quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Jürgen Habermas, Pensamento Pós-Metafísico

 




Estudos Filosóficos

Síntese: Paolo Cugini

 

I

Retorno À Metafísica?

 

Motivos De Pensamento Pós-Metafísico

 

A situação do filosofar atual tornou-se intransparente. Não me refiro à disputa das escolas, que sempre foi o meio propício ao desenvolvimento do filosofar. Eu penso na disputa em torno de uma premissa, tomada após Hegel como ponto de partida por todas as facções. Tornou-se obscura a posição com relação à metafísica. (pág.37)

 

 I .Aspectos do Pensamento Metafísico

 

Pensamento da identidade. A filosofia antiga herda do mito o olhar dirigido ao todo; distingui-se deste, porém, no nível conceitual, no qual ela refere tudo a um único elemento. As origens não são mais atualizadas através de narrativas com elevado teor de plasticidade como se fossem a cena primordial e o começo das correntes de gerações, como as primeiras no mundo; estes começos são subtraídos às dimensões de espaço e tempo, transformados abstratamente num elemento primeiro que, na qualidade de infinito, é contraposto ao mundo dos finitos ou é visto como subjacente a estes.

No mito, a unidade do mundo era produzida de modo deferente: como contato ininterrupto do particular com o particular, como a correspondência do semelhante com o dessemelhante, como o espelhar-se de brilhos e reflexos, como encadeamento concreto, entrelaçamento e mistura; o pensamento unitário da filosofia idealista rompe com o concretismo desta visão de mundo. O uno e o múltiplo, delineado abstratamente como a relação de identidade e diferença, constitui a relação fundamental, que o pensamento metafísico interpreta como sendo lógica e ontológica ao mesmo tempo: o uno passa a ser ambas as coisas – proposição fundamental e fundamento do ser, princípio e origem. O múltiplo é deduzido a partir disso no sentido da fundamentação e da constituição, e graças a essa origem, ele se reproduz como uma variedade ordenada.

Idealismo. O uno e o todo resultam de um esforço heróico do pensamento: o conceito do ser surge no momento da passagem do nível conceitual da narrativa para o esclarecimento dedutivo que segue o modelo da geometria. Daí a razão de ser estabelecida, desde Parmênides, uma relação íntima entre o pensamento abstrativo e seu produto, o ser; e Platão tira disso a conseqüência, de que a ordem fundadora da unidade, que subjaz, como essência, na variedade dos fenômenos, é de natureza conceitual.

Prima philosophia como filosofia da consciência. O nominalismo e o empirismo têm o mérito de terem descoberto as contradições do princípio metafísico e de terem descoberto as contradições radicais. O pensamento nominalista enfraquece as formae rerum  rebaixando-as a signa rerum que o sujeito cognoscente simplesmente subordina às coisas-nomes que afixamos às coisas.

A auto-consciência, a relação do sujeito cognoscente consigo mesmo, oferece, desde Descartes, a chave para a esfera interna, absolutamente consciente, das representações que temos dos objetos.

O conceito forte de teoria. Cada uma das grandes religiões apresenta-se como um caminho privilegiado e especialmente pretensioso para a obtenção da salvação individual da alma – por exemplo, o caminho salvífico do monge budista itinerante ou do eremita cristão. A filosofia recomenda, como seu caminho salvífico próprio, a vida dedicada à contemplação – os bios theoretikos; ele está no ápice das antigas formas de vida, acima da vita activa do homem de Estado, do pedagogo ou do médico. A teoria é afetada pela maneira como está inserida numa forma de vida exemplar. Ela abre aos poucos um acesso privilegiado à verdade, ao passo que o caminho do conhecimento teórico continua inacessível à maioria. A teoria exige o abandono do enfoque natural mundano e promete o contato com o extraordinário.

Na época da modernidade, o concito de teoria perde esta ligação com o evento sagrado. Perde também o caráter naturalmente elitista, que se ameniza, assumindo a forma de um privilégio social. O que se mantém é a interpretação idealista do distanciamento em relação ao contexto de interesses e da experiência cotidiana.

Caracterizei o pensamento metafísico vigente até Hegel como sendo um conceito forte de teoria, como doutrina das idéias, e como transformação do pensamento da identidade, consumado por uma filosofia da consciência. Tal forma de pensamento passou a ser questionada através de desenvolvimento históricos que feriam a metafísica a partir de fora; em ultima instância, desenvolvimento socialmente condicionados:

- O pensamento totalizador, voltado ao uno e ao todo, é posto em questão pelo novo tipo de racionalidade metódica que se impõe desde o século XVII, com o aparecimento do método experimental das ciências da natureza, e desde o século XVIII, com o formalismo na teoria moral, no direito e nas instituições do Estado de direito. A filosofia da natureza e o direito natural deparam-se com um novo tipo de exigências de fundamentação. Estas causam um estremecimento do privilégio atribuído ao conhecimento filosófico.

- No século XIX surgem as ciências histórico-hermenêuticas, que refletem as novas contingências e experiências do tempo, numa sociedade de economia que se torna moderna, cada vez mais complexa. A irrupção da consciência histórica fez que as dimensões de finitude ganhassem em termos de força de convicção e se configurassem em oposição a uma razão não situada, idealisticamente endeusada. Assim entra em campo uma destranscendentalização dos conceitos tradicionais fundamentais.

- No decorrer do século XIX generaliza-se a crítica contra a reificacão e a funcionalização de formas de vida e de relacionamento, bem como contra a auto-compreensão objetivista da ciência e da técnica. Estes motivos desencadeiam a crítica aos fundamentos de uma filosofia que comprime tudo nas relações sujeito-objeto. A mudança de paradigmas da filosofia da consciência para a filosofia da linguagem situa-se precisamente neste contexto.

- No final de tudo, até o clássico primado da teoria frente à práxis não consegue mais resistir às interdependências, que assumem destaque cada vez maior. A inserção das realizações teóricas em seus contextos práticos de formação e de aplicação desperta a consciência para a relevância dos contextos cotidianos de agir e da comunicação. Através do esboço do pano de fundo do mundo vital, estes atingem, por exemplo, o nível filosófico.

(págs. 39,40,41,42 e 43)

 

 

II. Racionalidade dos Procedimentos

 

A filosofia continuará fiel às origens metafísica enquanto puder pressupor que a razão cognoscente e reencontra no mundo estruturado racionalmente ou enquanto ela mesma empresta à natureza ou à história uma estrutura racional, seja ao modo de uma fundamentação transcendental, seja pelo caminho de uma penetração dialética do mundo. Uma totalidade racional em si mesma, seja do mundo, seja subjetividade formadora do mundo, garante respectivamente aos seus membros a aos momentos particulares a participação na razão. A racionalidade é pensada como sendo material, como uma racionalidade que organiza os conteúdos do mundo, podendo ser lida a partir deles. A razão é razão do todo e de suas partes.

Passa a valer como racional, não mais a ordem das coisas encontrada no próprio mundo ou concebida pelo sujeito, nem aquela surgida do processo de formação do espírito, mas semente a solução de problemas que aparecem no momento em que se manipula a realidade de modo metodicamente correto. A racionalidade do procedimento não está mais em condições de garantir uma unidade antecipada na pluralidade dos fenômenos.

Para as ciências experimentais nomológicas passa a valer somente o acesso objetivador à natureza, baseado na mera observação; enquanto que as ciências hermenêuticas limitam-se a um acesso ao mundo histórico-cultural através do enfoque performativo de um participante da comunicação

Por isso, o pensamento metafísico viu-se num situação embaraçosa, no momento em que o saber passou a ser retirado de uma base de racionalidade material e transportado para o nível de uma racionalidade “procedural”.

Ofereceu-se então como alternativa uma divisão de trabalho capaz de assegurar à filosofia um campo de objetos próprios e um método próprio. É sabido que a fenomenologia e a filosofia analítica, cada uma à sua maneira, tomaram este rumo. Entretanto, a antropologia, a psicologia e a sociologia não tiveram muito respeito por estas reservas; as ciências humanas transgrediram as linhas de demarcação da abstração e da análise “idealizadora”, invadindo os santuários filosóficos.

Como derradeiro subterfúgio tentou-se então a guinada em direção ao irracional. Neste enfoque, a filosofia deveria garantir suas propriedades e sua referência à totalidade pagando o preço da renúncia a um conhecimento em condições de concorrer. Ela apresentou-se como fé filosófica e iluminação da existência (Jaspers), como mito complementador das ciências (Kolakwski), como pensamento místico do ser (Heidegger), como tratamento terapêutico da linguagem (Wittgenstein), como atividade desconstrutiva (Derrida) ou como dialética negativa (Adorno). O anticientismo destes esforços permite apenas que se diga o que a filosofia não é ou não pretende ser; e na qualidade de não-ciência, a filosofia precisa manter indeterminado o seu status próprio. (págs.44, 45,46 e 47)

 

III. Modo de Situar a Razão

 

O pensamento pós-metafísico assumiu no início a forma de uma crítica ao idealismo de tipo hegeliano. A primeira geração dos discípulos de Hegel criticou na obra do mestre a preponderância secreta do geral, do atemporal e do necessário sobre o particular, mutável e casual, portanto, a moldura idealista do conceito de razão.

O historismo e a da vida atribuíram à mediação da tradição à experiência estética e à existência histórica, social e corporal do indivíduo um significado gnosiológico, o qual não tardaria em explodir o conceitual clássico de sujeito transcendental. No lugar da síntese transcendental é introduzida a produtividade da “vida”, aparentemente concreta, porém destituída de estrutura.

Tal histiricização e singularização do sujeito transcendental força uma transformação na arquitetônica dos conceitos fundamentais. O sujeito transcendental perde sua conhecida posição dupla como sendo um frente à totalidade e como um entre muitos.

Todas estas tentativas de destranscendentalizar a razão ficam presas ainda a pré-decisões conceituais da filosofia transcendental. As alternativas falsas caem somente quando há a passagem para um novo paradigma, o do entendimento. Os sujeitos capazes de fala e de ação, que ante o pano de fundo de um mundo comum da vida, entendem-se mutuamente sobre algo no mundo, podem ter frente ao meio de sua linguagem uma atitude tanto dependente como autônoma: eles podem utilizar os sistemas de regras gramaticais, que tornam possível sua prática, em proveito próprio. Ambos os momentos são co-originários. De um lado, os sujeitos, encontram-se sempre num mundo aberto e estruturado lingüisticamente e se nutrem de contextos de sentido gramaticalmente pré-moldados. Nesta medida, a linguagem se faz valer frente aos sujeitos falantes como sendo algo objetivo e processual, como a estrutura que molda as condições possibilitadoras. De outro lado, o mundo da vida, aberto e estruturado lingüisticamente, encontra o seu ponto de apoio somente na prática de entendimento de uma comunidade de linguagem. A formação lingüística do consenso, através da qual as interações se entrelaçam no espaço e no tempo, permanece aí dependente das tomadas de posição autônomas dos participantes da comunicação, que dizem sim ou não a pretensões de validade criticáveis. (pág.48,50,52 e 53)

 

IV. A Guinada Lingüística

 

A passagem da filosofia da consciência para a filosofia da linguagem traz vantagens objetivas, além de metódicas. Ela nos tira do círculo aporético onde o pensamento metafísico se choca com o antimatafísio, isto é, onde o idealismo é contraposto ao materialismo, oferecendo ainda a possibilidade de podermos atacar um problema que é insolúvel em termos metafísicos: o da individualidade. De resto, na crítica à filosofia da consciência mescla-se uma gama diferenciada de motivos. Gostaria de nomear pelo menos os quatro mais importantes:

a) Quem escolhia a autoconsciência como ponto de partida para a análise da auto-referência do sujeito cognoscente, era levado a discutir, desde a época de Fichte, a seguinte objeção: a autoconsciência não pode ser um fenômeno originário, pois a espontaneidade da vida consciente não consegue assumir a forma de objeto sob a qual ela deveria ser subsumida para que pudesse ser detectada no momento em que o sujeito se debruça sobre si mesmo.

b) Desde a época de Frege, a lógica e a semântica deram um rude golpe na concepção da teoria do objeto que resulta da estratégia conceitual da filosofia da consciência.

c) o naturalismo duvida, ale disso, que seja possível tomar a consciência como base, como algo incondicional e originário: foi preciso fazer uma concordância entre Kant e Darwin.

d) Tais considerações e reservas tiveram que aguardar a guinada lingüística para encontrar um solo metódico firme.

É verdade que a guinada lingüística aconteceu inicialmente no interior dos limites do semanticismo, onde se pagou  o preço de abstrações que tornaram impossível explorar plenamente o potencial de solução do novo paradigma. A análise semântica permanece essencialmente uma análise das formas da proposição, principalmente das formas de proposições assertóricas; ela prescinde da situação da fala, do uso da linguagem e de seus contextos, das pretensões, das tomadas de posição e dos papéis dialogais dos falantes, numa palavra: prescinde da pragmática da linguagem, a qual iria deixar a semântica formal entregue a um outro tipo de abordagem, a saber, à consideração empírica. Do mesmo modo a teoria da ciência fez uma distinção entre lógica da pesquisa e questões de dinâmica da pesquisa,  a qual seria reservada aos psicólogos, historiadores e sociólogos.

A guinada lingüística não se completou somente através da semântica da proposição, mas também através da semiótica – como é o caso de Saussure. Entretanto, o estruturalismo cai, de modo inteiramente semelhante, na armadilha de falácias abstrativas. (págs. 53, 54, 55 e 57)

 

IV. deflação do Extraordinário

 

Na medida em que a filosofia se recolheu ao sistema das ciências, estabelecendo-se como uma disciplina acadêmica ao lado de outras, foi constrangida a abandonar a pretensão de constituir um acesso privilegiado à verdade e à significação salvífica da teoria. Ela continua sendo uma tarefa de poucos, mas somente no sentido de um saber especializado, reservado aos experts.

A partir daí, o pensamento filosófico pode voltar-se para a ciência tomada como um todo e realizar uma auto-reflexão das ciências, a qual ultrapassa as fronteiras da metodologia e da teoria da ciência, pondo a descoberto o sentido subjacente na formação científica das teorias – opondo-se à fundamentação última, metafísica, do saber em geral.

A caracterização ocidental do logos reduz a razão àquilo que a linguagem realiza em uma de suas funções, na representação de estados de coisas. (págs.58 e 59)

 

 

 

III

Entre a Metafísica e a Crítica da Razão

 

A Unidade Da Razão Na Multiplicidade De Suas Vozes

 

“Unidade e multiplicidade” foi, desde o início, o tema mais importante da metafísica. Esta pretende deduzir tudo a partir de uma unidade; desde Platão ela se apresenta, em suas manifestações mais marcantes, como doutrina da unidade do todo; a teoria tem como alvo o uno na condição de origem e fundamento do todo. Antes de Plotino, este uno fora caracterizado como motor primeiro ou idéia de bem. Passou a ser designado, a seguir, como summum ens, espírito absoluto ou incondicionado.

Este protesto contra a unidade em nome de uma pluralidade avassaladora manifesta-se dúvida, em dois modos contrários de leitura: a) no contextualismo radical de um Lyotard ou de um Rorty continua viva a velha intenção crítica da metafísica de salvar os momentos do não-integrado, do heterogêneo e divergente, do contraditório e conflitivo, do passageiro e acidental, que foram sacrificados ao idealismo. b) entretanto, a apologia do fortuito e a renúncia ao fundamento perdem, noutros contextos, seus contornos subversivos; nestes elas conservam apenas o sentido funcional de preservar as forças da tradição, tornadas incapazes de verdade, contra pretensões críticas irreverentes, a fim de obter proteção cultural para um processo de modernização da sociedade que caiu em terreno escorregadio.

O debate diferenciado em torno da unidade e da multiplicidade não pode ser reduzido a um simples pro ou contra. O quadro complica-se ainda mais, dadas as afinidades latentes que existem nas escolhas. Os dois partidos somente podem formar uma constelação clara pro ou   contra o pensamento da metafísica da unidade, se puderem ser colocados em relação com um terceiro partido, que passa a ser tido como o inimigo comum: refiro-me ao humanismo daqueles que tentam salvar, em continuidade com a tradição kantiana e num nível filosófico-lingüístico, um conceito de razão cético e pós-metafísico, mas não derrotista. Na perspectiva do pensamento da unidade metafísica, o conceito de razão comunicativa, processual, parece demasiado tênue, uma vez que ele situa todo o conteúdo no terreno do contingente, levando até a pensar que a própria razão surgiu de modo contingente. Minhas considerações caminham em direção à tese de que a unidade da razão não pode ser percebida a não ser na multiplicidade de suas vozes, como sendo uma possibilidade que se dá, em princípio, na forma de uma passagem ocasional, porém, compreensível, de uma linguagem pra a outra. E esta possibilidade do entendimento, assegura apenas de modo processual e realizada de modo transitório, forma o pano de fundo para a variedade daquilo com que nos defrontamos na atualidade, sem que possamos compreendê-lo. (págs. 151, 152 e 153)

 

I

 

Primeira colocação: como é possível  o uno ser tudo sem que com isso seja posta em risco sua unidade, uma vez que o universo é composto de muitas partes distintas? Esta questão decorre do problema da methexis da doutrina platônica das idéias; o texto de Hegel sobre a diferença dá-lhe a seguinte configuração: de que modo é possível pensar a identidade da identidade e da diferença? Plotino conseguira atribuir a este problema uma moldura mais nítida através de uma formulação paradoxal: “o uno é tudo e nem sequer um (de tudo)”. O uno é tudo, na medida em que é inerente a todo ente particular como sua origem; ao mesmo tempo, porém, o uno é nada de tudo isso, na medida em que somente pode conservar sua unidade na diferenciação com a alteridade de qualquer ente singular. Portanto, para ser tudo, o uno está em tudo e, ao mesmo tempo, sobre tudo; caso contrário, ele não poderia continuar sendo ele mesmo, uno, servindo de base – antes de tudo o que é intramundano.

Em segundo lugar, coloca-se a questão de saber se o idealismo, que pretende reconduzir tudo ao uno, desvalorizando conseqüentemente todo o ente mundano, reduzindo-o ao nível de fenômenos ou imagens, faz jus à integridade do singular, à sua individualidade e “inconfundibilidade”. Para o trabalho de desmembramento do geral no particular a metafísica tem à disposição os conceitos de gêneros a diferença específica. De acordo com o modelo genealógico, a árvore das idéias ou conceitos de gênero ramifica-se em cada nível de generalidade em diferenças específicas, das quais cada espécie pode formar um genus proximum para ulteriores determinações. O particular é particular somente em relação a um e um determinado geral. Para a particularização do singular na forma de indivíduo estão à disposição os meios não conceituais de espaço, tempo e matéria, bem como as características acidentais, através das quais o indivíduo difere daquilo que lhe advém pelo fato de pertencer a gêneros e diferenças específicas. Desta maneira, o individual é perceptível somente através da casca acidental que adere ao núcleo do ente determinado genérica e especificamente, como se fosse algo exterior e fortuito. As figuras metafísicas de pensamento fracassam perante o individual.

No seio do próprio movimento do pensamento metafísico nasce um terceiro motivo da crítica à metafísica, a saber, a suspeita de que todas as contradições se condensam no venerável conceito de matéria este forma como que a proposição básica do pensamento afirmativo. Será que podemos determinar a matéria – à qual os entes no um mundo devem sua finitude, sua concreção no tempo e no espaço, sua consistência – de modo puramente negativo, como sendo o não-ente? Não seria necessário talvez pensar aquilo no qual as idéias são imaginadas e no qual devem empalidecer assumindo a forma de fenômenos, como sendo um princípio que flui contra o inteligível – não apenas como privação, como resíduo que sobra após a retirada de todo o ser determinado e de todo o bem, mas como uma forma de negação ativa, capaz de produzir o mundo das aparências e do mal? Esta questão foi recolocada de modo penetrante sob o enfoque genético. Suposto o primado do uno, que a tudo precede e que está na base de tudo – por que existe então o ente e não antes o nada? (págs.157,158 e 159)

 

II

 

As considerações de Schelling encaixam-se já no contexto de premissas da filosofia da consciência, que não pensa mais a unidade do múltiplo como sendo um todo objetivo, pré-ordenado ao espírito humano, mas como resultado de uma síntese, levada a cabo por ele mesmo. A operação de produção da unidade numa pluralidade previamente subordinada é explicada por Kant através da construção de figuras geométricas simples e através de séries de números. Neste processo, o sujeito procede automaticamente de acordo com as regras tomadas como base, pois a representação da unidade não pode surgir do próprio ato de ligação. E as ligações sintéticas do intelecto são, de sua parte, unidas através da síntese superior da apercepção pura. Sob este ângulo Kant interpretou o “eu penso” formal, que deve poder acompanhar todas as minhas representações, caso se queira preservar a unidade egológica de uma autoconsciência sempre idêntica na pluralidade das representações. (págs

.160)  

 

IV

 

O desfecho da controvérsia em torno dos dois tipos de contextualismo revela-nos que a guinada lingüística, conseguindo embora transformar a razão e o pensamento da unidade, não logrou expulsá-lo da discussão filosófica. Não obstante, o contextualismo tornou-se um fenômeno marcante do espírito de nossa época. O pensamento transcendental centrara seu interesse em formas estáveis  para as quais não existem alternativas inteligíveis. Hoje, ao contrário, tudo cai no redemoinho da experiência contingente: tudo poderia ser diferente do que é – as categorias do intelecto, os princípios da socialização e da moral, a constituição da subjetividade, os próprios fundamentos da racionalidade. E existem boas razões para isso. A própria razão comunicativa declara tudo contingente, inclusive as condições da gênese de seu próprio meio lingüístico. Entretanto, as estruturas do entendimento lingüístico possível constituem um limite, um elemento intransponível para tudo aquilo que pretende ter validez no interior de formas de vida estruturadas lingüisticamente. (pág. 176) 

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