terça-feira, 18 de julho de 2023

EPICURO E O JARDIM - ANTOLOGIA

 




 

As relações entre Epicuro, Sócrates e os socráticos menores.

 

É vazio o discurso do filósofo que não consiga curar alguma paixão do homem: assim como realmente a medicina em nada beneficia se não liberta dos males do corpo, assim também sucede com a filosofia, se não liberta das paixões da alma[1].

 

A Canônica Epicurista

 

a “canônica” como determinação dos critérios de verdade

 

Já na outra parte da filosofia, a que diz respeito à arte de discorrer e que se chama ‘lógica’, esse vosso Epicuro parece-me ser absolutamente desprovido e inerme. Abole as definições, não ensina nada sobre a divisão e a articulação, não ensina como se constitui e se conclui o raciocínio, e como se resolvem os sofismas e como se discerne a ambigüidade dos discursos [...][2].

 

Os epicuristas transferem a lógica para longe do campo que lhe é próprio, porque em primeiro lugar indagam sobre a canônica do juízo, fazendo dela um preceituário aplicado seja às evidências, seja ao que não cai sob os sentidos, e a tudo o que se segue a isso[3].

 

Se recusares uma sensação sem distinguir bem entre o que se deve à opinião, o que espera confirmação, o que está evidentemente presente com base na sensação e na afecção, ou nalgum ato de intuição representativa da mente, acabarás por confundir também as outras sensações com a vã opinião, e não conseguirás mais usar nenhum critério de juízo [...][4].

 

Epicuro, das duas coisas estreitamente unidas entre si, que são a representação e a opinião, diz que a representação, chamada também evidência, é em qualquer caso verdadeira. Assim como as afecções primárias, o prazer e a dor, derivam de alguma coisa que as produz e são correspondentes a ela, ou seja, o prazer do que é aprazível, a dor do que é doloroso, e não é possível que o que produz a dor não seja doloroso, mas necessariamente, por sua natureza, uma e outra coisa devem ser tais, da mesma maneira, também com as afecções próprias a nós, que são as representações, é necessário que em qualquer caso subsista o objeto da própria representação que a produz, e esse objeto não poderia causar a representação que a produz, e esse objeto não poderia causar a representação daquela forma determinada se não fosse em tudo e por tudo tal como nos aparece. O mesmo se pode argüir a respeito de todas as outras representações tomadas singularmente. O objeto da visão não só dá lugar a esta, mas é tal como a ela aparece; o objeto da audição não só dá lugar a esta, mas é tal como ela se apresenta, na sua verdadeira realidade; e assim para todos os outros conhecimentos. Todas as representações, portanto, são verdadeiras, e com razão. De fato, raciocinam os epicuristas, se uma representação pode ser dita verdadeira quando provém de algo que subsiste efetivamente e quando corresponde ao que subsiste de fato, e, com efeito, toda representação provém de alguma coisa realmente subsistente e a ela corresponde, segue-se daí necessariamente que toda sensação é verdadeira. Mas acontece que alguns são levados ao engano pela diferença existente entre as representações que aparecem como derivadas do mesmo objeto dos sentidos; por exemplo, do objeto da vista, pelo qual ele aparece às vezes ou de outra cor ou de outra forma ou diferente nalgum outro modo; e assim são induzidos a afirmar que, dessas representações tão diferentes ou até mesmo contrastantes entre si, algumas devem ser verdadeiras e outras, ao contrário, falsas. Ora, isso é ingênuo, e é característico de quem não consegue captar a verdadeira natureza das coisas. Por exemplo, para nos fixarmos apenas nas representações visivas, não é todo o corpo sólido que é visível, mas só a sua superfície colorida. E quanto à cor, uma parte pertence ao próprio corpo, como acontece quando a observação é feita de perto ou de pequena distância; parte está fora dele e situada no espaço que o circunda, como acontece quando olhamos o corpo de grande distância; este, movendo-se no espaço interposto e assumindo uma configuração própria, é para nós causa de uma representação que corresponde ao que ele é na sua efetiva realidade. E assim como não se adverte o som da voz nem dentro do bronze golpeado nem na boca daquele que grita, mas só quando chega à nossa sensação, e ninguém diz que é falsa a sensação da voz enfraquecida pela distância, assim não se poderia dizer que é falsa a visão de uma torre que, por causa da grande distância, nos pareça pequena e redonda, enquanto de perto é grande e quadrada, mas dever-se-á dizer, ao contrário, que é verdadeira porque quando o objeto da sensação se lhe aparece pequeno ou de uma determinada forma, ele é na realidade assim, pelo fato de os contornos dos simulacros terem sofrido uma alteração, por causa da passagem através do ar; e quando aparece grande e de outra forma, também é assim na realidade. Não que nos dois casos o objeto seja igual; de fato, é próprio da opinião errada considerar que o objeto percebido de perto e de longe seja exatamente o mesmo. A sensação deve limitar-se a captar o que está presente e a move, como a cor, por exemplo; ela não deve julgar se uma coisa é o objeto em certo lugar, outra o objeto em outro. Por isso as representações são todas verdadeiras[5].

 

As “prolepses” ou “antecipações” e a linguagem

 

É preciso crer que dos próprios fatos a natureza recebeu muitos ensinamentos e impulso; raciocínio, em seguida, aperfeiçoou o que lhe foi confiado pela natureza e acrescentou ulteriores descobrimentos, mais rapidamente em alguns casos, mais lentamente noutros, e em determinados períodos e lapsos de tempo <com ritmo mais rápido>, noutros mais lento. Por isso mesmo os nomes no início não se formularam por convenção, mas pela diferente natureza dos homens, enquanto estava sujeita a afecções particulares segundo a diversidade das estirpes e  concebia representações diferentes, emitia também o ar de maneira própria, seja segundo as afecções e representações, seja segundo a diferença subsistente entre os lugares nos quais viviam os diferentes povos; sucessivamente, no âmbito de cada povo, estabeleceram-se em comum certas expressões peculiares, com a finalidade de se oferecerem reciprocamente indicações menos duvidosas das coisas e se explicarem de modo mais conciso; e os que queriam, baseados nos seus conhecimentos, introduzir a noção de coisas até então nunca vistas, fixavam determinados nomes, alguns formulando-os sob a moção do impulso natural, outros escolhendo-os com base em certos raciocínios e seguindo a razão mais válida para exprimir-se de tal modo[6].

 

Opinião

 

Dado que temos a faculdade de julgar as nossas representações, ocorre-nos julgar algumas corretamente e outras não, seja porque lhes acrescentamos algo e lhes atribuímos alguma coisa que não lhes pertence, seja porque lhes subtraímos alguma coisa e, em geral, porque interpretamos erroneamente a sensação, que por si mesma é irracional. Portanto, pra Epicuro, algumas opiniões são verdadeiras, outras falsas; verdadeiras são as confirmadas ou não desmentidas pela evidência, falsa as desmentidas ou não confirmadas pela evidência. A confirmação é o ato de compreender com evidência que o objeto da opinião corresponde à própria opinião. Por exemplo, enquanto Platão vem de longe, eu imagino e me represento na opinião, à distância, que aquele seja exatamente Platão; no momento em que se aproxima, reforça-se a minha opinião de que aquele é efetivamente Platão; quando, em seguida, toda distância desaparece, ela recebe plena confirmação da evidência. O não-desmentido consiste na coerência com os dados da experiência quando o objeto do opinar não é alcançável pelos sentidos. Por exemplo, Epicuro, afirmando que existe o vazio, que é por si inapreensível pelos sentidos, apresenta como prova um fato de natureza evidente, isto é, o movimento: não existindo o vazio não poderia existir o movimento, não tendo o corpo em movimentos um lugar no qual efetuar o seu deslocamento, pois todo o espaço seria pleno e compacto; assim o dado da experiência que atesta a existência do movimento não contradiz a opinião acerca do objeto que foge à sensação.

O desmentido é o oposto do não desmentido; ele é a refutação que a experiência sensível dá à opinião acerca de um objeto que não cai sob os sentidos. Assim, por exemplo, os estóicos afirmam que o vazio não existe, porque o consideram algo que não cai sob os sentidos. Ora, tal hipótese contrasta com a experiência sensível, que nesse caso é o movimento, porque, como se disse antes, não existindo o vazio, necessariamente não existiria também o movimento. Assim também a não-confirmação é o oposto da confirmação: esta consiste em submeter à prova da evidência o fato de que o opinado não seja do modo em que apareceu precedentemente como, por exemplo, quando alguém vem de longe, à distância fazemos a hipótese de que seja Platão, mas em seguida, desaparecida a distância, aparece-nos com evidência que não se trata de Platão. Tal fato chama-se, exatamente, não-confirmação, porque o opinado não foi confirmado pela sensação. Com base em tudo isso pode-se dizer que a confirmação e o não-desmentido são o critério da verdade, a não-confirmação e o desmentido o critério da não-verdade; e a evidência é a base e fundamento de tudo[7].

 

II. A FÍSICA EPICURISTA

 

Os fundamentos ontológicos: as características da realidade enquanto tal, os corpos, o vazio e o infinito.

 

Que existem os corpos, atesta-o por si mesma em qualquer hipótese a sensação, com base na qual se deve em seguida raciocinar sobre o que foge à experiência sensível [...]. Se não existisse o que nós chamamos vazio ou lugar ou natureza intangível, os corpos não teriam nem onde estar nem onde mover-se, tal como evidentemente o fazem. Além dessas duas realidades, nada é concebível, seja diretamente, seja por analogia com as percebidas pelos sentidos: e tais realidades nós as entendemos como naturezas (Úσες) integrais e não como o que dizemos serem seus atributos, sejam eles próprios ou acidentais[8].

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Os átomos

 

Alguns corpos são compostos e outros são elementos que dão origem aos compostos. Estes são corpos indivisíveis e imutáveis, uma vez que o todo não pode dissolver-se no nada; eles possuem a capacidade de permanecer imutáveis no curso das dissoluções dos compostos, possuindo natureza compacta e não sendo de modo algum suscetíveis de dissolução. Os princípios constitutivos dos corpos são, pois, necessariamente naturezas indivisíveis[9].

 

As características estruturais dos átomos

 

É preciso também convencer-se de que os átomos não apresentam outras propriedades dos fenômenos além de figura, peso e grandeza, e tudo o que é necessariamente ligado à figura. Toda propriedade, de fato, tende a mudar, mas os átomos não mudam em absoluto, pois deve necessariamente permanecer algo sólido e indestrutível na dissolução dos seres compostos, algo que faça que as mudanças não acabem no nada ou provenham do nada, mas aconteçam por transposições em muitos corpos ou por acréscimo ou por diminuição de átomos. Daí deriva a necessidade de as realidades transpostas serem indestrutíveis, e não terem a natureza do ser sujeito à mudança, mas possuírem massa e figura próprias, e, necessariamente, serem de natureza permanente.

Nas coisas, sujeitas à nossa experiência, que mudam de forma, vemos que a figura se mantém mesmo subtraindo a matéria; mas as propriedades não permanecem em todo o corpo. Devemos, pois, pensar que as realidades que permanecem são as capazes de causar as diferenciações dos corpos compostos; uma vez que necessariamente há algo que permanece e <não> se dissolve no nada[10].m mesmo subtraindo a mata, vemos que a figura se mantrem indestrutçr imut: e tais realidades nseria pleno e compacto; assim o d

 

 

 

O “clinamen” ou “declinação” dos átomos.

 

Epicuro introduziu essa teoria porque temia que, admitindo que o átomo se mova sempre pela causa natural e necessária do seu peso, não nos restaria nenhuma liberdade, já que a nossa alma mover-se-ia do modo como o movimento dos átomos a coagiria a mover-se. Demócrito, o primeiro introdutor da nação de átomo, preferiu aceitar que tudo acontece por necessidades, em vez de tirar dos copos indivisíveis o seu movimento natural[11].

E ainda:

[Epicuro] afirma: “o átomo sofre desvio”. Em primeiro lugar, por que? Os átomos foram concebidos por Demócrito como dotados de outra força motora, que ele chamava de “força de choque”; para ti, Epicuro, o movimento depende exclusivamente da gravidade e do peso. Qual é, pois, a razão extraordinária na natureza que provoca o desvio do átomo? Será que eles mesmo tiram a sorte entre si sobre quais devam desviar-se e quais não? E por que desviam apenas um mínimo intervalo, e não dois ou três intervalos? Tudo isso é a expressão de uma veleidade e não uma posição doutrinal. Ele não diz, de fato, que o átomo se desloca do seu lugar e desvia porque movido do exterior; nem que naquele espaço vazio no qual se move o átomo existam causas que impeçam o movimento perpendicular de alto a baixo; nem que no próprio átomo tenha-se verificado uma mudança capaz de faze-lo abandonar o movimento natural decorrente do seu peso. Portanto, mesmo não tendo adotado nenhuma causa capaz de dar lugar a esse desvio, Epicuro sustenta ter formulado uma teoria importante, enquanto na realidade faz uma afirmação que a razão universalmente despreza e recusa[12].

 

O universo e os mundos infinitos

 

O mundo, pois, constituiu-se em forma de figura curva do seguinte modo: dado que os corpos indivisíveis têm movimento imprevisível e casual e movem-se continuamente e com a máxima velocidade, por isso muitos deles, de figura e grandeza <e peso> as mais variadas, recolheram-se no mesmo lugar. Recolhidos, pois, todos juntos no mesmo lugar, alguns, os maiores e mais pesados, depositaram-se no ponto mais baixo; aqueles, ao contrário, que eram pequenos, redondos, lisos e escorregadios, eram expulsos pelo afluir de outros átomos e eram projetados para cima. Como depois cessasse a força repulsiva que os sustentava, e o choque não mais os impulsionasse para cima, mais também encontrassem impedimento para dirigirem-se para baixo, eram comprimidos para os lugares próprios a acolhe-los, isto é, os periféricos: e neles dispunha-se em volta a multidão de tais corpos que, enlaçados uns aos outros segundo uma linha curva, deram origem ao céu. Depois, os átomos que eram de várias espécies, como se disse, embora tendo a mesma natureza, impulsionados para o espaço superior, formaram a natureza dos astros. Além disso, a multidão dos átomos que subiam como evaporando, golpeava e comprimia o ar, por sua vez, transformando em vento pelo movimento que lhe era impresso e envolvendo os astros todos juntos, arrastava-os consigo e, por sua vez, imprimia-lhes no alto espaço o movimento rotatório que perdura até agora. Em seguida, dos átomos pousados embaixo teve origem a terra; dos que foram levantados ao alto espaço tiveram origem o céu, o fogo e o ar. Mas porque sobre a terra tinha-se ainda acumulado muita matéria, a qual se condensava pelos choques dos ventos e as exalações dos astros, tudo o que nela tinha configurado de partes pequenas foi ulteriormente comprimido e produziu a natureza líquida. Esta, sendo fluida, dirigiu-se para os lugares côncavos, próprios para acolhê-la, ou a água, depositada por si mesma, escavou os lugares que a contêm. As partes mais importantes do mundo, portanto, formaram-se do modo acima descrito[13].

 

Os fenômenos celestes e suas múltiplas explicações

 

Antes de tudo, é preciso convencer-se de que no estudo dos fenômenos celestes, quer considerados na sua relação recíproca, quer independentemente uns dos outros, não há outro fim a alcançar senão a imperturbabilidade da alma e a segura confiança, assim como nas outras pesquisas; e não se deve forçar as coisas para conseguir o impossível, nem usar o mesmo método com relação a todos os objetos, quer se trate da pesquisa sobre os gêneros de vida, quer da pesquisa dirigida à solução dos problemas postos pela ciência da natureza como, por exemplo, “o todo consta de corpos e da natureza instável”, ou “ os elementos últimos da realidade natural são indivisíveis”, ou outras proposições que, como estas, comportem uma solução de acordo com os objetos da experiência. No que concerne aos fenômenos celestes, aS coisas são diferentes: estes admitem várias explicações causais da sua origem e a possibilidade de várias determinações da sua essência, mas sempre de acordo com as sensações. Quando se estuda a ciência da natureza, não se deve proceder por enunciados vão e posições convencionais, mas do modo exigido pelos próprios objetos da experiência sensível. A nossa vida, de fato, não necessita de irracionalidade ou de vãs opiniões, mas da possibilidade de poder ser vivida sem perturbação. E obtemos uma paz sem sobressaltos se explicarmos os fenômenos com o método das explicações múltiplas e de acordo com os objetos da experiência; deixando subsistir sobre eles, como convém, as opiniões prováveis. Quando, ao contrário, admite-se algo ou refuta-se algo do que está igualmente de acordo como os dados da experiência, é claro que em tal caso passa-se da ciência da natureza ao mito[14].

 

A alma, a sua materialidade e mortalidade.

 

Depois disso, devemos considerar, referindo-nos sempre às sensações e às afecções, que a alma é um corpo sutil, espalhando por todo o composto, muito semelhante ao sopro,e tendo em si certa medida de calor, portanto, por uma lado semelhante a um e, por outro, semelhante ao outro; e existe nela uma parte que, pela sua extrema sutileza, diferencia-se também desses elementos, e por isso encontra-se numa particular relação com o resto do organismo. Prova disso são as capacidades da alma e suas afecções, os movimentos e os pensamentos, e todas as faculdades sem as quais deixa de viver[15].

 

A parte com a qual a alma julga, recorda, ama, odeia, em geral, a parte do pensamento e da razão, dizem [os epicuristas], de fato, que é composta de uma substância sem nome. E nós sabemos que essa substância sem nome não é senão uma confissão de vergonha ignorância de quem não sabe como chamar o que não consegue compreender[16].

 

A concepção dos Deuses e do divino

 

Antes de tudo, deves pensar que a divindade seja um ser vivo imortal e feliz, como é sugerido pela nação comum do divino, e não lhes deves atribuir nada estranho à imortalidade e que discorde da felicidade; ao contrário, pensa dela tudo o que pode servir para preservar a felicidade junto com a imortalidade. Os deuses existem: temos deles conhecimento evidente. Mas não existem da maneira como os concebe o vulgo; e isso tira todo fundamento real da forma com a qual são comumente concebidos. Ímpio não é quem renega os deuses do vulgo, mas quem aplica as opiniões do vulgo aos deuses. De fato, os juízes do vulgo sobre os deuses não são prenoções, mas suposições falsas; e com base em tais suposições costuma-se atribuir aos deuses os maiores danos e os maiores benefícios[17].

 

 

III. A ÉTICA EPICURISTA

 

O prazer como fundamento da ética

 

Desde o nascimento, todo ser vivo tende ao prazer, goza deste como o sumo bem, foge da dor como do mal supremo e afasta-o de si o máximo possível; e realiza tudo isso sem ter ainda sofrido qualquer corrupção, seguindo o critério da natureza ainda inocente e íntegra. Epicuro por isso nega que seja necessário raciocinar e argumentar para provar por que o prazer deve ser escolhido e a dor, recusada: pensa, de fato, que isso é objeto de sensação imediata, como o fato de o fogo ser quente, a neve, branca, o mel, doce, coisas que não devem ser provadas com específicos raciocínios, bastando simplesmente enunciar [...]. Dado que, desaparecendo a faculdade de sentir, não resta nada ao homem, é preciso julgar com base na própria natureza o que é contrário ou de acordo com a natureza: e o que pode captar ou julgar o que se deve escolher ou rejeitar senão o prazer ou a dor? [...][18].

 

Reforma do hedonismo cirenaico.

 

Explicarei agora o que é o prazer em si [...]. Nós não buscamos o prazer que move o nosso instinto natural com um sentido de delícia e que é percebido pelos nossos sentidos como agradável, mas consideramos máximo prazer aquele cuja percepção consiste na supressão da dor. De fato, dado que ao nos libertar da dor gozamos da própria libertação e da sensação de ausência de qualquer incômodo, e dado que todo gozo não é senão o prazer, assim como tudo o que nos ofende de algum modo é dor, com razão qualquer supressão da dor pode ser chamada prazer. Assim como quando a fome e a sede são removidas pelo alimento ou a bebida, a supressão do sofrimento traz consequentemente o prazer, assim também em qualquer coisa a remoção da dor traz como imediata conseqüência o prazer. Por essa razão Epicuro refutou a tese de que possa haver um estado intermediário entre prazer e dor: ele afirmava que o que para alguns parece um estado intermediário, enquanto simples ausência de dor, era não só o prazer, mas prazer supremo. Qualquer um que perceba, de fato, a sua afecção do momento, encontra-se necessariamente num estado de prazer ou de dor; e Epicuro afirmava que na privação da dor tem o seu cume o prazer, de modo que pode haver variação e diferenciação dos prazeres, mas não crescimento e intensificação deles [...][19].

 

Dizemos, de fato, que os prazeres e as dores da alma nascem dos do corpo [...]. Embora o prazer da alma nos dê alegria, e o sofrimento, dor, todavia ambos atingem o corpo e devem ser atribuídos a causas físicas; mas não por essa razão deve-se dizer que os prazeres e as dores da alma não são muito maiores que os do corpo; de fato; fisicamente podemos sentir só o que é presente e atual, enquanto com a alma sentimos também as dores do passado e do futuro. No caso de sofrermos de igual dor na alma e no corpo, uma grande intensificação da dor pode dar-nos a impressão de que um mal eterno e sem limites pesa ameaçadoramente sobre nós; a mesma coisa pode ser aplicada também ao prazer, que é tanto maior quanto mais livres somos de tais temores. Em suma, é claro que o máximo prazer ou o máximo sofrimento da alma, com relação à felicidade ou à infelicidade da vida, têm maior peso do que um sofrimento ou um prazer de igual duração e intensidade que residam no corpo. Ademais, ele não afirma que, eliminando o prazer, segue-se imediatamente o sofrimento, a não ser que no lugar do prazer entre a dor; ao contrário, afirma que há gozo imediato quando saímos da dor, mesmo que nenhum prazer venha mover os nossos sentidos. Daí poder-se compreender quão grande prazer existe em não provar da dor[20].

 

A hierarquia dos prazeres e a sabedoria.

 

Quando, pois, dizemos que o prazer é um bem, não aludimos de modo algum aos prazeres dos dissolutos, que consistem no excesso no comer e no beber, como crêem alguns que ignoram o nosso ensinamento ou o interpretam mal; mas aludimos à ausência de dor no corpo, à ausência de perturbação na alma. Não, portanto, as libações e as festas ininterruptas, nem o gozo das donzelas e mulheres nem o comer peixe e tudo mais que uma rica mesa pode oferecer, é fonte de vida feliz; mas o sóbrio raciocinar que perscruta a fundo as causas de todo ato de escolha e de recusa, e que afasta as falsas opiniões, pelas quais grande perturbação toma conta da alma[21].

 

Um seguro conhecimento desses [prazeres] refere todo ato de escolha ou de recusa ao fim da saúde do corpo e da tranqüilidade da alma, uma vez que este é o fim da vida feliz; é em vista disso que realizamos nossas ações, com o escopo de suprimir sofrimentos e perturbações. Uma vez alcançando isso, dissolver-se á qualquer tempestade da alma, não tendo o ser vivo outra exigência a satisfazer nem outra coisa que possa tornar completo o bem da alma e do corpo. Temos, de fato, necessidade do prazer quando, pela sua falta sofremos; <mas quando não sofremos mais>, também desaparece a necessidade do prazer[22].

 

Absolutez do prazer.

 

A carne não admite limites no prazer, e o tempo que serve para lhe dar tal prazer é, também ele, sem limite. Mas o pensamento que aprendeu a raciocinar sobre o fim e o limite do que é pertinente à carne, e que suprimiu o temor da eternidade, torna possível a nós uma vida perfeita, pela qual não sentimos mais a exigência de um tempo infinito: ele não tem aversão ao prazer nem, quando as circunstâncias nos levam ao momento de sair desta vida, pode dizer que se vai tendo abandonado algo do que a torna ótima[23].

 

A morte nada é para o homem.

 

Habitua-te a pensar que a morte não é nada para nós, porque todo bem e todo mal residem na faculdade de sentir, da qual a morte é, justamente, privação. Por isso o reto conhecimento de que a morte não é nada para nós torna alegre a própria condição mortal da nossa vida, não prolongando indefinidamente o tempo, mas suprimindo o desejo de imortalidade. Nada há de temível no viver para quem se tenha verdadeiramente convencido de que nada de temível há em não mais viver. E assim também é estulto quem afirma temer a morte, não porque lhe trará dor ao chegar, mas porque traz dor o fato de saber que chegará: o que não faz sofrer quando chega, é vão que nos traga dor na esperança. O mais terrível dos males, portanto, a morte, não é nada para nós, uma vez que, quando somos, a morte não é quando ela chega nós não somos mais. E assim também é estulto quem afirma temer a morte, não porque lhe trará dor ao chegar, mas porque traz dor o fato de saber que chegará: o que não faz sofrer quando chega, é vão que nos traga dor na espera. O mais terrível dos males, portanto, a morte, não é nada para nós, uma vez que, quando somos, a morte não é, e quando ela chega nós não somos mais. Ela não tem nenhum significado nem para os vivos nem para os mortos, porque para uns não é nada e, quanto aos outros, eles não são mais. Porém, o vulgo ora foge da morte como o maior dos males, ora, ao contrário <busca-a> como fim <dos males> da vida. <O sábio, ao invés, não pede para viver> nem teme não viver: não é contrário à vida, mas também não considera que a morte seja um mal. Assim como do alimento ele não deseja o mais abundante, mas o mais agradável, do tempo ele procura gozar não o mais longo, mas o mais doce. Quem exorta o jovem a bem viver, o velho a bem morrer, é um estulto; e não só pelo que a vida tem de prazeroso, mas também porque um só é o exercício de bem viver e de bem morrer. Porém, muito pior faz quem diz: belo seria não ter nascido ou, “apenas nascido, imediatamente atravessar as portas do Hades”. Se está persuadido do que diz, por que não sai da vida? Isso está em poder, se essa é a sua firme convicção. Mas se brinca, é estulto ao faze-lo com que não convém[24].

 

A desvalorização do Estado e da vida política e a exaltação do “viver escondido”.

 

Para todos os seres vivos que não tiveram a capacidade de estabelecer pactos recíprocos em vista de não provocar nem receber dano, não existe nem o justo nem o injusto; e igualmente deve-se dizer dos povos que não puderam ou não quiseram estabelecer pactos em vista de não provocar e não sofrer dano[25].

Em sentido geral, o justo é igual para todos, a que é um acordo de utilidade recíproca na vida social; mas segundo as particularidades dos lugares e das condições, resulta que o justo não é o mesmo para todos[26].ega nndo somos, a morte nato de saber que chegarse vai tendo abandonado algo do que a torna

Entre as coisas que a lei prescreve como justas, a que é comprovada como útil pela necessidade das relações sociais recíprocas deve ser considerada como tendo o requisito do justo, seja esta para todos ou não; mas se estabelece uma lei que não resulte coerente para a utilidade nas relações recíprocas, esta não possui a natureza do justo. Se, depois, o que era justo segundo a justiça vem a decair, mesmo tendo por certo tempo correspondido às pré-noções do justo, isso não quer dizer que não o fosse durante aquele tempo, se não queremos nos perturbar com vãs tagarelices, mas considerar substancialmente os fatos[27].

 



[1] Porfírio, Ad Marcellam, 31, p. 297, 7ss. Nauck ( = Usener, fr. 221)

[2] Cícero, De fin., I, 7, 22 (+ Usener, fr. 243, p. 178, 22ss.).

[3] Sexto Empírico, Contra os matem.,, VII, 22 (= Usener, fr. 242, p. 177, 24ss.)

[4] Máximas capitais, 24.

[5] Sexto Empírico, Contra os matem., VII, 203-210 (= Usener, fr. 247).

[6] Epístola a Heródoto, 75s.

[7] Sexto Empírico, Contra os matem., VII, 211-216 (= Usener, fr. 247, p. 181, 12ss.).

[8] Epístola a Heródoto, 39s.

[9] Epístola a Heródoto, 40s.

[10] Epístola a Heródoto, 54s.

[11] Cícero, DE fato, 10, 22s. (= Usener, fr. 281, p. 200, 14ss.).

[12] Cécero, De fato, 20, 46 (= Usener, fr. 281, p. 200, 29ss.).

[13] Os. Plutarco, Plac. Philos., I, 4 (= Diels, Doxographi graeci, p. 289 = Usener, fr. 308).

[14] Epístola a Pitocles, 85-87.

[15] Epístola a Heródoto, 63.

[16] Plutarco, Contra Colotes, 20, 1118 d (= Usener, fr. 314, p. 218, 13ss.).

[17] Epístola a Meneceu, 123s.

[18] Cícero, De fin., I, 9, 30 (= Usener, fr. 397, p. 264, 9ss.)..

[19] Cícero, Den fin., I, 11, 37 (= Usener, fr. 397, p. 266, 1ss.).

[20] Cícero, De fin., I, 17, 55ss. (= Usener, fr. 397, p. 271, 10ss.).

[21] Epístola a Meneceu, 131s.

[22] Epístola a Meneceu, 128.

[23] Máximas capitais, 20.

 

[24] Epístola a Meneceu, 125ss.

[25] Máximas capitais, 32.

[26] Máximas capitais, 36.

[27] Máximas capitais, 37.

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