quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Habermas- A Ética da Discussão e a Questão da Verdade

 


Jürgen Habermas




Síntese: Paolo Cugini

 

Até certo ponto, o fato do pluralismo cultural também significa que o mundo se revela e é interpretado de modo diferente segundo as perspectivas dos diversos indivíduos e grupos – pelo menos num primeiro momento. Uma espécie de pluralismo interpretativo afeta a visão de mundo e a autocompreensão, bem como a percepção dos valores e dos interesses de pessoas cuja história individual tem suas raízes em determinadas tradições e formas de vida e é por elas moldada.

É essa multiplicidade de perspectivas interpretativas que explica por que o sentido do princípio de universalização não se esgota numa reflexão monológica segundo qual determinadas máximas seriam aceitáveis como leis universais do meu ponto de vista. É só na qualidade de participantes de um diálogo abrangente e voltado para o consenso que somos chamados a exercer  virtude cognitiva da empatia em relação às nossas diferenças recíprocas na percepção de uma mesma situação. Devemos então procurar saber como cada um dos demais participantes procuraria, a partir de seu próprio ponto de vista, proceder à universalização de todos os interesses envolvidos. O discurso prático pode, assim, ser compreendido como uma nova forma específica de aplicação do Imperativo Categórico. Aqueles que participam de um tal discurso não podem chegar a um acordo que atenda aos interesses de todos, a menos que todos façam o exercício de “adotar os pontos de vista uns dos outros”, exercício que leva ao que Piaget chama de uma progressiva “descentralização” da compreensão egocêntrica e etnocêntrica que cada qual tem de si mesmo e do mundo.

A única questão que poderia ainda ser motivo de controvérsia é a seguinte: se devemos ou não conceber esses dois aspectos como aspectos a partir dos quais pudéssemos abstrair elementos dotados de uma relação interna entre si e que constituíssem reciprocamente um o outro. Se admitirmos isso, não poderemos senão conceber os “indivíduos” como pessoas que se individualizam pela socialização; tampouco poderemos rejeitar a estratégia pela qual conceituamos a “subjetividade” como uma realização das relações epistêmicas e práticas da pessoa consigo mesma, relações essas que nascem das relações da pessoa com outros e encaixam-se no quadro destas.

Quanto à liberdade subjetiva, não é difícil imaginar que algumas pessoas gozar da liberdade e outras não, ou que algumas ser mais livres do que outras. A autonomia, ao contrário, não é um conceito distributivo e não pode ser alcançada individualmente. Nesse sentido enfático, uma pessoa só pode ser livre se todas as demais o forem igualmente. A idéia que quero sublinhar é a seguinte: com sua noção de autonomia, o próprio Kant já introduz um conceito que só pode explicitar-se plenamente dentro de uma estrutura intersubjetivista. E como essa idéia está indissociavelmente ligada ao conceito de razão prática, e ambas colaboram para constituir o conceito de pessoalidade, parece-me que só podemos preservar a substância mesma da filosofia de Kant dentro de uma estrutura que nos impeça de desenvolver a concepção de subjetividade independentemente de quaisquer relações internas desta com a intersubjetividade.

É evidente que  autoconsciência e a capacidade da pessoa de assumir uma posição refletida e deliberada quanto às próprias crenças, desejos, valores e princípios, mesmo quanto ao projeto de toda a sua vida, é um dos requisitos necessários para o discurso prático. Há um outro requisito, porém, tão importante quase esse. Os participantes, no momento mesmo em que encetam uma tal prática argumentativa, têm de estar disposto a entender à exigência de cooperar uns com os outros na busca de razões aceitáveis para os outros; e, mais ainda, têm de estar dispostos a deixar-se afetar e motivar, em suas decisões afirmativas e negativas, por essas razões e somente por elas.

Os pressupostos pragmáticos da discussão mostram que ambos os requisitos podem ser satisfeitos simultaneamente. A  discussão nos faculta, com efeito, ambas as condições:

- a primeira: que cada participante individual seja livre, no sentido de ser dotado da autoridade epistêmica da primeira pessoa, para dizer “sim” ou “não” – concordo plenamente com o professor Ranaut, mas é preciso atender ainda à segunda condição;

- a segunda: que essa autoridade epistêmica seja exercida de acordo com a busca de um acordo racional; que, portanto, só sejam escolhidas soluções que sejam racionalmente aceitáveis para todos os envolvidos e todos os que por elas forem afetados.

Não se pode isolar a primeira condição, a da liberdade comunicativa, da segunda, tampouco se pode atribuir a ela uma prioridade sobre a segunda, que é a da busca de um consenso.

A divergência em questão se caracteriza pela diferença entre uma noção mais forte  e uma noção mais fraca de racionalidade. Enquanto eu defendo uma noção abrangente da racionalidade comunicativa, associada a um modelo holístico da justificação (cf. Vérité et justifiction, pp. 43-74), Popper prefere a versão weberiana de uma racionalidade finalista ou instrumental e se atém  um modelo dedutivo da justificação. Disso decorrem duas implicações que gostaria de mencionar.

A recente discussão sobre o multiculturalismo fez com que o modelo clássico de uma cidadania “incolor” sofresse uma revisão, e Wil kymlicka desenvolveu uma nação de cidadania multicultural com a qual concordo plenamente. A cidadania é uma posição definida pelos direitos civis. Mas temos de considerar também que os cidadãos são pessoas que desenvolveram sua identidade pessoal no contexto de certas tradições, em ambientes culturais específicos, e que precisam desses contextos para conservar sua identidade. Em determinadas situações, devemos portanto ampliar o âmbito dos direitos civis para que inclua também os direitos culturais. Esses são os direitos que garantem igualmente  todos e a cada um dos cidadãos o acesso a uma tradição e à participação nas comunidades culturais de sua escolha, para que possam estabelecer sua identidade. Esse modelo, como é óbvio, leva em si o perigo intrínseco da fragmentação. É esse, como vocês sabem, o argumento dos républicains franceses. Uma comunidade de suas pode se fragmentar na multiplicidade de sua subculturas, e penso que isso só pode ser permitido sob a condição de que todos os cidadãos possam se reconhecer numa única cultura política que transcenda as fronteiras de suas diversas subculturas. Para tanto, é preciso que  cultura política seja pelo menos um pouco separada das diversas subculturas. Esta questão é, por assim dizer, mais pertinente naqueles processos em que culturas minoritárias estão entrando em conflito com culturas majoritárias. Do ponto de vista histórico, é evidente que a cultura da maioria sempre determinou (refiro-me à França) a cultura política em geral. A partir do momento em que as subculturas reprimidas tomam consciência de suas tradições específicas e uma cultura supostamente homogênea dá lugar a uma sociedade cada vez mais “multicultural” (no sentido atual do termo), as pressões de adaptação tendem pelo menos a uma certa separação entre a cultura política e a cultura majoritária. Quanto a mim, não sou mais liberal do que sou republicano – é algo que afirmo em Droit et démocratie.

Grosso  modo, penso que as sociedades complexas contemporâneas se integram até certo ponto através d três veículos ou mecanismo. O “dinheiro” enquanto veículo está, por assim dizer, institucionalizado no mercado; o “poder” enquanto veículo está institucionalizado nas organizações; e a “solidariedade” é gerada pelas normas, pelos valores e pela comunicação. Penso que o mecanismo do mercado se institucionaliza em função dos elementos básicos do direito privado (contrato e propriedade). Essa institucionalização jurídica é concebida – para que os participantes do mercado possam agir estrategicamente. Eles são livres para fazer o que quiserem. Calculam, pensam no quanto  vão ganhar e no quanto vão perder. É claro que sei que a economia política nasceu da filosofia moral. (págs.9, 10, 11, 12, 1314, 15 e 16, 18, 19, 34, 35, 36, 38 e 39)

 

Comentários Sobre Verdade e Justificação

 

Realismo sem representação

 

- A inserção da busca dos traços universais de nossas competências mais básicas num pano de fundo naturalista não combina com uma imagem representacionista do conhecimento humano como o “espelho da natureza”. O conhecimento resulta de três processos simultâneos, que se corrigem entre si: a atitude de resolver problemas diante dos riscos impostos por um ambiente complexo, a justificação das alegações de validade diante de argumentos opostos e um aprendizado cumulativo que depende do reexame dos próprios erros. Se o crescimento do conhecimento é uma função desses processos que interagem entre si, é errôneo postular uma separação entre o momento “passivo” do “descobrir” e os momentos “ativos” de construir, interpretar e justificar. Não há necessidade nem possibilidade de “limpar” o conhecimento humano dos elementos subjetivos e das mediações intersubjetivas, ou seja, dos interesses práticos e dos matizes da linguagem.

- Isso não deve conduzir à negação da verdade e da subjetividade. Enquanto lidamos com problemas dos quais não podemos escapar, temos de pressupor, não só na fala como também na ação, um modo objetivo que não foi construído por nós e que é em grande parte o mesmo para todos nós. Decerto concordo com Putnam quando diz que não existe uma linguagem do mundo – um livro da natureza que se importaria aos nossos espíritos. Só existem as linguagens que inventamos a partir de diversos pontos de vista. E, dependendo das linguagens teóricas que escolhemos, pode haver descrições diferentes – capazes de se referir, porém, às mesmas coisas. Assim, o mundo não deve ser concebido como a totalidade dos objetos. A esse conceito semântico do mundo como um sistema de referências possíveis corresponde o conceito epistemológico do mundo como a totalidade dos constrangimentos que se impõem implicitamente sobre as diversas maneiras pelas quais podemos vir a saber o que está acontecendo no próprio mundo. (págs. 57 e 58)

 

Verdade e Justificação

O conceito de conhecimento como representação é indissociável do conceito de verdade como correspondência. Não podemos abrir mão do primeiro sem perder também o segundo. Se a linguagem e a realidade se interpenetram de uma maneira que para nós é indissolúvel, a verdade de uma sentença só pode ser justificada com a ajuda de outras sentenças já tidas como verdadeiras. Esse fato aponta para uma concepção antifundacionalista do conhecimento e d justificação e, ao mesmo tempo, par a noção de verdade como coerência . Entretanto, se concebêssemos a verdade como uma possibilidade justificada de afirmação (justified assertibility), desconsideraríamos um aspecto importante daquilo que nós efetivamente fazemos quando legamos a verdade de algo: a verdade que alegamos para uma proposição aqui e agora, no nosso contexto e na nossa linguagem, deve transcender qualquer contexto dado de justificação. Segundo um forte intuição que nós temos, a verdade é uma propriedade que as proposições não podem perder – uma vez que uma proposição é verdadeira, ela é verdadeira para sempre e para qualquer público, não só para nós. Por outro lado, as asserções bem justificadas podem se revelar falsas, nós associamos à verdade de uma proposição uma alegação que aponta para além de todos os dados justificativos disponíveis.

Assim, o pragmatismo kantiano tem de explicar o vínculo interno entre a justificabilidade e a verdade – explicar por que, à luz das razões disponíveis, nós podemos mesmo assim fazer uma alegação de validade incondicional que vai além de nossas melhores justificativas. Até há pouco tempo, eu procurava explicar a verdade em função de uma justificabilidade ideal De lá para cá, percebi que essa assimilação não pode dar certo. Reformulei o antigo conceito discursivo de verdade, que não é errado, mas é pelo menos incompleto. A redenção discursiva de uma alegação de verdade conduz à aceitabilidade racional, não à verdade. Embora nossa mente falível não possa ir além disso, não devemos confundir as duas coisas. Resta-nos assim a tarefa de explicar por que os participantes de uma discussão sentem-se autorizados – e supostamente o são de fato – a aceitar como verdadeira uma proposição controversa, bastando para isso que tenham, em condições quase ideais, esgotado todas as razões disponíveis a favor e contra essa proposição e assim estabelecido a aceitabilidade racional dela.

No quadro de uma crítica ao contextualismo de Richard Rorty, ofereci uma imagem “em duas camadas” da inserção do discurso racional, ou seja, da prática da argumentação, no contexto do mundo vital das práticas cotidianas. As crenças desempenham diferentes papéis e têm sua verdade provada de diferentes maneiras na ação e no discurso. Em seu mundo vital, os agentes dependem das certezas e reagem às surpresas e decepções. Têm de lidar com um mundo que presumem objetivo, e,  em virtude desse pressuposto, operam segundo uma distinção de senso comum entre o conhecimento e a opinião – entre o que ´r verdade e o que só parece sê-lo. No decurso de nossa rotina cotidiana, temos a necessidade prática de confiar intuitivamente naquilo que consideramos incondicionalmente verdadeiro. Para dirigir o carro ou atravessar uma ponte, não partimos de uma atitude hipotética, refletindo  a cada passo sobre a confiabilidade do know-how tecnológico ou estatístico dos projetista. Na mesma medida em que esses hábitos e certezas são postos em xeque e tornam-se questionáveis, temos a opção de passar do envolvimento direto nas rotinas de fala e ação para o nível reflexivo do raciocínio, onde buscamos saber se algo é verdadeiro ou não.

Aqui, no nível do discurso racional, o modo performativo caracterizado por uma suposição incondicional de verdade é posto em suspenso e transformado na peculiar ambivalência dos participantes de um discurso. Eles assumem uma atitude hipotética e falibilista em relação a alegações que, na medida em que são problemáticas, precisam ser justificadas, mas que, por outro lado, na medida em que pretendem uma validade incondicional, apontam para além do contexto dado de justificação. Essa referência transcendente a algo situado no mundo objetivo lembra os participantes que o conhecimento em pauta surgiu em primeiro lugar do conhecimento das pessoas enquanto agentes; assim, eles não se esquecem do papel transitório desempenhado pela argumentação no contexto mais amplo do mundo vital. A relação intrínseca entre verdade e justificação é revelada pela função pragmática de conhecimento que oscila entre as práticas cotidianas e os discursos. Os discursos são como máquinas de lavar: filtram aquilo que é racionalmente aceitável para todos. Separam as crenças questionáveis e desqualificadas daqueles que, por um certo tempo, recebem licença para voltar ao status de conhecimento não-problemático.

 

Construtivismo Moral

A ética do discurso explica o conteúdo cognitivo de sentenças referentes ao dever sem fazer apelo a uma ordem evidente de fatos morais que se ofereceria à nossa contemplação. Os enunciados morais, que nos dizem o que fazer, não devem ser equiparados a afirmações descritivas que nos dizem como as coisas se articulam entre si. A razão prática é uma faculdade de cognição moral sem representação. A partir de um conceito discursivo da verdade, é fácil interpretar a justiça das normas e juízos morais como um análogo da verdade, sem por isso incorrer em implicações realistas. À luz de uma noção epistêmica da verdade, “encaixar-se nos fatos” não é o mesmo que corresponder aos fatos. Entretanto, depois de reformular o conceito discursivo da verdade, tenho de enfrentar mais uma vez a questão da verdade moral.

A objetividade do protesto de um outro espírito é feita de um material diferente do que compõe a objetividade de uma realidade surpreendente. Não é a contingência cega das circunstâncias decepcionantes que assinala o fracasso dos juízos e normas morais, mas antes a dor dos ofendidos, cuja voz se faz ouvir na contradição e na indignação dos adversários que esposam orientações de valor diferentes. Esse fracasso exige uma série de processos de aprendizado pelos quais as partes conflitantes chegam a descentralizar suas perspectivas egocêntricas e etnocêntricas de tal modo que possam incluir-se reciprocamente uma à outra na construção conjunta de um mundo mais amplo de relações interpessoais legítimas. Cabe à ética do dicurso provar que a necessária dinâmica de “cada qual ver o que o outro vê” está embutida nos pressupostos pragmáticos do próprio discurso prático.   (págs.63, 64,66 e 67)

Nenhum comentário:

Postar um comentário

IMMANUEL KANT: Crítica da razão pratica 1788

    Kant foi influenciado por Rousseau sobre a necessidade de encontrar uma moral para o sujeito e o Estado. A filosofia crítica de Kant ten...