As relações entre Epicuro, Sócrates e os
socráticos menores.
É vazio o
discurso do filósofo que não consiga curar alguma paixão do homem: assim como
realmente a medicina em nada beneficia se não liberta dos males do corpo, assim
também sucede com a filosofia, se não liberta das paixões da alma[1].
A
Canônica Epicurista
a “canônica”
como determinação dos critérios de verdade
Já na outra
parte da filosofia, a que diz respeito à arte de discorrer e que se chama
‘lógica’, esse vosso Epicuro parece-me ser absolutamente desprovido e inerme.
Abole as definições, não ensina nada sobre a divisão e a articulação, não
ensina como se constitui e se conclui o raciocínio, e como se resolvem os
sofismas e como se discerne a ambigüidade dos discursos [...][2].
Os epicuristas
transferem a lógica para longe do campo que lhe é próprio, porque em primeiro
lugar indagam sobre a canônica do juízo, fazendo dela um preceituário aplicado
seja às evidências, seja ao que não cai sob os sentidos, e a tudo o que se segue
a isso[3].
Se recusares uma
sensação sem distinguir bem entre o que se deve à opinião, o que espera
confirmação, o que está evidentemente presente com base na sensação e na
afecção, ou nalgum ato de intuição representativa da mente, acabarás por confundir
também as outras sensações com a vã opinião, e não conseguirás mais usar nenhum
critério de juízo [...][4].
Epicuro, das
duas coisas estreitamente unidas entre si, que são a representação e a opinião,
diz que a representação, chamada também evidência, é em qualquer caso
verdadeira. Assim como as afecções primárias, o prazer e a dor, derivam de
alguma coisa que as produz e são correspondentes a ela, ou seja, o prazer do
que é aprazível, a dor do que é doloroso, e não é possível que o que produz a
dor não seja doloroso, mas necessariamente, por sua natureza, uma e outra coisa
devem ser tais, da mesma maneira, também com as afecções próprias a nós, que
são as representações, é necessário que em qualquer caso subsista o objeto da
própria representação que a produz, e esse objeto não poderia causar a
representação que a produz, e esse objeto não poderia causar a representação
daquela forma determinada se não fosse em tudo e por tudo tal como nos aparece.
O mesmo se pode argüir a respeito de todas as outras representações tomadas
singularmente. O objeto da visão não só dá lugar a esta, mas é tal como a ela
aparece; o objeto da audição não só dá lugar a esta, mas é tal como ela se
apresenta, na sua verdadeira realidade; e assim para todos os outros
conhecimentos. Todas as representações, portanto, são verdadeiras, e com razão.
De fato, raciocinam os epicuristas, se uma representação pode ser dita
verdadeira quando provém de algo que subsiste efetivamente e quando corresponde
ao que subsiste de fato, e, com efeito, toda representação provém de alguma
coisa realmente subsistente e a ela corresponde, segue-se daí necessariamente
que toda sensação é verdadeira. Mas acontece que alguns são levados ao engano
pela diferença existente entre as representações que aparecem como derivadas do
mesmo objeto dos sentidos; por exemplo, do objeto da vista, pelo qual ele
aparece às vezes ou de outra cor ou de outra forma ou diferente nalgum outro
modo; e assim são induzidos a afirmar que, dessas representações tão diferentes
ou até mesmo contrastantes entre si, algumas devem ser verdadeiras e outras, ao
contrário, falsas. Ora, isso é ingênuo, e é característico de quem não consegue
captar a verdadeira natureza das coisas. Por exemplo, para nos fixarmos apenas
nas representações visivas, não é todo o corpo sólido que é visível, mas só a
sua superfície colorida. E quanto à cor, uma parte pertence ao próprio corpo,
como acontece quando a observação é feita de perto ou de pequena distância;
parte está fora dele e situada no espaço que o circunda, como acontece quando
olhamos o corpo de grande distância; este, movendo-se no espaço interposto e
assumindo uma configuração própria, é para nós causa de uma representação que
corresponde ao que ele é na sua efetiva realidade. E assim como não se adverte
o som da voz nem dentro do bronze golpeado nem na boca daquele que grita, mas
só quando chega à nossa sensação, e ninguém diz que é falsa a sensação da voz
enfraquecida pela distância, assim não se poderia dizer que é falsa a visão de
uma torre que, por causa da grande distância, nos pareça pequena e redonda,
enquanto de perto é grande e quadrada, mas dever-se-á dizer, ao contrário, que
é verdadeira porque quando o objeto da sensação se lhe aparece pequeno ou de
uma determinada forma, ele é na realidade assim, pelo fato de os contornos dos
simulacros terem sofrido uma alteração, por causa da passagem através do ar; e
quando aparece grande e de outra forma, também é assim na realidade. Não que
nos dois casos o objeto seja igual; de fato, é próprio da opinião errada
considerar que o objeto percebido de perto e de longe seja exatamente o mesmo.
A sensação deve limitar-se a captar o que está presente e a move, como a cor,
por exemplo; ela não deve julgar se uma coisa é o objeto em certo lugar, outra
o objeto
As “prolepses” ou “antecipações” e a
linguagem
É preciso crer
que dos próprios fatos a natureza recebeu muitos ensinamentos e impulso;
raciocínio, em seguida, aperfeiçoou o que lhe foi confiado pela natureza e
acrescentou ulteriores descobrimentos, mais rapidamente em alguns casos, mais
lentamente noutros, e em determinados períodos e lapsos de tempo <com ritmo
mais rápido>, noutros mais lento. Por isso mesmo os nomes no início não se formularam
por convenção, mas pela diferente natureza dos homens, enquanto estava sujeita
a afecções particulares segundo a diversidade das estirpes e concebia representações diferentes, emitia
também o ar de maneira própria, seja segundo as afecções e representações, seja
segundo a diferença subsistente entre os lugares nos quais viviam os diferentes
povos; sucessivamente, no âmbito de cada povo, estabeleceram-se em comum certas
expressões peculiares, com a finalidade de se oferecerem reciprocamente
indicações menos duvidosas das coisas e se explicarem de modo mais conciso; e
os que queriam, baseados nos seus conhecimentos, introduzir a noção de coisas
até então nunca vistas, fixavam determinados nomes, alguns formulando-os sob a
moção do impulso natural, outros escolhendo-os com base em certos raciocínios e
seguindo a razão mais válida para exprimir-se de tal modo[6].
Opinião
Dado que temos a
faculdade de julgar as nossas representações, ocorre-nos julgar algumas
corretamente e outras não, seja porque lhes acrescentamos algo e lhes
atribuímos alguma coisa que não lhes pertence, seja porque lhes subtraímos
alguma coisa e, em geral, porque interpretamos erroneamente a sensação, que por
si mesma é irracional. Portanto, pra Epicuro, algumas opiniões são verdadeiras,
outras falsas; verdadeiras são as confirmadas ou não desmentidas pela
evidência, falsa as desmentidas ou não confirmadas pela evidência. A
confirmação é o ato de compreender com evidência que o objeto da opinião
corresponde à própria opinião. Por exemplo, enquanto Platão vem de longe, eu
imagino e me represento na opinião, à distância, que aquele seja exatamente
Platão; no momento em que se aproxima, reforça-se a minha opinião de que aquele
é efetivamente Platão; quando, em seguida, toda distância desaparece, ela
recebe plena confirmação da evidência. O não-desmentido consiste na coerência
com os dados da experiência quando o objeto do opinar não é alcançável pelos
sentidos. Por exemplo, Epicuro, afirmando que existe o vazio, que é por si
inapreensível pelos sentidos, apresenta como prova um fato de natureza
evidente, isto é, o movimento: não existindo o vazio não poderia existir o
movimento, não tendo o corpo em movimentos um lugar no qual efetuar o seu
deslocamento, pois todo o espaço seria pleno e compacto; assim o dado da
experiência que atesta a existência do movimento não contradiz a opinião acerca
do objeto que foge à sensação.
O desmentido é o
oposto do não desmentido; ele é a refutação que a experiência sensível dá à
opinião acerca de um objeto que não cai sob os sentidos. Assim, por exemplo, os
estóicos afirmam que o vazio não existe, porque o consideram algo que não cai
sob os sentidos. Ora, tal hipótese contrasta com a experiência sensível, que
nesse caso é o movimento, porque, como se disse antes, não existindo o vazio,
necessariamente não existiria também o movimento. Assim também a
não-confirmação é o oposto da confirmação: esta consiste em submeter à prova da
evidência o fato de que o opinado não seja do modo em que apareceu
precedentemente como, por exemplo, quando alguém vem de longe, à distância
fazemos a hipótese de que seja Platão, mas em seguida, desaparecida a
distância, aparece-nos com evidência que não se trata de Platão. Tal fato
chama-se, exatamente, não-confirmação, porque o opinado não foi confirmado pela
sensação. Com base em tudo isso pode-se dizer que a confirmação e o
não-desmentido são o critério da verdade, a não-confirmação e o desmentido o
critério da não-verdade; e a evidência é a base e fundamento de tudo[7].
II. A FÍSICA EPICURISTA
Os fundamentos ontológicos: as
características da realidade enquanto tal, os corpos, o vazio e o infinito.
Que existem os
corpos, atesta-o por si mesma em qualquer hipótese a sensação, com base na qual
se deve em seguida raciocinar sobre o que foge à experiência sensível [...]. Se
não existisse o que nós chamamos vazio ou lugar ou natureza intangível, os
corpos não teriam nem onde estar nem onde mover-se, tal como evidentemente o
fazem. Além dessas duas realidades, nada é concebível, seja diretamente, seja
por analogia com as percebidas pelos sentidos: e tais realidades nós as
entendemos como naturezas (Úσες) integrais e não como o que dizemos serem seus
atributos, sejam eles próprios ou acidentais[8].
.
Os átomos
Alguns corpos
são compostos e outros são elementos que dão origem aos compostos. Estes são
corpos indivisíveis e imutáveis, uma vez que o todo não pode dissolver-se no
nada; eles possuem a capacidade de permanecer imutáveis no curso das
dissoluções dos compostos, possuindo natureza compacta e não sendo de modo
algum suscetíveis de dissolução. Os princípios constitutivos dos corpos são,
pois, necessariamente naturezas indivisíveis[9].
As características estruturais dos átomos
É preciso também
convencer-se de que os átomos não apresentam outras propriedades dos fenômenos
além de figura, peso e grandeza, e tudo o que é necessariamente ligado à
figura. Toda propriedade, de fato, tende a mudar, mas os átomos não mudam em
absoluto, pois deve necessariamente permanecer algo sólido e indestrutível na dissolução
dos seres compostos, algo que faça que as mudanças não acabem no nada ou
provenham do nada, mas aconteçam por transposições em muitos corpos ou por
acréscimo ou por diminuição de átomos. Daí deriva a necessidade de as
realidades transpostas serem indestrutíveis, e não terem a natureza do ser
sujeito à mudança, mas possuírem massa e figura próprias, e, necessariamente,
serem de natureza permanente.
Nas coisas,
sujeitas à nossa experiência, que mudam de forma, vemos que a figura se mantém
mesmo subtraindo a matéria; mas as propriedades não permanecem em todo o corpo.
Devemos, pois, pensar que as realidades que permanecem são as capazes de causar
as diferenciações dos corpos compostos; uma vez que necessariamente há algo que
permanece e <não> se dissolve no nada[10].
O “clinamen” ou “declinação” dos átomos.
Epicuro
introduziu essa teoria porque temia que, admitindo que o átomo se mova sempre
pela causa natural e necessária do seu peso, não nos restaria nenhuma
liberdade, já que a nossa alma mover-se-ia do modo como o movimento dos átomos
a coagiria a mover-se. Demócrito, o primeiro introdutor da nação de átomo,
preferiu aceitar que tudo acontece por necessidades, em vez de tirar dos copos
indivisíveis o seu movimento natural[11].
E ainda:
[Epicuro]
afirma: “o átomo sofre desvio”. Em primeiro lugar, por que? Os átomos foram
concebidos por Demócrito como dotados de outra força motora, que ele chamava de
“força de choque”; para ti, Epicuro, o movimento depende exclusivamente da
gravidade e do peso. Qual é, pois, a razão extraordinária na natureza que
provoca o desvio do átomo? Será que eles mesmo tiram a sorte entre si sobre
quais devam desviar-se e quais não? E por que desviam apenas um mínimo
intervalo, e não dois ou três intervalos? Tudo isso é a expressão de uma
veleidade e não uma posição doutrinal. Ele não diz, de fato, que o átomo se
desloca do seu lugar e desvia porque movido do exterior; nem que naquele espaço
vazio no qual se move o átomo existam causas que impeçam o movimento
perpendicular de alto a baixo; nem que no próprio átomo tenha-se verificado uma
mudança capaz de faze-lo abandonar o movimento natural decorrente do seu peso.
Portanto, mesmo não tendo adotado nenhuma causa capaz de dar lugar a esse
desvio, Epicuro sustenta ter formulado uma teoria importante, enquanto na
realidade faz uma afirmação que a razão universalmente despreza e recusa[12].
O universo e os mundos infinitos
O mundo, pois,
constituiu-se em forma de figura curva do seguinte modo: dado que os corpos
indivisíveis têm movimento imprevisível e casual e movem-se continuamente e com
a máxima velocidade, por isso muitos deles, de figura e grandeza <e peso>
as mais variadas, recolheram-se no mesmo lugar. Recolhidos, pois, todos juntos
no mesmo lugar, alguns, os maiores e mais pesados, depositaram-se no ponto mais
baixo; aqueles, ao contrário, que eram pequenos, redondos, lisos e
escorregadios, eram expulsos pelo afluir de outros átomos e eram projetados
para cima. Como depois cessasse a força repulsiva que os sustentava, e o choque
não mais os impulsionasse para cima, mais também encontrassem impedimento para
dirigirem-se para baixo, eram comprimidos para os lugares próprios a
acolhe-los, isto é, os periféricos: e neles dispunha-se em volta a multidão de
tais corpos que, enlaçados uns aos outros segundo uma linha curva, deram origem
ao céu. Depois, os átomos que eram de várias espécies, como se disse, embora
tendo a mesma natureza, impulsionados para o espaço superior, formaram a
natureza dos astros. Além disso, a multidão dos átomos que subiam como
evaporando, golpeava e comprimia o ar, por sua vez, transformando em vento pelo
movimento que lhe era impresso e envolvendo os astros todos juntos,
arrastava-os consigo e, por sua vez, imprimia-lhes no alto espaço o movimento
rotatório que perdura até agora. Em seguida, dos átomos pousados embaixo teve
origem a terra; dos que foram levantados ao alto espaço tiveram origem o céu, o
fogo e o ar. Mas porque sobre a terra tinha-se ainda acumulado muita matéria, a
qual se condensava pelos choques dos ventos e as exalações dos astros, tudo o
que nela tinha configurado de partes pequenas foi ulteriormente comprimido e
produziu a natureza líquida. Esta, sendo fluida, dirigiu-se para os lugares
côncavos, próprios para acolhê-la, ou a água, depositada por si mesma, escavou
os lugares que a contêm. As partes mais importantes do mundo, portanto,
formaram-se do modo acima descrito[13].
Os fenômenos celestes e suas múltiplas
explicações
Antes de tudo, é
preciso convencer-se de que no estudo dos fenômenos celestes, quer considerados
na sua relação recíproca, quer independentemente uns dos outros, não há outro
fim a alcançar senão a imperturbabilidade da alma e a segura confiança, assim
como nas outras pesquisas; e não se deve forçar as coisas para conseguir o
impossível, nem usar o mesmo método com relação a todos os objetos, quer se
trate da pesquisa sobre os gêneros de vida, quer da pesquisa dirigida à solução
dos problemas postos pela ciência da natureza como, por exemplo, “o todo consta
de corpos e da natureza instável”, ou “ os elementos últimos da realidade
natural são indivisíveis”, ou outras proposições que, como estas, comportem uma
solução de acordo com os objetos da experiência. No que concerne aos fenômenos
celestes, aS coisas são diferentes: estes admitem várias explicações causais da
sua origem e a possibilidade de várias determinações da sua essência, mas
sempre de acordo com as sensações. Quando se estuda a ciência da natureza, não
se deve proceder por enunciados vão e posições convencionais, mas do modo
exigido pelos próprios objetos da experiência sensível. A nossa vida, de fato,
não necessita de irracionalidade ou de vãs opiniões, mas da possibilidade de
poder ser vivida sem perturbação. E obtemos uma paz sem sobressaltos se
explicarmos os fenômenos com o método das explicações múltiplas e de acordo com
os objetos da experiência; deixando subsistir sobre eles, como convém, as
opiniões prováveis. Quando, ao contrário, admite-se algo ou refuta-se algo do
que está igualmente de acordo como os dados da experiência, é claro que em tal
caso passa-se da ciência da natureza ao mito[14].
A alma, a sua materialidade e mortalidade.
Depois disso,
devemos considerar, referindo-nos sempre às sensações e às afecções, que a alma
é um corpo sutil, espalhando por todo o composto, muito semelhante ao sopro,e
tendo em si certa medida de calor, portanto, por uma lado semelhante a um e,
por outro, semelhante ao outro; e existe nela uma parte que, pela sua extrema
sutileza, diferencia-se também desses elementos, e por isso encontra-se numa
particular relação com o resto do organismo. Prova disso são as capacidades da
alma e suas afecções, os movimentos e os pensamentos, e todas as faculdades sem
as quais deixa de viver[15].
A parte com a
qual a alma julga, recorda, ama, odeia, em geral, a parte do pensamento e da
razão, dizem [os epicuristas], de fato, que é composta de uma substância sem
nome. E nós sabemos que essa substância sem nome não é senão uma confissão de
vergonha ignorância de quem não sabe como chamar o que não consegue compreender[16].
A concepção dos Deuses e do divino
Antes de tudo,
deves pensar que a divindade seja um ser vivo imortal e feliz, como é sugerido
pela nação comum do divino, e não lhes deves atribuir nada estranho à
imortalidade e que discorde da felicidade; ao contrário, pensa dela tudo o que
pode servir para preservar a felicidade junto com a imortalidade. Os deuses
existem: temos deles conhecimento evidente. Mas não existem da maneira como os
concebe o vulgo; e isso tira todo fundamento real da forma com a qual são
comumente concebidos. Ímpio não é quem renega os deuses do vulgo, mas quem
aplica as opiniões do vulgo aos deuses. De fato, os juízes do vulgo sobre os
deuses não são prenoções, mas suposições falsas; e com base em tais suposições
costuma-se atribuir aos deuses os maiores danos e os maiores benefícios[17].
III. A ÉTICA EPICURISTA
O prazer como fundamento da ética
Desde o
nascimento, todo ser vivo tende ao prazer, goza deste como o sumo bem, foge da
dor como do mal supremo e afasta-o de si o máximo possível; e realiza tudo isso
sem ter ainda sofrido qualquer corrupção, seguindo o critério da natureza ainda
inocente e íntegra. Epicuro por isso nega que seja necessário raciocinar e
argumentar para provar por que o prazer deve ser escolhido e a dor, recusada:
pensa, de fato, que isso é objeto de sensação imediata, como o fato de o fogo
ser quente, a neve, branca, o mel, doce, coisas que não devem ser provadas com
específicos raciocínios, bastando simplesmente enunciar [...]. Dado que,
desaparecendo a faculdade de sentir, não resta nada ao homem, é preciso julgar
com base na própria natureza o que é contrário ou de acordo com a natureza: e o
que pode captar ou julgar o que se deve escolher ou rejeitar senão o prazer ou
a dor? [...][18].
Reforma do hedonismo cirenaico.
Explicarei agora
o que é o prazer em si [...]. Nós não buscamos o prazer que move o nosso
instinto natural com um sentido de delícia e que é percebido pelos nossos
sentidos como agradável, mas consideramos máximo prazer aquele cuja percepção
consiste na supressão da dor. De fato, dado que ao nos libertar da dor gozamos
da própria libertação e da sensação de ausência de qualquer incômodo, e dado
que todo gozo não é senão o prazer, assim como tudo o que nos ofende de algum
modo é dor, com razão qualquer supressão da dor pode ser chamada prazer. Assim
como quando a fome e a sede são removidas pelo alimento ou a bebida, a
supressão do sofrimento traz consequentemente o prazer, assim também em
qualquer coisa a remoção da dor traz como imediata conseqüência o prazer. Por
essa razão Epicuro refutou a tese de que possa haver um estado intermediário
entre prazer e dor: ele afirmava que o que para alguns parece um estado
intermediário, enquanto simples ausência de dor, era não só o prazer, mas
prazer supremo. Qualquer um que perceba, de fato, a sua afecção do momento,
encontra-se necessariamente num estado de prazer ou de dor; e Epicuro afirmava
que na privação da dor tem o seu cume o prazer, de modo que pode haver variação
e diferenciação dos prazeres, mas não crescimento e intensificação deles [...][19].
Dizemos, de
fato, que os prazeres e as dores da alma nascem dos do corpo [...]. Embora o
prazer da alma nos dê alegria, e o sofrimento, dor, todavia ambos atingem o
corpo e devem ser atribuídos a causas físicas; mas não por essa razão deve-se
dizer que os prazeres e as dores da alma não são muito maiores que os do corpo;
de fato; fisicamente podemos sentir só o que é presente e atual, enquanto com a
alma sentimos também as dores do passado e do futuro. No caso de sofrermos de
igual dor na alma e no corpo, uma grande intensificação da dor pode dar-nos a
impressão de que um mal eterno e sem limites pesa ameaçadoramente sobre nós; a
mesma coisa pode ser aplicada também ao prazer, que é tanto maior quanto mais
livres somos de tais temores. Em suma, é claro que o máximo prazer ou o máximo
sofrimento da alma, com relação à felicidade ou à infelicidade da vida, têm
maior peso do que um sofrimento ou um prazer de igual duração e intensidade que
residam no corpo. Ademais, ele não afirma que, eliminando o prazer, segue-se
imediatamente o sofrimento, a não ser que no lugar do prazer entre a dor; ao
contrário, afirma que há gozo imediato quando saímos da dor, mesmo que nenhum
prazer venha mover os nossos sentidos. Daí poder-se compreender quão grande
prazer existe em não provar da dor[20].
A hierarquia dos prazeres e a sabedoria.
Quando, pois, dizemos
que o prazer é um bem, não aludimos de modo algum aos prazeres dos dissolutos,
que consistem no excesso no comer e no beber, como crêem alguns que ignoram o
nosso ensinamento ou o interpretam mal; mas aludimos à ausência de dor no
corpo, à ausência de perturbação na alma. Não, portanto, as libações e as
festas ininterruptas, nem o gozo das donzelas e mulheres nem o comer peixe e
tudo mais que uma rica mesa pode oferecer, é fonte de vida feliz; mas o sóbrio
raciocinar que perscruta a fundo as causas de todo ato de escolha e de recusa,
e que afasta as falsas opiniões, pelas quais grande perturbação toma conta da
alma[21].
Um seguro
conhecimento desses [prazeres] refere todo ato de escolha ou de recusa ao fim
da saúde do corpo e da tranqüilidade da alma, uma vez que este é o fim da vida
feliz; é em vista disso que realizamos nossas ações, com o escopo de suprimir
sofrimentos e perturbações. Uma vez alcançando isso, dissolver-se á qualquer
tempestade da alma, não tendo o ser vivo outra exigência a satisfazer nem outra
coisa que possa tornar completo o bem da alma e do corpo. Temos, de fato,
necessidade do prazer quando, pela sua falta sofremos; <mas quando não
sofremos mais>, também desaparece a necessidade do prazer[22].
Absolutez do prazer.
A carne não
admite limites no prazer, e o tempo que serve para lhe dar tal prazer é, também
ele, sem limite. Mas o pensamento que aprendeu a raciocinar sobre o fim e o
limite do que é pertinente à carne, e que suprimiu o temor da eternidade, torna
possível a nós uma vida perfeita, pela qual não sentimos mais a exigência de um
tempo infinito: ele não tem aversão ao prazer nem, quando as circunstâncias nos
levam ao momento de sair desta vida, pode dizer que se vai tendo abandonado
algo do que a torna ótima[23].
A morte nada é para o homem.
Habitua-te a
pensar que a morte não é nada para nós, porque todo bem e todo mal residem na
faculdade de sentir, da qual a morte é, justamente, privação. Por isso o reto
conhecimento de que a morte não é nada para nós torna alegre a própria condição
mortal da nossa vida, não prolongando indefinidamente o tempo, mas suprimindo o
desejo de imortalidade. Nada há de temível no viver para quem se tenha
verdadeiramente convencido de que nada de temível há em não mais viver. E assim
também é estulto quem afirma temer a morte, não porque lhe trará dor ao chegar,
mas porque traz dor o fato de saber que chegará: o que não faz sofrer quando
chega, é vão que nos traga dor na esperança. O mais terrível dos males,
portanto, a morte, não é nada para nós, uma vez que, quando somos, a morte não
é quando ela chega nós não somos mais. E assim também é estulto quem afirma
temer a morte, não porque lhe trará dor ao chegar, mas porque traz dor o fato
de saber que chegará: o que não faz sofrer quando chega, é vão que nos traga
dor na espera. O mais terrível dos males, portanto, a morte, não é nada para
nós, uma vez que, quando somos, a morte não é, e quando ela chega nós não somos
mais. Ela não tem nenhum significado nem para os vivos nem para os mortos,
porque para uns não é nada e, quanto aos outros, eles não são mais. Porém, o
vulgo ora foge da morte como o maior dos males, ora, ao contrário
<busca-a> como fim <dos males> da vida. <O sábio, ao invés, não
pede para viver> nem teme não viver: não é contrário à vida, mas também não
considera que a morte seja um mal. Assim como do alimento ele não deseja o mais
abundante, mas o mais agradável, do tempo ele procura gozar não o mais longo,
mas o mais doce. Quem exorta o jovem a bem viver, o velho a bem morrer, é um
estulto; e não só pelo que a vida tem de prazeroso, mas também porque um só é o
exercício de bem viver e de bem morrer. Porém, muito pior faz quem diz: belo
seria não ter nascido ou, “apenas nascido, imediatamente atravessar as portas
do Hades”. Se está persuadido do que diz, por que não sai da vida? Isso está em
poder, se essa é a sua firme convicção. Mas se brinca, é estulto ao faze-lo com
que não convém[24].
A desvalorização do Estado e da vida
política e a exaltação do “viver escondido”.
Para todos os
seres vivos que não tiveram a capacidade de estabelecer pactos recíprocos em
vista de não provocar nem receber dano, não existe nem o justo nem o injusto; e
igualmente deve-se dizer dos povos que não puderam ou não quiseram estabelecer
pactos em vista de não provocar e não sofrer dano[25].
Em sentido
geral, o justo é igual para todos, a que é um acordo de utilidade recíproca na
vida social; mas segundo as particularidades dos lugares e das condições,
resulta que o justo não é o mesmo para todos[26].
Entre as coisas
que a lei prescreve como justas, a que é comprovada como útil pela necessidade
das relações sociais recíprocas deve ser considerada como tendo o requisito do
justo, seja esta para todos ou não; mas se estabelece uma lei que não resulte
coerente para a utilidade nas relações recíprocas, esta não possui a natureza
do justo. Se, depois, o que era justo segundo a justiça vem a decair, mesmo
tendo por certo tempo correspondido às pré-noções do justo, isso não quer dizer
que não o fosse durante aquele tempo, se não queremos nos perturbar com vãs
tagarelices, mas considerar substancialmente os fatos[27].
[1]
Porfírio, Ad Marcellam, 31, p. 297, 7ss. Nauck ( = Usener, fr. 221)
[2] Cícero,
De fin., I, 7, 22 (+ Usener, fr. 243, p. 178, 22ss.).
[3] Sexto
Empírico, Contra os matem.,, VII, 22 (= Usener, fr. 242, p. 177, 24ss.)
[4] Máximas
capitais, 24.
[5] Sexto
Empírico, Contra os matem., VII, 203-210 (= Usener, fr. 247).
[6] Epístola
a Heródoto, 75s.
[7] Sexto
Empírico, Contra os matem., VII, 211-216 (= Usener, fr. 247, p. 181, 12ss.).
[8] Epístola
a Heródoto, 39s.
[9] Epístola
a Heródoto, 40s.
[10]
Epístola a Heródoto, 54s.
[11] Cícero,
DE fato, 10, 22s. (= Usener, fr. 281, p. 200, 14ss.).
[12] Cécero,
De fato, 20, 46 (= Usener, fr. 281, p. 200, 29ss.).
[13] Os.
Plutarco, Plac. Philos., I, 4 (= Diels, Doxographi graeci, p. 289 = Usener, fr.
308).
[14]
Epístola a Pitocles, 85-87.
[15]
Epístola a Heródoto, 63.
[16]
Plutarco, Contra Colotes, 20, 1118 d (= Usener, fr. 314, p. 218, 13ss.).
[17]
Epístola a Meneceu, 123s.
[18] Cícero,
De fin., I, 9, 30 (= Usener, fr. 397, p. 264, 9ss.)..
[19] Cícero,
Den fin., I, 11, 37 (= Usener, fr. 397, p. 266, 1ss.).
[20] Cícero,
De fin., I, 17, 55ss. (= Usener, fr. 397, p. 271, 10ss.).
[21]
Epístola a Meneceu, 131s.
[22]
Epístola a Meneceu, 128.
[23] Máximas
capitais, 20.
[24]
Epístola a Meneceu, 125ss.
[25] Máximas
capitais, 32.
[26] Máximas
capitais, 36.
[27] Máximas
capitais, 37.
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