segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Gianni Vattimo - A Tentação do Realismo

 



 

Síntese: Paolo Cugini

Tradução de Reginaldo Di Piero

 

 

Parece que justamente o realismo, diante de um fenômeno tão complexo e vasto com o do niilismo difuso na cultura e na existência de hoje (a koiné hermenêutica nos seus múltiplos aspectos), deveria recusar-se de explicá-lo como o resultado de um banal erro lógico, como se fosse verossímil que uma cultura inteira tenha subitamente esquecido o princípio da não contradição. (pág.22)

Propus falar, a propósito da cultura – não só filosófica do mundo ocidental, tardo-industrial, pós-moderno, que é o nosso, de uma koiné hermenêutica. Como todas as pré-compeensões hermenêuticas, também esta é um imagem vaga, que parece muito marcada por uma espécie de impressionismo filosófico-sociológico; para muitos parece, com alguma razão, uma generalização ambiciosa em demasia, que unifica uma multiplicidade de fenômeno totalmente heterogêneos.

Todavia, assumir o risco de concentrar a atenção sobre a koiné hermenêutica como característica global, e vaga, da nossa cultura atual, é indispensável para qualquer compreensão teórica não superficial da mesma, capaz de alcançar um fio condutor interpretativo.

É esse o primeiro passo na direção de uma “ontologia da atualidade”, na direção de um pensamento que ultrapasse o esquecimento metafísico do ser, esquecimento que se perpetua até quando o pensamento se mantém na confusa fragmentação dos saberes especializados e dos múltiplos papéis sociais em que nós modernos nos encontramos jogados. (pág.22 e 23)

Qualquer que seja o valor desta aproximação, lembremos que a hermenêutica de hoje é uma, mesmo que remota, continuação do kantismo. O mundo é fenômeno, quer dizer uma ordem de coisas que o sujeito entra ativamente a constituir. Em Kant, contudo, existia ainda a idéia de que as estruturas a priori do sujeito fossem iguais em todos os seres racionais constituídos.

No século XX, depois de Heidegger, estas estruturas vêem reconhecidas na sua radical historicidade. Não só não conhecemos nunca a não ser fenômenos; mas esses se dão somente no quadro do que Heidegger chama um projeto jogado. Conhecer, já a nível das puras e simples percepções espaço-temporais, significa construir um fundo e um primeiro patamar, ordenando as coisas com base numa pré-compreensão que exprime interesses, emoções e que herda linguagem, uma cultura, formas históricas de racionalidade. As coisas aparecem – se dão como entes, “vêem ao ser” - , só no horizonte de um projeto, senão não se deixam nem mesmo distinguir do fundo e entre elas.

Por conseguinte, pode-se também definir a hermenêutica como um kantismo que passou pela experiência existencialista da finidade e, logo, da historicidade. (pág.24,25 e 26)

Tem a hermenêutica, assim, sumariamente definida, a pretensão de exprimir o “espírito do tempo”, de propor-se como a koiné dos últimos decênios da cultura ocidental?

Provavelmente não existe nenhum aspecto  do que é chamado de mundo pós-moderno que não esteja marcado pelo alastrar-se da interpretação. Numa relação sumária pode-se lembrar em desordem:

 

1)      a difusão dos meios de comunicação de massa, que, paradoxalmente, não desenvolve tanto a consciência vaga e geral do seu caráter de agências interpretativas não neutras e “objetivas”;

2)      a auto-consciência da historiografia, para a qual mesmo a idéia de história  é um esquema retórico, que por conseguinte não pode mais valer como principio de realidade em que confiava grande parte da filosofia moderna depois, e como alternativa, á fé empirista e positivista nos fatos verificáveis pela sensação ou experimentação;

3)      a palavra de ordem da multiplicidade das culturas, que, com a sua mesma consistência de códigos capazes de durar, desmentem uma idéia unitária, progressiva, de racionalidade

 

4)      a destruição psicanalítica da fé na “ultimidade” da consciência. E assim enumerado, até a teoria dos paradigmas amadurecida na mesma autoconsciência dos cientistas. (pág.26 e 27)

 

Como tentei mostrar em Oltre I’interpretazione, a hermenêutica se configura como puro e perigoso relativismo só se não se leva bastante a sério as próprias implicações niilistas. Posto que a “verdade da hermenêutica” como teoria alternativa a outras (e antes de tudo ao conceito de verdade como “reflexo” dos “fatos”) não pode se legitimar pretendendo valer como uma descrição adequada de um estado de coisas metafisicamente estabelecido (“não existem fatos, somente interpretações”) mas de reconhecer-se também como uma “descrição” interna ou leitura sui generis da condição histórica na qual é lançada e que escolhe orientar numa direção determinada, pela qual não existem outros critérios a não ser os que herda, interpretando, desta mesma proveniência.

Ora, a proveniência vista como legitimação da verdade da hermenêutica não pode se apresentar senão sob a luz do niilismo; só um ser que procede, indefinidamente (e não “infinitamente”) para o seu próprio enfraquecimento legitima a afirmação da idéia de verdade como interpretação e não como correspondência. (pág.29 e 30)

A hermenêutica, seja com a sua ontologia niilista, seja sobretudo com o apelo à historicidade dos saberes, ao seu envolvimento com  distribuição do poder social, ao seu caráter global não desinteressado, produziria segundo os seus críticos um perigoso efeito de deslegitimação da ciência, além e mais gravemente do que da moral.

De anarquismo metodológico, em outros termos, se pode mesmo discutir em círculos restritos de epistemólogos e cientistas; mas quando isto se torna uma espécie de sentir comum, e se difunde também além dos circuitos acadêmicos através do trabalho de desconstrução de tanto críticos que se inspiram nos trabalhos de Derrida, é necessário reivindicar energicamente o princípio de realidade, quer dizer, a validade não puramente histórica das proposições cientificamente asseguradas.

Mas, anarquismo metodológico não é uma expressão inventada pela hermenêutica niilista; provém do ambiente de filósofos considerados, ao menos em princípio, respeitosos da ciência e do seu realismo. (pág.35 e 36)

Não existe, nem mesmo para o mais dogmático realismo, a possibilidade de qualquer experimentação crucial que prove realisticamente uma tese, porque cada delimitação do âmbito de relevância e já, e sempre, um ato interpretativo; com maior razão, um realismo interno como o de Petnam dificilmente pode se subtrair à deriva, ou ao verdadeiro e próprio rompimento historicista e às suas implicações niilistas. (pág.38 e 39)

Se, como se poderia demonstrar mais amplamente, o niilismo hermenêutico não ameaça a ciência mais do que o fazem muitas teorias epistemológicas consideradas amistosas e atentas aos seus direitos, o que resta da polêmica realista contra a hermenêutica? Coerentemente com as convicções de base dos hermeneutas, segundo os quais cada reivindicação da verdade é movida por um projeto, isto é, por um interesse, é necessário  perguntar-se a quais exigências conduz esta polêmica.

O que existe no fundo da necessidade de falar da realidade como algo de existente, na expressão de Putnam, uma totalidade fixa de objetos independentes da nossa mente? Se consideramos a “tentação do realismo” nos seus aspectos de uma nova moda filosófica, podemos encontrar um certo número de motivações contingentes, a não subvalorizar mas provavelmente não exaustivas: banal revolta geracional contra a hermenêutica que, enquanto koiné, é enfim um paradigma consolidado, se bem que matizado; neurose fundamentalista que percorre as sociedades tardo-industriais como reação regressiva de defesa contra a babel pós-moderna das linguagens e dos valores ou, simplesmente, em certos filósofos acadêmicos, apelo à ordem de uma filosofia que, segundo eles, deveria tornar a ser, como nos tempos do positivismo e do neokantismo imperantes, pesquisa (quase) positiva sobre os mecanismos do conhecer.

Motivações não inverossímeis, mas não exaustivas. Uma conclusão que deveria ainda: a) mostrar posteriormente que a hermenêutica não é de modo algum idealismo empírico, que não se sonha absolutamente em colocar em dúvida a “passividade” da sensibilidade, para usar a terminologia kantiana; b) que falar, para esta “passividade” da recepção de mensagens ou melhor, de choque com objetos, gravação de impressões sob a tabula rasa da mente, etc., não coloca em perigo nem a busca do conhecimento científico, nem o ter os pés na terra, na vida cotidiana com os outros, etc. (pág.39, 40 e 41)

Se se abandona a idéia dos esquemas mentais contrapostos ao mundo como estável conjunto de objetos independentes, torna-se evidente que a passividade da experiência do mundo é mais proveniência (ser jogados, não começar de zero, de si, etc) do que não receptividade de órgãos de sentido sempre “objetivamente” iguais.

Que a realidade seja a (nossa) história não a faz, por isso, uma fábula; já que se o mundo verdadeiro tornou-se fábula, como escreve Nietzsche, dessa forma é também a fábula (o esquema mental que deveria reduzir tudo a si) que foi negada.

Daqui pode partir, me parece, uma recuperação hermenêutica da “realidade”. (pág.43)

   

 

 

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