Síntese: Paolo Cugini
Tradução de Reginaldo Di Piero
Parece que
justamente o realismo, diante de um fenômeno tão complexo e vasto com o do niilismo
difuso na cultura e na existência de hoje (a koiné hermenêutica nos seus
múltiplos aspectos), deveria recusar-se de explicá-lo como o resultado de um
banal erro lógico, como se fosse verossímil que uma cultura inteira tenha
subitamente esquecido o princípio da não contradição. (pág.22)
Propus falar, a
propósito da cultura – não só filosófica do mundo ocidental, tardo-industrial,
pós-moderno, que é o nosso, de uma koiné hermenêutica. Como todas as pré-compeensões
hermenêuticas, também esta é um imagem vaga, que parece muito marcada por uma
espécie de impressionismo filosófico-sociológico; para muitos parece, com
alguma razão, uma generalização ambiciosa em demasia, que unifica uma
multiplicidade de fenômeno totalmente heterogêneos.
Todavia, assumir
o risco de concentrar a atenção sobre a koiné hermenêutica como característica
global, e vaga, da nossa cultura atual, é indispensável para qualquer
compreensão teórica não superficial da mesma, capaz de alcançar um fio condutor
interpretativo.
É esse o
primeiro passo na direção de uma “ontologia da atualidade”, na direção de um
pensamento que ultrapasse o esquecimento metafísico do ser, esquecimento que se
perpetua até quando o pensamento se mantém na confusa fragmentação dos saberes
especializados e dos múltiplos papéis sociais em que nós modernos nos
encontramos jogados. (pág.22 e 23)
Qualquer que
seja o valor desta aproximação, lembremos que a hermenêutica de hoje é uma,
mesmo que remota, continuação do kantismo. O mundo é fenômeno, quer dizer uma
ordem de coisas que o sujeito entra ativamente a constituir. Em Kant, contudo,
existia ainda a idéia de que as estruturas a priori do sujeito fossem iguais em
todos os seres racionais constituídos.
No século XX,
depois de Heidegger, estas estruturas vêem reconhecidas na sua radical
historicidade. Não só não conhecemos nunca a não ser fenômenos; mas esses se
dão somente no quadro do que Heidegger chama um projeto jogado. Conhecer, já a
nível das puras e simples percepções espaço-temporais, significa construir um
fundo e um primeiro patamar, ordenando as coisas com base numa pré-compreensão
que exprime interesses, emoções e que herda linguagem, uma cultura, formas
históricas de racionalidade. As coisas aparecem – se dão como entes, “vêem ao
ser” - , só no horizonte de um projeto, senão não se deixam nem mesmo
distinguir do fundo e entre elas.
Por conseguinte,
pode-se também definir a hermenêutica como um kantismo que passou pela
experiência existencialista da finidade e, logo, da historicidade. (pág.24,25 e
26)
Tem a
hermenêutica, assim, sumariamente definida, a pretensão de exprimir o “espírito
do tempo”, de propor-se como a koiné dos últimos decênios da cultura ocidental?
Provavelmente
não existe nenhum aspecto do que é
chamado de mundo pós-moderno que não esteja marcado pelo alastrar-se da
interpretação. Numa relação sumária pode-se lembrar em desordem:
1)
a difusão dos meios de
comunicação de massa, que, paradoxalmente, não desenvolve tanto a consciência
vaga e geral do seu caráter de agências interpretativas não neutras e
“objetivas”;
2)
a auto-consciência da
historiografia, para a qual mesmo a idéia de história é um esquema retórico, que por conseguinte
não pode mais valer como principio de realidade em que confiava grande parte da
filosofia moderna depois, e como alternativa, á fé empirista e positivista nos
fatos verificáveis pela sensação ou experimentação;
3)
a palavra de ordem da
multiplicidade das culturas, que, com a sua mesma consistência de códigos
capazes de durar, desmentem uma idéia unitária, progressiva, de racionalidade
4)
a destruição psicanalítica da
fé na “ultimidade” da consciência. E assim enumerado, até a teoria dos
paradigmas amadurecida na mesma autoconsciência dos cientistas. (pág.26 e 27)
Como tentei mostrar em Oltre I’interpretazione, a hermenêutica se
configura como puro e perigoso relativismo só se não se leva bastante a sério
as próprias implicações niilistas. Posto que a “verdade da hermenêutica” como
teoria alternativa a outras (e antes de tudo ao conceito de verdade como
“reflexo” dos “fatos”) não pode se legitimar pretendendo valer como uma
descrição adequada de um estado de coisas metafisicamente estabelecido (“não
existem fatos, somente interpretações”) mas de reconhecer-se também como uma
“descrição” interna ou leitura sui generis da condição histórica na qual é
lançada e que escolhe orientar numa direção determinada, pela qual não existem
outros critérios a não ser os que herda, interpretando, desta mesma
proveniência.
Ora, a proveniência vista como legitimação da verdade da
hermenêutica não pode se apresentar senão sob a luz do niilismo; só um ser que
procede, indefinidamente (e não “infinitamente”) para o seu próprio
enfraquecimento legitima a afirmação da idéia de verdade como interpretação e
não como correspondência. (pág.29 e 30)
A hermenêutica, seja com a sua ontologia niilista, seja sobretudo
com o apelo à historicidade dos saberes, ao seu envolvimento com distribuição do poder social, ao seu caráter
global não desinteressado, produziria segundo os seus críticos um perigoso
efeito de deslegitimação da ciência, além e mais gravemente do que da moral.
De anarquismo metodológico, em outros termos, se pode mesmo discutir
em círculos restritos de epistemólogos e cientistas; mas quando isto se torna
uma espécie de sentir comum, e se difunde também além dos circuitos acadêmicos
através do trabalho de desconstrução de tanto críticos que se inspiram nos
trabalhos de Derrida, é necessário reivindicar energicamente o princípio de
realidade, quer dizer, a validade não puramente histórica das proposições
cientificamente asseguradas.
Mas, anarquismo metodológico não é uma expressão inventada pela
hermenêutica niilista; provém do ambiente de filósofos considerados, ao menos
em princípio, respeitosos da ciência e do seu realismo. (pág.35 e 36)
Não existe, nem mesmo para o mais dogmático realismo, a
possibilidade de qualquer experimentação crucial que prove realisticamente uma
tese, porque cada delimitação do âmbito de relevância e já, e sempre, um ato
interpretativo; com maior razão, um realismo interno como o de Petnam
dificilmente pode se subtrair à deriva, ou ao verdadeiro e próprio rompimento
historicista e às suas implicações niilistas. (pág.38 e 39)
Se, como se poderia demonstrar mais amplamente, o niilismo
hermenêutico não ameaça a ciência mais do que o fazem muitas teorias
epistemológicas consideradas amistosas e atentas aos seus direitos, o que resta
da polêmica realista contra a hermenêutica? Coerentemente com as convicções de
base dos hermeneutas, segundo os quais cada reivindicação da verdade é movida
por um projeto, isto é, por um interesse, é necessário perguntar-se a quais exigências conduz esta
polêmica.
O que existe no fundo da necessidade de falar da realidade como algo
de existente, na expressão de Putnam, uma totalidade fixa de objetos
independentes da nossa mente? Se consideramos a “tentação do realismo” nos seus
aspectos de uma nova moda filosófica, podemos encontrar um certo número de
motivações contingentes, a não subvalorizar mas provavelmente não exaustivas:
banal revolta geracional contra a hermenêutica que, enquanto koiné, é enfim um
paradigma consolidado, se bem que matizado; neurose fundamentalista que
percorre as sociedades tardo-industriais como reação regressiva de defesa
contra a babel pós-moderna das linguagens e dos valores ou, simplesmente, em
certos filósofos acadêmicos, apelo à ordem de uma filosofia que, segundo eles,
deveria tornar a ser, como nos tempos do positivismo e do neokantismo
imperantes, pesquisa (quase) positiva sobre os mecanismos do conhecer.
Motivações não inverossímeis, mas não exaustivas. Uma conclusão que
deveria ainda: a) mostrar posteriormente que a hermenêutica não é de modo algum
idealismo empírico, que não se sonha absolutamente em colocar em dúvida a
“passividade” da sensibilidade, para usar a terminologia kantiana; b) que
falar, para esta “passividade” da recepção de mensagens ou melhor, de choque
com objetos, gravação de impressões sob a tabula rasa da mente, etc., não
coloca em perigo nem a busca do conhecimento científico, nem o ter os pés na
terra, na vida cotidiana com os outros, etc. (pág.39, 40 e 41)
Se se abandona a idéia dos esquemas mentais contrapostos ao mundo como
estável conjunto de objetos independentes, torna-se evidente que a passividade
da experiência do mundo é mais proveniência (ser jogados, não começar de zero,
de si, etc) do que não receptividade de órgãos de sentido sempre “objetivamente”
iguais.
Que a realidade seja a (nossa) história não a faz, por isso, uma
fábula; já que se o mundo verdadeiro tornou-se fábula, como escreve Nietzsche,
dessa forma é também a fábula (o esquema mental que deveria reduzir tudo a si)
que foi negada.
Daqui pode partir, me parece, uma recuperação hermenêutica da
“realidade”. (pág.43)
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