Texto: Marcheselli e outros
Tradução: Paolo Cugini
Comparado aos sinópticos, o Evangelho segundo João tem
a característica de ter uma narrativa mais abundante sobre os acontecimentos
pascais. O evangelho segundo Marcos é muito conciso; o de Mateus já tem mais
material; o segundo Lucas é o sinóptico mais desenvolvido; João é aquele, entre
os quatro evangelistas, que lhe dedica mais espaço: não só João 20, mas também
João 21. João é o único que apresenta ambas as aparições em Jerusalém e na
Galileia; para Marcos e Mateus as aparições acontecem na Galiléia, enquanto
para Lucas tudo acontece em Jerusalém. Em João há a confluência destas duas
linhas tradicionais: João 20 narra os episódios ocorridos em Jerusalém,
enquanto João 21 se passa inteiramente na Galiléia; é um capítulo muito denso e
profundamente unitário.
1. Hora, lugar, personagens, verbos
Ao ler uma história, os critérios a procurar para
compreender como o autor a estruturou são: 1. tempo; 2. espaço; 3. personagens.
1.1. O clima
Do ponto de vista das indicações cronológicas, tudo se
passa na seguinte sequência:
1.
na
manhã do “primeiro dia da semana” (20.1-18);
2.
“na
tarde daquele dia” (20,19-25);
3.
“oito
dias depois” (20,26-29).
O texto de que tratamos corresponde à “manhã do
primeiro dia depois do sábado”, ou manhã do dia de Páscoa. Então, o que é
narrado nos vv. 1-18 (mais da metade do capítulo) supostamente aconteceu pela
manhã; do ponto de vista cronológico é uma parte extremamente compacta.
1.2. O lugar
Do ponto de vista espacial, a forma como o texto foi
construído é muito interessante. João, como narrador extremamente refinado,
organizou a primeira parte do capítulo segundo um movimento contínuo de um
lugar não especificado (onde nunca é dito) até o túmulo. Existe um lugar que João
nunca localiza; e também na segunda parte do capítulo fala do “lugar onde
estavam os discípulos”, sem nunca especificar onde fica. Talvez haja nisso
também uma intenção teológica e espiritual, pois o lugar onde os discípulos
estão, do ponto de vista geográfico, pode ser qualquer lugar. Onde estão os
discípulos, Jesus também vem. Esta interpretação provavelmente já pode ser
dada. Já não existe a localização, por exemplo, de uma casa dos discípulos; ao
contrário, onde estão – e João já não diz onde estão – aí vem o Senhor; e isso
será contado na segunda parte do capítulo. Nesta primeira parte tudo é tocado
neste movimento, que é reproduzido três vezes. Três vezes ocorre o deslocamento
de um lugar não especificado até o túmulo; e depois de volta, do túmulo para
aquele lugar não especificado. Vejamos essas três mudanças, apoiando-nos no
texto.
O v. 1-2 descrevem este duplo movimento: «Maria
Magdala foi ao sepulcro pela manhã (…) Depois correu e foi ter com Simão Pedro
e o outro discípulo», sem que se dissesse onde se encontravam. De fato, há
um movimento pendular: de um lugar não especificado até o túmulo e depois do
túmulo até o lugar onde estão os discípulos. Depois recomeçamos: «Pedro saiu
então junto com o outro discípulo e foram ao sepulcro» (v. 3); o pêndulo voltou
para a tumba. E ainda: «Os discípulos voltaram para casa» (v. 10), e assim o
pêndulo voltou a oscilar. Este é o segundo movimento duplo. O terceiro
movimento é menos mecânico: «Maria, em vez disso, estava fora, perto do
túmulo» (v. 11). Desta vez o evangelista não usa verbo de movimento para
indicar o movimento de Maria Madalena, mas, quando a descreve, ela já voltou ao
túmulo. Em vez disso, o movimento inverso é novamente afirmado explicitamente:
«Maria Magdala foi anunciar aos discípulos» (v. 18). Fica claro como a
passagem é construída: há um vaivém inicial nos dois primeiros versos; é um
texto curto. Uma segunda ida e volta nos vv. 3-10: um texto mais longo.
Finalmente, uma terceira ida e volta nos vv. 11-18.
1.3. Personagens
Estas observações ajudam a estruturar o texto de forma
clara, com o esquema: A – B – A1.
a.
A
é composto pelos vv. 1-2;
b.
o
v. 3-10 compõem B;
c.
A1
é dado pelos vv. 11-18.
Chamamos de A1 porque a personagem presente neste “quadro” é a mesma:
Maria Madalena. É ela quem, na primeira cena, sai pela manhã, vai ao túmulo e
depois volta; é ela quem, na última cena, está no túmulo e depois volta. Em vez
disso, na parte central, os protagonistas do movimento são Simão e o “discípulo
que Jesus amou”: são eles que fazem o caminho. Simão Pedro e o outro
discípulo já são mencionados no v. 2; quando Maria Madalena chega àquele lugar
não especificado, eles também entram em cena, porque é a eles que ela diz: “Levaram
embora o Senhor”. Mas aqui eles não estão envolvidos em nenhum movimento; o
movimento é só de Maria. Portanto a estrutura, como um todo, é facilmente
reconhecível e também é dramaticamente muito eficaz. Repetimos: são três
movimentos de ida e volta; onde, porém, os personagens estruturam a história em
A – B – A1.
Vejamos os personagens envolvidos: Maria Madalena,
Simão Pedro e o outro discípulo; em A1 aparecem dois personagens, que parecem
ser anjos, e por fim o jardineiro, identificado como Jesus. Este é o grupo de
personagens; não há outros. Somente no último versículo aparece o grupo dos
discípulos: não mais apenas dois discípulos, mas o grupo como tal.
1.4. Os verbos
Neste ponto podemos potencializar essa dinâmica de
movimento. Especialmente na sua primeira parte, João 20 é caracterizado por um
uso massivo e bastante insistente de verbos de movimento (o verbo grego érchomai,
“ir, vir, chegar”, com todos os seus compostos é frequentemente usado; além
disso, há o verbo “ correr”; “dobrar” é um verbo de movimento). Verbos de
movimento ajudam a estruturar a história.
O outro tipo de palavras que domina a cena são dados
pelos verbos de visão que realmente constituem a trama da história. No que diz
respeito aos verbos de visão, o QE possui um léxico muito rico; conhece pelo
menos 6; aqui são usados 3 verbos de visão diferentes, que em italiano não
podemos reconhecer, pois são sempre traduzidos com um único verbo. Em vez
disso, no texto grego há três verbos diferentes, que apresentaremos no
comentário.
2. A visita ao túmulo vazio
Concentramo-nos principalmente na cena central, com a
visita ao túmulo vazio.
2.1. O primeiro movimento de ida e volta (Jo 20.1-2)
«20.1 No primeiro dia da semana, Maria Madalena
chega ao túmulo de madrugada, quando ainda estava escuro, e vê a pedra retirada
do túmulo. 2Então corre e vai ter com Simão Pedro e com o outro discípulo, a
quem Jesus amava, e diz-lhes: «Tiraram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde
o colocaram!»».
«Maria Madalena vem»: existe o verbo érchetai,
“ela vem”, de uso muito comum, que para João é muito importante. «E ele vê»: é
o verbo blépo, “ver”. «Depois ele corre e vem»: é o mesmo verbo de antes, usado
tanto para ir como para voltar. Sublinhamos que Maria Madalena chega ao túmulo
e “vê”. É interessante que, no QE, não esteja dito em nenhum lugar por que
Maria foi ao túmulo naquela manhã. Alguns afirmam que ela foi “ver”; em vez
disso, João escreve que, quando vai, ele “vê”. Se Marcos e Lucas escrevem que
ela vai ungir, João não especifica nenhum motivo; no entanto, desta forma a
experiência visual é enfatizada. Maria vai; ninguém sabe por quê; a única coisa
que a evangelista escreve sobre o que aconteceu é o que viu: é a única coisa
que ela relata. Ela não diz por que foi, só que quando foi lá ela viu.
O que ele viu? Ele viu “a pedra tirada do túmulo”. Podemos imaginar a cena: Maria Madalena chega ao
jardim e, de longe, vê que a pedra que fechava a cavidade do túmulo foi
retirada. Lembremos como foram feitos os túmulos de que falamos aqui: foram
escavados na rocha; não eram túmulos individuais, mas familiares. A entrada
dava acesso a uma sala, uma espécie de vestíbulo, onde eram preparados os
cadáveres; então, ao redor desta sala, uma série de nichos se abriu. Na
Palestina, no período histórico de Jesus, os nichos funerários são de dois
tipos: “arcosolio” (onde o cadáver é colocado longitudinalmente); “forno” (o
buraco onde é colocado o cadáver é menor e mais profundo). O tipo de túmulo
encontrado onde se encontra o Santo Sepulcro é em “forma de forno”. O enterro
no “forno” é perfeitamente datável, porque desapareceu com a destruição de
Jerusalém em 135 DC; portanto é um tipo de sepultamento que permite uma datação
precisa. Então há uma primeira câmara (um vestíbulo) e depois há os nichos que
se abrem. Maria Madalena nem chega à entrada do túmulo: ao longe, vê que a
pedra foi retirada.
2.2. A corrida de Pedro e do “discípulo amado” ao
túmulo (Jo 20,4)
«20.4Então os dois correram juntos e o outro
discípulo correu mais rápido que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro».
A cena central é construída assim: primeiro “os dois
juntos”, depois se separam. Depois o evangelista segue o “discípulo amado”;
então Pedro segue; depois volta ao “discípulo amado”; finalmente, ambos
voltando. A história é muito bem construída. Há o movimento de deslocamento
conjunto do local não especificado até o túmulo; mas eles logo se separam. Mas
o início do v. 4 os vê juntos: «Os dois correram juntos»; para encontrá-los
juntos, você tem que ir para v. 10: “Portanto eles foram novamente para eles”
ou “para eles; onde eles estão; em sua casa" (mas em grego não existe a
palavra "casa"). O V. 10 mostra-os juntos novamente, caminhando de
volta. Em 20.4b-9 há separação: aquele vem primeiro; depois o outro; depois o
primeiro novamente. Também aqui existe uma estrutura A – B – A1: Giovanni –
Simone – Giovanni.
2.3. O “discípulo amado” (20,4b-5)
O “discípulo amado” “20,4b correu mais rápido que
Pedro e chegou primeiro ao túmulo 5e, curvando-se (ou: “curvando-se”), viu as
roupas caídas, mas não entrou”. Há muito movimento: «correu para a frente»,
«veio», «inclinou-se»; E depois vem o verbo da visão: “vê”. Mesmo para o
“discípulo amado” o movimento conduz a uma experiência visual. Ele foi mais
longe que Maria Madalena: evidentemente o “discípulo amado” chega à entrada da
cavidade do túmulo, inclina-se (ficando do lado de fora com o corpo) para ver e
assim “vê” uma parte do que está no vestíbulo; mas não entra. Para ele o
evangelista usa o mesmo verbo que usou para Maria Madalena: blépo.
Este discípulo “dobra-se”: o seu movimento termina mais longe que o de Maria
Madalena; portanto, tendo ido mais longe, ele “vê” mais. Há uma proporção entre
a distância que o movimento vai e quantos objetos o personagem vê. E então ele
“vê as roupas caídas”, nada mais. Aqui o grego usa o termo othónia,
que traduzimos: “as roupas”. É um termo plural, que indica a totalidade dos
objetos funerários. O kit funerário, aquele com o qual o cadáver era
embrulhado, era confeccionado com diversos tipos de tecidos e panos. Mais tarde
falamos de uma “mortalha”; no caso de Lázaro falamos de “bandagens”, que
envolvem as extremidades (Jo 11.44). Depois pode haver um sindòn,
ou um grande lençol que envolve todo o corpo. Portanto, havia pelo menos três
tipos diferentes de “panos”; o termo othónia é genérico, inclui
todos eles. O evangelista não especifica: escreve simplesmente que o “discípulo
amado” vê “as roupas fúnebres”, mas não entra.
2.4. Pedro (20,6-7)
«20,6Vem também Simão Pedro, que o seguia, e entra
no sepulcro e vê as ligaduras caídas 7e o sudário – que estava sobre a sua
cabeça – não com as ligaduras caídas, mas separadamente, cuidadosamente
dobradas, num determinado lugar».
«Ele vem»: é sempre o mesmo verbo grego érchomai.
Embora se diga do “discípulo amado” que ele não entra, em vez de Pedro está
escrito que ele “entra no túmulo”. O movimento dos personagens termina cada vez
mais para frente: Maria Madalena parou em jardim; o “discípulo amado” chegou à
entrada do túmulo; Pedro entrou no túmulo. À medida que o movimento avança você
vê mais; na verdade, Pedro “vê” (em grego: theoréo). Pedro entra
e vê assim o que também viu o “discípulo amado”: diz-se que vê genericamente
“as vestes funerárias”. Mas então um versículo inteiro é usado para descrever
um desses panos. É evidente que este é o elemento “perturbador”, que levanta
uma questão. O objeto da visão de Pedro é duplo: o primeiro objeto coincide com
o que o “discípulo amado” viu e não merece menção especial; em vez disso, o
segundo objeto é descrito com uma quantidade impressionante de elementos. É
claro que este é o ponto em que nos concentramos.
O termo grego soudarion vem do latim e
indica um lenço que - como você pode imaginar - pode ser usado para coletar
suor ou cobrir o rosto. A primeira característica deste «sudário» é «que estava
na sua cabeça». É um dos panos: é aquele que cobre o rosto e “não fica com as
bandagens caídas” no chão (portanto não está com os demais “panos”). Um
primeiro elemento é este: ao entrar, Pedro vê que as roupas não estão todas no
mesmo lugar dentro do vestíbulo do sepulcro; alguns estão de um lado, enquanto
o sudário está do outro lado, «não com as bandagens deitadas, mas (aqui há a
insistência: chorìs, «à parte») enroladas separadamente, bem
dobradas, num determinado lugar" Novamente, a mortalha está “bem dobrada”.
Portanto, este sudário traz consigo o traço da atividade humana (ou talvez até
divina); alguém fez alguma coisa com esta mortalha: se está dobrada, então
alguém dobrou e assim ficou. Depois o evangelista insiste: “Num determinado
lugar”. Há, portanto, uma certa insistência em caracterizar o sudário:
1.
o
facto de estar do outro lado em relação aos restantes objectos funerários;
2.
o
fato de estar “bem dobrado”, elemento que indica que foi assim disposto, que
alguém fez alguma coisa com aquela mortalha.
2.5. Novamente o “discípulo amado”, que “vê e crê” (Jo
20,8).
Seguindo o esquema A – B – A1, voltamos agora ao
“discípulo amado”.
«20.8Então entrou também o outro discípulo, que
tinha chegado primeiro ao sepulcro, e viu e acreditou.»
«Quem veio»: aqui há sempre o mesmo verbo grego. Se
antes o “discípulo amado” não tinha entrado, agora entra também ele: “Entrou
(...) e viu e acreditou”. Aqui o evangelista muda o verbo: duas vezes usou o
verbo blepo; então ele usou o verbo theoréo pela
primeira vez; agora mude e use horáo. No QV os dois primeiros verbos aqui
usados indicam experiência sensível, visão no sentido fenomenal; eles nunca
são usados para indicar visão profunda (exceto, talvez, em um caso). Em vez
disso, este é o uso que João normalmente faz do verbo horáo: ele
o usa para indicar um tipo de “visão” que capta o significado daquilo que ele
vê. É evidente que existe a visão como uma experiência puramente sensível (você
vê um objeto e pode descrevê-lo em forma, cores, etc.); em vez disso, quando
usa horáo, João indica um tipo de visão que capta o significado último do
evento que caiu sob a experiência dos sentidos (neste caso é o sentido da
visão). Então se compreende melhor a ligação entre os dois verbos “viu e
acreditou”: na QV este tipo de visão já é uma visão profunda. O fato de João
combinar “viu e acreditou” constitui um hendiadys, ou seja, dois verbos para um
único significado. O significado aqui é: «Viu para crer», «Viu crendo». Não são
duas ideias distintas: é uma visão que capta o sentido último do que aconteceu
e, portanto, gera fé. Não são duas ações completamente distinguíveis: “Ele viu
e passou a acreditar”. O que você viu para fazer você acreditar? Comecemos
dizendo o que ele não viu: ele não viu três coisas.
1.
1.Ele
não viu um milagre: é completamente estranho à perspectiva joanina querer dizer
que ele teria visto um milagre e que, por isso, teria acreditado. Portanto a primeira operação a fazer é excluir que o
verbo “viu” indique que ele viu algo prodigioso. Pode ser excluída pelo
seguinte motivo: na QV a fé gerada pelo prodigioso é julgada como uma fé
problemática e insuficiente. Jesus não confia em quem o procura pelo aspecto
prodigioso dos sinais que realiza (Jo 2,23-25; Jo 6,26). A QV explica uma certa
desconfiança por parte de Jesus e do evangelista para com aqueles que procuram
Jesus, porque são movidos pela experiência prodigiosa dos sinais, pelo seu
elemento milagroso. Quando uma pessoa o procura por causa disso, Jesus fica
extremamente desconfiado. Então pareceria muito estranho que, dentro do túmulo,
o “discípulo amado” tivesse visto um milagre, porque seria contraditório com
esta frase presente na parte anterior do evangelho. É verdade que existe uma
certa linha exegética que, pelo contrário, apoia isto; mas não me parece muito
convincente. Alguns autores, mesmo muito sérios, explicam que o “discípulo
amado” teria visto as bandagens como o casulo da crisálida; então teria entendido
que algo havia acontecido: o corpo teria evaporado, deixando a roupa funerária
com a marca do cadáver. Objetivamente, este elemento não está presente no texto
e enfatiza a experiência do milagre, que é problemática para o evangelista. Portanto
o “discípulo amado” não “viu” um milagre.
2.
Não
viu mais do que Pedro:
a fé do “discípulo amado” não surge porque teve a possibilidade de uma
experiência quantitativamente maior. Nasceria então a fé, porque haveria um
“mais” de experiência sensível. Mas não é assim: ao entrar no túmulo, o
“discípulo amado” vê exatamente as coisas que vê ele viu Pietro. Há uma
diferença, que porém não reside na quantidade de coisas vistas. Obviamente há
necessidade de uma certa experiência sensível, mas não é o “mais” da
experiência sensível que gera a fé. Com a mesma quantidade de objetos vistos,
um acredita e o outro não. Há quem afirme que Pedro também acreditou: o
evangelista sugeriria isso implicitamente. Contudo, este não é o caso, porque é
contrário à orientação do texto. Neste momento Pedro não aceitou a fé. O texto
estabelece uma diferença entre dois: um chegou à fé, enquanto o outro ainda
não. Portanto o “discípulo amado” não “viu” mais do que Pedro.
Isto é importante: a fé não é gerada porque uma pessoa teve a sorte de ter uma
experiência quantitativamente maior que outra. Obviamente é necessário ter
algumas experiências, mas não é o “mais”, não é a quantidade, que gera a fé.
Portanto o “discípulo amado” já não via Pedro; mas ele "acreditou".
3.
Ele
não viu Jesus:
não é tão óbvio e precisa ser explicitado. O “discípulo amado” “viu”, mas não
viu Jesus. Portanto o “discípulo amado” não viu milagre; ele não viu mais
Pedro; ele não viu Jesus. Graças a isso poderemos mostrar que a bem-aventurança
que encerra o evangelho se aplica, antes de tudo, a ele. Quando Jesus diz a
Tomé: «Porque me viste, acreditaste; Bem-aventurados aqueles que não viram e
acreditaram!” (20.29), pois esta bem-aventurança aplica-se, antes de tudo, ao
“discípulo amado”. Portanto o “discípulo amado” não viu Jesus: o túmulo está
vazio; Jesus não está no túmulo. Então agora vamos ver o que o “discípulo
amado” “viu”. Aqui não existe um termo técnico joanino, que seria seméion
(“sinal”); o evangelista não usa esta palavra. Contudo, no final do capítulo
lemos: «Jesus, na presença dos seus discípulos, fez muitas outros sinais...”
(20h30, CEI2008). Nesta história falta o termo “sinal”; no entanto, uma grande
linhagem de exegetas – e eu com eles – sustenta que aquilo que o “discípulo
amado” experimentou no túmulo corresponde fundamentalmente ao que o
evangelista, em outro lugar, chama de “um sinal”: na disposição das roupas
dentro do túmulo, Giovanni capta uma dimensão de signo. No QE o signo é uma
experiência sensível (portanto algo que toca os cinco sentidos humanos: neste
caso é a visão, mas também podem ser a audição, o olfato, o paladar, o tato)
dentro da qual nos faz perceber o transcendente, o divino . Portanto, para
João, o sinal implica a coexistência de dois elementos: a experiência sensível
e aquele “mais” que é Deus que nela se manifesta, a transcendência que se
vislumbra na experiência sensível. Então a experiência sensível torna-se um
“sinal”, deixando brilhar algo que vai além da pura experiência dos sentidos
humanos. Este é o “sinal” joanino. Dentro do túmulo o “discípulo amado” faz
esta experiência: naquilo que o seu sentido da visão percebe, ele capta a
dimensão do sinal.
Em que sentido é um “sinal”? E do que é um “sinal”? De
um modo que pode parecer engraçado, mas também sério, podemos imaginar que,
quando o “discípulo” entra no túmulo e vê, em primeiro lugar se lembra de uma
cena que viveu algumas semanas antes. Não muito longe de Jerusalém, ele estava
diante de um túmulo (também vazio): o túmulo de Lázaro (João 11). Para
compreender João 20 é essencial estabelecer uma comparação com João 11; uma
comparação que se revela muito instrutiva.
«11.43 Dito isto, gritou em alta voz: «Lázaro,
sai!». 44O morto saiu com os pés e as mãos amarrados com bandagens, e o rosto
ainda envolto numa mortalha. Jesus diz-lhes: «Desamarrai-o e deixai-o ir»» (Jo
11,43-44): no caso de Lázaro o a mortalha está em seu lugar, ou seja, está no
rosto do falecido. Lázaro – recorda João – saiu do túmulo com a mortalha no
rosto e alguém a tirou dele. Em vez disso, dentro do túmulo de Jesus há roupas
de um lado e uma mortalha perfeitamente dobrada do outro lado. Lázaro não
consegue tirar o sudário do rosto: outro deve tirá-lo para ele; no entanto,
aqui é completamente diferente.
Depois vem à mente também uma palavra para o
“discípulo amado”: ele recorda um acontecimento que viu e uma palavra que
ouviu. O que ele viu foi o modo como Lázaro saiu do túmulo; em vez disso, ele
ouviu a palavra que ouvira alguns meses antes. Antes daquela última Páscoa,
eles subiram a Jerusalém; no final da “festa das barracas” Jesus havia
encerrado o chamado “discurso do bom pastor” (portanto na economia narrativa do
QE foi proferido no outono; agora estamos na primavera seguinte) com as
seguintes palavras: «10.17Por isso o Pai me ama: porque dou a minha vida (“a
minha existência de homem”), para retomá-la. 18Ninguém tira isso de mim, mas eu
mesmo afasto isso. Tenho o poder de abatê-lo e tenho o poder de retomá-lo” (Jo
10,17-18).
O que o “discípulo amado” viu no túmulo? No fato de uma mortalha dobrada ele vê a expressão
de um ato senhorial, de uma exousía, de um poder. Alguém fez isso: ele tem o
poder de ressuscitar da morte e dobrar o pano que cobre seu rosto,
distanciando-o dos demais, expressando assim aquele “poder de retomar a vida”
de que falava há alguns meses mais cedo. A distância entre as roupas e o fato
de o sudário ter sofrido uma ação (alguém o dobrou conscientemente,
intencionalmente, com autoridade) desperta no “discípulo amado” a memória
daquelas palavras de Jesus. Neste sentido ele viu um sinal: a disposição das
roupas dentro do túmulo torna-se a expressão de que ali aconteceu algo que pode
ser entendido lembrando:
1.
a
maneira diferente como Lázaro saiu de seu túmulo;
2.
como
Jesus ele havia falado sobre si mesmo, sua morte e o que aconteceria após a
morte: “Tenho o poder de fazer isso de novo”. É esse poder, é essa exousía que
o “discípulo amado” vê retratada na curiosa forma como as roupas estão
dispostas no túmulo vazio.
Então podemos dizer que isto é um “sinal”, porque é
uma experiência que não é prodigiosa em si; é uma experiência comum: não existe
milagre. Porém, há algo que afeta os sentidos (neste caso o sentido da visão);
e nesta experiência sensível algo transcendente, divino, pode ser vislumbrado.
Há necessidade de experiência sensível, mas enquanto Pedro não vai além da
experiência sensível, o “discípulo amado” é capaz de captar o sentido último
daquilo que os seus olhos vêem; aqui reside a sua primazia.
Esta cena também é muito bonita porque retrata os dois
discípulos, cada um com um registo ao seu nível; e não há conflito, porque
estamos a lidar com dois níveis diferentes. Na verdade, João reconhece uma
certa primazia a Pedro: o facto de João parar e deixar Pedro entrar primeiro
pode ser interpretado de forma simbólica como reconhecimento do seu papel. Este
é um papel que também é claramente atestado em outras partes do QE. Por outro
lado, se por um lado o QE reivindica uma primazia de Pedro a um determinado
nível, ou seja, como guia da comunidade de discípulos, por outro lado
reivindica uma primazia de João ao nível da leitura dos sinais e da compreensão
o mistério de Deus que se revela em Jesus O “discípulo amado” é sempre mais
rápido que Pedro e todos os outros na compreensão da revelação que Deus faz de
si mesmo em Jesus. O texto coloca as duas figuras lado a lado, reivindicando e
reconhecendo também por. cada um uma primazia em seu campo específico. O “discípulo
amado” é verdadeiramente o primeiro na ordem do conhecimento e da fé.
2.6. «Compreender a Escritura» (20,9)
«20.9 Porque ainda não tinham compreendido a
Escritura, que era necessário que ele ressuscitasse dentre os mortos» (20.9):
este versículo é uma reflexão que o evangelista compartilha com o leitor; é
como se ele falasse em voz alta e se dirigisse diretamente à pessoa que estava
lendo seu evangelho. Em si, não é um elemento da história, mas um elemento do
diálogo entre o evangelista e o seu leitor. É um versículo formidável e muito
poderoso, antes de tudo porque indica que o conteúdo da Escritura, ou do Antigo
Testamento (sem indicar uma passagem precisa, porque se refere ao conteúdo de
toda a Escritura, entendida globalmente), está aqui resumida como «a
ressurreição do messias»: o conteúdo último da Escritura é que o messias será
ressuscitado. Esta não é uma etapa específica; mas foi assim que toda a
Escritura foi entendida e foi assim que se revelou o seu significado último.
Com a frase “Eles ainda não tinham compreendido a
Escritura”, o texto indica que mesmo o “discípulo amado”, ao chegar ao
túmulo naquela manhã, não tinha tudo claro. Não aconteceu que, antes daquela
manhã, ele tivesse compreendido toda a Escritura e por isso, ao chegar, pensou
que o que já havia intuído finalmente se tornara realidade! O V. 9 tem
justamente o sentido de indicar que, até aquele momento, nenhum deles (ninguém,
nem mesmo o “discípulo amado”) havia entendido o que iria acontecer. O
significado do v. 9 é precisamente isto: o “discípulo amado”, na manhã de
Páscoa, chega à fé não porque já esteja preparado para o que vai acontecer e,
chegando lá, vê a confirmação do que já sabia. Sua fé vem da capacidade de ler
os sinais. A sua fé não surge de já ter compreendido toda a Escritura; é o
contrário: a partir desse momento a Escritura torna-se um livro aberto. As
Escrituras liberam seu significado não antes, mas depois. Antes de ocorrer a
ressurreição, a Escritura, o AT é um “livro selado”, como lemos no Apocalipse
(Ap 5.1), também para o “discípulo amado”. É somente a partir daquela manhã que
a Escritura libera seu significado último. Portanto, o texto deve ser
parafraseado assim: «Então entrou também o outro discípulo, que havia chegado
primeiro ao túmulo, e ele viu e acreditou com base em sua experiência no túmulo
vazio, não porque já tivesse entendido as Escrituras. Até aquele momento, de
fato, nem ele nem os outros tinham compreensão das Escrituras.” Sua fé nasceu
pela capacidade de ler os sinais e não porque já estivesse preparado; não
dispunha de uma espécie de “fotografia antecipada” dos acontecimentos para
entrar no túmulo e verificar a correspondência perfeita com o que os seus olhos
viam. Este é também o sentido de todo o NT: o AT é um livro que se abre a
partir da fé na ressurreição, e não o contrário. Não é que, se você estudar bem
o AT, poderá imaginar a ressurreição do messias; este não é absolutamente o
caso. Se alguém acreditar que Jesus ressuscitou, então a Bíblia também se torna
um livro aberto; o oposto não acontece. Se uma pessoa não tem fé no Senhor
ressuscitado, não há nenhum estudo do AT que a prepare antecipadamente para
esperar que o messias seja capaz de ressuscitar. Os dois esquemas estão em
oposição radical e apenas o primeiro é válido.
3. As duas aparições de Jesus (Jo 20,19-31)
3.1. Ver e acreditar, acreditar sem ver (Jo 20.29)
Leiamos a segunda parte de João 20, começando pela
bem-aventurança, que já antecipamos. As últimas palavras que, neste capítulo,
Jesus dirige aos discípulos constituem, precisamente, o seguinte macarismo: «20,29
Jesus disse-lhe: «Porque me viste, acreditaste; Bem-aventurados aqueles que não
viram e acreditaram!»» (20,29). Estas são palavras que Jesus dirige a Tomé.
A primeira parte da frase também poderia ser uma pergunta, mas também uma
afirmação. Aqui Jesus não tem um tom interrogativo, porque isso implicaria um
distanciamento, uma censura mais ou menos velada: “Por que você me viu, você
acreditou?”. Em vez disso, é uma observação: Jesus observa que Tomé, visto que
o “viu”, então “creu”. Na verdade, não há nada de errado com isso. É que
Tommaso perdeu a oportunidade de fazer melhor que os outros; isso sim! Porém,
no fato de ele ter acreditado ao ver, há simplesmente a reprodução da
experiência que os demais tiveram oito dias antes. Os outros viram Jesus e
creram; Tommaso teria tido a oportunidade de fazer melhor: teria tido a
oportunidade de acreditar sem ver, mas desperdiçou-a. Este é o ponto: Tomé
teria tido a oportunidade de acreditar com base no testemunho de outros, mas
não o fez. Também ele quis fazer a experiência da visão do Ressuscitado e por
isso também ele, como os outros, chegou à fé. Jesus observa isto: “Porque me viste,
acreditaste”; portanto, a bem-aventurança subsequente não é para Tomé: “Bem-aventurados
aqueles que não viram e acreditaram!”. O que essa felicidade significa? «Bem-aventurados
aqueles que não viram e acreditaram!»: antes de mais nada, notamos que não
há objeto direto nem para o verbo “ver” nem para o verbo “crer”. O grego é
parcimonioso em complementos de objetos (!); neste caso funciona a regra geral,
ou seja, o objeto direto não se repete porque é o dos verbos imediatamente
anteriores. Então, voltemos à frase anterior: “Porque você me viu, você
acreditou”. O objeto direto também deve ser fornecido na segunda parte e é o
mesmo. Jesus quer dizer: “Bem-aventurados aqueles que não me viram e
acreditaram”. O que Jesus está dizendo não é que a fé surge na ausência de
qualquer tipo de visão. O significado não é: «Bem-aventurados aqueles que, sem
ter visto nada, acreditaram »; em vez disso, a questão é ver Jesus. Jesus não
pede uma forma de fé que seja independente de qualquer tipo de experiência
sensível; a visão é apenas um dos cinco sentidos. Seria contra a essência de
todo o evangelho sustentar que a fé nasce independentemente da experiência
sensata; e na verdade este não é o significado da expressão. A bem-aventurança
não é: “Bem-aventurados aqueles que, não tendo visto absolutamente nada, passam
a acreditar”; em vez disso, é: “Bem-aventurados aqueles que não viram Jesus e
ainda assim creram”. Jesus pode ser visto em duas formas: na forma do Jesus
terreno (que caminhou pelas ruas da Palestina) e na forma do Jesus
ressuscitado, com seu corpo transfigurado; entretanto, a Bem-Aventurança
proclama: “Bem-aventurados aqueles que não me viram nem de uma forma nem de
outra, e ainda assim acreditaram”. Tomé teria tido a possibilidade de chegar à
fé sem vê-lo ressuscitado. Em vez disso, exigiu este tipo de experiência e,
mais tarde, também chegou à fé. Mas aqui a bem-aventurança é para quem chega à
fé sem ter que experimentá-la (não sem ter qualquer tipo de experiência
sensível!); o significado do macarismo é este.
Então, para quem essa felicidade é válida? Certamente para as gerações futuras. A tradução atual,
mais literal, permite-nos ler esta bem-aventurança como referindo-se também (e
talvez antes de tudo) ao “discípulo amado” no túmulo vazio na manhã de Páscoa.
Quem foi o primeiro que acreditou sem ver Jesus? Ele é o “discípulo amado”, que
não viu absolutamente nada; ele viu algumas coisas pobres e foi capaz de
interpretá-las como sinais. Certamente, porém, ele não viu Jesus dentro do
túmulo; ainda assim ele passou a acreditar. Então podemos dizer que ele é o
primeiro objeto da bem-aventurança: “Bem-aventurados aqueles que não me viram e
ainda assim acreditaram”. Esta parece ser precisamente a intenção do Evangelho,
que tem realmente a intenção de nos mostrar o “discípulo amado” como uma
gigantesca figura de fé; e, portanto, também como o primeiro de todos os
futuros crentes, isto é, daqueles que – como nós – passam a acreditar (se
puderem!) independentemente de uma experiência sensível de encontro com Jesus.
Passamos a acreditar com base em outra coisa. , com base num testemunho, mas
não na experiência sensível e direta de Jesus.
3.2. A arquitetura do texto
São duas cenas com um elemento de corte e depois uma
conclusão.
O primeiro episódio ocupa os vv. 19-23. «19Quando, pois, era a hora da
tarde e naquele dia, o primeiro da semana». Portanto, há um episódio na noite
do domingo de Páscoa. Depois, há outro “oito dias depois, novamente os seus
discípulos estavam lá dentro e Tomé estava com eles” (v. 26).
“Oito dias depois” indica o domingo seguinte:
tanto no contexto judaico como no romano, o dia da partida sempre foi incluído
na contagem dos dias. Portanto, a partir do domingo, “oito dias depois” é o
domingo seguinte; portanto, no mesmo dia da semana. Notamos que aqui já existe
um traço claro do domingo como dia da comunidade cristã. Na forma como as
aparições são assinaladas, vemos que a comunidade de João celebrava a Páscoa
como um acontecimento semanal: celebrava o domingo como uma Páscoa semanal. Os
dois episódios apresentam o grupo de discípulos como tal.
3.3. A primeira aparição de Jesus (20,19-23)
«20,19Na noite daquele dia, o primeiro da semana,
enquanto as portas do lugar onde os discípulos estavam estavam fechadas por
medo dos judeus, Jesus veio, colocou-se no meio deles e disse-lhes: «A paz
esteja convosco !». 20Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado. E os discípulos
se alegraram quando viram o Senhor. 21Jesus disse-lhes novamente: «A paz esteja
convosco! Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio." 22 Dito isto,
respirou e disse-lhes: «Recebei o Espírito Santo. 23Aqueles cujos pecados você
perdoar, eles serão perdoados; aqueles a quem você não perdoa, não será
perdoado” (Jo 20,19-23).
Neste episódio comentamos os dois gestos de Jesus.
1.
O
primeiro gesto
é: «Mostrou-lhes as mãos e o lado»; a segunda é: «Ele soprou». Os dois verbos
são construídos de forma paralela. O primeiro gesto de Jesus é mostrar: estende
as mãos e o lado. Isto é significativo, porque este gesto estabelece
identidade: através desta exibição a identidade do sujeito é mostrada. Aquele
que agora aparece assim é aquele que foi crucificado; na verdade, pouco antes
de se dizer que este homem entrou "enquanto as portas estavam
fechadas". Portanto, vemos que os dois elementos devem ser mantidos
juntos: é Jesus, mas não é Jesus! É evidente que é Jesus, mas já não é ele como
era antes; ele está transformado, mas ainda é ele. Devemos manter estes dois
elementos juntos, porque, por um lado, os sinais da crucificação estabelecem a
continuidade: esse homem é o Crucifixo; por outro lado, o fato de ele entrar
com as portas fechadas indica uma transformação. A pessoa é aquela que foi
pregada na cruz, mas também é verdade que a sua corporeidade tem agora uma
configuração e uma qualidade nova e transformada. É um aspecto importante: é
uma corporeidade transfigurada. Jesus mostra as mãos e o lado (mas não os pés)
pelo seguinte motivo: não quer deixar o lado de fora porque depois há um gesto
que evoca o Espírito. Portanto o lado, o lado e o Espírito. Quando foi descrita
a morte de Jesus, foi dito que um soldado lhe abriu o lado com uma lança, da
qual jorrou sangue e água (Jo 19,34). Sem dúvida, a água que sai do lado de
Jesus morto, para o evangelista, é uma imagem do Espírito: é a água viva que
sai do lado do Messias crucificado. Então, referir-se ao lado nesta primeira
parte da história combina muito bem com o fato de haver um gesto que fala do
Espírito, porque daquele lado saiu a água viva do Espírito, conforme a história
de Jesus contada por João 'morte na cruz. Então o primeiro gesto é este: Jesus
mostra as mãos e o lado, tendo como tema a continuidade do sujeito na
transformação do corpo. Além disso, há uma referência alusiva à importância do
Espírito na visão joanina.
2.
O
segundo gesto:
«22Tendo dito isto, soprou e disse-lhes: «Recebei o Espírito Santo»»
(20,22). O texto é construído assim: «Dito isto, inspiro»; o verbo usado é enphysào,
ou melhor, "inspirado/inalado". E o assunto em que entra a respiração
é o mesmo ao qual a palavra se dirige. O texto grego poderia ser traduzido
assim: “Tendo dito isto, ele soprou neles e disse-lhes”. O grego usa o
complemento dativo apenas uma vez, o que é válido tanto para o verbo “inalar”
quanto para o verbo “dizer”; em vez disso, em italiano você tem que repeti-la e
a frase se torna redundante. Mas este é o sentido do texto: Jesus «soprou neles
e falou-lhes». Portanto, “eles” aplica-se a ambos os verbos e é o destinatário
da respiração que lhes é colocada, que são os destinatários da palavra que lhes
é dirigida. Então aqui está a estrutura clássica que também é encontrada em
muitas histórias do AT sobre os profetas: um gesto e uma palavra que o explica.
O gesto já é eloquente por si só e talvez nem precisasse da palavra; mas a
palavra torna isso inequívoco. A palavra seguinte que diz «Receba o Espírito
Santo» é a explicação do gesto que Jesus acaba de realizar. A palavra é:
“Receba o Espírito Santo”. O termo grego pneuma (“Espírito”) permite um certo
jogo, pois significa tanto “espírito”, “vento” quanto “respiração”. Mesmo em
hebraico o mesmo termo (ruah) pode significar “espírito”, “vento”, “sopro”.
Então aqui o jogo é muito fácil entre o gesto de um sopro que sai de Jesus e
entra neles e uma palavra que diz: «Recebam o Santo Pneuma (= sopro/Espírito),
porque – precisamente – “Espírito” e “sopro” eles podem ser ditos com o mesmo
termo. Vamos nos concentrar no gesto. O texto usa um verbo relativamente raro:
Jesus “soprou neles”. Na tradução grega do AT esta expressão é encontrada, por
exemplo, quando o profeta Elias se inclina sobre o filho morto da viúva de
Sarepta e, deitando-se sobre ele, reintroduz o seu sopro na criança: o
"in-alita", alita nele, ele deixa passar o fôlego e assim a criança
volta à vida (1 Reis 17,17-24). Outro texto é o da criação de Adão (Gn 2.7). É
a primeira vez que este verbo bastante raro aparece (em todo o AT é encontrado
5 vezes). O “oleiro”, chamado Adonai (“Senhor”) em hebraico, é um artista de
barro e criou um boneco de barro. É realmente uma marionete: não se move, é
inerte; então Deus respira e então a boneca começa a se mover, ganhando vida.
Antes de ser inerte, era barro; então se torna um ser vivo. Um terceiro texto
muito importante se encontra no livro de Ezequiel: a visão dos ossos secos (Ez
37,5). Aqui novamente é isso verbo, quando Deus manda o profeta profetizar e os
ossos, que estão espalhados pela planície, se unem e assim se forma o
esqueleto. Então Ezequiel profetiza novamente e assim aparecem os nervos e a
carne; mas ainda são cadáveres, embora não estejam mais em decomposição. Então
ele deve profetizar para o espírito, que é “inspirado”, é colocado dentro
desses cadáveres que voltam à vida. Esses três textos são fundamentais
para a compreensão do nosso canto. Mas há uma diferença em relação ao
Gênesis, que deixamos explícita: os discípulos não são marionetes! Ao contrário
do boneco Adão, que é realmente inerte, que é uma figura de barro, Jesus tem
pessoas que se movem à sua frente. Os discípulos já possuem o sopro que Adonai
colocou em Adão no início da criação; Jesus não se depara com matéria inerte,
mas sim com pessoas que respiram. Os discípulos já têm um certo espaço para
respirar. Então fica claro que o sopro que Jesus coloca dentro deles não é o
sopro que Jesus recebeu de Maria de Nazaré, porque os discípulos já o possuem.
O fôlego que Jesus coloca neles é aquele que é seu, não aquele que ele tem como
descendente de Adão e filho de Maria e que eles já têm. O sopro que ele coloca
neles é o que lhe é próprio, isto é, o que ele possui como Filho unigênito de
Deus, como o Logos que sempre existiu antes da criação; ou (mas é a mesma
coisa) como o Ressuscitado. É o sopro próprio da própria vida de Deus.
Poderíamos dizer que Deus também tem um “sopro”: o “sopro” de Deus é o seu
Espírito! Isto é o que Jesus introduz. Certamente é o sopro, mas é o sopro que
lhe é próprio, não como descendente de Adão ou filho de Maria, mas como
Unigênito do Pai. É este sopro, pelo qual ele vive a partir da ressurreição,
que é injetado nos discípulos. Portanto, é verdadeiramente um ato de nova
criação: é uma criação, mas num nível diferente daquele de Gen 2. É uma
criação, portanto há um elemento de homogeneidade, mas há também algo de novo;
é uma criação em um nível diferente do que a de Adão. Na verdade, ele os cria “à sua imagem e
semelhança”, ou à imagem d’Ele, que é o Unigênito. Isto explica algo que
preocupa vários comentadores: por que não há detalhes? Os sinópticos dizem
alguma coisa. Por exemplo, Mateus escreve que Jesus pede: “Ir e fazer
discípulos de todas as nações, batizando e ensinando” (cf. Mt 28, 19-20); Jesus
dá algumas indicações aos discípulos sobre o que fazer. Lucas faz Jesus dizer:
“Sereis minhas testemunhas...”, por isso especifica que devem realizar o ato de
dar testemunho dele (cf. At 1, 8). No QE Jesus apenas diz: «Assim como o Pai me
enviou, eu também vos envio», seguido do tema da remissão dos pecados. Há
realmente uma pobreza singular de indicações. Por que? Isto está de acordo com
o significado do gesto de Jesus que acabamos de ilustrar. O envio em missão não
necessita de maiores determinações, porque o significado é que a missão é
prolongar a presença do Filho unigênito no mundo. E isso é possível a partir do
fato de terem recebido o seu mesmo fôlego, ou seja, o seu Espírito. De facto,
aqui há uma construção particular: quando Jesus diz «Assim como o Pai me
enviou, também eu vos envio», observa-se uma curiosidade: a forma como Jesus se
refere ao facto de o Pai o ter enviado, em grego é expresso com um verbo no
tempo perfeito. O perfeito grego é um tempo verbal que indica uma ação
realizada no passado, mas que persiste em seus efeitos até no presente;
portanto, o envio de Jesus continua. A ideia não é que a vida de Jesus termine
e outra comece; pelo contrário, a ideia é antes que Jesus assuma os seus
discípulos no único envio, que é o seu: «Assim como o Pai me fez seu enviado
("e eu continuo sendo o único enviado do Pai": isto diz o tempo
perfeito), eu também...". O envio de Jesus não falha. Com efeito, neste
momento, no momento em que deixa este mundo para regressar ao Pai, Jesus assume
os seus discípulos como prolongamento daquele único envio; Esta é a ideia de João.
A Igreja é a extensão da encarnação do Verbo e isto é possível em virtude da
presença do Espírito. Tendo-lhes dado o Espírito, Jesus pode dizer: «O meu
envio, ou melhor, a minha presença como enviado ao mundo, não falha, porque
vós, que agora possuís o meu mesmo Espírito (isto é, o meu fôlego, isto é, a
minha vida) agora são enviados para o mundo. Porém, você não é enviado em meu
lugar, mas sim na extensão do único envio, que é meu; da única missão, que é a
missão do Filho». É o mesmo que quando se diz que “os cristãos tornam-se filhos
no Filho”. É precisamente esta ideia: partilham o mesmo Espírito, isto é, o
mesmo fôlego, isto é, a mesma vida; portanto, compartilham a condição filial.
Portanto, neste sentido a encarnação se prolonga nos discípulos.
3.4. A segunda aparição e a conclusão do evangelho
(20.24-31)
«20,24Tomé, um dos Doze, chamado Dídimo, não estava
com eles quando Jesus chegou. 25Os outros discípulos disseram-lhe: «Vimos o
Senhor!». Mas ele lhes disse: “Se eu não vir o sinal dos cravos nas suas mãos,
e não colocar o meu dedo no sinal dos pregos, e não colocar a minha mão no seu
lado, não acreditarei”. 26Oito dias depois, os discípulos estavam de volta em
casa e Tomé também estava com eles. Jesus veio, a portas fechadas, ficou no
meio e disse: “A paz esteja convosco!”. 27Então disse a Tomé: «Põe aqui o teu
dedo e olha para as minhas mãos; estenda a mão e coloque-a ao meu lado; e não
seja um incrédulo, mas um crente! 28Tomé respondeu-lhe: “Meu Senhor e meu
Deus!”. 29Jesus lhe disse: “Porque você me viu, você acreditou; Bem-aventurados
aqueles que não viram e acreditaram! 30Jesus, na presença dos seus discípulos,
fez muitos outros sinais que não estão escritos neste livro. 31Mas estes foram
escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que,
crendo, tenhais vida em seu nome” (20,24-31).
Compreendemos que existe uma correlação entre o que
poderia ter acontecido a Tomé, se ele tivesse acreditado na palavra dos outros
discípulos, e o que João espera que aconteça no futuro àqueles que acreditam no
seu testemunho. O seu evangelho toma o lugar, para todas as gerações futuras,
daquele testemunho que os outros discípulos deram a Jesus Tomé não quiseram
aceitá-lo, mas nós – que vimos como ele se arrependeu mais tarde (embora isto
não esteja explicitamente explicitado) –. somos convidados a recebê-lo. O
funcionamento do texto fica claro: diz que Tomé poderia ter chegado à conclusão
a que então chegou, ou seja, reconhecer Jesus ressuscitado (“Senhor meu e Deus
meu!”), se tivesse acreditado no testemunho dos outros discípulos. . Com
efeito, foi precisamente isto que lhe disseram: «Vimos o Senhor!»; e ele
poderia ter acreditado neles. Este é exatamente o ponto. Assim, João, com o seu
evangelho escrito, desempenha exatamente a função que o testemunho daqueles
discípulos desempenha para com aqueles que não viram Jesus. Portanto, a
recomendação é não fazer como Tomé, que, no entanto, também funciona como um
atestado da fiabilidade de Jesus. aquelas testemunhas, porque no final ele teve
que admitir que o que lhe disseram era verdade. Pode-se dizer que todo o QV é
um grandioso atestado e testemunho de Jesus reconhecido como “o Senhor”. De
facto, por exemplo, os discípulos dizem: “Vimos o Senhor!”, que é uma das duas
expressões que Tomé também usa, quando reconhece Jesus: “Senhor meu e Deus
meu!”.
No QE a expressão mais utilizada para identificar
Jesus é “o Filho”; mas mesmo “o Senhor” não deixa de ter importância. Ambas as
expressões “Filho” e “Senhor” expressam a condição divina de Jesus. A expressão
“Filho” refere-se ao fato de Deus ser chamado de “Pai”. “Senhor” é o nome que
Deus tem segundo a revelação feita a Moisés; na verdade, “Senhor” é a tradução
de Adonai.
Então pode-se dizer que o Evangelho segundo João é, no
seu conjunto, um grandioso testemunho de Jesus reconhecido e confessado como “o
Senhor”. Desempenha,
portanto, a função que esse grupo desempenha aqui; na verdade, o título “o
Senhor” está no início e no final do evangelho, em dois pontos-chave. No início
é encontrado na boca de João Batista. Quando o questionam, perguntam quem ele
é; e o Baptista responde: «1,20 «Eu não sou o Cristo». 21Então lhe perguntaram:
“Quem é você então? Você é Elias?”. “Eu não estou”, disse ele. «Você é o
profeta?». “Não”, ele respondeu. 22Disseram-lhe então: “Quem é você? Para que
possamos dar uma resposta a quem nos enviou. O que você diz sobre você? 23Ele
respondeu: «Eu sou a voz que clama no deserto: endireitai o caminho do Senhor,
como disse o profeta Isaías»» (1,20-23). Na boca de João Batista o «Senhor» já
não é Adonai, mas é Jesus. Este é o primeiro uso do título «Senhor» para
identificar Jesus. Não há dúvida de que aqui «Senhor» é um título mais forte do
que «. Cristo», de «Elias», de «profeta»: aqui está o título máximo. Portanto,
no início do evangelho, ressoou nos lábios de João o título “Senhor”, que é o
nome de Deus, em referência a Jesus.
Em João 21, logo após a pesca milagrosa e inesperada,
o “discípulo amado” pronúncia uma última palavra. Ele disse muito poucas delas
no Evangelho e depois disso não dirá mais nada; e a última é precisamente: «É o
Senhor!» (21.7). Este é realmente um resumo extremo do que ele faz ao longo de
seu evangelho. O Evangelho fotografa-o na atitude de quem grita: “É o Senhor!”;
e é uma foto perfeita! É exatamente um instantâneo do que João é em todo o seu
evangelho. O fotograma que o representa no barco, enquanto diz a todos: «É o
Senhor!», é a fixação perfeita do papel que desempenha através do seu
evangelho, pois pode-se afirmar com certeza que, desde o início até ao fim, No
final, João não faz outra coisa senão dar testemunho de Jesus como “o Senhor”.
Então o seu evangelho substitui verdadeiramente o que
o grupo disse a Tomé: “Vimos o Senhor!”, isto é, Jesus é o Senhor; Jesus leva o
nome que é o nome próprio de Deus. Desta forma, João apresenta-se a todos
aqueles que o leem como um testemunho dado a Jesus, que pode gerar fé,
mostrando Tomé como um exemplo negativo e positivo ao mesmo tempo. Na verdade,
ele é um exemplo negativo, porque perdeu a oportunidade; mas também é positivo,
porque no final teve que reconhecer que os outros discípulos tinham razão.
Neste sentido o Tommaso é positivo e também nos ajuda. O QE pretende cumprir
exatamente esta função: para nós, que não podemos ver Jesus, existe a
possibilidade de acessá-lo apenas através do testemunho. E João escreve o seu
evangelho como atestado de que Jesus é o Senhor, para que quem se abre à fé
possa então ter vida precisamente em virtude desta fé.