Jürgen Habermas
Síntese: Paolo Cugini
Até certo ponto, o fato do pluralismo cultural também significa que
o mundo se revela e é interpretado de modo diferente segundo as perspectivas
dos diversos indivíduos e grupos – pelo menos num primeiro momento. Uma espécie
de pluralismo interpretativo afeta a visão de mundo e a autocompreensão, bem
como a percepção dos valores e dos interesses de pessoas cuja história
individual tem suas raízes em determinadas tradições e formas de vida e é por
elas moldada.
É essa multiplicidade de perspectivas interpretativas que explica
por que o sentido do princípio de universalização não se esgota numa reflexão
monológica segundo qual determinadas máximas seriam aceitáveis como leis universais
do meu ponto de vista. É só na qualidade de participantes de um diálogo
abrangente e voltado para o consenso que somos chamados a exercer virtude cognitiva da empatia em relação às
nossas diferenças recíprocas na percepção de uma mesma situação. Devemos então
procurar saber como cada um dos demais participantes procuraria, a partir de
seu próprio ponto de vista, proceder à universalização de todos os interesses
envolvidos. O discurso prático pode, assim, ser compreendido como uma nova
forma específica de aplicação do Imperativo Categórico. Aqueles que participam
de um tal discurso não podem chegar a um acordo que atenda aos interesses de
todos, a menos que todos façam o exercício de “adotar os pontos de vista uns
dos outros”, exercício que leva ao que Piaget chama de uma progressiva
“descentralização” da compreensão egocêntrica e etnocêntrica que cada qual tem
de si mesmo e do mundo.
A única questão que poderia ainda ser motivo de controvérsia é a
seguinte: se devemos ou não conceber esses dois aspectos como aspectos a partir
dos quais pudéssemos abstrair elementos dotados de uma relação interna entre si
e que constituíssem reciprocamente um o outro. Se admitirmos isso, não
poderemos senão conceber os “indivíduos” como pessoas que se individualizam pela
socialização; tampouco poderemos rejeitar a estratégia pela qual conceituamos a
“subjetividade” como uma realização das relações epistêmicas e práticas da
pessoa consigo mesma, relações essas que nascem das relações da pessoa com
outros e encaixam-se no quadro destas.
Quanto à liberdade subjetiva, não é difícil imaginar que algumas
pessoas gozar da liberdade e outras não, ou que algumas ser mais livres do que
outras. A autonomia, ao contrário, não é um conceito distributivo e não pode
ser alcançada individualmente. Nesse sentido enfático, uma pessoa só pode ser
livre se todas as demais o forem igualmente. A idéia que quero sublinhar é a
seguinte: com sua noção de autonomia, o próprio Kant já introduz um conceito
que só pode explicitar-se plenamente dentro de uma estrutura intersubjetivista.
E como essa idéia está indissociavelmente ligada ao conceito de razão prática,
e ambas colaboram para constituir o conceito de pessoalidade, parece-me que só
podemos preservar a substância mesma da filosofia de Kant dentro de uma
estrutura que nos impeça de desenvolver a concepção de subjetividade
independentemente de quaisquer relações internas desta com a
intersubjetividade.
É evidente que
autoconsciência e a capacidade da pessoa de assumir uma posição
refletida e deliberada quanto às próprias crenças, desejos, valores e
princípios, mesmo quanto ao projeto de toda a sua vida, é um dos requisitos
necessários para o discurso prático. Há um outro requisito, porém, tão
importante quase esse. Os participantes, no momento mesmo em que encetam uma
tal prática argumentativa, têm de estar disposto a entender à exigência de
cooperar uns com os outros na busca de razões aceitáveis para os outros; e,
mais ainda, têm de estar dispostos a deixar-se afetar e motivar, em suas
decisões afirmativas e negativas, por essas razões e somente por elas.
Os pressupostos pragmáticos da discussão mostram que ambos os
requisitos podem ser satisfeitos simultaneamente. A discussão nos faculta, com efeito, ambas as
condições:
- a primeira: que cada participante individual seja livre, no
sentido de ser dotado da autoridade epistêmica da primeira pessoa, para dizer
“sim” ou “não” – concordo plenamente com o professor Ranaut, mas é preciso
atender ainda à segunda condição;
- a segunda: que essa autoridade epistêmica seja exercida de acordo
com a busca de um acordo racional; que, portanto, só sejam escolhidas soluções
que sejam racionalmente aceitáveis para todos os envolvidos e todos os que por
elas forem afetados.
Não se pode isolar a primeira condição, a da liberdade comunicativa,
da segunda, tampouco se pode atribuir a ela uma prioridade sobre a segunda, que
é a da busca de um consenso.
A divergência em questão se caracteriza pela diferença entre uma
noção mais forte e uma noção mais fraca
de racionalidade. Enquanto eu defendo uma noção abrangente da racionalidade
comunicativa, associada a um modelo holístico da justificação (cf. Vérité et
justifiction, pp. 43-74), Popper prefere a versão weberiana de uma
racionalidade finalista ou instrumental e se atém um modelo dedutivo da justificação. Disso
decorrem duas implicações que gostaria de mencionar.
A recente discussão sobre o multiculturalismo fez com que o modelo
clássico de uma cidadania “incolor” sofresse uma revisão, e Wil kymlicka
desenvolveu uma nação de cidadania multicultural com a qual concordo
plenamente. A cidadania é uma posição definida pelos direitos civis. Mas temos
de considerar também que os cidadãos são pessoas que desenvolveram sua
identidade pessoal no contexto de certas tradições, em ambientes culturais
específicos, e que precisam desses contextos para conservar sua identidade. Em
determinadas situações, devemos portanto ampliar o âmbito dos direitos civis
para que inclua também os direitos culturais. Esses são os direitos que
garantem igualmente todos e a cada um
dos cidadãos o acesso a uma tradição e à participação nas comunidades culturais
de sua escolha, para que possam estabelecer sua identidade. Esse modelo, como é
óbvio, leva em si o perigo intrínseco da fragmentação. É esse, como vocês
sabem, o argumento dos républicains franceses. Uma comunidade de suas pode se
fragmentar na multiplicidade de sua subculturas, e penso que isso só pode ser
permitido sob a condição de que todos os cidadãos possam se reconhecer numa
única cultura política que transcenda as fronteiras de suas diversas
subculturas. Para tanto, é preciso que
cultura política seja pelo menos um pouco separada das diversas
subculturas. Esta questão é, por assim dizer, mais pertinente naqueles
processos em que culturas minoritárias estão entrando em conflito com culturas
majoritárias. Do ponto de vista histórico, é evidente que a cultura da maioria
sempre determinou (refiro-me à França) a cultura política em geral. A partir do
momento em que as subculturas reprimidas tomam consciência de suas tradições
específicas e uma cultura supostamente homogênea dá lugar a uma sociedade cada
vez mais “multicultural” (no sentido atual do termo), as pressões de adaptação
tendem pelo menos a uma certa separação entre a cultura política e a cultura
majoritária. Quanto a mim, não sou mais liberal do que sou republicano – é algo
que afirmo em Droit et démocratie.
Grosso modo, penso que as
sociedades complexas contemporâneas se integram até certo ponto através d três
veículos ou mecanismo. O “dinheiro” enquanto veículo está, por assim dizer,
institucionalizado no mercado; o “poder” enquanto veículo está
institucionalizado nas organizações; e a “solidariedade” é gerada pelas normas,
pelos valores e pela comunicação. Penso que o mecanismo do mercado se
institucionaliza em função dos elementos básicos do direito privado (contrato e
propriedade). Essa institucionalização jurídica é concebida – para que os
participantes do mercado possam agir estrategicamente. Eles são livres para fazer
o que quiserem. Calculam, pensam no quanto
vão ganhar e no quanto vão perder. É claro que sei que a economia
política nasceu da filosofia moral. (págs.9, 10, 11, 12, 1314, 15 e 16, 18, 19,
34, 35, 36, 38 e 39)
Comentários Sobre Verdade
e Justificação
Realismo sem representação
- A inserção da busca dos traços universais de nossas competências
mais básicas num pano de fundo naturalista não combina com uma imagem
representacionista do conhecimento humano como o “espelho da natureza”. O
conhecimento resulta de três processos simultâneos, que se corrigem entre si: a
atitude de resolver problemas diante dos riscos impostos por um ambiente
complexo, a justificação das alegações de validade diante de argumentos opostos
e um aprendizado cumulativo que depende do reexame dos próprios erros. Se o
crescimento do conhecimento é uma função desses processos que interagem entre
si, é errôneo postular uma separação entre o momento “passivo” do “descobrir” e
os momentos “ativos” de construir, interpretar e justificar. Não há necessidade
nem possibilidade de “limpar” o conhecimento humano dos elementos subjetivos e
das mediações intersubjetivas, ou seja, dos interesses práticos e dos matizes
da linguagem.
- Isso não deve conduzir à negação da verdade e da subjetividade.
Enquanto lidamos com problemas dos quais não podemos escapar, temos de
pressupor, não só na fala como também na ação, um modo objetivo que não foi
construído por nós e que é em grande parte o mesmo para todos nós. Decerto
concordo com Putnam quando diz que não existe uma linguagem do mundo – um livro
da natureza que se importaria aos nossos espíritos. Só existem as linguagens
que inventamos a partir de diversos pontos de vista. E, dependendo das
linguagens teóricas que escolhemos, pode haver descrições diferentes – capazes
de se referir, porém, às mesmas coisas. Assim, o mundo não deve ser concebido
como a totalidade dos objetos. A esse conceito semântico do mundo como um
sistema de referências possíveis corresponde o conceito epistemológico do mundo
como a totalidade dos constrangimentos que se impõem implicitamente sobre as
diversas maneiras pelas quais podemos vir a saber o que está acontecendo no
próprio mundo. (págs. 57 e 58)
Verdade e Justificação
O conceito de conhecimento como representação é indissociável do
conceito de verdade como correspondência. Não podemos abrir mão do primeiro sem
perder também o segundo. Se a linguagem e a realidade se interpenetram de uma
maneira que para nós é indissolúvel, a verdade de uma sentença só pode ser
justificada com a ajuda de outras sentenças já tidas como verdadeiras. Esse
fato aponta para uma concepção antifundacionalista do conhecimento e d
justificação e, ao mesmo tempo, par a noção de verdade como coerência .
Entretanto, se concebêssemos a verdade como uma possibilidade justificada de
afirmação (justified assertibility), desconsideraríamos um aspecto importante
daquilo que nós efetivamente fazemos quando legamos a verdade de algo: a
verdade que alegamos para uma proposição aqui e agora, no nosso contexto e na
nossa linguagem, deve transcender qualquer contexto dado de justificação.
Segundo um forte intuição que nós temos, a verdade é uma propriedade que as
proposições não podem perder – uma vez que uma proposição é verdadeira, ela é
verdadeira para sempre e para qualquer público, não só para nós. Por outro
lado, as asserções bem justificadas podem se revelar falsas, nós associamos à
verdade de uma proposição uma alegação que aponta para além de todos os dados
justificativos disponíveis.
Assim, o pragmatismo kantiano tem de explicar o vínculo interno
entre a justificabilidade e a verdade – explicar por que, à luz das razões
disponíveis, nós podemos mesmo assim fazer uma alegação de validade
incondicional que vai além de nossas melhores justificativas. Até há pouco
tempo, eu procurava explicar a verdade em função de uma justificabilidade ideal
De lá para cá, percebi que essa assimilação não pode dar certo. Reformulei o
antigo conceito discursivo de verdade, que não é errado, mas é pelo menos
incompleto. A redenção discursiva de uma alegação de verdade conduz à
aceitabilidade racional, não à verdade. Embora nossa mente falível não possa ir
além disso, não devemos confundir as duas coisas. Resta-nos assim a tarefa de
explicar por que os participantes de uma discussão sentem-se autorizados – e
supostamente o são de fato – a aceitar como verdadeira uma proposição
controversa, bastando para isso que tenham, em condições quase ideais, esgotado
todas as razões disponíveis a favor e contra essa proposição e assim
estabelecido a aceitabilidade racional dela.
No quadro de uma crítica ao contextualismo de Richard Rorty, ofereci
uma imagem “em duas camadas” da inserção do discurso racional, ou seja, da
prática da argumentação, no contexto do mundo vital das práticas cotidianas. As
crenças desempenham diferentes papéis e têm sua verdade provada de diferentes
maneiras na ação e no discurso. Em seu mundo vital, os agentes dependem das
certezas e reagem às surpresas e decepções. Têm de lidar com um mundo que
presumem objetivo, e, em virtude desse pressuposto,
operam segundo uma distinção de senso comum entre o conhecimento e a opinião –
entre o que ´r verdade e o que só parece sê-lo. No decurso de nossa rotina
cotidiana, temos a necessidade prática de confiar intuitivamente naquilo que
consideramos incondicionalmente verdadeiro. Para dirigir o carro ou atravessar
uma ponte, não partimos de uma atitude hipotética, refletindo a cada passo sobre a confiabilidade do
know-how tecnológico ou estatístico dos projetista. Na mesma medida em que
esses hábitos e certezas são postos em xeque e tornam-se questionáveis, temos a
opção de passar do envolvimento direto nas rotinas de fala e ação para o nível
reflexivo do raciocínio, onde buscamos saber se algo é verdadeiro ou não.
Aqui, no nível do discurso racional, o modo performativo
caracterizado por uma suposição incondicional de verdade é posto em suspenso e
transformado na peculiar ambivalência dos participantes de um discurso. Eles
assumem uma atitude hipotética e falibilista em relação a alegações que, na medida
em que são problemáticas, precisam ser justificadas, mas que, por outro lado, na
medida em que pretendem uma validade incondicional, apontam para além do
contexto dado de justificação. Essa referência transcendente a algo situado no
mundo objetivo lembra os participantes que o conhecimento em pauta surgiu em
primeiro lugar do conhecimento das pessoas enquanto agentes; assim, eles não se
esquecem do papel transitório desempenhado pela argumentação no contexto mais
amplo do mundo vital. A relação intrínseca entre verdade e justificação é
revelada pela função pragmática de conhecimento que oscila entre as práticas
cotidianas e os discursos. Os discursos são como máquinas de lavar: filtram
aquilo que é racionalmente aceitável para todos. Separam as crenças questionáveis
e desqualificadas daqueles que, por um certo tempo, recebem licença para voltar
ao status de conhecimento não-problemático.
Construtivismo Moral
A ética do discurso explica o conteúdo cognitivo de sentenças
referentes ao dever sem fazer apelo a uma ordem evidente de fatos morais que se
ofereceria à nossa contemplação. Os enunciados morais, que nos dizem o que
fazer, não devem ser equiparados a afirmações descritivas que nos dizem como as
coisas se articulam entre si. A razão prática é uma faculdade de cognição moral
sem representação. A partir de um conceito discursivo da verdade, é fácil
interpretar a justiça das normas e juízos morais como um análogo da verdade,
sem por isso incorrer em implicações realistas. À luz de uma noção epistêmica
da verdade, “encaixar-se nos fatos” não é o mesmo que corresponder aos fatos.
Entretanto, depois de reformular o conceito discursivo da verdade, tenho de
enfrentar mais uma vez a questão da verdade moral.
A objetividade do protesto de um outro espírito é feita de um material diferente do que compõe a objetividade de uma realidade surpreendente. Não é a contingência cega das circunstâncias decepcionantes que assinala o fracasso dos juízos e normas morais, mas antes a dor dos ofendidos, cuja voz se faz ouvir na contradição e na indignação dos adversários que esposam orientações de valor diferentes. Esse fracasso exige uma série de processos de aprendizado pelos quais as partes conflitantes chegam a descentralizar suas perspectivas egocêntricas e etnocêntricas de tal modo que possam incluir-se reciprocamente uma à outra na construção conjunta de um mundo mais amplo de relações interpessoais legítimas. Cabe à ética do dicurso provar que a necessária dinâmica de “cada qual ver o que o outro vê” está embutida nos pressupostos pragmáticos do próprio discurso prático. (págs.63, 64,66 e 67)
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