quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Zygmunt Bauman- Amor-Líquido. Sobre A Fragilidade Dos Laços Humanos

 



Síntese: Paolo Cugini

 

1

Apaixonar-se e desapaixonar-se

 

E assim é numa cultura consumista como a nossa, que favorece o produto pronto para uso imediato, o prazer passageiro, a satisfação instantânea, resultados que não exijam esforços prolongados, receitas testadas, garantias de seguro total e devolução do dinheiro. A promessa de aprender a arte de amar é a oferta (falsa, enganosa, mas que se deseja ardentemente que seja verdadeira) de construir a “experiência amorosa” à semelhança de outras mercadorias, que fascinam e seduzem exibindo todas essas características e prometem desejo sem ansiedade, esforço sem suor e resultados sem esforço.

Sem humildade e coragem não há amor. Essas duas qualidades são exigidas, em escalas enormes e contínuas, quando se ingressa numa terra inexplorada e não-mapeada. E é a esse território que o amor conduz ao se instalar entre dois ou mais seres humanos. (pág.21 e 22)

O amor é uma hipoteca baseada num futuro incerto e inescrutável.

O amor pode ser, e freqüentemente é, tão atemorizante quanto a morte. Só que ele encobre essa verdade com a comoção do desejo e do excitamento. Faz sentido pensar na diferença entre amor e morte como na que existe entre atração e repulsa. Pensando bem, contudo, não se pode ter tanta certeza disso. As promessas do amor são, dia de regra, menos ambíguas do que suas dádivas. Assim, a tentação de apaixonar-se é grande e poderosa, mas também o é a atração de escapar. E o fascínio da procura de uma rosa sem espinhos nunca está muito longe, e é sempre difícil de resistir. (pág.23)

Em suma essência, o desejo é um impulso de destruição. E, embora de forma oblíqua, de auto-destruição: o desejo é contaminado, desde o seu nascimento, pela vontade de morrer. Esse é, porém, seu segredo mais bem guardado – sobretudo de si mesmo.

O amor, por outro lado, é a vontade de cuidar, e de preservar o objeto cuidado. Um impulso centrífugo, ao contrário do centrípeto desejo. Um impulso de expandir-se, ir além, alcançar o que “está lá fora”. Ingerir, absorver e assimilar o sujeito no objeto, e não vice-versa, como no caso do desejo. Amar é contribuir para o mundo, cada contribuição sendo o traço vivo do eu que ama. No amor, o eu é, pedaço por pedaço, transplantado para o mundo. O eu que ama se expande doando-se ao objeto amado. Amar diz respeito a auto-sobrevivência através da alteridade. E assim o amor significa um estímulo a proteger, alimentar, abrigar; e também à carícia, ao afago e ao mimo, ou a – ciumentamente – guardar, cercar, encarcerar. Amar significa estar a serviço, colocar-se à disposição, aguardar a ordem. Mas também pode significar expropriar e assumir a responsabilidade. Domínio mediante renúncia, sacrifício resultando em exaltação. O amor é irmão xifópago da sede de poder – nenhum dos dois sobreviveria à separação.

Se o desejo quer consumir, o amor quer possuir. Enquanto a realização do desejo coincide com a aniquilação de seu objeto, o amor cresce com a aquisição deste e se realiza na sua durabilidade. Se o desejo se autodestrói, o amor se autoperpetua. (pág.24)

Um relacionamento, como lhe dirá o especialista, é um investimento como todos os outros: você entrou com tempo, dinheiro, esforços que poderia empregar para outros fins, mas não empregou, esperando estar fazendo a coisa certa e esperando também que aquilo que perdeu ou deixou de desfrutar acabaria, de alguma forma, sendo-lhe devolvido – com lucro. Você compra ações e as mantém enquanto seu valor promete crescer, e as vende prontamente quando os lucros começam a cair ou outras ações acenam com um rendimento maior (o truque é não deixar passar o momento em que isso ocorre). Se você investe numa relação, o lucro esperado é, em primeiro lugar e acima de tudo, a segurança – em muitos sentidos: a proximidade da mão amiga quando você mais precisa dela, o socorro na aflição, a companhia na solidão, o apoio para sair de uma dificuldade, o consolo na derrota e o aplauso na vitória; e também a gratificação que nos toma imediatamente quando nos livramos de uma necessidade. Mas esteja alerta: quando se entra num relacionamento, as promessas de compromisso são “irrelevantes a longo prazo”. (pág.28 e 29)

Comprometer-se com um relacionamento, “irrelevante a longo prazo” (fato de que ambos os lados estão cientes!) é uma faca de dois gumes. Faz com que manter ou confiscar i investimento seja uma questão de cálculo e decisão. Mas não há motivo para supor que seu parceiro ou parceira não deseje, se for o caso, exercitar uma escolha semelhante, e que não esteja livre para fazê-lo se e quando desejar. Essa consciência aumenta ainda mais sua incerteza – e a parte acrescentada é a mais difícil de suportar. Ao contrário de uma escolha pessoal do tipo “pegar ou largar”, não está em seu poder evitar que o parceiro ou parceira prefira sair do negócio. (pág.30)

Não que o seu relacionamento vá adquirir essas assombrosas qualidades sem que algumas condições tenham sido previamente atendidas. Observe que é você quem deve atendê-las – outro ponto favorável a um relacionamento “de bolso”, sem dúvida, já que é você e só você que está no controle, e nele permanece por toda a curta vida dessa relação.

Primeira condição: deve-se entrar no relacionamento plenamente consciente e totalmente sóbrio. Lembre-se: nada de “amor à primeira vista” aqui. Nada de apaixonar-se... Nada daquela súbita torrente de emoções que nos deixa sem fôlego e com o coração aos pulos. Nem as emoções que chamamos de “amor” nem aquelas que sobriamente descrevemos como “desejo”. Não se deixe dominar nem arrebatar, e acima de tudo não deixe que lhe arranquem das mãos a calculadora. E não se permita tomar o motivo da relação em que você está para entrar por aquilo que ele não é nem deve ser. A conveniência é a única coisa que conta, e isso é algo para uma cabeça fria, não para um coração quente (muito menos superaquecido). Quando menos a hipoteca, menos inseguro você vai se sentir quando for exposto às flutuações do mercado imobiliário futuro; quanto menos investir no relacionamento, menos inseguro vai se sentir quando for exposto às flutuações de suas emoções futuras.

Segunda condição: mantenha-o do jeito que é. Lembre-se de que não é preciso muito tempo para que a convivência se converta no seu oposto. Assim, não deixe o relacionamento escapar à supervisão do chefe, não lhe permita desenvolver sua lógica própria e, especialmente, adquirir direitos de propriedade – não deixe que caia do bolso, que é seu lugar. Fique alerta. Não durma no ponto. Observe atentamente até mesmo as menores mudanças naquilo que Jarvie chama de “subcorrentes emocionais” (obviamente, as emoções tendem a se transformar em “subcorrentes” quando deixadas livres das amarras do cálculo). Se notar alguma coisa que você não negociou e para a qual não liga, saiba que “é hora de seguir adiante”. É o tráfego que sustenta todo o prazer.

Mantenha o bolso livre e preparado. Logo vai precisar pôr alguma coisa nele e – cruze os dedos – você vai conseguir... (pág.37)

Assim, viver juntos (“e vamos esperar para ver como isso funciona e aonde vai nos levar”) ganha o atrativo de que carecem os laços de afinidade. Suas intenções são modestas, não se prestam juramentos, e as declarações, quando feitas, são destituídas de solenidade, sem fios que prendam nem mãos atadas. Com muita freqüência, não há congregação diante da qual se deva apresentar um testemunho nem um todo-poderoso para, lá do alto, consagrar a união. Você pede menos, aceita menos, e assim a hipoteca a resgatar fica menor e o prazo de resgate, menos desestimulante. O futuro parentesco, quer desejado ou temido, não lança a sua longa sombra sobre o “Viver juntos” é por causa de, não a fim de. Todas as opções mantêm-se abertas, não se permite que sejam limitadas por atos passados. (pág.46)

As pontes são inúteis, a menos que cubram totalmente a distância entre as margens – mas no “viver juntos” a outra margem está envolta numa neblina que nunca se dissipa, que ninguém deseja dissolver nem tenha afastar. Não há como saber o que se vai ver quando (se) a névoa se dispersar – nem se de fato existe alguma coisa encoberta. A outra margem está mesmo lá, ou será ela apenas uma fata morgana, uma ilusão criada pela neblina, uma fantasia da imaginação que nos faz ver formas bizarras nas nuvens que passam?

Viver juntos pode significar dividir o barco, a ração e o leito da cabine. Pode significar navegar juntos e compartilhar as alegrias e agruras da viagem. Mas nada tem a ver com a passagem de uma margem à outra, e portanto seu propósito não é fazer o papel das sólidas pontes (ausentes). Pode-se manter um diário de aventuras passadas, mas nele há apenas uma ligeira referência ao itinerário e ao porto de destino. È possível que a neblina que cobre a outra margem – desconhecida, inexplorada – se suavize e desapareça, que venham a emergir os contornos de um porto, que se tome a decisão de atracar, mas nada disso é, nem deve ser, anotando nos registros de navegação. (pág.46 e 47)

 

2

Dentro e fora da caixa de ferramentas da sociabilidade

 

Os filhos estão entre as aquisições mais caras que o consumidor médio pode fazer ao longo de toda a sua vida. Em termos puramente monetários, eles custam mais do que um carro luxuoso do ano, uma volta ao mundo em um cruzeiro ou até mesmo uma mansão. Pior ainda, o custo total tende a crescer com o tempo, e seu volume não pode ser fixado de antemão nem estimado com algum grau de certeza. Num mundo que não oferece mais planos de carreira e empregos estáveis, assinar um contrato de hipoteca com prestações de valor desconhecido, a serem pagas por um tempo indefinido, significa, para pessoas que saem de um projeto para o outro e ganham a vida nessas mudanças, expor-se a um nível de risco atipicamente elevado e a uma fonte prolífica de ansiedades e medo. È provável que se pense duas vezes antes de assinar, e que, quanto mais se pense, mais se tornem óbvios os riscos envolvidos. E nenhuma dose de determinação e ponderação poderá remover a sombra de dúvida que tende a adulterar a alegria. Além disso, ter filhos é, em nossa época, uma questão de decisão, não um acidente – o que aumenta a ansiedade. Tê-los ou não é comprovadamente a decisão com maiores conseqüências e de maior alcance que existe, e portanto também a mais angustiante e estressante.

Ademais, nem todos os custos são monetários, e os que não o são jamais poderão ser medidos e calculados. Eles desafiam as capacidades e as propensões dos agentes racionais que somos preparados para ser, e que lutamos para ser. “Formar uma família” é como pular de cabeça em águas inexplorados e de profundidade insondável. (pág.60)

Ter filhos significa avaliar o bem-estar de outro ser, mais fraco e dependente, em relação ao nosso próprio conforto. A autonomia de nossas preferências tende a ser comprometida, e continuamente: ano após ano, dia após dia. A pessoa pode tornar-se – horror dos horrores – “dependente”. Ter filhos pode significar a necessidade de diminuir as ambições pessoais, “sacrificar uma carreira”, como pessoas submetidas à avaliação de seu desempenho profissional olham de soslaio em busca de algum sinal de lealdade dividida. Mais dolorosamente, ter filhos significa aceitar essa dependência divisora da lealdade por um tempo indefinido, aceitando o compromisso amplo e irrevogável, sem uma cláusula adicional “até segunda ordem” – o tipo de obrigação que se choca com a essência da política de vida do líquido mundo moderno e que a maioria das pessoas evita, quase sempre com fervor, em outras manifestações de sua existência. Tomar consciência de tal compromisso pode ser uma experiência traumática. A depressão e as crises conjugais pós-parto parecem enfermidades específicas de nossa “modernidade líquida”, da mesma forma que a anorexia, a bulimia e incontáveis variedades de alergia. (pág.60 e 61)

A união é ilusória e, no final, a experiência tende a ser frustrante, diz Fromm, por ser separado do amor (ou seja, permitam-me explicar, do tipo de relacionamento Fürsein; de um compromisso intencionalmente duradouro e indefinido com o bem-estar do parceiro). Na visão de Fromm, o sexo só pode ser um instrumento de fusão genuína – em vez de uma efêmera, dúbia e, em última instância, autodestrutiva impressão de fusão – graças a sua conjunção com o amor. Qualquer que seja a capacidade geradora de fusão que o sexo possa ter, ela vem de sua “camaradagem” com o amor. (pág.62 e 63)

A vitória do sexo na grande guerra de independência tem sido, na melhor das circunstâncias, uma vitória de Pirro. Os remédios maravilhosos parecem produzir moléstias e sofrimentos não menos numerosos e comprovadamente mais agudos do que aqueles que prometiam curar. (pág.63)

É correto, talvez até estimulante e ao mesmo tempo maravilhoso, que o sexo seja assim liberado. O problema é como mantê-lo no lugar quando o lastro foi lançado ao mar; como mantê-lo na fôrma se não se dispões mais das estruturas. Voar suavemente traz contentamento, voar sem direção provoca estresse. A mudança é jubilosa; a volatilidade, incômoda. A insustentável leveza do sexo? (pág.64)

Nos compromissos duradouros, a líquida razão moderna enxerga a opressão; no engajamento permanente percebe a dependência incapacitante. Essa razão nega direitos aos vínculos e liames, especiais ou temporais. Eles não têm necessidade ou uso que possam ser justificados pela líquida racionalidade moderna dos consumidores. Vínculos e liames tornam “impuras” as relações humanas – como o fariam com qualquer ato de consumo que presuma a satisfação instantânea e, de modo semelhante, a instantânea obsolescência do objeto consumido. (pág.65)

A vida consumista favorece a leveza e a velocidade. E, também a novidade e a variedade que elas promovem e facilitam. É a rotatividade, não o volume de compras, que mede o sucesso na vida do homo consumens.

Em geral, a capacidade de utilização de um bem sobrevive à sua utilidade para o consumidor. Mas, usada repetidamente, a mercadoria adquirida impede a busca por variedade, e a cada uso a aparência de novidade vai se desvanecendo e se apagando. Pobres daqueles que, em razão da escassez de recursos, são condenados a continuar usando bens que não mais contêm a promessa de sensações novas e inéditas. Pobres daqueles que, pela mesma razão permanecem presos a um único bem em vez de flanar entre um sortimento amplo e aparentemente inesgotável. Tais pessoas são os excluídos na sociedade de consumo, os consumidores falhos, os inadequados e os incompetentes, os fracassados – famintos definhando em meio à opulência do banquete consumista.

Aqueles que não precisam se agarrar aos bens por muito tempo, e decerto não por tempo suficiente para permitir que o tédio se instale, são os bem-sucedidos. (pág.67 e 66)

Em si mesma, a união sexual é de curta duração – na vida dos parceiros, é um episódio. Como aponta Milan Kundera, um episódio “não é a conseqüência inevitável de uma ação precedente, nem a causa do que virá em seguida”. A imaculada conceição cum esterilidade, a ausência essencial da possibilidade de contágio, é uma das belezas do episódio – e assim, podemos dizer, também é a beleza de um encontro sexual, contanto que este continue sendo um episódio. O problema, porém, é que “ninguém pode garantir que um evento totalmente episódio não contenha em si uma força capaz de algum dia transformar-se, inesperadamente, na causa de eventos futuros”. Para resumir uma longa história: “nenhum episódio está condenando a priori a permanecer eternamente como um episódio”. Nenhum episódio está a salvo de suas conseqüências. A insegurança decorrente é eterna. A incerteza nunca se dissipará de modo total e irrevogável. Pode apenas ser suspensa por um tempo indeterminado – mas o próprio recipiente da suspensão é assaltado por dúvidas e assim se torna outra fonte de cansativa insegurança. (pág.70)

O homo sexualis está condenado a permanecer para sempre incompleto e irrealizado – mesmo numa era em que o fogo sexual, que no passado se teria arrefecido, agora deve ser, espera-se, novamente insuflado pelos esforços conjuntos de nossas ginásticas miraculosas e de nossos remédios maravilhosos. A viagem nunca termina, o itinerário é recomposto a cada estação e o destino final é sempre desconhecido. (pág.74)

O homo sexualis não é uma condição, muito menos uma condição permanente e imutável, mas um processo, cheio de tentativas e erros, viagens exploratórias arriscadas e descobertas ocasionais, intercaladas por numerosos tropeços, arrependimentos por oportunidades perdidas e alegrias por prazeres ilusórios. (pág.75)

Em nossa líquida era moderna, os poderes constituídos não mais parecem interessantes em traçar a fronteira entre o sexo “correto” e o “perverso”. A razão talvez seja a rápida queda da demanda pelo emprego da energia sexual economizada em favor de “causas civilizantes”. (pág.76)

 

Communitas em oferta

 

Uma chamada não foi respondida? Uma mensagem não foi retornada? Também não há motivos para preocupação. Existem muitos outro números de telefones na lista, e aparentemente não há limite para o volume de mensagens que você pode, com a ajuda de algumas teclas diminutas, comprimir naquele pequeno objeto que se encaixa tão bem em sua mão. Pense nisto (quer dizer, se houver tempo para pensar): é absolutamente improvável chegar ao fim de seu catálogo portátil ou digitar todas as mensagens possíveis. Há sempre mais conexões para serem usadas – e assim não tem grande importância quantas delas se tenham mostrado frágeis e passíveis de ruptura. O ritmo e a velocidade do uso e do desgaste tampouco importam. Cada conexão pode ter vida curta, mas seu excesso é indestrutível. Em meio à eternidade dessa rede imperecível, você pode se sentir seguro diante da fragilidade irreparável de cada conexão singular e transitória.

Dentro da rede, você pode sempre correr em busca de abrigo quando a multidão à sua volta ficar delirante demais para o seu gosto. Graças ao que se torna possível desde que seu celular esteja escondido com segurança no seu bolso, você se destaca da multidão – e destacar-se é a ficha de inscrição para sócio, o termo de admissão nessa multidão. (pág.79)

O advento da proximidade virtual torna as conexões humanas simultaneamente mais freqüentes e mais banais, mais intensas e mais breves. As conexões tendem a ser demasiadamente breves e banais para poderem condenar-se em laços. Centradas no negócio à ,ao, estão protegidas da possibilidade de extrapolar e engajar os parceiros além do tempo e do tópico da mensagem digitada e lida – ao contrário daquilo que os relacionamentos humanos, notoriamente difusos e vorazes, são conhecidos por perpetrar. Os contatos exigem menos tempo e esforço para serem estabelecidos, e também para serem rompidos. A distância não é obstáculo para se entrar em contato – mas entrar em contato não é obstáculo para se permanecer à parte. Os espasmos da proximidade virtual terminam, idealmente, sem sobras nem sedimentos permanentes. Ela pode ser encerrada, real e metaforicamente, sem nada mais que o apertar de um botão.

A realização mais importante da proximidade virtual parece ser a separação entre comunicação e relacionamento. Diferentemente da antiquada proximidade topográfica, ela não exige laços estabelecidos de antemão nem resulta necessariamente em seu estabelecimento. “Estar conectado” é menos custoso do que “estar engajado” – mas também consideravelmente menos produtivo em termos da construção e manutenção de vínculos. (pág.82) 

Os usuários dos recursos de namoro on-line podem namorar com segurança, protegidos por saberem que sempre podem retornar ao mercado para outra rodada de compras. Na Internet pode-se namorar “sem medo de ‘repercussões’ no mundo real”. Ou, de qualquer maneira, é assim que a pessoa se sente ao conseguir parceiros na Internet. (pág.85)

Terminar quando se deseje – instantaneamente, sem confusão, sem avaliação de perdas e sem remorsos – é a principal vantagem do namoro pela internet. Reduzir riscos e, simultaneamente, evitar a perda de opções é o que restou de escolha racional num mundo de oportunidades fluidas, valores cambiantes e regras instáveis. E o namoro pela internet, ao contrário da incômoda negociação de compromissos mútuos, se ajusta perfeitamente (ou quase) aos novos padrões de escolha racional. (pág.85)

Os shopping centers muito têm feito para reclassificar o labor da sobrevivência como diversão e recreação. O que costumava ser sofrido e suportado com uma mistura de ressentimento e repulsa, sob a pressão refratária da necessidade, tem adquirido os poderes sedutores de uma promessa de prazeres incalculáveis sem a adição de riscos igualmente incalculáveis. O que os shopping centers fizeram pelas tarefas da sobrevivência diária, o namoro pela internet tem feito pela negociação de parceria. Mas, tal como o alívio da necessidade e as pressões da “pura sobrevivência” eram condições necessárias para o sucesso dos shopping centers, assim também o namoro pela internet dificilmente teria êxito se não tivesse sido ajudado e favorecido por terem sido eliminados da lista de suas condições necessárias o engajamento full-time, o compromisso e a obrigação “de estar à disposição quando o outro precisa”.

A responsabilidade por eliminar essas condições não pode ser atribuída à porta virtual do namoro eletrônico. Muito mais tem acontecido no caminho em direção à líquida e individualizada sociedade moderna para tornar os compromissos de longo prazo pouco numerosos, o engajamento a longo prazo uma rara expectativa e a obrigação de assistência mútua incondicional uma perspectiva que nem é realista nem percebida como digna de grandes esforços. (pág.85 e 86) 

O único personagem que os teóricos consideram merecedor de atenção, porque é a ele que se atribui o mérito de “manter a economia em movimento” e de lubrificar as rodas do crescimento econômico, é o homo oeconomicus – o ator econômico solitário, auto-referente e autocentrado que persegue o melhor ideal e se guia pela “escolha racional”, preocupado em não cair nas garras de quaisquer emoções que resistam a ser traduzidas em ganhos monetários e vivendo num mundo cheio de outros personagens que compartilham todas essas virtudes, e nada além. O único personagem que os praticantes do mercado podem e querem reconhecer e acolher é o homo consumens o solitário, auto-referente e autocentrado comprador que adotou a busca pela melhor barganha como uma cura para a solidão e não conhece outra terapia; um personagem para quem o enxame de clientes do shopping center é a única comunidade conhecida e necessária e que vive num mundo povoado por outros personagens que compartilham todas essas virtudes com ele, e nada além. (pág.89)

 

3

Sobre a dificuldade de amar o próximo

 

Para termos amor-próprio, precisamos ser amados. A recusa do amor – a negação do status de objeto digno do amor – alimenta a auto-aversão. O amor-próprio é construído a partir do amor que nos é oferecido por outros. Se na sua construção forem usados substitutos, eles devem parecer cópias, embora fraudulentas, desse amor. Outros devem nos amar primeiro para que comecemos a amar a nós mesmos. (pág.100)

O valor, o mais precioso dos valores humanos, o atributo sine qua non de humanidade, é uma vida de dignidade, não a sobrevivência a qualquer custo. (pág.105)

Uma lição terrível e atemorizante, mas nem por isso aprendida, apropriada, memorizada e aplicada com menos avidez. Para ser adequada à doação, essa lição deve, em primeiro lugar, ser rigorosamente despida de todas as conotações éticas, até a mais crua essência do jogo de soma zero da sobrevivência. Viver significa sobreviver. O mais forte vive. Quem atacar primeiro sobrevive. Desde que você seja o mais forte, pode escapar impune, não importa o que tenha feito ao fraco. O fato de que a desumanização das vitimas desumaniza – devasta moralmente – seus vitimizadores é desconsiderado como um detalhe irritante. Quer dizer, se não tiver sido silenciosamente omitido. O que conta é chegar ao topo e lá permanecer. Sobreviver – manter-se vivo – é um valor aparentemente não prejudicado nem maculado pela desumanidade de uma vida dedicada à sobrevivência. Vale a pena perseguí-lo por si mais profundas e incorrigíveis que sejam as formas como isso pode depravar e degradar os vitoriosos.

Essa horripilante lição do Holocausto, a mais desumana, completa-se com um inventário das dores que se pode infligir aos fracos a fim de afirmar a própria força. (pág.106)

Como escapar à dor e à humilhação? A forma natural é matar ou humilhar seu algoz ou benfeitor. Ou encontrar outra pessoa, mais fraca, para triunfar sobre ela. (pág.107)

Se você não for mais duro e menos escrupuloso do que todos os outros, será liquidado por eles, com ou sem remorso. Estamos de volta à triste verdade do mundo darwiniano: é o mais apto que invariavelmente sobrevive. Ou melhor, a sobrevivência é a derradeira prova de aptidão. (pág.110)

“Homo homini lupus é uma das máximas mais inabaláveis da moral eterna. Em cada um de nossos vizinhos tememos um lobo... Somos tão pobres, tão fracos, tão facilmente arruináveis e destrutíveis! Como podemos deixar de ter medo? ... Enxergamos o perigo, apenas o perigo...”[1] Eles insistiram – como o fez Shestov e como se tornou senso comum, graças a programas do tipo Big Brother – em afirmar que este é um mundo duro, feito para pessoas duras: um mundo de indivíduos relegados a se basearem unicamente em seus próprios ardis, tentando ultrapassar e superar uns aos outros. Ao conhecer um estranho você precisa em primeiro lugar de vigilância, e em segundo e terceiro lugares de vigilância. Aproximar-se, colocar-se ombro e trabalhar em equipe fazem muito sentido enquanto o ajudam a avançar em seu próprio caminho. Mas perdem a razão de ser quando não trazem mais benefícios, ou quando estes – esperada ou apenas possivelmente – são menores que os obtidos evitando-se compromissos e cancelando-se obrigações. (pág.110 e 111)

O produto excedente da nova extraterritorialidade-mediante-a-conectividade dos espaços urbanos privilegiados, habitados e usados pela elite global são as áreas desconectadas e abandonadas – as “alas fantasmas” de Michael Schwarzer, onde “os sonhos foram substituídos por pesadelos e o perigo e a violência são mais banais do que em outros lugares”[2] . Para manter as distâncias intransponíveis e afastar os perigos de vazamento e contaminação da pureza regional, os instrumentos acessíveis são impor a tolerância zero e exilar os sem-teto dos espaços em que podem ganhar a vida (mas no quais também se fazem atrevida e exasperantemente visíveis) para outros, afastados, nos quais não podem fazer nem uma coisa nem outra. (pág.120)

O medo do desconhecido, mesmo se subliminar, busca desesperadamente escoadouros confiáveis. As ansiedades acumuladas tendem a ser descarregadas sobre os “forasteiros”, eleito para exemplificar a “estranheza”, a falta de familiaridade, a opacidade do ambiente de vida, a imprecisão do risco e da ameaça em si. Quando se expulsa das casas e das lojas uma categoria selecionada de “forasteiros”, o fantasma atemorizante da incerteza é exorcizado por algum tempo – queima-se simbolicamente o monstro assustador da insegurança. Cercas cuidadosamente erguidas contra aqueles que se fazem passar por pessoas “em busca de asilo” e migrantes “meramente econômicos” trazem esperança de fortalecer uma existência incerta, errática e imprevisível. Mas a líquida vida moderna tende a permanecer inconsistente e caprichosa, sejam quais forem os apuros infligidos aos “forasteiros indesejáveis”, e portanto o alívio é momentâneo, e as esperanças investidas nas “medidas duras e decisivas” se desvanecem tão logo se apresentam.

O estranho é, por definição, um agente movido por intenções que na melhor das hipóteses se poderia adivinhar, mas nunca saber com certeza. O estranho é a variável desconhecida em todas as equações calculadas quando se tomam decisões sobre o que fazer e como se comportar. E assim, mesmo que não se tornem objetos de agressão ostensiva nem sejam aberta e ativamente ofendidos, a presença de estranhos dentro do campo de ação permanece desconfortável, na medida em que dificulta a tarefa de predizer os efeitos do procedimento e suas chances de sucesso ou fracasso. (pág.129 e 130)

A mixofobia é uma reação altamente previsível e difundida entre os diversos tipos humanos e estilos de vida capazes de confundir a mente, provocar calafrios e colapso nervoso, de que estão repletas as ruas das cidades contemporâneas, assim como seus distritos residenciais mais “comuns” (leia-se: não protegidos por “espaços interditados”). Conforme a polifonia e a diversificação cultural do ambiente urbano na era da globalização entram em cena – com a probabilidade de se intensificarem no curso do tempo – as, tensões oriundas da exasperante/cpnfusa/irritante estranheza desse cenário provavelmente continuarão a estimular impulsos segregacionistas.

Expressar tais impulsos pode (de modo temporário, mas repetido) aliviar tensões crescentes. Isso oferece uma esperança: diferenças excludentes e desconcertadas podem ser incontestáveis e refratárias, mas talvez seja possível extrair o veneno do ferrão atribuindo a cada forma de vida um espaço físico distinto, ao mesmo tempo incluso e excludente, bem demarcado e protegido. Evitando-se essa solução radical, talvez se possa pelo menos assegurar para si mesmo, para os amigos, parentes e outras “pessoas como nós”, um território livre daquela miscelânea que irremediavelmente aflige outras áreas urbanas. A mixofobia se manifesta no impulso que conduz a ilhas de semelhança e mesmidade em meio a um oceano de variedade e diferença. (pág.133)

 

4

Convívio destruído

 

Pessoas desgastadas e mortalmente fatigadas em conseqüências de testes de adequação eternamente inconclusos, assustadas até a alma pela misteriosa e inexplicável precariedade de seus destinos e pelas névoas globais que ocultam suas esperanças, buscam desesperadamente os culpados por seus problemas e tribulações. Encontram-nos, sem surpresa, sob o poste de luz mais próximo – o único ponto obrigatoriamente iluminado pelas forças da lei e da ordem: “São os criminosos que nos deixam inseguros, são os forasteiros que trazem o crime”. E assim “é reunindo, encarcerando e deportado os forasteiros que vamos restaurar a segurança perdida ou roubada”. (pág.143)

Os refugiados se tornaram, à imagem caricatural da nova elite do poder no mundo globalizado, a epítome daquela extraterritorialidade em que se fincam as raízes da atual precarité da condição humana, que tem lugar de destaque entre os temores e ansiedades de nossos dias. Esses temores e ansiedades, procurando em vão por outros escoadouros, despejaram-se sobre o ressentimento e o medo que os refugiados provocam. Não podem se desativados nem dispersos num confronto direto com a outra encarnação da extraterritorialidade, a elite global flutuando além do alcance do controle humano, poderosa demais para que se possa enfrentá-la. Os refugiados, ao contrário, são um alvo fixo em que se descarregar o excesso de angústia... (pág.164)

A permanência da transitoriedade, a durabilidade do transitório, a determinação objetiva não refletida na seqüencialidade subjetiva das ações, o papel social perpetuamente subdefinido, ou mais corretamente uma inserção no fluxo da existência sem a âncora de um papel social – todos esses traços da líquida vida moderna, assim como outros correlatos, foram expostos e documentados nos achados de Agier. Na extraterritorialidade territorialmente fixada do campo de refugiados, eles aparecem numa forma muito mais extrema, não-diluída e assim mais claramente visível do que em qualquer outro segmento da sociedade contemporânea.

Pode-se imaginar em que medida os campos de refugiados seriam laboratórios onde (talvez de forma inadvertida, mas nem por isso menos poderosa) o novo padrão de vida líquido-moderno, “permanentemente transitório”, está sendo testado e ensaiado.

Em que medida as nowherevilles dos refugiados seriam exemplos antecipados do mundo que está por vir, e seus internos lançados/empurrados/forçados a assumir o papel de exploradores pioneiros? Questões desse tipo só podem ser respondidas em retrospecto – se é que podem. (pág.173)

A verdade é um conceito eminentemente agonístico. Nasce do confronto entre crenças que resistem à conciliação e entre seus portadores relutantes em chegar a um acordo. Sem esse confronto, a idéia de “verdade” dificilmente teria ocorrido, para começo de conversa. “Saber como ir em frente” seria tudo de que se precisaria – e o ambiente em que se faz necessário “ir em frente”, a menos que desafiado e assim tornado “estranho” e esvaziado de sua “auto-evidência”, tende a se completar com a inequívoca prescrição de “ir em frente”. Debater a verdade é uma resposta à “dissonância cognitiva”, Ela é instigada pelo impulso a desvalorizar e desempoderar (despontencializar) outra leitura do ambiente e/ou outra prescrição de ação que lance dúvida sobre a leitura e a rotina de ação de alguém. Esse impulso crescerá de intensidade quanto mais as objeções/obstáculos se tornarem vociferantes e difíceis de abafar. O interesse em debater a verdade, e o principal propósito de sua auto-afirmação, é prova de que o parceiro/adversário está errado e de que, portanto, as objeções são inválidas e podem ser desprezadas.

Quando se trata de discutir a verdade, as chances de uma “comunicação não-distorcida”, tal como foi postulado por Jürgen Habermas, se tornam diminutas.[3] Os protagonistas dificilmente resistirão à tentação de recorrer a outros meios, mais efetivos, que não a elegância lógica e o poder persuasivo de seus argumentos. Em vez disso, farão o possível para tornar os argumentos do adversário inconseqüentes, de preferência inaudíveis ou, melhor ainda, jamais vocalizado, pela desqualificação daqueles que, se pudessem, os vocalizariam. Um argumento que tem grande chance de ser apresentado é o da inelegibilidade do adversário como interlocutor pelo fato de ele ser inepto, mentiroso ou inconfiável, malintencionado ou claramente inferior. (pág.179 e 180)

 

 

 

 

 

   



[1] Leon Shestov, “All things are perishble”, in Bernard Martin (org.), A Shestov Anthology. Columbus, Ohio State University Press, 1970, p.70.

[2] Carl Schimitt, Politische Theologie. Vier Kapitel sur Lehre Von der Souveränität. Berlim, Duncker am Humboldt, 1922, p.19-21. Ver a discurssão em Giorgio Agamben, Homo sacer, op.cit [Ed. Ing.: Homo sacer, op. Cit., p.15ss.]

[3] Jürgen Habermas observa corretamente que a expectativa de consenso universal é construída em qualquer conversa e que sem ela a expectativa de comunicação seria totalmente inconcebível. O que ele não diz, porém, é que, se existe a crença de que o consenso será atingido em circunstâncias ideais em função de “uma única verdade” à espera de se descoberta e aceita como tal, então algo mais se “embute” em qualquer ato de comunicação: a tendência a tornar redundantes todos os participantes da conversa, exceto um, juntamente com a variedade de visões que eles sustentam e defendem. Odo Marquard, em Abschied vom Prinzipiellen (Leipzing, Philipp Reclam, 1991), sugere que por essa interpretação o ideal de “comunicação não-distorcida” parece uma vingança póstuma do solipsismo...


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