrópole. Segundo
frei Manuel Calado, as mulheres portuguesas “eram exemplo de honestidade a
todas as outras nações”, a tal ponto que “para se pôr um freio ás mulheres
desencaminhadas, pintavam em hieroglífico [ sic] da compostura uma mulher
vestida e toucada ao modo português, a que chamavam portuguesa honesta”.
Um dos aspectos que mais chama a atenção
dos colonizadores e dos missionários lusitanos que chegavam á Colônia com essa
visão do papel da mulher é o espírito de liberdade que reina na organização
familiar indígena.
A falta de uma estrutura familiar
marcadamente masculina nas tradições indígenas é motivo de desprezo e
reprovação da parte dos missionários.
O papel importante ocupado pela mulher na
vida social das comunidades indígenas parece ter sua origem em dois aspectos
básicos: a hegemonia que ela desempenha na atividade agrícola e o espaço que
começa a conquistar no domínio sagrado.
A forte participação das mulheres
indígenas no controle do sagrado espanta e irrita sobremaneira os
colonizadores, habituados a uma expressão religiosa totalmente dominada pelos
homens.
Para o capuchinho Martinho de Nantes, essa
liberdade em que vivia a mulher na sociedade indígena era símbolo de anarquia.
Por isso, mediante o processo educacional, procurou estabelecer a desejada
subordinação das mulheres aos homens: “As mulheres estão agora submissas ao
marido”.
A educação lusitana imposta aos indígenas,
portanto, passou a dispor a subordinação da mulher ao homem, e o domínio desta
sobre aquela, conforme a norma vigente na sociedade européia. Essa tradição
medieval, aliás, tinha raízes na própria sociedade grega, na qual Platão e
Aristóteles, com suas reflexões filosóficas, haviam “oficializado” esse tipo de
dominação.
A superioridade do homem sobre a mulher faz
parte da concepção aristotélica, em que o cosmo é apresentado como uma ordem
hierarquizada.
Criando á imagem de Deus, o homem devia ser
uno em sua origem, como o próprio Deus.
De modo análogo a Platão, Agostinho
defende, como já foi lembrado, a superioridade do uno sobre o múltiplo, do
anterior sobre o posterior. Assim sendo, Eva representa a introdução do
múltiplo na espécie humana, constituindo ao mesmo tempo uma criatura inferior,
uma parte apenas do todo, simbolizado pelo homem.
Progressivamente, ao longo da Idade Média,
foi dado um passo a mais pelos intelectuais católicos, em sua maioria clérigos,
no esforço de diminuir ou apagar a influência da mulher na vida social,
decorrente, em geral, de sua hegemonia nos antigos rituais de caráter agrário.
Divulgou-se, assim, a idéia da demonização da mulher.
Dessa forma, as mulheres que continuavam a
exercer funções sagradas nos antigos cultos de tradição rural passaram a ser
vistas como bruxas ou feiticeiras, cujo poder religioso advinha de seus
contatos com os espíritos do mal. Quando os processos de inquisição, de origem
medieval, foram transplantados para o Brasil, não poucas denúncias ou
confissões versavam sobre o caráter demoníaco atribuído ás mulheres. Segundo a
crença popular, muitas delas tinham pacto com o demônio.
Pelo imaginário popular se fixava a idéia
de que qualquer mulher que atribuísse a si poderes especiais vinculados
normalmente á esfera do sagrado tinha alguma relação com o demônio.
Prevaleceram, como em outros aspectos, a idéia da supremacia da
cultura branca e a necessidade de subordinar os valores indígenas á sua
hegemonia. Dessa maneira, a diferença nos processos educativos foi reduzida á
perspectiva unitária da educação ministrada pelos colonizadores. Para isso,
evidentemente, era necessário transformar os valores indígenas em
contravalores, a virtude em vício, a positividade em negatividade.
Educar é fundamentalmente colocar o
indivíduo dentro de um molde, dentro de uma forma pré-fabricada.
Durante a Idade Média, a educação mediante
um processo repressivo tornou-se a norma geral, não só sob a influência do
pensamento grego, mas sobretudo pela tradição do patriarcalismo judaico. Nesse
caso, a necessidade do castigo era vista como uma conseqüência do pecado.
Uma preocupação fundamental dos missionários
foi separar os meninos do ambiente familiar, no qual viviam em regime de
liberdade, procurando trazê-lo na medida do possível para os internatos, onde
mais facilmente seriam pressionados ao adotar os costumes e as atitudes
próprias da cultura lusitana e cristã.
Assim sendo, os missionários passaram a se
convencer de que um trabalho efetivo, com duração a médio e longo prazo, só
seria possível se os índios fossem amoldados desde a infância aos novos padrões
de fé católica e cultura lusitana.
O resultado foi muitas vezes satisfatório.
Diversos meninos fizeram uma opção pela cultura luso-cristã, renunciando a seus
costumes tradicionais.
X
OS INTERESSES ECONÔMICOS DA METRÓPOLE
Não foram poucos os espantos dos
conquistadores ao se defrontarem com o mundo indígena, como já tive
oportunidade de ressaltar. Entre essa surpresas, deve-se registrar também
a admiração dos lusos diante de seres
humanos que não eram ávidos de riqueza, e nem sequer pensavam na acumulação de
bens.
Embora o discurso da dominação colonial
tenha dado relevo muito grande á finalidade religiosa das conquistas é inegável
que o motor primeiro da expansão lusitana não era a conversão dos infiéis, mas
sim a procura de ouro, especiarias e escravos. Tais expedições continuavam a
ser comparadas ás cruzadas e, dessa forma, a receber os favores e privilégios
concedidos pela Santa Sé; não obstante, esses empreendimentos marítimos tinham
um caráter marcadamente econômico. Tratava-se, na verdade, de verdadeiras
empresas comerciais, visando antes de tudo ampliar o mercado lusitano.
Por outro lado, não se deve olvidar que
essa expansão política e econômica era também acompanhada pela “empresa”
espiritual da propagação da fé, como muito bem definira Manuel da Nóbrega a
tarefa missionária da companhia de Jesus: “esta terra é nossa empresa”.
É exatamente essa conjugação entre os
interesses políticos e econômicos, de um lado, e os interesses religiosos, do
outro, que faz com que todo empreendimento colonizador seja revestido de um
manto de sacralidade, até na sua dimensão tipicamente econômica e material.
Assim, mediante a bula Dum Diversas, datada
de 18 de junho de 1452, o papa Nicolau V concedia ao rei de Portugal o poder de
adquirir domínios muçulmanos e infiéis, bem como de se apossar de seus bens
públicos e particulares, mediante a recomendação de que sempre tivessem em mira
o aumento da Cristandade e a exaltação da fé.
Extremamente importante é também a bula Romanus
Pontifex, de 9 de janeiro de 1454, do mesmo papa, confirmando os direitos já
concedidos e afirmando ser interesse do povo cristão o alargamento do “grêmio”
da fé católica, a fim de que se pudesse “navegar por este oceano até ás praias
longínquas do Oriente”. O papa elogiava, ainda, o ideal do infante Dom Henrique
de entrar em contato com os povos da Índia “que julgamos submissos a Cristo.
Era exatamente em nome da liberdade de
comércio e do caráter laico da economia que os holandeses se recusavam a
aceitar o imperialismo político-religioso da Coroa hispano-lusitana.
Se nas conquistas holandesas os
guerreiros estavam a serviço dos interesses econômicos, nos empreendimentos
lusitanos os militares estavam a serviço da fé, afirmava Vieira.
A partir de um raciocínio bem elaborado,
simultaneamente filosófico e teológico, justificava-se toda a expoliação
econômica dos vencidos, resultante das conquistas lusitanas.
Ainda mesmo nos primórdios do século
XVIII, quando já as minas de ouro haviam
sido descobertas, patenteando as riquezas do solo brasileiro, de um lado, e a
avidez da Coroa, de outro, o jesuíta João Antônio Andreoni continua a apregoar
a sacralidade da empresa colonial. Numa obra de cunho marcadamente econômico,
ele reserva um capítulo inteiro para falar da obrigação moral de “pagar a El
Rei Nosso Senhor a Quinta parte do ouro que se tinha das minas do Brasil. O
pagamento dessa taxa ao fisco, a seu ver, estava impregnado de caráter ético.
O rei é o senhor legítimo das minas, por
doação que lhe fez delas com a conquista do Brasil o Sumo Pontífice, e por
outros títulos. As minas, por sua vez, pertencentes ao direito real e parte do
seu patrimônio são destinadas “a sua manutenção, e gastos que faz em prol da
república, e para a conservação e aumento de fé.
Como o monarca sempre as reservou para si,
dando licença para se tirar ouro delas apenas com a condição que se lhe pague a
Quinta parte do que se tirar, “claro está que esta obrigação está fundada em
justiça comutativa”. Portanto, ainda que a lei não acrescentasse pena aos
transgressores, “sempre deviam pagar estes quintos por ser obrigação
intrínseca”.
Como se pode observar, a justificativa
básica continua apoiando na concepção sacral da conquista, vinculando a essa
sacralidade os interesses econômicos. O discurso colonizador, portanto,
continuava ressaltando que os interesses econômicos da Coroa estavam vinculados
ao compromisso de expansão da fé. Na realidade, bem
depressa ficara patente que o maior interesse dos lusitanos pela nova terra era
principalmente econômico, e que os demais aspectos, tão enfaticamente
proclamados, eram com freqüência formas de ocultar a violenta exploração aqui
se fazia.