Síntese:
Paolo Cugini
1
Apaixonar-se e desapaixonar-se
E assim é numa
cultura consumista como a nossa, que favorece o produto pronto para uso
imediato, o prazer passageiro, a satisfação instantânea, resultados que não
exijam esforços prolongados, receitas testadas, garantias de seguro total e
devolução do dinheiro. A promessa de aprender a arte de amar é a oferta (falsa,
enganosa, mas que se deseja ardentemente que seja verdadeira) de construir a
“experiência amorosa” à semelhança de outras mercadorias, que fascinam e
seduzem exibindo todas essas características e prometem desejo sem ansiedade,
esforço sem suor e resultados sem esforço.
Sem humildade e
coragem não há amor. Essas duas qualidades são exigidas, em escalas enormes e
contínuas, quando se ingressa numa terra inexplorada e não-mapeada. E é a esse
território que o amor conduz ao se instalar entre dois ou mais seres humanos.
(pág.21 e 22)
O amor é uma
hipoteca baseada num futuro incerto e inescrutável.
O amor pode ser,
e freqüentemente é, tão atemorizante quanto a morte. Só que ele encobre essa
verdade com a comoção do desejo e do excitamento. Faz sentido pensar na
diferença entre amor e morte como na que existe entre atração e repulsa.
Pensando bem, contudo, não se pode ter tanta certeza disso. As promessas do
amor são, dia de regra, menos ambíguas do que suas dádivas. Assim, a tentação
de apaixonar-se é grande e poderosa, mas também o é a atração de escapar. E o
fascínio da procura de uma rosa sem espinhos nunca está muito longe, e é sempre
difícil de resistir. (pág.23)
Em suma
essência, o desejo é um impulso de destruição. E, embora de forma oblíqua, de
auto-destruição: o desejo é contaminado, desde o seu nascimento, pela vontade
de morrer. Esse é, porém, seu segredo mais bem guardado – sobretudo de si
mesmo.
O amor, por
outro lado, é a vontade de cuidar, e de preservar o objeto cuidado. Um impulso centrífugo,
ao contrário do centrípeto desejo. Um impulso de expandir-se, ir além, alcançar
o que “está lá fora”. Ingerir, absorver e assimilar o sujeito no objeto, e não
vice-versa, como no caso do desejo. Amar é contribuir para o mundo, cada
contribuição sendo o traço vivo do eu que ama. No amor, o eu é, pedaço por
pedaço, transplantado para o mundo. O eu que ama se expande doando-se ao objeto
amado. Amar diz respeito a auto-sobrevivência através da alteridade. E assim o
amor significa um estímulo a proteger, alimentar, abrigar; e também à carícia,
ao afago e ao mimo, ou a – ciumentamente – guardar, cercar, encarcerar. Amar
significa estar a serviço, colocar-se à disposição, aguardar a ordem. Mas
também pode significar expropriar e assumir a responsabilidade. Domínio
mediante renúncia, sacrifício resultando em exaltação. O amor é irmão xifópago
da sede de poder – nenhum dos dois sobreviveria à separação.
Se o desejo quer
consumir, o amor quer possuir. Enquanto a realização do desejo coincide com a
aniquilação de seu objeto, o amor cresce com a aquisição deste e se realiza na
sua durabilidade. Se o desejo se autodestrói, o amor se autoperpetua. (pág.24)
Um
relacionamento, como lhe dirá o especialista, é um investimento como todos os
outros: você entrou com tempo, dinheiro, esforços que poderia empregar para
outros fins, mas não empregou, esperando estar fazendo a coisa certa e
esperando também que aquilo que perdeu ou deixou de desfrutar acabaria, de
alguma forma, sendo-lhe devolvido – com lucro. Você compra ações e as mantém
enquanto seu valor promete crescer, e as vende prontamente quando os lucros
começam a cair ou outras ações acenam com um rendimento maior (o truque é não
deixar passar o momento em que isso ocorre). Se você investe numa relação, o
lucro esperado é, em primeiro lugar e acima de tudo, a segurança – em muitos
sentidos: a proximidade da mão amiga quando você mais precisa dela, o socorro
na aflição, a companhia na solidão, o apoio para sair de uma dificuldade, o
consolo na derrota e o aplauso na vitória; e também a gratificação que nos toma
imediatamente quando nos livramos de uma necessidade. Mas esteja alerta: quando
se entra num relacionamento, as promessas de compromisso são “irrelevantes a
longo prazo”. (pág.28 e 29)
Comprometer-se
com um relacionamento, “irrelevante a longo prazo” (fato de que ambos os lados
estão cientes!) é uma faca de dois gumes. Faz com que manter ou confiscar i
investimento seja uma questão de cálculo e decisão. Mas não há motivo para
supor que seu parceiro ou parceira não deseje, se for o caso, exercitar uma
escolha semelhante, e que não esteja livre para fazê-lo se e quando desejar.
Essa consciência aumenta ainda mais sua incerteza – e a parte acrescentada é a
mais difícil de suportar. Ao contrário de uma escolha pessoal do tipo “pegar ou
largar”, não está em seu poder evitar que o parceiro ou parceira prefira sair do
negócio. (pág.30)
Não que o seu
relacionamento vá adquirir essas assombrosas qualidades sem que algumas
condições tenham sido previamente atendidas. Observe que é você quem deve
atendê-las – outro ponto favorável a um relacionamento “de bolso”, sem dúvida,
já que é você e só você que está no controle, e nele permanece por toda a curta
vida dessa relação.
Primeira
condição: deve-se entrar no relacionamento plenamente consciente e totalmente
sóbrio. Lembre-se: nada de “amor à primeira vista” aqui. Nada de apaixonar-se...
Nada daquela súbita torrente de emoções que nos deixa sem fôlego e com o
coração aos pulos. Nem as emoções que chamamos de “amor” nem aquelas que
sobriamente descrevemos como “desejo”. Não se deixe dominar nem arrebatar, e
acima de tudo não deixe que lhe arranquem das mãos a calculadora. E não se
permita tomar o motivo da relação em que você está para entrar por aquilo que
ele não é nem deve ser. A conveniência é a única coisa que conta, e isso é algo
para uma cabeça fria, não para um coração quente (muito menos superaquecido).
Quando menos a hipoteca, menos inseguro você vai se sentir quando for exposto
às flutuações do mercado imobiliário futuro; quanto menos investir no
relacionamento, menos inseguro vai se sentir quando for exposto às flutuações
de suas emoções futuras.
Segunda
condição: mantenha-o do jeito que é. Lembre-se de que não é preciso muito tempo
para que a convivência se converta no seu oposto. Assim, não deixe o
relacionamento escapar à supervisão do chefe, não lhe permita desenvolver sua
lógica própria e, especialmente, adquirir direitos de propriedade – não deixe
que caia do bolso, que é seu lugar. Fique alerta. Não durma no ponto. Observe
atentamente até mesmo as menores mudanças naquilo que Jarvie chama de
“subcorrentes emocionais” (obviamente, as emoções tendem a se transformar em
“subcorrentes” quando deixadas livres das amarras do cálculo). Se notar alguma
coisa que você não negociou e para a qual não liga, saiba que “é hora de seguir
adiante”. É o tráfego que sustenta todo o prazer.
Mantenha o bolso
livre e preparado. Logo vai precisar pôr alguma coisa nele e – cruze os dedos –
você vai conseguir... (pág.37)
Assim, viver
juntos (“e vamos esperar para ver como isso funciona e aonde vai nos levar”)
ganha o atrativo de que carecem os laços de afinidade. Suas intenções são
modestas, não se prestam juramentos, e as declarações, quando feitas, são
destituídas de solenidade, sem fios que prendam nem mãos atadas. Com muita
freqüência, não há congregação diante da qual se deva apresentar um testemunho
nem um todo-poderoso para, lá do alto, consagrar a união. Você pede menos,
aceita menos, e assim a hipoteca a resgatar fica menor e o prazo de resgate,
menos desestimulante. O futuro parentesco, quer desejado ou temido, não lança a
sua longa sombra sobre o “Viver juntos” é por causa de, não a fim de. Todas as
opções mantêm-se abertas, não se permite que sejam limitadas por atos passados.
(pág.46)
As pontes são
inúteis, a menos que cubram totalmente a distância entre as margens – mas no
“viver juntos” a outra margem está envolta numa neblina que nunca se dissipa,
que ninguém deseja dissolver nem tenha afastar. Não há como saber o que se vai
ver quando (se) a névoa se dispersar – nem se de fato existe alguma coisa
encoberta. A outra margem está mesmo lá, ou será ela apenas uma fata morgana,
uma ilusão criada pela neblina, uma fantasia da imaginação que nos faz ver
formas bizarras nas nuvens que passam?
Viver juntos
pode significar dividir o barco, a ração e o leito da cabine. Pode significar navegar
juntos e compartilhar as alegrias e agruras da viagem. Mas nada tem a ver com a
passagem de uma margem à outra, e portanto seu propósito não é fazer o papel
das sólidas pontes (ausentes). Pode-se manter um diário de aventuras passadas,
mas nele há apenas uma ligeira referência ao itinerário e ao porto de destino.
È possível que a neblina que cobre a outra margem – desconhecida, inexplorada –
se suavize e desapareça, que venham a emergir os contornos de um porto, que se
tome a decisão de atracar, mas nada disso é, nem deve ser, anotando nos
registros de navegação. (pág.46 e 47)
2
Dentro e fora da caixa de ferramentas da
sociabilidade
Os filhos estão
entre as aquisições mais caras que o consumidor médio pode fazer ao longo de
toda a sua vida. Em termos puramente monetários, eles custam mais do que um
carro luxuoso do ano, uma volta ao mundo em um cruzeiro ou até mesmo uma
mansão. Pior ainda, o custo total tende a crescer com o tempo, e seu volume não
pode ser fixado de antemão nem estimado com algum grau de certeza. Num mundo
que não oferece mais planos de carreira e empregos estáveis, assinar um
contrato de hipoteca com prestações de valor desconhecido, a serem pagas por um
tempo indefinido, significa, para pessoas que saem de um projeto para o outro e
ganham a vida nessas mudanças, expor-se a um nível de risco atipicamente
elevado e a uma fonte prolífica de ansiedades e medo. È provável que se pense
duas vezes antes de assinar, e que, quanto mais se pense, mais se tornem óbvios
os riscos envolvidos. E nenhuma dose de determinação e ponderação poderá
remover a sombra de dúvida que tende a adulterar a alegria. Além disso, ter
filhos é, em nossa época, uma questão de decisão, não um acidente – o que
aumenta a ansiedade. Tê-los ou não é comprovadamente a decisão com maiores
conseqüências e de maior alcance que existe, e portanto também a mais
angustiante e estressante.
Ademais, nem
todos os custos são monetários, e os que não o são jamais poderão ser medidos e
calculados. Eles desafiam as capacidades e as propensões dos agentes racionais
que somos preparados para ser, e que lutamos para ser. “Formar uma família” é
como pular de cabeça em águas inexplorados e de profundidade insondável.
(pág.60)
Ter filhos
significa avaliar o bem-estar de outro ser, mais fraco e dependente, em relação
ao nosso próprio conforto. A autonomia de nossas preferências tende a ser
comprometida, e continuamente: ano após ano, dia após dia. A pessoa pode
tornar-se – horror dos horrores – “dependente”. Ter filhos pode significar a
necessidade de diminuir as ambições pessoais, “sacrificar uma carreira”, como
pessoas submetidas à avaliação de seu desempenho profissional olham de soslaio
em busca de algum sinal de lealdade dividida. Mais dolorosamente, ter filhos
significa aceitar essa dependência divisora da lealdade por um tempo
indefinido, aceitando o compromisso amplo e irrevogável, sem uma cláusula
adicional “até segunda ordem” – o tipo de obrigação que se choca com a essência
da política de vida do líquido mundo moderno e que a maioria das pessoas evita,
quase sempre com fervor, em outras manifestações de sua existência. Tomar
consciência de tal compromisso pode ser uma experiência traumática. A depressão
e as crises conjugais pós-parto parecem enfermidades específicas de nossa
“modernidade líquida”, da mesma forma que a anorexia, a bulimia e incontáveis
variedades de alergia. (pág.60 e 61)
A união é
ilusória e, no final, a experiência tende a ser frustrante, diz Fromm, por ser
separado do amor (ou seja, permitam-me explicar, do tipo de relacionamento
Fürsein; de um compromisso intencionalmente duradouro e indefinido com o
bem-estar do parceiro). Na visão de Fromm, o sexo só pode ser um instrumento de
fusão genuína – em vez de uma efêmera, dúbia e, em última instância,
autodestrutiva impressão de fusão – graças a sua conjunção com o amor. Qualquer
que seja a capacidade geradora de fusão que o sexo possa ter, ela vem de sua
“camaradagem” com o amor. (pág.62 e 63)
A vitória do
sexo na grande guerra de independência tem sido, na melhor das circunstâncias,
uma vitória de Pirro. Os remédios maravilhosos parecem produzir moléstias e
sofrimentos não menos numerosos e comprovadamente mais agudos do que aqueles
que prometiam curar. (pág.63)
É correto,
talvez até estimulante e ao mesmo tempo maravilhoso, que o sexo seja assim
liberado. O problema é como mantê-lo no lugar quando o lastro foi lançado ao
mar; como mantê-lo na fôrma se não se dispões mais das estruturas. Voar
suavemente traz contentamento, voar sem direção provoca estresse. A mudança é jubilosa;
a volatilidade, incômoda. A insustentável leveza do sexo? (pág.64)
Nos compromissos
duradouros, a líquida razão moderna enxerga a opressão; no engajamento
permanente percebe a dependência incapacitante. Essa razão nega direitos aos
vínculos e liames, especiais ou temporais. Eles não têm necessidade ou uso que
possam ser justificados pela líquida racionalidade moderna dos consumidores.
Vínculos e liames tornam “impuras” as relações humanas – como o fariam com qualquer
ato de consumo que presuma a satisfação instantânea e, de modo semelhante, a
instantânea obsolescência do objeto consumido. (pág.65)
A vida
consumista favorece a leveza e a velocidade. E, também a novidade e a variedade
que elas promovem e facilitam. É a rotatividade, não o volume de compras, que
mede o sucesso na vida do homo consumens.
Em geral, a
capacidade de utilização de um bem sobrevive à sua utilidade para o consumidor.
Mas, usada repetidamente, a mercadoria adquirida impede a busca por variedade,
e a cada uso a aparência de novidade vai se desvanecendo e se apagando. Pobres
daqueles que, em razão da escassez de recursos, são condenados a continuar
usando bens que não mais contêm a promessa de sensações novas e inéditas.
Pobres daqueles que, pela mesma razão permanecem presos a um único bem em vez
de flanar entre um sortimento amplo e aparentemente inesgotável. Tais pessoas
são os excluídos na sociedade de consumo, os consumidores falhos, os
inadequados e os incompetentes, os fracassados – famintos definhando em meio à
opulência do banquete consumista.
Aqueles que não
precisam se agarrar aos bens por muito tempo, e decerto não por tempo
suficiente para permitir que o tédio se instale, são os bem-sucedidos. (pág.67
e 66)
Em si mesma, a
união sexual é de curta duração – na vida dos parceiros, é um episódio. Como
aponta Milan Kundera, um episódio “não é a conseqüência inevitável de uma ação
precedente, nem a causa do que virá em seguida”. A imaculada conceição cum
esterilidade, a ausência essencial da possibilidade de contágio, é uma das belezas
do episódio – e assim, podemos dizer, também é a beleza de um encontro sexual,
contanto que este continue sendo um episódio. O problema, porém, é que “ninguém
pode garantir que um evento totalmente episódio não contenha em si uma força
capaz de algum dia transformar-se, inesperadamente, na causa de eventos
futuros”. Para resumir uma longa história: “nenhum episódio está condenando a
priori a permanecer eternamente como um episódio”. Nenhum episódio está a salvo
de suas conseqüências. A insegurança decorrente é eterna. A incerteza nunca se
dissipará de modo total e irrevogável. Pode apenas ser suspensa por um tempo
indeterminado – mas o próprio recipiente da suspensão é assaltado por dúvidas e
assim se torna outra fonte de cansativa insegurança. (pág.70)
O homo sexualis
está condenado a permanecer para sempre incompleto e irrealizado – mesmo numa
era em que o fogo sexual, que no passado se teria arrefecido, agora deve ser,
espera-se, novamente insuflado pelos esforços conjuntos de nossas ginásticas
miraculosas e de nossos remédios maravilhosos. A viagem nunca termina, o
itinerário é recomposto a cada estação e o destino final é sempre desconhecido.
(pág.74)
O homo sexualis
não é uma condição, muito menos uma condição permanente e imutável, mas um
processo, cheio de tentativas e erros, viagens exploratórias arriscadas e
descobertas ocasionais, intercaladas por numerosos tropeços, arrependimentos
por oportunidades perdidas e alegrias por prazeres ilusórios. (pág.75)
Em nossa líquida
era moderna, os poderes constituídos não mais parecem interessantes em traçar a
fronteira entre o sexo “correto” e o “perverso”. A razão talvez seja a rápida
queda da demanda pelo emprego da energia sexual economizada em favor de “causas
civilizantes”. (pág.76)
Communitas em oferta
Uma chamada não
foi respondida? Uma mensagem não foi retornada? Também não há motivos para
preocupação. Existem muitos outro números de telefones na lista, e
aparentemente não há limite para o volume de mensagens que você pode, com a
ajuda de algumas teclas diminutas, comprimir naquele pequeno objeto que se
encaixa tão bem em sua mão. Pense nisto (quer dizer, se houver tempo para
pensar): é absolutamente improvável chegar ao fim de seu catálogo portátil ou
digitar todas as mensagens possíveis. Há sempre mais conexões para serem usadas
– e assim não tem grande importância quantas delas se tenham mostrado frágeis e
passíveis de ruptura. O ritmo e a velocidade do uso e do desgaste tampouco
importam. Cada conexão pode ter vida curta, mas seu excesso é indestrutível. Em
meio à eternidade dessa rede imperecível, você pode se sentir seguro diante da
fragilidade irreparável de cada conexão singular e transitória.
Dentro da rede,
você pode sempre correr em busca de abrigo quando a multidão à sua volta ficar
delirante demais para o seu gosto. Graças ao que se torna possível desde que
seu celular esteja escondido com segurança no seu bolso, você se destaca da
multidão – e destacar-se é a ficha de inscrição para sócio, o termo de admissão
nessa multidão. (pág.79)
O advento da
proximidade virtual torna as conexões humanas simultaneamente mais freqüentes e
mais banais, mais intensas e mais breves. As conexões tendem a ser
demasiadamente breves e banais para poderem condenar-se em laços. Centradas no
negócio à ,ao, estão protegidas da possibilidade de extrapolar e engajar os
parceiros além do tempo e do tópico da mensagem digitada e lida – ao contrário
daquilo que os relacionamentos humanos, notoriamente difusos e vorazes, são
conhecidos por perpetrar. Os contatos exigem menos tempo e esforço para serem
estabelecidos, e também para serem rompidos. A distância não é obstáculo para
se entrar em contato – mas entrar em contato não é obstáculo para se permanecer
à parte. Os espasmos da proximidade virtual terminam, idealmente, sem sobras
nem sedimentos permanentes. Ela pode ser encerrada, real e metaforicamente, sem
nada mais que o apertar de um botão.
A realização
mais importante da proximidade virtual parece ser a separação entre comunicação
e relacionamento. Diferentemente da antiquada proximidade topográfica, ela não
exige laços estabelecidos de antemão nem resulta necessariamente em seu
estabelecimento. “Estar conectado” é menos custoso do que “estar engajado” –
mas também consideravelmente menos produtivo em termos da construção e
manutenção de vínculos. (pág.82)
Os usuários dos
recursos de namoro on-line podem namorar com segurança, protegidos por saberem
que sempre podem retornar ao mercado para outra rodada de compras. Na Internet
pode-se namorar “sem medo de ‘repercussões’ no mundo real”. Ou, de qualquer
maneira, é assim que a pessoa se sente ao conseguir parceiros na Internet.
(pág.85)
Terminar quando
se deseje – instantaneamente, sem confusão, sem avaliação de perdas e sem
remorsos – é a principal vantagem do namoro pela internet. Reduzir riscos e,
simultaneamente, evitar a perda de opções é o que restou de escolha racional
num mundo de oportunidades fluidas, valores cambiantes e regras instáveis. E o
namoro pela internet, ao contrário da incômoda negociação de compromissos
mútuos, se ajusta perfeitamente (ou quase) aos novos padrões de escolha
racional. (pág.85)
Os shopping
centers muito têm feito para reclassificar o labor da sobrevivência como
diversão e recreação. O que costumava ser sofrido e suportado com uma mistura
de ressentimento e repulsa, sob a pressão refratária da necessidade, tem
adquirido os poderes sedutores de uma promessa de prazeres incalculáveis sem a
adição de riscos igualmente incalculáveis. O que os shopping centers fizeram
pelas tarefas da sobrevivência diária, o namoro pela internet tem feito pela
negociação de parceria. Mas, tal como o alívio da necessidade e as pressões da
“pura sobrevivência” eram condições necessárias para o sucesso dos shopping
centers, assim também o namoro pela internet dificilmente teria êxito se não
tivesse sido ajudado e favorecido por terem sido eliminados da lista de suas
condições necessárias o engajamento full-time, o compromisso e a obrigação “de
estar à disposição quando o outro precisa”.
A
responsabilidade por eliminar essas condições não pode ser atribuída à porta
virtual do namoro eletrônico. Muito mais tem acontecido no caminho em direção à
líquida e individualizada sociedade moderna para tornar os compromissos de
longo prazo pouco numerosos, o engajamento a longo prazo uma rara expectativa e
a obrigação de assistência mútua incondicional uma perspectiva que nem é
realista nem percebida como digna de grandes esforços. (pág.85 e 86)
O único
personagem que os teóricos consideram merecedor de atenção, porque é a ele que
se atribui o mérito de “manter a economia em movimento” e de lubrificar as
rodas do crescimento econômico, é o homo oeconomicus – o ator econômico
solitário, auto-referente e autocentrado que persegue o melhor ideal e se guia
pela “escolha racional”, preocupado em não cair nas garras de quaisquer emoções
que resistam a ser traduzidas em ganhos monetários e vivendo num mundo cheio de
outros personagens que compartilham todas essas virtudes, e nada além. O único
personagem que os praticantes do mercado podem e querem reconhecer e acolher é
o homo consumens o solitário, auto-referente e autocentrado comprador que
adotou a busca pela melhor barganha como uma cura para a solidão e não conhece
outra terapia; um personagem para quem o enxame de clientes do shopping center
é a única comunidade conhecida e necessária e que vive num mundo povoado por
outros personagens que compartilham todas essas virtudes com ele, e nada além.
(pág.89)
3
Sobre a dificuldade de amar o próximo
Para termos
amor-próprio, precisamos ser amados. A recusa do amor – a negação do status de
objeto digno do amor – alimenta a auto-aversão. O amor-próprio é construído a
partir do amor que nos é oferecido por outros. Se na sua construção forem
usados substitutos, eles devem parecer cópias, embora fraudulentas, desse amor.
Outros devem nos amar primeiro para que comecemos a amar a nós mesmos.
(pág.100)
O valor, o mais
precioso dos valores humanos, o atributo sine qua non de humanidade, é uma vida
de dignidade, não a sobrevivência a qualquer custo. (pág.105)
Uma lição
terrível e atemorizante, mas nem por isso aprendida, apropriada, memorizada e
aplicada com menos avidez. Para ser adequada à doação, essa lição deve, em
primeiro lugar, ser rigorosamente despida de todas as conotações éticas, até a
mais crua essência do jogo de soma zero da sobrevivência. Viver significa
sobreviver. O mais forte vive. Quem atacar primeiro sobrevive. Desde que você
seja o mais forte, pode escapar impune, não importa o que tenha feito ao fraco.
O fato de que a desumanização das vitimas desumaniza – devasta moralmente –
seus vitimizadores é desconsiderado como um detalhe irritante. Quer dizer, se
não tiver sido silenciosamente omitido. O que conta é chegar ao topo e lá
permanecer. Sobreviver – manter-se vivo – é um valor aparentemente não
prejudicado nem maculado pela desumanidade de uma vida dedicada à
sobrevivência. Vale a pena perseguí-lo por si mais profundas e incorrigíveis
que sejam as formas como isso pode depravar e degradar os vitoriosos.
Essa
horripilante lição do Holocausto, a mais desumana, completa-se com um
inventário das dores que se pode infligir aos fracos a fim de afirmar a própria
força. (pág.106)
Como escapar à
dor e à humilhação? A forma natural é matar ou humilhar seu algoz ou benfeitor.
Ou encontrar outra pessoa, mais fraca, para triunfar sobre ela. (pág.107)
Se você não for
mais duro e menos escrupuloso do que todos os outros, será liquidado por eles,
com ou sem remorso. Estamos de volta à triste verdade do mundo darwiniano: é o
mais apto que invariavelmente sobrevive. Ou melhor, a sobrevivência é a
derradeira prova de aptidão. (pág.110)
“Homo homini
lupus é uma das máximas mais inabaláveis da moral eterna. Em cada um de nossos
vizinhos tememos um lobo... Somos tão pobres, tão fracos, tão facilmente
arruináveis e destrutíveis! Como podemos deixar de ter medo? ... Enxergamos o
perigo, apenas o perigo...”[1]
Eles insistiram – como o fez Shestov e como se tornou senso comum, graças a
programas do tipo Big Brother – em afirmar que este é um mundo duro, feito para
pessoas duras: um mundo de indivíduos relegados a se basearem unicamente em
seus próprios ardis, tentando ultrapassar e superar uns aos outros. Ao conhecer
um estranho você precisa em primeiro lugar de vigilância, e em segundo e
terceiro lugares de vigilância. Aproximar-se, colocar-se ombro e trabalhar em
equipe fazem muito sentido enquanto o ajudam a avançar em seu próprio caminho.
Mas perdem a razão de ser quando não trazem mais benefícios, ou quando estes –
esperada ou apenas possivelmente – são menores que os obtidos evitando-se
compromissos e cancelando-se obrigações. (pág.110 e 111)
O produto
excedente da nova extraterritorialidade-mediante-a-conectividade dos espaços
urbanos privilegiados, habitados e usados pela elite global são as áreas desconectadas
e abandonadas – as “alas fantasmas” de Michael Schwarzer, onde “os sonhos foram
substituídos por pesadelos e o perigo e a violência são mais banais do que em
outros lugares”[2] .
Para manter as distâncias intransponíveis e afastar os perigos de vazamento e
contaminação da pureza regional, os instrumentos acessíveis são impor a
tolerância zero e exilar os sem-teto dos espaços em que podem ganhar a vida
(mas no quais também se fazem atrevida e exasperantemente visíveis) para
outros, afastados, nos quais não podem fazer nem uma coisa nem outra. (pág.120)
O medo do
desconhecido, mesmo se subliminar, busca desesperadamente escoadouros
confiáveis. As ansiedades acumuladas tendem a ser descarregadas sobre os
“forasteiros”, eleito para exemplificar a “estranheza”, a falta de
familiaridade, a opacidade do ambiente de vida, a imprecisão do risco e da
ameaça em si. Quando se expulsa das casas e das lojas uma categoria selecionada
de “forasteiros”, o fantasma atemorizante da incerteza é exorcizado por algum tempo
– queima-se simbolicamente o monstro assustador da insegurança. Cercas
cuidadosamente erguidas contra aqueles que se fazem passar por pessoas “em
busca de asilo” e migrantes “meramente econômicos” trazem esperança de
fortalecer uma existência incerta, errática e imprevisível. Mas a líquida vida
moderna tende a permanecer inconsistente e caprichosa, sejam quais forem os
apuros infligidos aos “forasteiros indesejáveis”, e portanto o alívio é
momentâneo, e as esperanças investidas nas “medidas duras e decisivas” se
desvanecem tão logo se apresentam.
O estranho é,
por definição, um agente movido por intenções que na melhor das hipóteses se
poderia adivinhar, mas nunca saber com certeza. O estranho é a variável
desconhecida em todas as equações calculadas quando se tomam decisões sobre o
que fazer e como se comportar. E assim, mesmo que não se tornem objetos de
agressão ostensiva nem sejam aberta e ativamente ofendidos, a presença de
estranhos dentro do campo de ação permanece desconfortável, na medida em que dificulta
a tarefa de predizer os efeitos do procedimento e suas chances de sucesso ou
fracasso. (pág.129 e 130)
A mixofobia é
uma reação altamente previsível e difundida entre os diversos tipos humanos e
estilos de vida capazes de confundir a mente, provocar calafrios e colapso
nervoso, de que estão repletas as ruas das cidades contemporâneas, assim como
seus distritos residenciais mais “comuns” (leia-se: não protegidos por “espaços
interditados”). Conforme a polifonia e a diversificação cultural do ambiente
urbano na era da globalização entram em cena – com a probabilidade de se
intensificarem no curso do tempo – as, tensões oriundas da
exasperante/cpnfusa/irritante estranheza desse cenário provavelmente
continuarão a estimular impulsos segregacionistas.
Expressar tais
impulsos pode (de modo temporário, mas repetido) aliviar tensões crescentes.
Isso oferece uma esperança: diferenças excludentes e desconcertadas podem ser
incontestáveis e refratárias, mas talvez seja possível extrair o veneno do
ferrão atribuindo a cada forma de vida um espaço físico distinto, ao mesmo
tempo incluso e excludente, bem demarcado e protegido. Evitando-se essa solução
radical, talvez se possa pelo menos assegurar para si mesmo, para os amigos,
parentes e outras “pessoas como nós”, um território livre daquela miscelânea
que irremediavelmente aflige outras áreas urbanas. A mixofobia se manifesta no
impulso que conduz a ilhas de semelhança e mesmidade em meio a um oceano de
variedade e diferença. (pág.133)
4
Convívio destruído
Pessoas desgastadas
e mortalmente fatigadas em conseqüências de testes de adequação eternamente
inconclusos, assustadas até a alma pela misteriosa e inexplicável precariedade
de seus destinos e pelas névoas globais que ocultam suas esperanças, buscam
desesperadamente os culpados por seus problemas e tribulações. Encontram-nos,
sem surpresa, sob o poste de luz mais próximo – o único ponto obrigatoriamente
iluminado pelas forças da lei e da ordem: “São os criminosos que nos deixam
inseguros, são os forasteiros que trazem o crime”. E assim “é reunindo,
encarcerando e deportado os forasteiros que vamos restaurar a segurança perdida
ou roubada”. (pág.143)
Os refugiados se
tornaram, à imagem caricatural da nova elite do poder no mundo globalizado, a
epítome daquela extraterritorialidade em que se fincam as raízes da atual
precarité da condição humana, que tem lugar de destaque entre os temores e
ansiedades de nossos dias. Esses temores e ansiedades, procurando em vão por
outros escoadouros, despejaram-se sobre o ressentimento e o medo que os
refugiados provocam. Não podem se desativados nem dispersos num confronto
direto com a outra encarnação da extraterritorialidade, a elite global
flutuando além do alcance do controle humano, poderosa demais para que se possa
enfrentá-la. Os refugiados, ao contrário, são um alvo fixo em que se
descarregar o excesso de angústia... (pág.164)
A permanência da
transitoriedade, a durabilidade do transitório, a determinação objetiva não
refletida na seqüencialidade subjetiva das ações, o papel social perpetuamente
subdefinido, ou mais corretamente uma inserção no fluxo da existência sem a
âncora de um papel social – todos esses traços da líquida vida moderna, assim
como outros correlatos, foram expostos e documentados nos achados de Agier. Na
extraterritorialidade territorialmente fixada do campo de refugiados, eles
aparecem numa forma muito mais extrema, não-diluída e assim mais claramente
visível do que em qualquer outro segmento da sociedade contemporânea.
Pode-se imaginar
em que medida os campos de refugiados seriam laboratórios onde (talvez de forma
inadvertida, mas nem por isso menos poderosa) o novo padrão de vida
líquido-moderno, “permanentemente transitório”, está sendo testado e ensaiado.
Em que medida as
nowherevilles dos refugiados seriam exemplos antecipados do mundo que está por
vir, e seus internos lançados/empurrados/forçados a assumir o papel de
exploradores pioneiros? Questões desse tipo só podem ser respondidas em
retrospecto – se é que podem. (pág.173)
A verdade é um
conceito eminentemente agonístico. Nasce do confronto entre crenças que
resistem à conciliação e entre seus portadores relutantes em chegar a um
acordo. Sem esse confronto, a idéia de “verdade” dificilmente teria ocorrido,
para começo de conversa. “Saber como ir em frente” seria tudo de que se
precisaria – e o ambiente em que se faz necessário “ir em frente”, a menos que
desafiado e assim tornado “estranho” e esvaziado de sua “auto-evidência”, tende
a se completar com a inequívoca prescrição de “ir em frente”. Debater a verdade
é uma resposta à “dissonância cognitiva”, Ela é instigada pelo impulso a
desvalorizar e desempoderar (despontencializar) outra leitura do ambiente e/ou
outra prescrição de ação que lance dúvida sobre a leitura e a rotina de ação de
alguém. Esse impulso crescerá de intensidade quanto mais as objeções/obstáculos
se tornarem vociferantes e difíceis de abafar. O interesse em debater a
verdade, e o principal propósito de sua auto-afirmação, é prova de que o
parceiro/adversário está errado e de que, portanto, as objeções são inválidas e
podem ser desprezadas.
Quando se trata
de discutir a verdade, as chances de uma “comunicação não-distorcida”, tal como
foi postulado por Jürgen Habermas, se tornam diminutas.[3]
Os protagonistas dificilmente resistirão à tentação de recorrer a outros meios,
mais efetivos, que não a elegância lógica e o poder persuasivo de seus
argumentos. Em vez disso, farão o possível para tornar os argumentos do
adversário inconseqüentes, de preferência inaudíveis ou, melhor ainda, jamais
vocalizado, pela desqualificação daqueles que, se pudessem, os vocalizariam. Um
argumento que tem grande chance de ser apresentado é o da inelegibilidade do
adversário como interlocutor pelo fato de ele ser inepto, mentiroso ou
inconfiável, malintencionado ou claramente inferior. (pág.179 e 180)
[1] Leon Shestov, “All things are
perishble”, in Bernard Martin (org.), A Shestov Anthology. Columbus, Ohio State
University Press, 1970, p.70.
[2] Carl Schimitt, Politische
Theologie. Vier Kapitel sur Lehre Von der Souveränität. Berlim, Duncker am Humboldt, 1922, p.19-21. Ver a discurssão em
Giorgio Agamben, Homo sacer, op.cit [Ed. Ing.: Homo sacer, op. Cit., p.15ss.]
[3] Jürgen Habermas observa corretamente que a expectativa de consenso
universal é construída em qualquer conversa e que sem ela a expectativa de
comunicação seria totalmente inconcebível. O que ele não diz, porém, é que, se
existe a crença de que o consenso será atingido em circunstâncias ideais em
função de “uma única verdade” à espera de se descoberta e aceita como tal,
então algo mais se “embute” em qualquer ato de comunicação: a tendência a
tornar redundantes todos os participantes da conversa, exceto um, juntamente com
a variedade de visões que eles sustentam e defendem. Odo Marquard, em Abschied
vom Prinzipiellen (Leipzing, Philipp Reclam, 1991), sugere que por essa
interpretação o ideal de “comunicação não-distorcida” parece uma vingança
póstuma do solipsismo...
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