terça-feira, 30 de abril de 2024

O RESSUSCITADO (Jo 20)

 





 

Texto: Marcheselli e outros

Tradução: Paolo Cugini

 

Comparado aos sinópticos, o Evangelho segundo João tem a característica de ter uma narrativa mais abundante sobre os acontecimentos pascais. O evangelho segundo Marcos é muito conciso; o de Mateus já tem mais material; o segundo Lucas é o sinóptico mais desenvolvido; João é aquele, entre os quatro evangelistas, que lhe dedica mais espaço: não só João 20, mas também João 21. João é o único que apresenta ambas as aparições em Jerusalém e na Galileia; para Marcos e Mateus as aparições acontecem na Galiléia, enquanto para Lucas tudo acontece em Jerusalém. Em João há a confluência destas duas linhas tradicionais: João 20 narra os episódios ocorridos em Jerusalém, enquanto João 21 se passa inteiramente na Galiléia; é um capítulo muito denso e profundamente unitário.

 

1. Hora, lugar, personagens, verbos

Ao ler uma história, os critérios a procurar para compreender como o autor a estruturou são: 1. tempo; 2. espaço; 3. personagens.

1.1. O clima

Do ponto de vista das indicações cronológicas, tudo se passa na seguinte sequência:

1.      na manhã do “primeiro dia da semana” (20.1-18);

2.      “na tarde daquele dia” (20,19-25);

3.      “oito dias depois” (20,26-29).

O texto de que tratamos corresponde à “manhã do primeiro dia depois do sábado”, ou manhã do dia de Páscoa. Então, o que é narrado nos vv. 1-18 (mais da metade do capítulo) supostamente aconteceu pela manhã; do ponto de vista cronológico é uma parte extremamente compacta.

1.2. O lugar

Do ponto de vista espacial, a forma como o texto foi construído é muito interessante. João, como narrador extremamente refinado, organizou a primeira parte do capítulo segundo um movimento contínuo de um lugar não especificado (onde nunca é dito) até o túmulo. Existe um lugar que João nunca localiza; e também na segunda parte do capítulo fala do “lugar onde estavam os discípulos”, sem nunca especificar onde fica. Talvez haja nisso também uma intenção teológica e espiritual, pois o lugar onde os discípulos estão, do ponto de vista geográfico, pode ser qualquer lugar. Onde estão os discípulos, Jesus também vem. Esta interpretação provavelmente já pode ser dada. Já não existe a localização, por exemplo, de uma casa dos discípulos; ao contrário, onde estão – e João já não diz onde estão – aí vem o Senhor; e isso será contado na segunda parte do capítulo. Nesta primeira parte tudo é tocado neste movimento, que é reproduzido três vezes. Três vezes ocorre o deslocamento de um lugar não especificado até o túmulo; e depois de volta, do túmulo para aquele lugar não especificado. Vejamos essas três mudanças, apoiando-nos no texto.

O v. 1-2 descrevem este duplo movimento: «Maria Magdala foi ao sepulcro pela manhã (…) Depois correu e foi ter com Simão Pedro e o outro discípulo», sem que se dissesse onde se encontravam. De fato, há um movimento pendular: de um lugar não especificado até o túmulo e depois do túmulo até o lugar onde estão os discípulos. Depois recomeçamos: «Pedro saiu então junto com o outro discípulo e foram ao sepulcro» (v. 3); o pêndulo voltou para a tumba. E ainda: «Os discípulos voltaram para casa» (v. 10), e assim o pêndulo voltou a oscilar. Este é o segundo movimento duplo. O terceiro movimento é menos mecânico: «Maria, em vez disso, estava fora, perto do túmulo» (v. 11). Desta vez o evangelista não usa verbo de movimento para indicar o movimento de Maria Madalena, mas, quando a descreve, ela já voltou ao túmulo. Em vez disso, o movimento inverso é novamente afirmado explicitamente: «Maria Magdala foi anunciar aos discípulos» (v. 18). Fica claro como a passagem é construída: há um vaivém inicial nos dois primeiros versos; é um texto curto. Uma segunda ida e volta nos vv. 3-10: um texto mais longo. Finalmente, uma terceira ida e volta nos vv. 11-18.

1.3. Personagens

Estas observações ajudam a estruturar o texto de forma clara, com o esquema: A – B – A1.

a.       A é composto pelos vv. 1-2;

b.      o v. 3-10 compõem B;

c.       A1 é dado pelos vv. 11-18.

 Chamamos de A1 porque a personagem presente neste “quadro” é a mesma: Maria Madalena. É ela quem, na primeira cena, sai pela manhã, vai ao túmulo e depois volta; é ela quem, na última cena, está no túmulo e depois volta. Em vez disso, na parte central, os protagonistas do movimento são Simão e o “discípulo que Jesus amou”: são eles que fazem o caminho. Simão Pedro e o outro discípulo já são mencionados no v. 2; quando Maria Madalena chega àquele lugar não especificado, eles também entram em cena, porque é a eles que ela diz: “Levaram embora o Senhor”. Mas aqui eles não estão envolvidos em nenhum movimento; o movimento é só de Maria. Portanto a estrutura, como um todo, é facilmente reconhecível e também é dramaticamente muito eficaz. Repetimos: são três movimentos de ida e volta; onde, porém, os personagens estruturam a história em A – B – A1.

Vejamos os personagens envolvidos: Maria Madalena, Simão Pedro e o outro discípulo; em A1 aparecem dois personagens, que parecem ser anjos, e por fim o jardineiro, identificado como Jesus. Este é o grupo de personagens; não há outros. Somente no último versículo aparece o grupo dos discípulos: não mais apenas dois discípulos, mas o grupo como tal.

1.4. Os verbos

Neste ponto podemos potencializar essa dinâmica de movimento. Especialmente na sua primeira parte, João 20 é caracterizado por um uso massivo e bastante insistente de verbos de movimento (o verbo grego érchomai, “ir, vir, chegar”, com todos os seus compostos é frequentemente usado; além disso, há o verbo “ correr”; “dobrar” é um verbo de movimento). Verbos de movimento ajudam a estruturar a história.

O outro tipo de palavras que domina a cena são dados pelos verbos de visão que realmente constituem a trama da história. No que diz respeito aos verbos de visão, o QE possui um léxico muito rico; conhece pelo menos 6; aqui são usados ​​​​3 verbos de visão diferentes, que em italiano não podemos reconhecer, pois são sempre traduzidos com um único verbo. Em vez disso, no texto grego há três verbos diferentes, que apresentaremos no comentário.

 

2. A visita ao túmulo vazio

Concentramo-nos principalmente na cena central, com a visita ao túmulo vazio.

2.1. O primeiro movimento de ida e volta (Jo 20.1-2)

«20.1 No primeiro dia da semana, Maria Madalena chega ao túmulo de madrugada, quando ainda estava escuro, e vê a pedra retirada do túmulo. 2Então corre e vai ter com Simão Pedro e com o outro discípulo, a quem Jesus amava, e diz-lhes: «Tiraram o Senhor do sepulcro e não sabemos onde o colocaram!»».

«Maria Madalena vem»: existe o verbo érchetai, “ela vem”, de uso muito comum, que para João é muito importante. «E ele vê»: é o verbo blépo, “ver”. «Depois ele corre e vem»: é o mesmo verbo de antes, usado tanto para ir como para voltar. Sublinhamos que Maria Madalena chega ao túmulo e “vê”. É interessante que, no QE, não esteja dito em nenhum lugar por que Maria foi ao túmulo naquela manhã. Alguns afirmam que ela foi “ver”; em vez disso, João escreve que, quando vai, ele “vê”. Se Marcos e Lucas escrevem que ela vai ungir, João não especifica nenhum motivo; no entanto, desta forma a experiência visual é enfatizada. Maria vai; ninguém sabe por quê; a única coisa que a evangelista escreve sobre o que aconteceu é o que viu: é a única coisa que ela relata. Ela não diz por que foi, só que quando foi lá ela viu.

O que ele viu? Ele viu “a pedra tirada do túmulo”. Podemos imaginar a cena: Maria Madalena chega ao jardim e, de longe, vê que a pedra que fechava a cavidade do túmulo foi retirada. Lembremos como foram feitos os túmulos de que falamos aqui: foram escavados na rocha; não eram túmulos individuais, mas familiares. A entrada dava acesso a uma sala, uma espécie de vestíbulo, onde eram preparados os cadáveres; então, ao redor desta sala, uma série de nichos se abriu. Na Palestina, no período histórico de Jesus, os nichos funerários são de dois tipos: “arcosolio” (onde o cadáver é colocado longitudinalmente); “forno” (o buraco onde é colocado o cadáver é menor e mais profundo). O tipo de túmulo encontrado onde se encontra o Santo Sepulcro é em “forma de forno”. O enterro no “forno” é perfeitamente datável, porque desapareceu com a destruição de Jerusalém em 135 DC; portanto é um tipo de sepultamento que permite uma datação precisa. Então há uma primeira câmara (um vestíbulo) e depois há os nichos que se abrem. Maria Madalena nem chega à entrada do túmulo: ao longe, vê que a pedra foi retirada.

2.2. A corrida de Pedro e do “discípulo amado” ao túmulo (Jo 20,4)

«20.4Então os dois correram juntos e o outro discípulo correu mais rápido que Pedro e chegou primeiro ao sepulcro».

A cena central é construída assim: primeiro “os dois juntos”, depois se separam. Depois o evangelista segue o “discípulo amado”; então Pedro segue; depois volta ao “discípulo amado”; finalmente, ambos voltando. A história é muito bem construída. Há o movimento de deslocamento conjunto do local não especificado até o túmulo; mas eles logo se separam. Mas o início do v. 4 os vê juntos: «Os dois correram juntos»; para encontrá-los juntos, você tem que ir para v. 10: “Portanto eles foram novamente para eles” ou “para eles; onde eles estão; em sua casa" (mas em grego não existe a palavra "casa"). O V. 10 mostra-os juntos novamente, caminhando de volta. Em 20.4b-9 há separação: aquele vem primeiro; depois o outro; depois o primeiro novamente. Também aqui existe uma estrutura A – B – A1: Giovanni – Simone – Giovanni.

2.3. O “discípulo amado” (20,4b-5)

O “discípulo amado” “20,4b correu mais rápido que Pedro e chegou primeiro ao túmulo 5e, curvando-se (ou: “curvando-se”), viu as roupas caídas, mas não entrou”. Há muito movimento: «correu para a frente», «veio», «inclinou-se»; E depois vem o verbo da visão: “vê”. Mesmo para o “discípulo amado” o movimento conduz a uma experiência visual. Ele foi mais longe que Maria Madalena: evidentemente o “discípulo amado” chega à entrada da cavidade do túmulo, inclina-se (ficando do lado de fora com o corpo) para ver e assim “vê” uma parte do que está no vestíbulo; mas não entra. Para ele o evangelista usa o mesmo verbo que usou para Maria Madalena: blépo. Este discípulo “dobra-se”: o seu movimento termina mais longe que o de Maria Madalena; portanto, tendo ido mais longe, ele “vê” mais. Há uma proporção entre a distância que o movimento vai e quantos objetos o personagem vê. E então ele “vê as roupas caídas”, nada mais. Aqui o grego usa o termo othónia, que traduzimos: “as roupas”. É um termo plural, que indica a totalidade dos objetos funerários. O kit funerário, aquele com o qual o cadáver era embrulhado, era confeccionado com diversos tipos de tecidos e panos. Mais tarde falamos de uma “mortalha”; no caso de Lázaro falamos de “bandagens”, que envolvem as extremidades (Jo 11.44). Depois pode haver um sindòn, ou um grande lençol que envolve todo o corpo. Portanto, havia pelo menos três tipos diferentes de “panos”; o termo othónia é genérico, inclui todos eles. O evangelista não especifica: escreve simplesmente que o “discípulo amado” vê “as roupas fúnebres”, mas não entra.

2.4. Pedro (20,6-7)

«20,6Vem também Simão Pedro, que o seguia, e entra no sepulcro e vê as ligaduras caídas 7e o sudário – que estava sobre a sua cabeça – não com as ligaduras caídas, mas separadamente, cuidadosamente dobradas, num determinado lugar».

«Ele vem»: é sempre o mesmo verbo grego érchomai. Embora se diga do “discípulo amado” que ele não entra, em vez de Pedro está escrito que ele “entra no túmulo”. O movimento dos personagens termina cada vez mais para frente: Maria Madalena parou em jardim; o “discípulo amado” chegou à entrada do túmulo; Pedro entrou no túmulo. À medida que o movimento avança você vê mais; na verdade, Pedro “vê” (em grego: theoréo). Pedro entra e vê assim o que também viu o “discípulo amado”: ​​diz-se que vê genericamente “as vestes funerárias”. Mas então um versículo inteiro é usado para descrever um desses panos. É evidente que este é o elemento “perturbador”, que levanta uma questão. O objeto da visão de Pedro é duplo: o primeiro objeto coincide com o que o “discípulo amado” viu e não merece menção especial; em vez disso, o segundo objeto é descrito com uma quantidade impressionante de elementos. É claro que este é o ponto em que nos concentramos.

O termo grego soudarion vem do latim e indica um lenço que - como você pode imaginar - pode ser usado para coletar suor ou cobrir o rosto. A primeira característica deste «sudário» é «que estava na sua cabeça». É um dos panos: é aquele que cobre o rosto e “não fica com as bandagens caídas” no chão (portanto não está com os demais “panos”). Um primeiro elemento é este: ao entrar, Pedro vê que as roupas não estão todas no mesmo lugar dentro do vestíbulo do sepulcro; alguns estão de um lado, enquanto o sudário está do outro lado, «não com as bandagens deitadas, mas (aqui há a insistência: chorìs, «à parte») enroladas separadamente, bem dobradas, num determinado lugar" Novamente, a mortalha está “bem dobrada”. Portanto, este sudário traz consigo o traço da atividade humana (ou talvez até divina); alguém fez alguma coisa com esta mortalha: se está dobrada, então alguém dobrou e assim ficou. Depois o evangelista insiste: “Num determinado lugar”. Há, portanto, uma certa insistência em caracterizar o sudário:

1.      o facto de estar do outro lado em relação aos restantes objectos funerários;

2.      o fato de estar “bem dobrado”, elemento que indica que foi assim disposto, que alguém fez alguma coisa com aquela mortalha.

2.5. Novamente o “discípulo amado”, que “vê e crê” (Jo 20,8).

Seguindo o esquema A – B – A1, voltamos agora ao “discípulo amado”.

«20.8Então entrou também o outro discípulo, que tinha chegado primeiro ao sepulcro, e viu e acreditou.»

«Quem veio»: aqui há sempre o mesmo verbo grego. Se antes o “discípulo amado” não tinha entrado, agora entra também ele: “Entrou (...) e viu e acreditou”. Aqui o evangelista muda o verbo: duas vezes usou o verbo blepo; então ele usou o verbo theoréo pela primeira vez; agora mude e use horáo. No QV os dois primeiros verbos aqui usados ​​indicam experiência sensível, visão no sentido fenomenal; eles nunca são usados ​​para indicar visão profunda (exceto, talvez, em um caso). Em vez disso, este é o uso que João normalmente faz do verbo horáo: ele o usa para indicar um tipo de “visão” que capta o significado daquilo que ele vê. É evidente que existe a visão como uma experiência puramente sensível (você vê um objeto e pode descrevê-lo em forma, cores, etc.); em vez disso, quando usa horáo, João indica um tipo de visão que capta o significado último do evento que caiu sob a experiência dos sentidos (neste caso é o sentido da visão). Então se compreende melhor a ligação entre os dois verbos “viu e acreditou”: na QV este tipo de visão já é uma visão profunda. O fato de João combinar “viu e acreditou” constitui um hendiadys, ou seja, dois verbos para um único significado. O significado aqui é: «Viu para crer», «Viu crendo». Não são duas ideias distintas: é uma visão que capta o sentido último do que aconteceu e, portanto, gera fé. Não são duas ações completamente distinguíveis: “Ele viu e passou a acreditar”. O que você viu para fazer você acreditar? Comecemos dizendo o que ele não viu: ele não viu três coisas.

1.      1.Ele não viu um milagre: é completamente estranho à perspectiva joanina querer dizer que ele teria visto um milagre e que, por isso, teria acreditado. Portanto a primeira operação a fazer é excluir que o verbo “viu” indique que ele viu algo prodigioso. Pode ser excluída pelo seguinte motivo: na QV a fé gerada pelo prodigioso é julgada como uma fé problemática e insuficiente. Jesus não confia em quem o procura pelo aspecto prodigioso dos sinais que realiza (Jo 2,23-25; Jo 6,26). A QV explica uma certa desconfiança por parte de Jesus e do evangelista para com aqueles que procuram Jesus, porque são movidos pela experiência prodigiosa dos sinais, pelo seu elemento milagroso. Quando uma pessoa o procura por causa disso, Jesus fica extremamente desconfiado. Então pareceria muito estranho que, dentro do túmulo, o “discípulo amado” tivesse visto um milagre, porque seria contraditório com esta frase presente na parte anterior do evangelho. É verdade que existe uma certa linha exegética que, pelo contrário, apoia isto; mas não me parece muito convincente. Alguns autores, mesmo muito sérios, explicam que o “discípulo amado” teria visto as bandagens como o casulo da crisálida; então teria entendido que algo havia acontecido: o corpo teria evaporado, deixando a roupa funerária com a marca do cadáver. Objetivamente, este elemento não está presente no texto e enfatiza a experiência do milagre, que é problemática para o evangelista. Portanto o “discípulo amado” não “viu” um milagre.

 

2.      Não viu mais do que Pedro: a fé do “discípulo amado” não surge porque teve a possibilidade de uma experiência quantitativamente maior. Nasceria então a fé, porque haveria um “mais” de experiência sensível. Mas não é assim: ao entrar no túmulo, o “discípulo amado” vê exatamente as coisas que vê ele viu Pietro. Há uma diferença, que porém não reside na quantidade de coisas vistas. Obviamente há necessidade de uma certa experiência sensível, mas não é o “mais” da experiência sensível que gera a fé. Com a mesma quantidade de objetos vistos, um acredita e o outro não. Há quem afirme que Pedro também acreditou: o evangelista sugeriria isso implicitamente. Contudo, este não é o caso, porque é contrário à orientação do texto. Neste momento Pedro não aceitou a fé. O texto estabelece uma diferença entre dois: um chegou à fé, enquanto o outro ainda não. Portanto o “discípulo amado” não “viu” mais do que Pedro. Isto é importante: a fé não é gerada porque uma pessoa teve a sorte de ter uma experiência quantitativamente maior que outra. Obviamente é necessário ter algumas experiências, mas não é o “mais”, não é a quantidade, que gera a fé. Portanto o “discípulo amado” já não via Pedro; mas ele "acreditou".

 

3.      Ele não viu Jesus: não é tão óbvio e precisa ser explicitado. O “discípulo amado” “viu”, mas não viu Jesus. Portanto o “discípulo amado” não viu milagre; ele não viu mais Pedro; ele não viu Jesus. Graças a isso poderemos mostrar que a bem-aventurança que encerra o evangelho se aplica, antes de tudo, a ele. Quando Jesus diz a Tomé: «Porque me viste, acreditaste; Bem-aventurados aqueles que não viram e acreditaram!” (20.29), pois esta bem-aventurança aplica-se, antes de tudo, ao “discípulo amado”. Portanto o “discípulo amado” não viu Jesus: o túmulo está vazio; Jesus não está no túmulo. Então agora vamos ver o que o “discípulo amado” “viu”. Aqui não existe um termo técnico joanino, que seria seméion (“sinal”); o evangelista não usa esta palavra. Contudo, no final do capítulo lemos: «Jesus, na presença dos seus discípulos, fez muitas outros sinais...” (20h30, CEI2008). Nesta história falta o termo “sinal”; no entanto, uma grande linhagem de exegetas – e eu com eles – sustenta que aquilo que o “discípulo amado” experimentou no túmulo corresponde fundamentalmente ao que o evangelista, em outro lugar, chama de “um sinal”: na disposição das roupas dentro do túmulo, Giovanni capta uma dimensão de signo. No QE o signo é uma experiência sensível (portanto algo que toca os cinco sentidos humanos: neste caso é a visão, mas também podem ser a audição, o olfato, o paladar, o tato) dentro da qual nos faz perceber o transcendente, o divino . Portanto, para João, o sinal implica a coexistência de dois elementos: a experiência sensível e aquele “mais” que é Deus que nela se manifesta, a transcendência que se vislumbra na experiência sensível. Então a experiência sensível torna-se um “sinal”, deixando brilhar algo que vai além da pura experiência dos sentidos humanos. Este é o “sinal” joanino. Dentro do túmulo o “discípulo amado” faz esta experiência: naquilo que o seu sentido da visão percebe, ele capta a dimensão do sinal.

Em que sentido é um “sinal”? E do que é um “sinal”? De um modo que pode parecer engraçado, mas também sério, podemos imaginar que, quando o “discípulo” entra no túmulo e vê, em primeiro lugar se lembra de uma cena que viveu algumas semanas antes. Não muito longe de Jerusalém, ele estava diante de um túmulo (também vazio): o túmulo de Lázaro (João 11). Para compreender João 20 é essencial estabelecer uma comparação com João 11; uma comparação que se revela muito instrutiva.

«11.43 Dito isto, gritou em alta voz: «Lázaro, sai!». 44O morto saiu com os pés e as mãos amarrados com bandagens, e o rosto ainda envolto numa mortalha. Jesus diz-lhes: «Desamarrai-o e deixai-o ir»» (Jo 11,43-44): no caso de Lázaro o a mortalha está em seu lugar, ou seja, está no rosto do falecido. Lázaro – recorda João – saiu do túmulo com a mortalha no rosto e alguém a tirou dele. Em vez disso, dentro do túmulo de Jesus há roupas de um lado e uma mortalha perfeitamente dobrada do outro lado. Lázaro não consegue tirar o sudário do rosto: outro deve tirá-lo para ele; no entanto, aqui é completamente diferente.

Depois vem à mente também uma palavra para o “discípulo amado”: ​​ele recorda um acontecimento que viu e uma palavra que ouviu. O que ele viu foi o modo como Lázaro saiu do túmulo; em vez disso, ele ouviu a palavra que ouvira alguns meses antes. Antes daquela última Páscoa, eles subiram a Jerusalém; no final da “festa das barracas” Jesus havia encerrado o chamado “discurso do bom pastor” (portanto na economia narrativa do QE foi proferido no outono; agora estamos na primavera seguinte) com as seguintes palavras: «10.17Por isso o Pai me ama: porque dou a minha vida (“a minha existência de homem”), para retomá-la. 18Ninguém tira isso de mim, mas eu mesmo afasto isso. Tenho o poder de abatê-lo e tenho o poder de retomá-lo” (Jo 10,17-18).

O que o “discípulo amado” viu no túmulo? No fato de uma mortalha dobrada ele vê a expressão de um ato senhorial, de uma exousía, de um poder. Alguém fez isso: ele tem o poder de ressuscitar da morte e dobrar o pano que cobre seu rosto, distanciando-o dos demais, expressando assim aquele “poder de retomar a vida” de que falava há alguns meses mais cedo. A distância entre as roupas e o fato de o sudário ter sofrido uma ação (alguém o dobrou conscientemente, intencionalmente, com autoridade) desperta no “discípulo amado” a memória daquelas palavras de Jesus. Neste sentido ele viu um sinal: a disposição das roupas dentro do túmulo torna-se a expressão de que ali aconteceu algo que pode ser entendido lembrando:

1.      a maneira diferente como Lázaro saiu de seu túmulo;

 

2.      como Jesus ele havia falado sobre si mesmo, sua morte e o que aconteceria após a morte: “Tenho o poder de fazer isso de novo”. É esse poder, é essa exousía que o “discípulo amado” vê retratada na curiosa forma como as roupas estão dispostas no túmulo vazio.

Então podemos dizer que isto é um “sinal”, porque é uma experiência que não é prodigiosa em si; é uma experiência comum: não existe milagre. Porém, há algo que afeta os sentidos (neste caso o sentido da visão); e nesta experiência sensível algo transcendente, divino, pode ser vislumbrado. Há necessidade de experiência sensível, mas enquanto Pedro não vai além da experiência sensível, o “discípulo amado” é capaz de captar o sentido último daquilo que os seus olhos vêem; aqui reside a sua primazia.

Esta cena também é muito bonita porque retrata os dois discípulos, cada um com um registo ao seu nível; e não há conflito, porque estamos a lidar com dois níveis diferentes. Na verdade, João reconhece uma certa primazia a Pedro: o facto de João parar e deixar Pedro entrar primeiro pode ser interpretado de forma simbólica como reconhecimento do seu papel. Este é um papel que também é claramente atestado em outras partes do QE. Por outro lado, se por um lado o QE reivindica uma primazia de Pedro a um determinado nível, ou seja, como guia da comunidade de discípulos, por outro lado reivindica uma primazia de João ao nível da leitura dos sinais e da compreensão o mistério de Deus que se revela em Jesus O “discípulo amado” é sempre mais rápido que Pedro e todos os outros na compreensão da revelação que Deus faz de si mesmo em Jesus. O texto coloca as duas figuras lado a lado, reivindicando e reconhecendo também por. cada um uma primazia em seu campo específico. O “discípulo amado” é verdadeiramente o primeiro na ordem do conhecimento e da fé.

2.6. «Compreender a Escritura» (20,9)

«20.9 Porque ainda não tinham compreendido a Escritura, que era necessário que ele ressuscitasse dentre os mortos» (20.9): este versículo é uma reflexão que o evangelista compartilha com o leitor; é como se ele falasse em voz alta e se dirigisse diretamente à pessoa que estava lendo seu evangelho. Em si, não é um elemento da história, mas um elemento do diálogo entre o evangelista e o seu leitor. É um versículo formidável e muito poderoso, antes de tudo porque indica que o conteúdo da Escritura, ou do Antigo Testamento (sem indicar uma passagem precisa, porque se refere ao conteúdo de toda a Escritura, entendida globalmente), está aqui resumida como «a ressurreição do messias»: o conteúdo último da Escritura é que o messias será ressuscitado. Esta não é uma etapa específica; mas foi assim que toda a Escritura foi entendida e foi assim que se revelou o seu significado último.

Com a frase “Eles ainda não tinham compreendido a Escritura”, o texto indica que mesmo o “discípulo amado”, ao chegar ao túmulo naquela manhã, não tinha tudo claro. Não aconteceu que, antes daquela manhã, ele tivesse compreendido toda a Escritura e por isso, ao chegar, pensou que o que já havia intuído finalmente se tornara realidade! O V. 9 tem justamente o sentido de indicar que, até aquele momento, nenhum deles (ninguém, nem mesmo o “discípulo amado”) havia entendido o que iria acontecer. O significado do v. 9 é precisamente isto: o “discípulo amado”, na manhã de Páscoa, chega à fé não porque já esteja preparado para o que vai acontecer e, chegando lá, vê a confirmação do que já sabia. Sua fé vem da capacidade de ler os sinais. A sua fé não surge de já ter compreendido toda a Escritura; é o contrário: a partir desse momento a Escritura torna-se um livro aberto. As Escrituras liberam seu significado não antes, mas depois. Antes de ocorrer a ressurreição, a Escritura, o AT é um “livro selado”, como lemos no Apocalipse (Ap 5.1), também para o “discípulo amado”. É somente a partir daquela manhã que a Escritura libera seu significado último. Portanto, o texto deve ser parafraseado assim: «Então entrou também o outro discípulo, que havia chegado primeiro ao túmulo, e ele viu e acreditou com base em sua experiência no túmulo vazio, não porque já tivesse entendido as Escrituras. Até aquele momento, de fato, nem ele nem os outros tinham compreensão das Escrituras.” Sua fé nasceu pela capacidade de ler os sinais e não porque já estivesse preparado; não dispunha de uma espécie de “fotografia antecipada” dos acontecimentos para entrar no túmulo e verificar a correspondência perfeita com o que os seus olhos viam. Este é também o sentido de todo o NT: o AT é um livro que se abre a partir da fé na ressurreição, e não o contrário. Não é que, se você estudar bem o AT, poderá imaginar a ressurreição do messias; este não é absolutamente o caso. Se alguém acreditar que Jesus ressuscitou, então a Bíblia também se torna um livro aberto; o oposto não acontece. Se uma pessoa não tem fé no Senhor ressuscitado, não há nenhum estudo do AT que a prepare antecipadamente para esperar que o messias seja capaz de ressuscitar. Os dois esquemas estão em oposição radical e apenas o primeiro é válido.

 

3. As duas aparições de Jesus (Jo 20,19-31)

3.1. Ver e acreditar, acreditar sem ver (Jo 20.29)

Leiamos a segunda parte de João 20, começando pela bem-aventurança, que já antecipamos. As últimas palavras que, neste capítulo, Jesus dirige aos discípulos constituem, precisamente, o seguinte macarismo: «20,29 Jesus disse-lhe: «Porque me viste, acreditaste; Bem-aventurados aqueles que não viram e acreditaram!»» (20,29). Estas são palavras que Jesus dirige a Tomé. A primeira parte da frase também poderia ser uma pergunta, mas também uma afirmação. Aqui Jesus não tem um tom interrogativo, porque isso implicaria um distanciamento, uma censura mais ou menos velada: “Por que você me viu, você acreditou?”. Em vez disso, é uma observação: Jesus observa que Tomé, visto que o “viu”, então “creu”. Na verdade, não há nada de errado com isso. É que Tommaso perdeu a oportunidade de fazer melhor que os outros; isso sim! Porém, no fato de ele ter acreditado ao ver, há simplesmente a reprodução da experiência que os demais tiveram oito dias antes. Os outros viram Jesus e creram; Tommaso teria tido a oportunidade de fazer melhor: teria tido a oportunidade de acreditar sem ver, mas desperdiçou-a. Este é o ponto: Tomé teria tido a oportunidade de acreditar com base no testemunho de outros, mas não o fez. Também ele quis fazer a experiência da visão do Ressuscitado e por isso também ele, como os outros, chegou à fé. Jesus observa isto: “Porque me viste, acreditaste”; portanto, a bem-aventurança subsequente não é para Tomé: “Bem-aventurados aqueles que não viram e acreditaram!”.  O que essa felicidade significa? «Bem-aventurados aqueles que não viram e acreditaram!»: antes de mais nada, notamos que não há objeto direto nem para o verbo “ver” nem para o verbo “crer”. O grego é parcimonioso em complementos de objetos (!); neste caso funciona a regra geral, ou seja, o objeto direto não se repete porque é o dos verbos imediatamente anteriores. Então, voltemos à frase anterior: “Porque você me viu, você acreditou”. O objeto direto também deve ser fornecido na segunda parte e é o mesmo. Jesus quer dizer: “Bem-aventurados aqueles que não me viram e acreditaram”. O que Jesus está dizendo não é que a fé surge na ausência de qualquer tipo de visão. O significado não é: «Bem-aventurados aqueles que, sem ter visto nada, acreditaram »; em vez disso, a questão é ver Jesus. Jesus não pede uma forma de fé que seja independente de qualquer tipo de experiência sensível; a visão é apenas um dos cinco sentidos. Seria contra a essência de todo o evangelho sustentar que a fé nasce independentemente da experiência sensata; e na verdade este não é o significado da expressão. A bem-aventurança não é: “Bem-aventurados aqueles que, não tendo visto absolutamente nada, passam a acreditar”; em vez disso, é: “Bem-aventurados aqueles que não viram Jesus e ainda assim creram”. Jesus pode ser visto em duas formas: na forma do Jesus terreno (que caminhou pelas ruas da Palestina) e na forma do Jesus ressuscitado, com seu corpo transfigurado; entretanto, a Bem-Aventurança proclama: “Bem-aventurados aqueles que não me viram nem de uma forma nem de outra, e ainda assim acreditaram”. Tomé teria tido a possibilidade de chegar à fé sem vê-lo ressuscitado. Em vez disso, exigiu este tipo de experiência e, mais tarde, também chegou à fé. Mas aqui a bem-aventurança é para quem chega à fé sem ter que experimentá-la (não sem ter qualquer tipo de experiência sensível!); o significado do macarismo é este.

Então, para quem essa felicidade é válida? Certamente para as gerações futuras. A tradução atual, mais literal, permite-nos ler esta bem-aventurança como referindo-se também (e talvez antes de tudo) ao “discípulo amado” no túmulo vazio na manhã de Páscoa. Quem foi o primeiro que acreditou sem ver Jesus? Ele é o “discípulo amado”, que não viu absolutamente nada; ele viu algumas coisas pobres e foi capaz de interpretá-las como sinais. Certamente, porém, ele não viu Jesus dentro do túmulo; ainda assim ele passou a acreditar. Então podemos dizer que ele é o primeiro objeto da bem-aventurança: “Bem-aventurados aqueles que não me viram e ainda assim acreditaram”. Esta parece ser precisamente a intenção do Evangelho, que tem realmente a intenção de nos mostrar o “discípulo amado” como uma gigantesca figura de fé; e, portanto, também como o primeiro de todos os futuros crentes, isto é, daqueles que – como nós – passam a acreditar (se puderem!) independentemente de uma experiência sensível de encontro com Jesus. Passamos a acreditar com base em outra coisa. , com base num testemunho, mas não na experiência sensível e direta de Jesus.

3.2. A arquitetura do texto

São duas cenas com um elemento de corte e depois uma conclusão.

O primeiro episódio ocupa os vv. 19-23. «19Quando, pois, era a hora da tarde e naquele dia, o primeiro da semana». Portanto, há um episódio na noite do domingo de Páscoa. Depois, há outro “oito dias depois, novamente os seus discípulos estavam lá dentro e Tomé estava com eles” (v. 26).

Oito dias depois” indica o domingo seguinte: tanto no contexto judaico como no romano, o dia da partida sempre foi incluído na contagem dos dias. Portanto, a partir do domingo, “oito dias depois” é o domingo seguinte; portanto, no mesmo dia da semana. Notamos que aqui já existe um traço claro do domingo como dia da comunidade cristã. Na forma como as aparições são assinaladas, vemos que a comunidade de João celebrava a Páscoa como um acontecimento semanal: celebrava o domingo como uma Páscoa semanal. Os dois episódios apresentam o grupo de discípulos como tal.

3.3. A primeira aparição de Jesus (20,19-23)

«20,19Na noite daquele dia, o primeiro da semana, enquanto as portas do lugar onde os discípulos estavam estavam fechadas por medo dos judeus, Jesus veio, colocou-se no meio deles e disse-lhes: «A paz esteja convosco !». 20Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado. E os discípulos se alegraram quando viram o Senhor. 21Jesus disse-lhes novamente: «A paz esteja convosco! Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio." 22 Dito isto, respirou e disse-lhes: «Recebei o Espírito Santo. 23Aqueles cujos pecados você perdoar, eles serão perdoados; aqueles a quem você não perdoa, não será perdoado” (Jo 20,19-23).

Neste episódio comentamos os dois gestos de Jesus.

1.      O primeiro gesto é: «Mostrou-lhes as mãos e o lado»; a segunda é: «Ele soprou». Os dois verbos são construídos de forma paralela. O primeiro gesto de Jesus é mostrar: estende as mãos e o lado. Isto é significativo, porque este gesto estabelece identidade: através desta exibição a identidade do sujeito é mostrada. Aquele que agora aparece assim é aquele que foi crucificado; na verdade, pouco antes de se dizer que este homem entrou "enquanto as portas estavam fechadas". Portanto, vemos que os dois elementos devem ser mantidos juntos: é Jesus, mas não é Jesus! É evidente que é Jesus, mas já não é ele como era antes; ele está transformado, mas ainda é ele. Devemos manter estes dois elementos juntos, porque, por um lado, os sinais da crucificação estabelecem a continuidade: esse homem é o Crucifixo; por outro lado, o fato de ele entrar com as portas fechadas indica uma transformação. A pessoa é aquela que foi pregada na cruz, mas também é verdade que a sua corporeidade tem agora uma configuração e uma qualidade nova e transformada. É um aspecto importante: é uma corporeidade transfigurada. Jesus mostra as mãos e o lado (mas não os pés) pelo seguinte motivo: não quer deixar o lado de fora porque depois há um gesto que evoca o Espírito. Portanto o lado, o lado e o Espírito. Quando foi descrita a morte de Jesus, foi dito que um soldado lhe abriu o lado com uma lança, da qual jorrou sangue e água (Jo 19,34). Sem dúvida, a água que sai do lado de Jesus morto, para o evangelista, é uma imagem do Espírito: é a água viva que sai do lado do Messias crucificado. Então, referir-se ao lado nesta primeira parte da história combina muito bem com o fato de haver um gesto que fala do Espírito, porque daquele lado saiu a água viva do Espírito, conforme a história de Jesus contada por João 'morte na cruz. Então o primeiro gesto é este: Jesus mostra as mãos e o lado, tendo como tema a continuidade do sujeito na transformação do corpo. Além disso, há uma referência alusiva à importância do Espírito na visão joanina.

 

2.      O segundo gesto: «22Tendo dito isto, soprou e disse-lhes: «Recebei o Espírito Santo»» (20,22). O texto é construído assim: «Dito isto, inspiro»; o verbo usado é enphysào, ou melhor, "inspirado/inalado". E o assunto em que entra a respiração é o mesmo ao qual a palavra se dirige. O texto grego poderia ser traduzido assim: “Tendo dito isto, ele soprou neles e disse-lhes”. O grego usa o complemento dativo apenas uma vez, o que é válido tanto para o verbo “inalar” quanto para o verbo “dizer”; em vez disso, em italiano você tem que repeti-la e a frase se torna redundante. Mas este é o sentido do texto: Jesus «soprou neles e falou-lhes». Portanto, “eles” aplica-se a ambos os verbos e é o destinatário da respiração que lhes é colocada, que são os destinatários da palavra que lhes é dirigida. Então aqui está a estrutura clássica que também é encontrada em muitas histórias do AT sobre os profetas: um gesto e uma palavra que o explica. O gesto já é eloquente por si só e talvez nem precisasse da palavra; mas a palavra torna isso inequívoco. A palavra seguinte que diz «Receba o Espírito Santo» é a explicação do gesto que Jesus acaba de realizar. A palavra é: “Receba o Espírito Santo”. O termo grego pneuma (“Espírito”) permite um certo jogo, pois significa tanto “espírito”, “vento” quanto “respiração”. Mesmo em hebraico o mesmo termo (ruah) pode significar “espírito”, “vento”, “sopro”. Então aqui o jogo é muito fácil entre o gesto de um sopro que sai de Jesus e entra neles e uma palavra que diz: «Recebam o Santo Pneuma (= sopro/Espírito), porque – precisamente – “Espírito” e “sopro” eles podem ser ditos com o mesmo termo. Vamos nos concentrar no gesto. O texto usa um verbo relativamente raro: Jesus “soprou neles”. Na tradução grega do AT esta expressão é encontrada, por exemplo, quando o profeta Elias se inclina sobre o filho morto da viúva de Sarepta e, deitando-se sobre ele, reintroduz o seu sopro na criança: o "in-alita", alita nele, ele deixa passar o fôlego e assim a criança volta à vida (1 Reis 17,17-24). Outro texto é o da criação de Adão (Gn 2.7). É a primeira vez que este verbo bastante raro aparece (em todo o AT é encontrado 5 vezes). O “oleiro”, chamado Adonai (“Senhor”) em hebraico, é um artista de barro e criou um boneco de barro. É realmente uma marionete: não se move, é inerte; então Deus respira e então a boneca começa a se mover, ganhando vida. Antes de ser inerte, era barro; então se torna um ser vivo. Um terceiro texto muito importante se encontra no livro de Ezequiel: a visão dos ossos secos (Ez 37,5). Aqui novamente é isso verbo, quando Deus manda o profeta profetizar e os ossos, que estão espalhados pela planície, se unem e assim se forma o esqueleto. Então Ezequiel profetiza novamente e assim aparecem os nervos e a carne; mas ainda são cadáveres, embora não estejam mais em decomposição. Então ele deve profetizar para o espírito, que é “inspirado”, é colocado dentro desses cadáveres que voltam à vida. Esses três textos são fundamentais para a compreensão do nosso canto. Mas há uma diferença em relação ao Gênesis, que deixamos explícita: os discípulos não são marionetes! Ao contrário do boneco Adão, que é realmente inerte, que é uma figura de barro, Jesus tem pessoas que se movem à sua frente. Os discípulos já possuem o sopro que Adonai colocou em Adão no início da criação; Jesus não se depara com matéria inerte, mas sim com pessoas que respiram. Os discípulos já têm um certo espaço para respirar. Então fica claro que o sopro que Jesus coloca dentro deles não é o sopro que Jesus recebeu de Maria de Nazaré, porque os discípulos já o possuem. O fôlego que Jesus coloca neles é aquele que é seu, não aquele que ele tem como descendente de Adão e filho de Maria e que eles já têm. O sopro que ele coloca neles é o que lhe é próprio, isto é, o que ele possui como Filho unigênito de Deus, como o Logos que sempre existiu antes da criação; ou (mas é a mesma coisa) como o Ressuscitado. É o sopro próprio da própria vida de Deus. Poderíamos dizer que Deus também tem um “sopro”: o “sopro” de Deus é o seu Espírito! Isto é o que Jesus introduz. Certamente é o sopro, mas é o sopro que lhe é próprio, não como descendente de Adão ou filho de Maria, mas como Unigênito do Pai. É este sopro, pelo qual ele vive a partir da ressurreição, que é injetado nos discípulos. Portanto, é verdadeiramente um ato de nova criação: é uma criação, mas num nível diferente daquele de Gen 2. É uma criação, portanto há um elemento de homogeneidade, mas há também algo de novo; é uma criação em um nível diferente do que a de Adão. Na verdade, ele os cria “à sua imagem e semelhança”, ou à imagem d’Ele, que é o Unigênito. Isto explica algo que preocupa vários comentadores: por que não há detalhes? Os sinópticos dizem alguma coisa. Por exemplo, Mateus escreve que Jesus pede: “Ir e fazer discípulos de todas as nações, batizando e ensinando” (cf. Mt 28, 19-20); Jesus dá algumas indicações aos discípulos sobre o que fazer. Lucas faz Jesus dizer: “Sereis minhas testemunhas...”, por isso especifica que devem realizar o ato de dar testemunho dele (cf. At 1, 8). No QE Jesus apenas diz: «Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio», seguido do tema da remissão dos pecados. Há realmente uma pobreza singular de indicações. Por que? Isto está de acordo com o significado do gesto de Jesus que acabamos de ilustrar. O envio em missão não necessita de maiores determinações, porque o significado é que a missão é prolongar a presença do Filho unigênito no mundo. E isso é possível a partir do fato de terem recebido o seu mesmo fôlego, ou seja, o seu Espírito. De facto, aqui há uma construção particular: quando Jesus diz «Assim como o Pai me enviou, também eu vos envio», observa-se uma curiosidade: a forma como Jesus se refere ao facto de o Pai o ter enviado, em grego é expresso com um verbo no tempo perfeito. O perfeito grego é um tempo verbal que indica uma ação realizada no passado, mas que persiste em seus efeitos até no presente; portanto, o envio de Jesus continua. A ideia não é que a vida de Jesus termine e outra comece; pelo contrário, a ideia é antes que Jesus assuma os seus discípulos no único envio, que é o seu: «Assim como o Pai me fez seu enviado ("e eu continuo sendo o único enviado do Pai": isto diz o tempo perfeito), eu também...". O envio de Jesus não falha. Com efeito, neste momento, no momento em que deixa este mundo para regressar ao Pai, Jesus assume os seus discípulos como prolongamento daquele único envio; Esta é a ideia de João. A Igreja é a extensão da encarnação do Verbo e isto é possível em virtude da presença do Espírito. Tendo-lhes dado o Espírito, Jesus pode dizer: «O meu envio, ou melhor, a minha presença como enviado ao mundo, não falha, porque vós, que agora possuís o meu mesmo Espírito (isto é, o meu fôlego, isto é, a minha vida) agora são enviados para o mundo. Porém, você não é enviado em meu lugar, mas sim na extensão do único envio, que é meu; da única missão, que é a missão do Filho». É o mesmo que quando se diz que “os cristãos tornam-se filhos no Filho”. É precisamente esta ideia: partilham o mesmo Espírito, isto é, o mesmo fôlego, isto é, a mesma vida; portanto, compartilham a condição filial. Portanto, neste sentido a encarnação se prolonga nos discípulos.

3.4. A segunda aparição e a conclusão do evangelho (20.24-31)

«20,24Tomé, um dos Doze, chamado Dídimo, não estava com eles quando Jesus chegou. 25Os outros discípulos disseram-lhe: «Vimos o Senhor!». Mas ele lhes disse: “Se eu não vir o sinal dos cravos nas suas mãos, e não colocar o meu dedo no sinal dos pregos, e não colocar a minha mão no seu lado, não acreditarei”. 26Oito dias depois, os discípulos estavam de volta em casa e Tomé também estava com eles. Jesus veio, a portas fechadas, ficou no meio e disse: “A paz esteja convosco!”. 27Então disse a Tomé: «Põe aqui o teu dedo e olha para as minhas mãos; estenda a mão e coloque-a ao meu lado; e não seja um incrédulo, mas um crente! 28Tomé respondeu-lhe: “Meu Senhor e meu Deus!”. 29Jesus lhe disse: “Porque você me viu, você acreditou; Bem-aventurados aqueles que não viram e acreditaram! 30Jesus, na presença dos seus discípulos, fez muitos outros sinais que não estão escritos neste livro. 31Mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome” (20,24-31).

Compreendemos que existe uma correlação entre o que poderia ter acontecido a Tomé, se ele tivesse acreditado na palavra dos outros discípulos, e o que João espera que aconteça no futuro àqueles que acreditam no seu testemunho. O seu evangelho toma o lugar, para todas as gerações futuras, daquele testemunho que os outros discípulos deram a Jesus Tomé não quiseram aceitá-lo, mas nós – que vimos como ele se arrependeu mais tarde (embora isto não esteja explicitamente explicitado) –. somos convidados a recebê-lo. O funcionamento do texto fica claro: diz que Tomé poderia ter chegado à conclusão a que então chegou, ou seja, reconhecer Jesus ressuscitado (“Senhor meu e Deus meu!”), se tivesse acreditado no testemunho dos outros discípulos. . Com efeito, foi precisamente isto que lhe disseram: «Vimos o Senhor!»; e ele poderia ter acreditado neles. Este é exatamente o ponto. Assim, João, com o seu evangelho escrito, desempenha exatamente a função que o testemunho daqueles discípulos desempenha para com aqueles que não viram Jesus. Portanto, a recomendação é não fazer como Tomé, que, no entanto, também funciona como um atestado da fiabilidade de Jesus. aquelas testemunhas, porque no final ele teve que admitir que o que lhe disseram era verdade. Pode-se dizer que todo o QV é um grandioso atestado e testemunho de Jesus reconhecido como “o Senhor”. De facto, por exemplo, os discípulos dizem: “Vimos o Senhor!”, que é uma das duas expressões que Tomé também usa, quando reconhece Jesus: “Senhor meu e Deus meu!”.

No QE a expressão mais utilizada para identificar Jesus é “o Filho”; mas mesmo “o Senhor” não deixa de ter importância. Ambas as expressões “Filho” e “Senhor” expressam a condição divina de Jesus. A expressão “Filho” refere-se ao fato de Deus ser chamado de “Pai”. “Senhor” é o nome que Deus tem segundo a revelação feita a Moisés; na verdade, “Senhor” é a tradução de Adonai.

Então pode-se dizer que o Evangelho segundo João é, no seu conjunto, um grandioso testemunho de Jesus reconhecido e confessado como “o Senhor”. Desempenha, portanto, a função que esse grupo desempenha aqui; na verdade, o título “o Senhor” está no início e no final do evangelho, em dois pontos-chave. No início é encontrado na boca de João Batista. Quando o questionam, perguntam quem ele é; e o Baptista responde: «1,20 «Eu não sou o Cristo». 21Então lhe perguntaram: “Quem é você então? Você é Elias?”. “Eu não estou”, disse ele. «Você é o profeta?». “Não”, ele respondeu. 22Disseram-lhe então: “Quem é você? Para que possamos dar uma resposta a quem nos enviou. O que você diz sobre você? 23Ele respondeu: «Eu sou a voz que clama no deserto: endireitai o caminho do Senhor, como disse o profeta Isaías»» (1,20-23). Na boca de João Batista o «Senhor» já não é Adonai, mas é Jesus. Este é o primeiro uso do título «Senhor» para identificar Jesus. Não há dúvida de que aqui «Senhor» é um título mais forte do que «. Cristo», de «Elias», de «profeta»: aqui está o título máximo. Portanto, no início do evangelho, ressoou nos lábios de João o título “Senhor”, que é o nome de Deus, em referência a Jesus.

Em João 21, logo após a pesca milagrosa e inesperada, o “discípulo amado” pronúncia uma última palavra. Ele disse muito poucas delas no Evangelho e depois disso não dirá mais nada; e a última é precisamente: «É o Senhor!» (21.7). Este é realmente um resumo extremo do que ele faz ao longo de seu evangelho. O Evangelho fotografa-o na atitude de quem grita: “É o Senhor!”; e é uma foto perfeita! É exatamente um instantâneo do que João é em todo o seu evangelho. O fotograma que o representa no barco, enquanto diz a todos: «É o Senhor!», é a fixação perfeita do papel que desempenha através do seu evangelho, pois pode-se afirmar com certeza que, desde o início até ao fim, No final, João não faz outra coisa senão dar testemunho de Jesus como “o Senhor”.

Então o seu evangelho substitui verdadeiramente o que o grupo disse a Tomé: “Vimos o Senhor!”, isto é, Jesus é o Senhor; Jesus leva o nome que é o nome próprio de Deus. Desta forma, João apresenta-se a todos aqueles que o leem como um testemunho dado a Jesus, que pode gerar fé, mostrando Tomé como um exemplo negativo e positivo ao mesmo tempo. Na verdade, ele é um exemplo negativo, porque perdeu a oportunidade; mas também é positivo, porque no final teve que reconhecer que os outros discípulos tinham razão. Neste sentido o Tommaso é positivo e também nos ajuda. O QE pretende cumprir exatamente esta função: para nós, que não podemos ver Jesus, existe a possibilidade de acessá-lo apenas através do testemunho. E João escreve o seu evangelho como atestado de que Jesus é o Senhor, para que quem se abre à fé possa então ter vida precisamente em virtude desta fé.

segunda-feira, 29 de abril de 2024

MARIA E O «DISCÍPULO AMADO» SOB A CRUZ (Jo 19,25-27)

 



(Texto: Marcheselli e outros)

Tradução: Paolo Cugini


«19.25 Perto da cruz de Jesus estavam sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria, mãe de Cléofas, e Maria de Magdala. 26Jesus, portanto, vendo a mãe e o discípulo que ele amava ao lado dela, diz à mãe: “Mulher, aqui está o teu filho!”. 27Então diz ao discípulo: «Aqui está a tua mãe!». E a partir daquela hora o discípulo tomou-o do que lhe pertencia” (Jo 19,25-27).

1. Introdução

A primeira consideração é sobre a orientação fundamental que tem o relato joanino da paixão e morte de Jesus. O relato que o quarto evangelista faz dos acontecimentos do Gólgota pouco interessa ao próprio Jesus; ele está muito mais interessado no significado que o que acontece com Jesus na cruz tem para os crentes. A este respeito sublinhamos dois aspectos profundamente ligados entre si.

1.1. Uma morte “para”

Como se sabe, o QE praticamente anulou o aspecto doloroso e humilhante da paixão e morte de Jesus. Isto não se deve simplesmente a uma forma crescente de respeito pelo Filho de Deus, mas sim ao facto de aquilo que é relevante para. para o evangelista é o sentido que tem aquela morte, ou melhor, o “para”. Precisamente este “para” é fundamental em toda o QE como preparação remota para o acontecimento da paixão e da morte. O conto joanino é pontuada por expressões misteriosas, em parte enigmáticas, que depois revelam o seu significado na paixão e morte do messias Jesus. São precisamente as expressões construídas com esta preposição que têm um peso enorme na teologia e na espiritualidade de João: a morte de Jesus. é uma morte para. O QE diz isso a partir da famosa passagem do discurso sobre o “pão da vida”, quando Jesus diz: “O pão que eu darei é a minha carne (existência terrena) para a vida do mundo” (Jo 6.51 ). Há também as declarações insistentes no discurso do “bom pastor”, cuja característica se identifica precisamente nisto: o “bom pastor” coloca a sua existência, a sua vida terrena, “para as ovelhas”. Esta é a perspectiva que domina o relato de João sobre a paixão e morte do Senhor.

1.2. Eclesiologia Joanina

Da primeira surge uma segunda ênfase, sempre dentro da orientação fundamental do relato joanino da paixão e morte do Senhor: o relato joanino da paixão e morte do Senhor tem uma conotação eclesiológica muito forte. Os episódios relativos a Jesus na cruz dizem respeito principalmente à comunidade dos crentes, à Igreja. É assim que se específica aquela morte, que é uma morte “para”. Um dos aspectos fundamentais deste ser “para” é precisamente o vínculo que existe entre aquela morte e a comunidade eclesial, a comunidade dos crentes. Os episódios relativos a Jesus na cruz delineia as características essenciais da comunidade eclesial. Como essas características são simbolicamente indicadas pelos acontecimentos que aconteceram com Jesus na cruz? Pode-se afirmar que a eclesiologia joanina é uma eclesiologia que parte da cruz. Portanto a nossa meditação será ao mesmo tempo mariana e eclesial, porque esta é a perspectiva do QE. O texto joanino ensina um olhar profundo sobre a Igreja.

A eclesiologia de João, que emerge da descrição do que acontece com Jesus na cruz, centra-se mais no mistério profundo da Igreja do que nas suas estruturas, que - de facto - não têm relevância neste texto. Isso não significa que eles não tenham; pelo contrário, as estruturas da vida comunitária, na história da comunidade de João, adquirem progressivamente um significado muito preciso. Contudo, neste texto, como em geral na história da morte de Jesus na cruz, trata-se mais de uma contemplação da essência da Igreja do que do que aparece na superfície. Isto ajuda: é sempre necessário ser ajudado a dirigir este olhar profundo para a Igreja, o que não significa ignorar o que os sentidos vêem, mas antes reconhecer o que os cinco sentidos físicos não conseguem, por si só, captar. Isto é o que o evangelista quer nos levar a fazer.

2. O contexto

É importante colocar esses poucos versículos dentro da história geral, para compreender seu significado geral. Qual é o contexto mais imediato desta curta passagem de três versículos? É o terceiro de cinco episódios que acontecem no Gólgota, termo hebraico que significa "lugar da caveira" (19.17). O quarto evangelista narra cinco episódios relativos a Jesus na cruz. Esta é também uma das características típicas deste evangelho extraordinário, mais seletivo que o sinóptico, mas onde para, fá-lo com grande abundância e profundidade. Tanto que ele conta – na verdade – cinco episódios de Jesus na cruz.

1.      A inscrição colocada acima da cruz (19,19-22).

2.      A divisão das vestes e a sorte lançada na túnica (19.23-24).

3.      O diálogo com Maria e o discípulo que Jesus amava (19,25-27).

4.      A morte de Jesus (19,28-30).

5.      O golpe da lança que abre o lado de Jesus já morto, provocando o fluxo de sangue e água (19.31-37).

O episódio que estamos comentando é o terceiro dos cinco. Alguém observou que os três primeiros episódios poderiam até acontecer ao mesmo tempo, pois envolvem personagens diferentes: enquanto se discute a inscrição na cruz, os soldados dividem as roupas e Jesus fala com sua mãe e discípula. Em todo o caso, é importante sublinhar que existe uma ligação profunda entre este terceiro episódio e aquele que o precede imediatamente (ou seja, aquele relativo às vestes de Jesus). Vemos essa ligação com o episódio dos soldados que lidam com as roupas de Jesus: dividem as roupas, depois chegam à túnica, que é “sem costura, tecida toda de uma só peça” (19.23). Então eles decidem não desmontá-lo e "lançar a sua sorte". O efeito é que a túnica permanece intacta.

Como demonstrou o Padre Ignace de la Potterie, o significado subjacente deste episódio não é tanto cristológico (embora haja uma linha cristológica), mas antes eclesiológico. O Padre de la Potterie defende vigorosamente esta leitura eclesiológica da túnica: a túnica como imagem da comunidade dos crentes. Portanto, é uma imagem que sublinha como a natureza profunda da Igreja é a unidade, e ser unum, “uma coisa”, pelo facto de a Igreja ser constituída por aqueles que são acolhidos naquele mistério de unidade que une os Pai e o Filho; portanto, participa daquela unidade original que é o próprio mistério trinitário. Se aceitarmos esta leitura (que me convence), então a ligação é profunda: dos quatro soldados passamos às quatro mulheres (v. 25). Visualmente há um certo contraste, que, no entanto, também sugere uma link. As duas cenas estão ligadas assim: os quatro soldados, passando depois para as quatro mulheres; mas acima de tudo o vínculo profundo é o interesse pela comunidade eclesial, que é precisamente o resultado último da obra do messias de Nazaré. É em virtude da sua cruz – indica o evangelista João – que surge neste mundo uma realidade que é feita de reunião dos desaparecidos. A Igreja é a reunião daqueles que antes estavam dispersos e que, precisamente por serem atraídos pela cruz do Filho de Deus, se encontram um em Deus e um entre si.

3. O anonimato dos dois personagens

Nenhum dos dois personagens presentes sob a cruz tem nome aqui ou em outro lugar, dentro do QE. Se - absurdamente - possuíssemos apenas o evangelho segundo João, não saberíamos qual era o nome da mãe de Jesus. Os dois personagens aqui envolvidos permanecem ambos sob o véu do anonimato. Os nomes de João e Maria são identificações externas neste texto, que possuem uma certa solidez (Maria claramente mais que João).

Por que o evangelista não levanta o véu?

É difícil dizer com certeza; entretanto, pode-se observar que o QE faz uso consciente do anonimato. Isto é intencional: não dizer explicitamente o nome favorece uma leitura simbólica das duas figuras. Isto não significa diminuir a sua consistência como indivíduos; nem significa reduzir o seu significado histórico. Tudo isso nada tem a ver com isso, não há oposição entre o real e o simbólico, porque o simbólico sempre depende de algo concreto. Ao omitir o nome, Giovanni favorece a leitura simbólica dessas duas figuras e leva o leitor a ver aquele “mais” de sentido que não se limita simplesmente à concretude do indivíduo.

Se o evangelista nunca os chama pelo nome, então como são chamados?

Maria é sempre chamada de “mulher” ou “mãe”. Estas são as duas palavras que, no QE, são usadas para designar a mãe do Senhor. O evangelista sempre e apenas a chama de “a mãe”; frequentemente especifica "a mãe de Jesus" ou "sua mãe". A certa altura, ele abandona todas as especificações e a chama apenas de “mãe”, abandonando tanto “de Jesus” quanto “dele”. Isto acontece logo abaixo da cruz; Não pode ser uma coincidência. “Sua mãe estava junto à cruz de Jesus”: é a última vez que o evangelista usa uma especificação. De facto, logo a seguir lemos: «Jesus, portanto, vendo a sua mãe»; o “dele” caiu. É simplesmente: “a mãe”. Depois insiste: «Diz à mãe»; ele simplesmente perdeu a especificação. Por isso o evangelista João sempre a chama de “a mãe”, especificando: “a mãe de Jesus”. Porém, quando se trata da cena da cruz, ele abandona toda determinação. Pelo contrário, Jesus chama-a constantemente: “Mulher”, no vocativo; é um uso surpreendente na boca de um filho que se dirige à mãe. Porém, na última vez que Jesus fala com ela – isto é, aqui – ele adota também o termo: “mãe”. Neste ponto, porém, é “sua mãe”, com um efeito impressionante. Concluindo, deve-se dizer que Jesus nunca a chama de “minha mãe”, porque a única vez que pronuncia o nome “mãe” ela se torna mãe de João. Voltaremos ao mistério desta confiança mútua. A presença de personagens anônimos visa incentivar a leitura e tentaremos explicar o que Giovanni deseja que o leitor entenda por trás desse anonimato, para além da concretude empírica das duas figuras. Se Maria é chamada de “mãe” e “mulher”, o discípulo costuma ser chamado de “o discípulo que Jesus amava”. A origem desta designação singular e fascinante é a seguinte: é aquele por quem as manifestações do amor de Jesus são acolhidas sem resistência e com total disponibilidade. Ele é chamado assim, não tanto porque Jesus lhe reserva algo que ele não reserva aos outros, mas porque as manifestações do amor de Jesus encontram nele um extremo acolhimento, diante dos outros. Ele é “o discípulo que Jesus amou” porque nele o amor de Jesus atinge o seu efeito: é acolhido com uma intensidade, uma prontidão e uma profundidade sem igual. A diferença está na sua receptividade e não tanto numa escolha prévia de Jesus.

4. A piedade filial de Jesus pela sua mãe

Procuremos agora o significado desta passagem, o que o evangelista quer levar o leitor a compreender neste breve episódio. Comecemos pelo nível mais material de significado. A tradição patrística é quase unânime em interpretar a cena como expressão de piedade filial. A tradição antiga segue praticamente toda essa linha. Portanto, o texto expressaria preocupação pelo destino, mesmo material, de quem está prestes a ficar sem apoio neste mundo; então o Filho, com um ato de piedade filial, cuida da mãe, do seu futuro neste mundo. Esta leitura não me parece excluída, pois não a vejo tão estranha ao evangelho da encarnação: a carne (isto é, a natureza humana) tem necessidades concretas. No evangelho segundo João não há oposição entre o nível material e o nível espiritual; portanto, não há razão para que o significado mais imediato e mais material deva ser aqui oposto ao mais profundo, o que tentaremos dizer mais tarde. Na minha opinião, ambos podem ser compreendidos. O QE educa constantemente para manter o material e o espiritual juntos, não parando no material (porque senão se torna materialista), mas através do que é material o leitor é convidado a compreender o que há de profundo e espiritual que Deus diz, dentro da concretude da carne e a história humana. Por outro lado, o evangelista convida-nos a considerar que o que é espiritual pode sempre e só ser alcançado através das experiências que temos com os nossos sentidos. Mesmo sem nos determos nelas, as experiências sensíveis permanecem essenciais, caso contrário cairíamos num espiritismo desencarnado, completamente estranho ao QE. Neste sentido, esta dimensão material mais concreta também é aceitável. Então, o que essa cena expressa? Num nível imediato e superficial, expressa a piedade filial de Jesus por sua mãe. Agora vamos mais fundo.

 

5. Uma cena de revelação

Estamos diante de uma cena de revelação.

5.1. Veja profundamente

Jesus diz: ««Mulher, eis o teu filho!». Depois diz ao discípulo: «Aqui está a tua mãe!»». Originalmente a partícula «Eis» é uma forma do verbo “ver”; esta é a sua origem na língua grega. Em grego você pode dizer “eis” de duas maneiras, sendo que ambas, originalmente, são formas imperativas do verbo “ver”; então, com o tempo, eles se tornaram uma partícula autônoma: “Eis”. No uso joanino esta partícula parece reter um eco da sua origem. Portanto, podemos considerar o convite de Jesus como um convite a olhar profundamente para a realidade percebida empiricamente pelos sentidos humanos. Quando Jesus diz: “Eis”, trata-se de “ver” no sentido joanino, isto é, de penetrar no sentido, de captar o sentido último daquilo que os olhos da carne vêem. João tem toda uma espiritualidade dos cinco sentidos; sem dúvida a reflexão mais desenvolvida em João é sobre o sentido da visão. Aqui estamos diante de uma cena de revelação, em que Jesus convida cada um dos dois a trazer um olhar que vai fundo, que não se detém na superfície, que vê um objeto material, mas que depois capta o significado profundo do objeto que o sentido da visão vê.

Existem outros episódios desse tipo no QE. Por exemplo, quando Jesus vê Natanael e diz: «Aqui está verdadeiramente um israelita em quem não há falsidade» (1.47). Também isto é uma revelação: Jesus diz algo sobre Natanael que não é simplesmente o que os sentidos veem, mas revela algo da sua identidade profunda. O mesmo acontece quando João Baptista diz de Jesus: «Eis o Cordeiro de Deus...» (1.29,). Os sentidos veem um homem caminhando; talvez alguém também saiba o seu nome: é Jesus, que vem de Nazaré. Mas o Baptista convida-nos a olhar profundamente para aquele ser humano que os olhos vêem e convida-nos a ver num sentido radical, isto é, a captar a profundidade do mistério daquela pessoa. Então isso acontece aqui também. O que significa, então, realçar este aspecto de revelação que o episódio de João tem? Brincando, poderíamos dizer que, à frase de Jesus “Mulher, aqui está o seu filho”, Maria deveria ter reagido respondendo que Jesus estava errado e que aquele discípulo não era seu filho! E que seu filho era Jesus! A questão é precisamente esta: ao dizer à mãe: «Olha para o teu filho», Jesus indica a Maria algo que não coincide simplesmente com a visão sensível. Ele revela o significado para ela última coisa que seus olhos veem sensatamente. Então é uma verdadeira revelação, é um desvelamento; neste momento Jesus revela algo que vai além da pura experiência sensível, embora nunca possa apagá-la. O mesmo vale para a frase recíproca: “Aqui está sua mãe”. O discípulo também poderia ter reagido notando que, na realidade, Jesus estava errado e que sua mãe não estava presente. Em vez disso, este é um momento de revelação: Jesus revela algo. Ele revela uma identidade, que até aquele momento não é percebida pelos personagens humanos que ali estão presentes com ele. Portanto, é um momento grandioso de revelação: aquela mulher que o discípulo vê com os sentidos, ele é agora convidado a ver o que ela é em profundidade: ela é sua mãe.

5.2. O núcleo originário da comunidade eclesial

O que a mãe e o discípulo representam? Jesus revela algo um ao outro; então o que eles formam? São o núcleo fundamental da Igreja: são o núcleo originário da comunidade messiânica, da comunidade dos crentes do fim dos tempos. Confiando-se mutuamente, Jesus constitui uma nova família. O que é narrado nestes versículos do Evangelho é o núcleo da nova família que se forma entre aqueles que professam a sua fé em Jesus. São o núcleo da comunidade eclesial, da comunidade do messias. Voltemos ao nome desses dois personagens, que não têm nome próprio. Deixamos isso pendurado, agora vamos voltar ao assunto.

«Mãe» e «mulher»: estes são os dois títulos que ela ostenta. Sem nunca deixar de ser uma figura individual, uma figura histórica concreta, a “mulher mãe” tem um significado simbólico. Por trás das expressões “mãe” e “mulher” está a imagem bíblica (usada sobretudo pelos profetas) da "filha de Sião". Na literatura profética a “filha de Sião” é a personificação de Jerusalém; porém Jerusalém é a parte pelo todo: portanto a “filha de Sião” é o povo da aliança, é o povo judeu. A “filha de Sião” é uma imagem coletiva, é a personificação num indivíduo, que nas profecias permanece apenas um estratagema literário; ele é a personificação da comunidade dos crentes. Este é provavelmente o significado principal dos dois títulos que se referem a Maria: “mãe” e “mulher” devem ser explicados no contexto desta imagem profética de uma mulher, que representa o povo da aliança e que é mãe . Por um tempo ela foi privada dos filhos, que foram para o exílio; mas então deverá ampliar sua tenda, pois seus filhos retornarão em tal número que não caberão mais ali; portanto – proclama Isaías – “amplia as estacas da tua tenda” (cf. Is 54,2; ver também Is 49,20). Aqui então Maria representa o povo da aliança. Sem deixar de ser uma figura individual, ela tem um valor comunitário na contemplação que o evangelista João faz dela. Maria representa o povo da aliança; pode-se perguntar: aliança de quem? Na minha opinião a resposta mais persuasiva é a seguinte: ela representa o povo da antiga aliança que atingiu o limiar do éskaton, que chegou ao momento em que a aliança é estipulada por Deus de forma definitiva e quem é o "nova aliança" prometida pelos profetas. Então a mãe representa, antes de tudo, Israel levado ao limiar do eskaton. Avançando nesta leitura simbólico-teológica (que é aquela para a qual o evangelista convida o leitor), o discípulo presente na cruz representa o protótipo de cada discípulo de Jesus. Isto porque ser amado por Jesus constitui o fundamento e a essência de cada discípulo de Jesus. toda existência de discípulo. Contudo, João não é apenas o protótipo de cada discípulo: é também o autor do Evangelho; portanto ele é uma testemunha. Você poderia dizer que são as duas coisas, porque ser discípulo é a base, é o fundamento de todo o resto. Este discípulo, protótipo de todo o discipulado, amado por Jesus, tem também uma função especial: é testemunha do mistério do Verbo que se fez carne. Nunca devemos esquecer que ambos os aspectos estão presentes nele: ele é também testemunha; ele é o autor da QV, que é o grande testemunho dado ao Verbo que se fez carne. Depois podemos retomar as palavras que Jesus dirige a ambos, tentando revelar o seu significado último. As palavras à mãe: «Mulher, aqui está o teu filho!». Se fizermos funcionar o que dissemos, poderemos ler este momento supremo assim: Israel (representado pela "mulher", que é a "mãe", e que é levada ao limiar da "nova aliança") abre-se ao receber alguém, amado por Jesus, torna-se seu discípulo. Novamente, com as palavras “Mulher, eis o teu filho!” Jesus instala o discípulo no papel que até então lhe pertencia: João aparece como o “vigário de Cristo”. É evidente que na teologia da tradição católica esta fórmula adquiriu um significado muito preciso; aqui, porém, podemos dizer que esta é a linha do texto. Jesus está dizendo à sua mãe: “Mulher, o lugar que ocupei até agora, de agora em diante ele ocupará”. Então parece realmente que podemos dizer que o discípulo é o seu vigário. Por outro lado, isto está perfeitamente de acordo com a visão eclesiológica do evangelista. Aqui podemos ver claramente o que é a Igreja para João, porque aqui está a essência da eclesiologia joanina: a Igreja é a extensão da encarnação. Enquanto o Logos sai do mundo e vai para o Pai, o seu lugar no mundo é ocupado pelos discípulos, que prolongam a sua presença. «Mulher, eis o teu filho!»: o lugar que Jesus ocupava até aquele momento, de agora em diante então o discípulo o toma como o protótipo da existência de todo discípulo. Para o evangelista a Igreja é a extensão da encarnação.

5.3. O discípulo testemunha por excelência

Dissemos que João não é apenas uma figura de discípulo, o protótipo da existência de cada discípulo; ele também é a testemunha. Ele é verdadeiramente a testemunha por excelência. A igreja antiga reconheceu isso, acolhendo o seu evangelho no cânon, reconhecendo-o como um texto inspirado e canônico. Verdadeiramente a Igreja apostólica reconheceu a sublimidade deste testemunho dado por João ao Verbo feito carne. João é a testemunha, é a grande testemunha da encarnação do Verbo. Então, que significado adquire esta cena, se insistirmos neste aspecto da figura de João, no momento em que o Logos encarnado deixa este mundo e regressa ao Pai? Ele é a sua testemunha, que continua a tornar acessível a revelação.

Ninguém jamais viu a Deus”, então “o Verbo que se fez carne o revelou” (cf. Jo 1,18); mas o que acontece quando o Verbo sai deste mundo e vai para o Pai? Este texto sugere algo desta perspectiva: assim como o Deus invisível permaneceria inacessível se não existisse o Verbo feito carne que dEle testemunho e O revela, do mesmo modo, se não existisse aquele que dá testemunho do Verbo feito carne, uma vez que o Verbo tenha deixado este mundo, o Verbo seria inacessível, incognoscível, inatingível, não poderia mais ser experimentado. Todos esses são níveis que não entram em conflito entre si. Nas palavras que Jesus diz à sua mãe, devemos ver tudo isto. «Mulher, eis o teu filho!»: a mãe é Israel levado ao limiar do eskaton, que se abre para reunir todos os futuros discípulos de Jesus, absolutamente todos, mesmo aqueles que não vêm do ventre de Israel. Aqui está uma olhada na igreja formada por judeus e tão gentil. A mãe acolhe este discípulo que Jesus instala em seu lugar, porque os discípulos de Jesus são a extensão da encarnação. Novamente ela é convidada a recebê-lo como testemunha. Aqui, pois, a mãe de Jesus, desde o início, isto é, desde a cena das bodas de Caná (Jo 2,1-11), foi apresentada sobretudo em relação à aceitação obediente e confiante da palavra. A mãe, que em Caná confiou na palavra do Filho, é agora convidada a fazê-lo em relação àquela testemunha que agora - na ausência do Verbo feito carne, que já não está aqui na sua carne - dá o seu testemunho a aquela Palavra e sua existência entre os homens.

5.4. O reconhecimento de Israel como matriz

Vejamos as palavras ao discípulo. Jesus «diz ao discípulo: «Eis a tua mãe!»»: é uma cena de revelação. Jesus convida-o a olhar para ela: o discípulo não o vê com os olhos da carne, mas Jesus revela-lhe que ela é sua mãe. Retomamos o que dissemos antes: o “discípulo amado”, protótipo de todo discípulo de Jesus, reconhece que Israel é a matriz da qual tudo provém. Você pode brincar com as palavras: mãe-matriz. O discípulo amado reconhece que o povo da antiga aliança é a matriz: ele tira a mulher “do que lhe pertence”, ou “do que é seu”. É uma expressão formidável do evangelista.

«Ele levou-a para casa». A ideia é antes que “a partir daquela hora em que ele a tomou, ela passou a fazer parte do que é dele”. É muito bonito e profundo. O QE foi escrito quando o templo de Jerusalém já havia sido destruído há muito tempo e numa época em que a comunidade se reunia em torno do testemunho que João já havia aberta para acolher os gentios, os incircuncisos, no seu ventre. Isto é muito importante, porque aqui queremos lembrar a esta comunidade eclesial que Israel continua a ser a matriz. Israel é a matriz desta comunidade, que já não é composta apenas pelos filhos de Israel, mas por cada discípulo amado por Jesus, de onde quer que venha.

 

6. A morte de Jesus (Jo 19.30b)

No início sublinhamos a importância da ligação da cena comentada com a anterior da túnica, imagem da comunidade. São duas cenas profundamente eclesiológicas: a túnica, que não se rompe, e a entrega mútua da mãe ao filho. Concluímos olhando para a cena imediatamente seguinte: a história da morte de Jesus, da qual vemos apenas a expressão final: “E, inclinando a cabeça, entregou o espírito” (19,30b). Se o evangelista quisesse simplesmente dizer “expirou”, teria usado outro verbo, aquele usado nos sinópticos. Em vez disso, ele inventou uma frase que pode ter mais de um significado. Uma mais superficial, para a qual “expirou”, “perdeu o fôlego” também serviria; mas há também um significado mais profundo: “libertou o pneuma”, “libertou o espírito”. Certamente o sopro é uma imagem do espírito, como mostra a cena da Páscoa em João 20; então é fácil fazer a troca. É disso que se trata: João encerra a história da morte de Jesus com esta alusão: deixa claro que o cumprimento da obra messiânica é a comunicação escatológica do Espírito, que o messias dá sem medida, “imensuravelmente”.

Aqui a sucessão de ações é muito importante. O texto não diz que “Jesus expira” e que então, não tendo mais vida nele, sua cabeça desaba; esta seria uma descrição do tipo crônica. Pelo contrário, Jesus, com um ato senhorial, «inclina a cabeça», expressão que indica plena posse das suas faculdades. Inclina a cabeça e inclina-a para aquele núcleo que é a comunidade messiânica, que se encontra aos pés da cruz e que é composta pelas duas figuras sobre as quais meditamos; e então "entregar o espírito". A ação do espírito não pode limitar-se exclusivamente aos limites visíveis da comunidade dos crentes, isto é muito claro. Aqui a insistência é em termos positivos, para dizer que Jesus deixou o seu espírito à comunidade, comunicou-o como um dom sem medida.

Este é o olhar joanino. Obviamente é um dos aspectos, pois também existem muitos outros elementos na história da morte; mas é o olhar que o evangelista nos convida a dirigir para a Igreja, com as duas figuras: a mãe e o “discípulo amado”. A relação que Jesus estabelece entre eles, a revelação que lhes entrega é antes de tudo uma meditação sobre a essência da Igreja, sobre a sua estrutura profunda. Certamente para o evangelista, a relação com Israel e esta presença do Espírito, que o messias morto e ressuscitado dá sem medida à sua comunidade, são de grande importância na estrutura profunda da Igreja.

IMMANUEL KANT: Crítica da razão pratica 1788

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