Edições Loyola
Síntese: Paolo Cugini
1
PRESSUPOSTOS
ARISTOTELICOS DA DIALÉTICA
1. A dialética
aristotélica
Foram, contudo, os sofistas do tempo de Sócrates
que se constituíram mestres práticos da dialética, entendida apenas como arte
da refutação. Isto é, o sofista sempre poderia demonstrar o contrario do
afirmado por quem na ocasião fosse seu oponente na discussão. A dialética era
uma arte necessária especialmente para o político que, na ágora, precisava
saber defender sua opinião e criticar a opinião contrária. Pag. (21)
Platão descreve claramente a dialética como um
método ascendente (vai até as últimas
idéias), positivo (porque por ele se
conhece a idéia a se ascende de conteúdo) e ético (no sentido de que pela teoria se
alcança a felicidade divina da alma, na posição extática ante o eterno-divino:
as idéias). A dialética que descobriremos até o 16 não é nem ascendente, nem
positiva, nem ética no sentido platônico. Será negativa; será compreensão por
in-volução. Pag. (22)
Plotino fechará o circulo ao formular claramente a
totalidade do processo dialético iniciado apenas por Platão. Platão interpretou
a dialética como movimento ascendente; Plotino, ao contrario, começa o processo
elo descenso do circulo (que em latim será traduzido depois por explicatio e em Hegel pela Diremption, com outro significado): do uno ao
múltiplo, fechando-se depois ascensionalmente o circulo do eterno retorno do
alexandrino no movimento ascético ou unificante da pluralidade no uno. O uno é
o ponto de partida e de chegada: a partir de onde se desce e para onde se
ascende. O múltiplo é o oposto, a aparência, o material, o corporal, o mal.
Plotino é a síntese da milenar tradição do indoeuropeísmo. Nele se reúnem o
pensar greco-helênico, o irânico-maniqueu, o hindu-brahmânico. Pag. (22)
Aristóteles propõe a questão com sentido bem
diverso do de seu mestre Platão, que é, por outro lado, de suma atualidade. Em
primeiro lugar, contra o fundador da Academia, firma a dialética partindo da
avaliação positiva da arte ou exercício sofístico (opondo-se, de antemão à
posição kantiana). Os sofistas conheciam a arte da refutação. Aristóteles a
aprenderá deles e a exporá pela primeira vez num livro esquecido: Os tópicos (os “lugares”-comuns da discussão).
Para o nosso filosofo, a dialética é a arte da interrogação. Pag. (23)
A dialética, para Aristóteles é radicalmente a arte
do des-cobrimento ou da verdade do ser;
é um des-cobrir o que está encoberto. Do factum, do fato dado a priori, da cotidianidade, a dialética vai “em
direção” ao que está oculto. Des-cobrir o oculto constituirá um movimento, um
discurso através de um caminho. Pag. (24)
Para fazer ciência (ciência é o apodítico), é
preciso partir do principio verdadeiro; ao contrario, para praticar a dialética
é suficiente partir do que “o homem da rua” compreende cotidianamente: este é o factum primeiríssimo ou a priori. O ponto de partida não é uma premissa
exata, mas uma “opinião cotidiana”, algo que o platonismo julgou desprezível. E
porque ta éndoxa foram vistos como
desprezíveis e chegou-se a pensar que a ciência era o supremo. Por isso o livro
dos Tópicos não foi mais lido: o
apodítico tornou-se o supremo conhecimento (especialmente no século XIX, sob o
império do positivismo). Antes, porém, do conhecimento cientifico, e não
depois, como o pensava Platão, encontra-se o saber dialético, que é mais
perfeito que o cientifico. Seu ponto de partida, sem dúvida, parece repassado
de negatividade: “São éndoxa (o compreendido existencialmente)
as opiniões sustentadas por todos os homens, pela maioria ou pelos sábios e,
entre estes por todos, pela maioria ou pelo mais notáveis e ilustres”. Esta
descrição repetidas muitas vezes e de modo idêntico na obra de Aristóteles não
revela a precária plenitude do factum ou ponto de partida
do filosofar. Esse factum (o fático ou
faticidade) significa o mundo histórico e concreto dentro do qual o homem vive.
Supõe então todo o mistério do ser humano. Ao contrario de Platão, a dialética
parte do factum e é o primeiro. A ciência parte do conhecido por
evidencia; a evidência, porém, funda-se na cotidianidade dentro da qual o
principio é considerado (ás vezes por mera convicção histórico-cultural)
evidente. A dialética é o primeiro, é a arte inicial ou
originária, prévia ao ato posterior da ciência, quando houver. Neste caso, a
dialética seria a introdução á filosofia “como ciência”. Assim deve entender-se
igualmente o Discurso do método de Descartas, a Critica da razão pura de Kant e a Fenomenologia do Espírito de Hegel: parte-se do
cotidiano (o factum) a vai-se em direção
ao começo da ciência, mas em direção diversa da de Aristóteles, não já em
direção ao ser, mas, in-voluntariamente , em direção à consciência. Pag.(25)
2. A dialética como crítica
A dialética parte da cotidianidade (ta éndoxa), compreensão existencial ou aparência
histórica. Para nós a cotidianidade consiste no fato habitual de ser
latino-americanos, argentinos, de Mendoza. Em nossa compreensão cotidiana estão
incluídas nossa pré-história indo-americana, a proto-história da cristandade
colonial, as nações divididas e não-integradas, o presente cambiante e o
projeto ad-veniente. Pag. (26)
A totalidade histórico-cotidiana é a que a
dialética tratará de pôr em crise. Por isso “nossa intenção foi descobrir uma
certa capacidade de argumentar sobre qualquer problema, partindo do
que é dado na compreensão cotidiana e enquanto mais comumente (endoxotáton), posto que esta é a tarefa da dialética,
da crítica”. O dialeto poderá ocupar-se de toda questão, partindo do culturalmente
admitido, do senso comum de um povo. Pag. (27)
A dialética que parte da realidade cotidiana,
histórica, do opinado por todos, deve saber discernir o falso ou en-cobridor,
do verdadeiro ou des-cobridor do ser; para isso a dialética argumenta
estabelecendo contradições, isto é, mostrando a impossibilidade do
contraditório ao que é. “Os argumentos dialéticos são aqueles que, apoiando-se
no compreendido cotidianamente arrazoam visando estabelecer uma contradição (antifáseos)”. Pag. (28)
A dialética será um método da sabedoria, prévio à
filosofia como ciência, uma autêntica superação da metafísica.
Aristóteles distingue claramente entre proposições,
problemas e teses dialéticas. O início filosófico deve sempre ser ao modo de
tese, tético, no sentido de que quem escuta o discurso filosófico é sempre
interpelado por algo que se propõe à sua consideração cotidiana e que o leva,
até contra a sua vontade, para o en-coberto além do cotidiano. O começo
originário do filosofar é uma tese: não somente uma
interrogação acerca do compreendido por todos (proposição dialética), nem
tampouco uma formulação para alcançar a verdade (problema dialético), mas
tambémparodoxal, a fim de produzir no
interpelado a crise existencial. A tese lançada contra a compreensão óbvia e
tida como verdadeira pelo não-filó sofo. Pag. (29-30)
3. A dialética como ontologia fundamental
Séculos antes da era cristã, já estava colocada
claramente a questão da superação da filosofia como ciência. A dialética, como
ontologia fundamental, é uma atitude prévia à ciência ou à filosofia.
Aristóteles denominou simplesmente de cultura (Paidéia) esta atitude, quando nos diz “em todo gênero de
especulação e de método, do mais cotidiano ao mais elevado, parece haver dois
tipos de atitudes (héxeos): a primeira,
poderíamos denominá-la ciência do ente; a segunda, cultura (paideían). Com efeito, é própria do homem culto (pepaideuménou) a capacidade de efetuar a critica (krísis). E é precisamente esta atitude que pensamos
pertencer ao homem que tem cultura universal (tòn hólos pepaideuménon) e enquanto resultado da cultura (tò pepaideusthai). Acrescentamos que
pensamos que (o homem culto), e somente ele, é capaz de criticar tudo, enquanto
os outros (especialistas) não são competentes (para criticar) senão alguma
natureza determinada”. Este texto é capital para nossos fins. Efetua a crítica
não o cientista, mas o homem culto, o sábio. Pag. (31-32)
As ciências partem dos princípios; a dialética
mostra os princípios, mas não parte deles. A dialética parte da cotidianidade.
“Chamo de-monstrativas neste caso – diz-nos atrevidamente Aristóteles – as
opiniões cotidianas (tas koinas
dóxas), partindo das quais todo homem pode mostrar, por
exemplo, que é necessário afirmar ou negar algo, e que é impossível que algo
seja e não-seja ao mesmo tempo. Este é o primeiro princípio, o último, mostrado
pela dialética aristotélica: o princípio da impossibilidade da contradição. A
dialética moderna, ao contrario, se fundará no princípio de identidade. O
primeiro é a mostração de um ser que se im-põe; o segundo, de um ser que é
posto pela subjetividade como idêntico a si mesmo. Pag. (34)
A dialética é, então, para Aristóteles, um método
ou caminho originário que, partindo da cotidianidade, abre-se ao fundamento: ao
ser. Deste ser não pode haver de-monstraçao nem compreensão acabada a sim
compreensão existencial e dele nos acercamos existenciariamente apenas por
negação, por mostração do que é na cotidianidade e pela impossibilidade de que
seja o contraditório ao mesmo tempo, isto é, que seja o que não-é. Abertos ao
âmbito hipotético (o que está debaixo) da cotidianidade, ao âmbito do ser no
qual reina a ad-miraçao, podemos, a partir dele, tudo mostrar, inclusive os
princípios das ciências, sem saber
nada (atitude do sábio socrático) do tema específico de cada ciência ou
técnica. A dial� �tica aristotélica parte da faticidade e
se abre ao ser, alvo ao qual se lança o
movimento dialético e fundamento de todo saber apo-dítico, de-monstrativo,
epistêmico, cientifico.
A partir de um pensar latino-americano crítico (e
por isso de toda a “periferia”), a dialética, como todo o pensar grego, repete
de diversas maneira do Fragmento 6 de Parmênides,
quando diz que “o ser é, o não-ser não é”. Não se deve, porém,esquecer que “são
o mesmo o pensar e o ser” (Fragmento 3), e o pensar deve identificar-se com o logosgrego. O ser é (o grego), o não-ser não
é (o bárbaro, o conquistado, o que está além do horizonte ontológico dapolis). Neste caso
diviniza-se a fysis, que é o horizonte grego de com-preensão do mundo. Em última
análise é uma ontologia conquistadora, dominadora, imperial, portanto
guerreira. Não podemos, porém estender-nos sobre este particular, pois não é
este o tema desta obra. Pag. (35)
2
PRESSUPOSTOS MODERNOS
EUROPEUS DA DIALÉTICA HEGELIANA
A verdadeira revolução ontológica foi cumprida,
séculos antes, pelo modo de existir o judeu-cristão. A modernidade é uma nova
etapa do pensar europeu que, por sua vez, difere essencialmente do mundo helenista
ou grego. Na modernidade, a dialética já não partira da faticidade da
compreensão existencial (que inclui corporalidade, sensibilidade, história)
para penetrar em direção ao ser que se impõe, mas começará por ser rechaço à faticidade sensível e volta não um ir em direção ao oculto por
trás, como negação e retorno para dentro da imanência. Pag.
(37)
4. O “Discurso do método” dialético em Descartas
Descartes (1596-1650), primeiro grande pensador da
modernidade, inclui, no fundamento de seu pensar um movimento dialético,
geralmente pouco estudado.
Atende-se para certos textos fundamentais de
Descartes. Em primeiro lugar, o movimento dialético cartesiano é inteiramente
distinto do aristotélico.
Descartes, ao contrário, rechaça a totalidade da
compreensão cotidiana unicamente porque esta inclui o falso. Pag. (38)
A faticidade deve então ser superada a partir de um
âmbito estranho à corporeidade mundana; o dualismo cartesiano permitia efetuar
esta, “retirada” da imanência, “de lismo cartesiano permitia efetuar esta
“retirada” da imanência, “de tal sorte que este eu, isto é, minha alma, pela
qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo, e
ainda é mais fácil de conhecer que o corpo, e que se não houvesse corpo e alma
não deixaria de ser o que é”. A partir da alma, da interioridade, Descartes
poderia negar inteiramente a faticidade dos sentidos, o mundo, a história:
“Aprendi com certeza que não há nada certo no mundo”. Este dualismo radical,
sem atenuantes, era a desintegração do ser no mundo e a redução do mundo à
espacialidade abstrata da máquina chamada corpo, âmbito estranho à alma ou cogito.
Este movimento dialético parte da faticidade
sensível, mas para rechaçá-la. Aristóteles a assumia no que ela tinha de
verdadeiro e por isso, na faticidade se encontrava já o sumamente humano e compreensivo: o
ser. Aqui, ao contrário, há a negação clara e simples da faticidade. Há
in-volução para dentro, para a imanência do sujeito que já não é substância,
mas consciência: a substancialidade se transforma agora em subjetividade
fundante e fundamental. Pag. (39-40)
Todo o pensamento moderno (de Descartes ao Sartre
de L´être et Le néantI ou a um Romero na
América Latina) encontra-se, como demonstramos, dentro da imanência da
subjetividade – o mesmo devemos ver a respeito de Hegel, que não podia,
milagrosamente, sair de sua época, da tradição européia instaurada desde
séculos antes. Pag. (41)
5. A “Critica da razão pura” dialética de Kant.
A dialética como sofistica anticética
Kant (1725-1804), seguindo a tradição iniciada por
Leibniz, fez da dialética a parte definitiva de seu pensar. A denominada
“dialética transcendental” é a culminância da Crítica da razão pura. Se levarmos em conta
que a referidaCrítica é fundamentalmente da
razão e que somente na “dialética transcendental” se ocupa da razão, poderemos
compreender que é a central de todo o pensar kantiano. Pag. (41)
Para o filósofo de Koenigsberg, a razão é
essencialmente dialética (contraditória em si mesma), por isso “o assunto
capital e mais importante da filosofia é, pois, acabar de uma vez por todas com
toda sua perniciosa influencia, suprimindo a fonte dos erros”, isto é,
mostrando a impossibilidade do uso positivo da razão. Pag. (42)
A aparência para Kant é o contraditório, o
ilusório, o que não tem nenhum sentido. A dialética, como arte da demonstração,
mostra a razão, através de conclusões contraditórias e de paralogismos, que é
impossível o uso desta razão. A dialética enquanto lógica da aparência tem o
sentido de negar-se a si mesma – diversamente da sofística que pretende
afirmar-se por haver demonstrado algo. A razão emprega a dialética para mostrar
a si mesma seus limites.
Por isso a “dialética” transcendental sintetiza sua
positividade em sua própria negatividade; em Hegel, pelo contrario, a dialética
será um conhecer supremo e positivo pela negação. A dialética kantiana nega o
sistema; a dialética hegeliana é o próprio sistema. Kant afirma: “Demos antes à
dialética de lógica da ilusão. Isto não significa que seja uma teoria da
verossimilitude... Menos ainda que possam ser considerados como idênticos
fenômenos e ilusão... (contra Descartes diz que) os sentidos não erram, não
porque julguem sempre com exatidão, mas porque não julgam de modo algum”. Pag.
(42-43)
Kant indica como o erro do juízo não procede dos
sentidos, mas do entendimento categorial. Não rechaçará, pois, sem mais, o
âmbito da corporalidade. Por outro lado, “a dialética transcendental
contenta-se-á com descobrir a ilusão dos juízos transcendentais (da razão) e
impedir, ao mesmo tempo, que nos enganem”. O engano então não procede dos
sentidos nem do entendimento que constitui os objetos, mas da razão, quando nos
diz conhecer as idéias. A idéia de mundo, por exemplo, é demonstrada
dialeticamente quer como incriado ou como criado. Pag. (43)
6. O movimento crítico dialético
O movimento dialético de Descartes era
exclusivamente teórico: negação da faticidade, in-voluçao ao cogito, de-dução da totalidade. Em Kant, pelo
contrário, o círculo será mais complexo, incluirá a teoria e a práxis. Com
efeito, o movimento dialético parte da sensibilidade para se concluir no “eu
penso”. A partir do “eu penso” começa a de-duçao: o “eu penso” é concebido
afinal como um sujeito livre (a idéia de liberdade e a de lei moral manifestam
a autonomia da vontade). O eu é ativo. A crítica da razão prática fechará o círculo,
mostrando como o homem modifica o empírico pela ação moral. Neste círculo a Crítica da razão pura é apenas a prop
edêutica para o “eu penso”, e faz as vezes da Fenomenologia do espírito na filosofia de
Hegel, muito embora, neste último, a razão tenha outra função, como veremos.
Para Kant toda a Crítica da razão pura não é ainda uma
ciência ou, se a quisermos denominar de ciência, é somente uma “ciência
elementar”. É por isso que a tarefa filosófica parecera ficar na mera negação
de qualquer sistema filosófico. A dialética transcendental negaria a
possibilidade de uma metafísica positiva. Pag. (45-46)
O processo dialético do pensar kantiano remonta do factum (o em-si sob aparência sensível) mas
involui para a subjetividade (transcendente) no mesmo sentido de Descartas:
a) A pluralidade sensorial é unificada como
fenômeno pelas intuições de espaço e tempo, momentos da sensibilidade.
b) A pluralidade fenomênica é unificada como objeto
pelas formas puras do entendimento: os conceitos. Não esqueçamos que “no que
tange aos objetos, somente conhecemos a priori nas coisas aquilo
que, nelas colocamos (legen).
c) A pluralidade conceitual é, por sua vez,
impossível de unificar pelas idéias como tema da razão pura especulativa. A
razão teórica pura e a prática ou vontade são igualmente faculdades do
espírito, do eu ou consciência transcendental. A idéia não é idéia da coisa em
si. A coisa em si não é sabida pela razão, mas somente crida. A fé racional terá supremacia sobre o
saber. Nisto se fundará a diferença com Fichte (e por isso com Schelling e
Hegel).
d) O movimento dialético dirige-se agora ao
empírico, como num retorno circular. O fato da lei moral inclui o fato da idéia
de liberdade. A ação moral que o imperativo categórico cumpre retorna, pela
ação, ao âmbito do qual havia partido o caminho da ciência.
e) Pela Critica do
juízo é recuperada certa teleologia natural e com isso o
pensar kantiano, ainda que hipoteticamente, fecha o círculo. Pag. (46-47)
7. A dialética como “Doutrina da ciência” em Fichte.
O
ponto de partida da de-duçao dialética
O processo dialético origina-se no sujeito infinito
enquanto indeterminado, incondicionado. Fiche soube, desta maneira, descobrir o
princípio oculto, o fundamento ontológico do pensar kantiano. O jovem estudante
que, da Polônia, foi a Koenigsberg para encontra Kant, soube amadurecer no
silencio da Suíça a superação do kantismo como subjetividade absoluta,
denominada por ele de “idealismo transcendental”. Quando chegou a Iena para
substituir Reinhold, causou sensação; e não era para menos. Para o jovem
filosofo, Kant inteiro fundava-se no ich denke (eu penso). Anos
após, ele confessa: “Não ignoro que Kant não estabeleceu tal sistema...
Contudo, estou igualmente certo de saber que Kant teve a idéia de tal sistema.
Tudo o que expus não é efetivamente sen ão fragmentos ou resultados deste
sistema (implícito), suas teses não têm sentido e não se harmonizam senão a
partir da pressuposição deste sistema. Fiche meditou especialmente um texto
central da Critica da razão pura sobre a “percepção
transcendental” acerca do qual comenta: “Encontramos assim, em Kant,
perfeitamente determinado, o conceito do eu puro tal como o estabelece a Doutrina da ciência. A partir dessa
passagem, qual é a relação instituída por Kant entre o eu puro e qualquer outra
consciência? O eu puro é posto como
condicionante desta última. Pag. (48-49)
Para Fichte, portanto, o fundamento é um ato. Um
ato pelo qual o eu se dá a si mesmo tudo o que pode ser objeto. Em seu último
fundamento, é um ato pelo qual o objeto é dado ao eu pelo eu. Fichte não se
cansa de repetir a fórmula fundamental: “Eu sou eu. O eu é absolutamente
posto”. “O eu não procede de uma síntese da qual se pudesse conseqüentemente
decompor a diversidade, mas de uma tese absoluta: o eu é a eudade (Ichheit) em geral”.
A tese absoluta, o começo originário do filosofar,
é o eu que põe o eu. É um ato, um puro ato da consciência. “Eu denomino
intuição intelectual (intellektuelle
Anschauung) a intuição de si mesmo, su-posta no
filósofo, na efetuação do ato pelo qual o eu se engendra a si mesmo... Não dou
um passo, não levanto a Mao ou o pé sem ter, nestes atos, a intuição
intelectual que minha consciência tem de si mesma. É somente pela intuição que
eu sei que eu o faço. Esta intuição intelectual constitui,
enquanto ato, o eu indeterminado ou infinito. O começo da dialética deverá
situar-se nesta infinitude ou indeterminação absoluta porque, “se a filosofia
partir do f ato (factum), situa-se desde o
início no mundo do ser (Sein) e da finitude, e
ser-lhes-á difícil encontrar o caminho para o infinito, ou supra-sensível; se
partir da ação (Tat), situa-se no âmbito
mesmo onde se unem estes dois mundos e de onde poderá abraçá-los com uma só
mirada”. Fiche tem, então, consciência de opor-se à atitude fundamental
adotada, por exemplo, por Aristóteles. Pag. (53)
8. A de-dução dialética dos opostos
Uma vez mostrado o momento da tese absoluta, pode
começar a de-dução. No sentido ontológico, a dialética termina justamente ao
alcançar o último horizonte, como método pré-filosófico ou como superação da
ontologia – tal seria o caso de Aristóteles, como o mostraremos no capítulo 4
deste trabalho. Não obstante, a dialética fichteana será dedutiva e, portanto
epistemática ou cientifica (e não pré-científica). A dialética será o método da
ciência, da filosofia como ciência, como ciência suprema. O primeiro princípio
é o eu penso puro, como ato de intuição intelectual da consciência. Pag. (54)
Se resumíssemos em poucas palavras a doutrina
dialética em Fichte, indicaríamos os seguintes aspectos; em primeiro lugar o
movimento dialético é de de-dutivo ou de-volutivo e se cumpre no interior da imanência da subjetividade absoluta. O caminho se
inicia no eu incondicionado (tese absoluta), passando à antítese primeira: o eu dividido que se antepõe
ao não-eu, para alcançar a síntese suprema e também
primeira. O eu dividido e o não-eu que se opõem, ambos, ao eu absoluto. Em
segundo lugar, e com isto se inicia uma nova parte da Doutrina da ciência, cuja formulação geral
é: o eu se põe a si mesmo como determinado pelo não-eu (nesta análise consiste
a teoria do conhecimento). Em terceiro lugar, e é a ultima parte da obra
comentada, há o nível prático: o eu põe o não-eu como determinado pelo eu. Esta
última questão é tratada extensamente no Sistema da doutrina dos costumes (1798), e com isso
conclui-se a primeira etapa do ciclo fichteano e já se anuncia o Sistema do idealismo transcendental de Schelling. Pag.
(58-59)
9. A dialética que parte do absoluto como “auto-consciência” em
Schelling
Ontologicamente o pensar schellingiano parte do
idealismo de Fichte e, neste sentido, não há novidade. Dentro deste idealismo,
porém, significará um passo importante para dar mais coerência ao subjetivismo
absoluto. Anotemos apenas alguns aspectos de sua dialética para que nos possam
servir de introdução à Fenomenologia
do Espírito de Hegel. A in-volução cresce até suas
últimas conseqüências. Para Descartes a coisa era sabida pela ou através da
idéia que está na alma ou cogito. Para Kant a “coisa em
si” já não é sabida, mas postulada como tema da “fé racional”. Em Fichte, como
vimos, a “coisa em si” desaparece como o construído pela consciência ou eu.
Todavia, em Fichte há ainda um termo ant itético do eu dividido, o não-eu, que
surge no eu absoluto. Esse não-eu é como que uma leve exterioridade. Em
Schelling o próprio não-eu é deglutido no movimento da interioridade, porque o
eu, sendo ponto de partida, não necessita sequer do não-eu para mover-se
dialeticamente: o eu conhece o eu e é pura autoconsciência. Da coisa sabida na idéia de Descartes, passa-se à coisa criada por Kant e daí à sua desaparição em um
não-eu puramente antitético interior ao eu, até sua aniquilação ainda como
não-eu na pura imanência do eu absoluto, que se conhece a si mesmo por
autoconsciência. A in-volução é completa. Contra seus antecessores escreve que
“em primeiro lugar, a certeza da existência do mundo externo (Dasein der Aussendige) é mero pré-conceito do qual devemos
nos libertar para retornar ao fundamento”. Que haja pois coisas exteriores é mera aparência sem razão suficiente.
Este fundamento ou princípio é o eu. Pag. (61-62).
10. Anterioridade dialética do saber sobre o ser
A anterioridade do saber sobre o ser na total
imanência do absoluto, que, em última analise é Deus, é o começo de um longo
caminho exposto nas obras de Schelling. Ao final da mais clássica de suas obras
diz: “O leitor, se nos seguiu em nosso caminho (Gang) até agora, poderá considerar o conjunto exposto”.
Neste longo caminho Schelling se propôs “tratar todas as partes da filosofia em
continuidade e toda a filosofia tal como ela é, quer dizer, como história
progressiva da auto-consciência, história para a qual o dado da experiência
sirva apenas como monumento e documento. Para esboçar com exatidão e
inteiramente uma tal história, importava não somente distinguir nela cada época
(epoché) e, nesta, seus mo mentos respectivos, como também apresentá-la em sua
sucessão, através do mesmo método”.
Essa historia é o próprio movimento dialético, no
sentido de uma história natural e humana.
a) O primeiro nível assim se enuncia: “A auto-consciência
é o ato absoluto mediante o qual tudo é posto para (fur) o eu”.
b) O segundo nível, fundado, tem diversas épocas:
“A primeira época: da sensação originária até a intuição produtiva”.
c) “A segunda época: da intuição produtiva até a
reflexão”.
d) “A terceira época: da reflexão até o ato
absoluto do querer”. Pag. (65-66).
3
A DIALÉTICA HEGELIANA
12. O método dialético de Hegel contra o idealismo subjetivo
Na crítica àquilo que denomina de idealismo
subjetivo de Kant e Fichte, Hegel já utiliza um método dialético na história da
filosofia, porque não expõe simplesmente a doutrina de seus antecessores, mas
busca o fundamento a partir do qual surgiu este pensar – que é exatamente o
método que estamos aplicando na compreensão do próprio Hegel nesta obra. A
filosofia surge como a expressão de aspectos que foram fixados pelo
entendimento e que aparecem como contrários, mas que, na verdade, remetem a uma
unidade prévia à cisão. Saber encontrar o nível da unidade prévia, do absoluto,
é justamente a tarefa dialética. Por isso “a cisão (Entzweiung) é a fonte da qual mana a necessidade
da filosofia, e é, como cultura da época, o aspecto manifesto e dado da f igura
epocal (Gestalt). Nessa cultura, o
que se manifesta do absoluto se isolou do absoluto e se fixou (fixiert) como autônomo. Pag. (79).
A dialética, como movimento da razão, tem “o único
interesse de suprimir (aufzuheben) as oposições
cristalizadas. Este seu interesse não tem o sentido de que a razão se oponha às
oposições e limitações como tais, pois a necessidade cisão é um fator da vida
que se forma numa eterna contraposição, e a totalidade (Ttalitaet) suprema na ordem da vida não é possível senão
pelo restabelecimento que parte da divisão (Trennung) suprema. A razão se opõe à fixação absoluta da cisão
do entendimento, muito mais quando se tem em conta que os opostos absolutos
surgem da razão”. Quer dizer que o entendimento, faculdade inferior, ôntica ou
dos entes enquanto pluralid ade de um mundo de opostos, pretende, às vezes,
fixar, cristalizar as oposições como absolutas, como aquilo que explica
radicalmente o que nos rodeia. Pag. (79-80)
13. O movimento dialético na “Fenomenologia do Espírito”
A dialética começa então por negar a cotidianidade,
não porém para im-plantar o cotidiano num âmbito transcendente ou além, mas
para alcançar in-volutivamente uma totalidade aquém. “Não é um movimento
puramente negativo” como no caso do “ceticismo que culmina na abstração do nada
ou do vazio”, “do puro nada”, mas nega-se a cotidianidade enquanto esta já é
negação de sentido; trata-se de uma bem “determinada negação que faz surgir
imediatamente uma nova forma”. A dialética nega, internando-se numa superação
que é negação de cotidianidade, “sua morte (sein Tod)”. A morte ou negação da vida da mera consciência
natural é libertação, porque omnis
determinatio est negatio (toda determ inação é negação) e ao ser
negada e negação, alcança-se a indeterminação da qualidade finitizante:
cresce-se, manifesta-se, progride-se. A dialética é então entendida aqui como
aniquilação das determinações fixas ou cristalizadas na cotidianidade. Pag.
(84-85).
15. O absoluto, ponto dialético de partida e de chegada
Em nossos trabalhos sobre El humanismo helênico e El dualismo em la antropologia
Cristiana, mostramos o sentido do ser nos mundos gregos,
gnóstico e neoplatônico que, de origem indo-européia, poderia receber a
denominação genérica de “helenismo metafísico”. Desta tradição e sob sua direta
inspiração, surgirá o gnosticismo, neoplatonismo cristão, que continuará na
Idade Média, por exemplo com os cátaros e albigenses e até o renascimento com
Nicolau de Cusa e Giordano Bruno (tão estudado por Schelling). Dever-se-ia
agregar a isto toda a tradição da mística árabe, especialmente a “Cabala”
judaica que foi conhecida por Spinoza. Esta milenária tradição do pensar
rematará em Hegel, na Alemanha de Bohme, Fichte e Schelling. Tomemos alguns
exemplo s para demonstrar nossa afirmação, mas tendo em conta que se
trata de três moimentos
distintos da história da ontologia e que uma correta destruição não deve
confundir os diversos horizontes interpretativos: o horizonte hermenêutico
helenístico do ser eterno como visto; o horizonte cristão do ser criado como
liberdade; o horizonte moderno do ser certo como subjetividade. Plotino e Hegel
são os gênios sistemáticos do primeiro e terceiro desses mundos. No mundo
cristão, contudo, foi Tomás quem melhor manifestou a diferença ontológica de
seu âmbito; mas um Pseudo-Dionísio, Escoto Eriúgena, Nicolau de Cusa ou Giordano
Bruno manifestam dentro da tradição judeu-cristã a influência neoplatonizante.
O gênio da tradição indo-européia inclina-se para o panteísmo emanatista e nega
o criacionismo, ou, pelo menos, encontra graves dificuldades em expressá-la.
Pag. (102-103).
O absoluto que é espírito e sujeito seria distinto
dos espíritos humanos, como um sujeito universal sem consciência própria, que
somente chega a ser conhecido por mediação do espírito humano na história
universal. Este auto-conhecimento através do espírito humano é o modo próprio
de conhecer-se do sujeito absoluto. “A consciência do espírito finito é o ser
concreto, o material da realização do conceito de Deus”, isto é, “o espírito
não existe como um abstrato, mas como a multidão de espíritos (die vielen Geister). A idéia absoluta, ou espírito
absoluto, é uma possibilidade (Moglichkeit) que se
auto-expressa pelos espíritos humanos na história (sendo a evolução cósmica e
biológica uma prepara ção). Esse absoluto é um momento virtual no começo; no
fim é a plenitude do conceito, a realidade como auto-revelação. Neste caso, o
cosmos e a história seriam momentos necessários do absoluto, mediação
imprescindível para sua efetuação. O cosmos e a história seriam em seu término
o absoluto: “Gott ist ganze Totalitaet”.
A descrição do absoluto como espírito, muito embora
isto tenha em Hegel um significado próprio, já é conhecido desde tempos
antigos. Mas em troca, o novo é “a determinação da substância como sujeito”. Estasubjetividade não é absoluta ou
contraposta ao objeto limitado, mas é a subjetividade absoluta. Desta maneira o
absoluto seria “uma subjetividade única e a idéia absoluta com suas categorias
(seria igualmente) um princípio real único do universo, constituindo o universo
por um ato do pensar”. Somente a modernidade poderia colocar assim a questão. O
absoluto, como resultado do processo é aquele que indeterminadamente se
manifesta na origem, mas “o verdadeiro é o todo; (e) o todo é somente a essên
cia que se completa mediante seu desenvolvimento. Do absoluto é preciso dizer
que é essencialmente resultado, que somente ao final é que é na verdade, e nisso estriba
precisamente sua natureza que é a de ser real, sujeito e que se move por si mesmo”. Dizer que
algo se move por si radicalmente é dizer que esse algo é um sujeito que se
conceitualiza. A atualidade conceitual é a atualidade suprema, é o modo de
comportar-se (Sichverhalten) do sujeito como
sujeito. “Precisamente neste ser como sujeito, nesta função ativa,
o conceito se torna princípio, fundamento e verdade de todo ser”. O ser que
conceitualiza a partir de si mesmo é livre. Por isso a liberdade e a
subjetividade são atributos necessários do absoluto. A subjetividade a bsoluta
é o comportar-se conceitualizante e conceitualizado, o conceito absoluto, isto
é, “uma subjetividade que concebe e sabe a objetividade como subjetividade, como mundo objetivo, cujo fundamento interno e consistência
real é o conceito, uma subjetividade, pois, cuja plenitude
é somente a conceitualização de si mesma, um ser objeto de si mesmo”. A
subjetividade absoluta, cabalmente imanente, não é senão o próprio absoluto
enquanto é atualidade conceitualizante como o total para si do originariamente
desdobrado (a Diremption ou Explikation originária) desde um em si
indeterminado como puro ser. Esta subjetividade assume, efetivamente, a
subjetividade abstrata que se opõe limitativamente à objetividade abstrata. Ao
final, porém, não será simplesmente a projeção no absoluto, em Deus, na
totalidade, da experiência moderna de que o ser do objeto reside no ato
conceitual da subjetividade finita? Não seria apenas a absolutização acabada e
perfeita do “eu penso” de Kant, do cogito de Descartes elevada
à infinitude atual que tudo engloba numa imanência absoluta sem exterioridade?
“A verdade é o todo”. Não quererá isto dizer que algo é verdadeiro somente
quando o em si perder sua opacidade na transparência absoluta do para si da
idéia absoluta, ato de deus como espírito absoluto no saber absoluto? Tudo isto
é humano? Poderá o homem pretender situar-se com base na perspectiva do
absolutamente sobre-humano? Ou será que, com auto-consciência, deverá conhecer
modestamente seus limites? Pags. (110-111-112)
16. O movimento dialético em sentido hegeliano estrito
A dialética não será simplesmente um método de
pensar, mas, ao contrário, trata-se do próprio movimento da realidade que o
pensar deve descobrir. Vimos e esquematizamos no 14 o sentido circular do
sistema que é igualmente o sentido do absoluto, do cosmos, da história. O
movimento dialético lança-se, começa, quando os entes aparecem como expulsos da
unidade absoluta do espírito absoluto. Põem-se então a rodar pelo mundo até
recunperar-se como resultado no absoluto final. Qual o primeiro momento do
movimento dialético? Citamos acima o texto que diz: “O ser é o conceito em si”.
Com efeito, “o ser é o imediato
indeterminado”. O absoluto, não como resultado, mas como início, manifesta-se
como puro horizonte, sem prévia determinação, sem qualificaç ão alguma. Seria a
própria subjetividade absoluta sem conteúdo algum. Todo o ser, e ao mesmo
tempo, nada. Um puro horizonte
desde e dentro do qual nada se divisa. É por isso que “os budistas fazem do
nada o princípio de tudo”. Por isso “o próprio ser, assim como suas
determinações... podem ser entendidas como definições do absoluto, como as
definições metafísicas do Deus”, mas, ao mesmo tempo, “a segunda definição do
absoluto (é aquela) segundo a qual ele é o nada (Nichts)”. O ser é tudo, mas nada em particular. Esta linguagem
aproxima-se mais da mística do budismo ou de João de Cruz do que da contradição
lógica: o ser e o nada, na verdade, não são aqui contraditórios, porque o ser é
o horizonte transcendental e, como tal, é indeterminado e indeterminável
(porquanto transcendental); e, sob outro
aspecto, o nada é nada de ente tal ou qual. A referencia diversa aniquila a
contradição: trata-se do mesmo, sob dois
aspectos diversos. Pags. (112-113)
Depois de tudo o que vimos, podemos dizer que o
método dialético hegeliano tem um duplo movimento, isto é, um duplo ponto de
partida e de chegada:
1. Enquanto movimento da própria consciência, não coincidente consigo mesma
no início, a dialética é a introdução à
filosofia, a passagem da não-verdade para a verdade do saber
absoluto, a morte à cotidianidade e à vida do absoluto estudado na Fenomenologia do Espírito. O ponto de partida,
a consciência como não-verdade é a “consciência natural”. A dialética é a)
negatividade ou supressão do mundo imediato da
sensibilidade e do entendimento; b) positividade ou experiência, como saber de um novo objeto que a
dialética deixa manifestar.
2. Enquanto movimento do próprio sistema, do ser ou da realidade, cujo
resumo está integralmente esboçado na Enciclopédia
das ciências filosóficas, a dialética é o movimento que se
origina no absoluto enquanto indeterminado, como pura negatividade ontológica,
o ser como o conceito em-si, do que começa pela Diremption ou explicatio da subjetividade absoluta, a cisão que
de semboca no finito, o Da-sein, e que se transforma
no motor do retorno (involução ascendente da Ruckgang) para a identidade do absoluto como
idéia: a) a dialética é negação das determinações
abstratas, opostas e finitizantes; b) é, positivamente, superação que
ultrapassa as oposições e que se eleva, pela supressão, ao saber unificado do
conciliante: saber absoluto como ciência, o movimento especulativo, o para-si
do conceito como vida e subjetividade absoluta plenamente cumprida. A dialética
é o movimento real, já que o ser é a coisa ou o objeto enquanto conhecido, e o
objeto como conceito plenamente recuperado é o real, e o pensar absoluto é o
real e o ser. A dialética é o movimento que arrasta a finitude e a suprime, e
ao mesmo tempo é a atualidade vital da identidade eterna da idéia que assume
unitivamente os co ntrários em si mesma para si.
3. A dialética é o movimento imanente do absoluto como
subjetividade absoluta que, no espírito finito no qual se manifesta como
consciência o espírito absoluto, parte do factum da experiência contidiana e,in-volutivamente, alcança o ser como
ponto de partida do sistema. O saber como filosofia, descobre por sua vez, o
movimento imanent e do próprio Deus que
se desdobra no cosmos e na história da humanidade como momento necessário de
sua essência.
4. O mais grave não é a identificação da subjetividade com o próprio
horizonte ontológico. O mais grave é que esta ontologia diviniza a
subjetividade européia conquistadora que vem dominando o mundo desde sua
expansão no século XV. “O ser é, o não-ser não é”. O ser é a razão européia, o
não-ser são os outros humanos. A América Latina e toda a “periferia” ficam, por
isso, definidas como o puro futuro, como o não-ser, como o irracional, o
bárbaro, o inexistente. A ontologia da identidade da razão e da divindade com o
ser termina por fundamentar as guerras imperiais de uma Europa dominadora de
todos os outros povos, constituídos como coloniais, neocoloniais, “dependentes”
em todos os níveis de seu ser. A ingênua ontologia hegeliana termina sendo a sábia fundamentação do genocídio dos índios,
dos africanos e asiáticos. A subjetividade do ego cogito transforma assim na “vontade de poder”
tudo quanto essa subjetividade divinizada pretenda, em nome de sua razão
incondicionada. Pags. (123-124)
4
SUPERAÇÃO EUROPÉIA DA
DIALÉTICA HEGELIANA
O sistema não pode ser superado
em detalhes; pode, ao contrario, ser pensado em detalhes e vertido, com enorme
proveito, em outro horizonte. Descartes é o começo radical da modernidade; Kant
é sua primeira formulação acabada; Hegel, o sistema totalizante da modernidade.
Se lhe concedermos o primeiro passo, a direção fundamental do sentido de sua
dialética, já não poderá haver superação ontológica senão em detalhes. A
direção fundamental, para citar um novo texto que reafirma os já indicados,
fica expressa claramente quando diz que “o nascimento da filosofia tem por
ponto de partida a experiência... (e) consiste em elevar-se sobre a consciência
natural, sensível e racionante até aquilo que nela mesma é sem mescla”. Metodicamente a introdução
à filosofia tem a direção de um in-voluçao
ao interior da própria consciência. Ontologicamente,
porém, é na mais íntima interioridade
da subjetividade absoluta que começa o movimento do sistema. Isto
quer dizer que o espírito tem diversas etapas, “as diversas etapas desta
atividade são as etapas de sua libertação”, trata-se do espírito finito, o
homem enquanto moralidade e eticidade, enquanto movido historicamente pelo
processo dialético como retorno. Pag. (125)
Agora podemos afirmar que, letamente e não sem
dúvidas, Schelling avança tenazmente para um novo método que já não é o dialético. O
método dialético é o movimento do ser pelo qual ele mesmo
se nega no ente e desta maneira, por determinações ou indiferenciaçoes (se determinatio est a Aufhebung é negatio netationis), avança para seu
reencontro como resultado. Trata-se agora de superar o próprio horizonte do ser
e chegar ao positivo mesmo. Este método
procurado, mas não explicitamente
encontrado, permite a Schelling abrir-se a uma nova
idade da filosofia, ou melhor, indicar esta nova idade sem poder
verdadeiramente transitar por ela. Pag. (133).
18. A crítica de
Feuerbach. Recuperação da sensibilidade
Chegamos assim à Essência do cristianismo (1841), obra
fundamental para a “esquerda hegeliana”. É aqui onde se pode observar a
principal reviravolta do pensamento europeu produzida por Feuerbach. Nosso
filosofo volta-se contra a totalidade vigente e pensada por Hegel (nível 1 do
esquema8) e desdiviniza-a, profana-a, declara-se ateu de tal ídolo. Ante um
Schelling que apenas mostra a transcendência transontológica da liberdade
eterna (um criacionismo sem encarnação), Feuerbach compreende que o
cristianismo, em um primeiro momento (e é aquele que ele compreendeu
adequadamente), é negação dos feitiches e afirmação do homem como
transcendência da “ordem vigente injusta” (feitiche); o cristianismo não é
somente o face-a-face como o Deus criador, mas “em-carnação”. O equívoco,
todavia está em que para Feuerbach o único Deus possível é i “deus” de Hegel e
da cristandade vigente (a prussiana em primeiro lugar). Kierkegaard mostrará
com razão que a cristandade (uma cultura) não é o cristianismo. Isto Feuerbach
ainda não pode ver, e por isso, embora acertada sua direção, sua critica na
será suficientemente radical, questão esta que, por outro lado, abrirá muitos
becos sem saída para seus sucessores. Em essência, a crítica ao fetiche diz o seguinte: “Essa essência (=
“deus”, o fetiche) na é outra coisa
senão a inteligência a razão, o entendimento. Deus é como o extremo do homem
como o não-humano, isto é: a essência pensada da personalidade humana é uma
objetivação da essência do entendimento. A pura, perfeita completa essência
divina é a autoconsciência do enten dimento, a consciência do entendimento de
sua própria perfeição”. Essa negação da divindade da ontologia hegeliana, como
veremos, é igualmente uma critica a civilização européia divinizada, uma
critica ao ego cogito que se encontra no
“centro” de um mundo imperial como dominação racional das “colônias” (a periferia). Feuerbach ainda não pode ver nada
disso; o que compreende muito bem, porém, é que, negada a divindade ontológica
racionalista, necessário se faz abrir-se para além de tal horizonte, para fora (ausser) dele. A exterioridade da totalidade divinizada da
razão é o mundo do sensorializado, do captado pelos sentidos, pelas condições materiais do conhecimento (diria Kant). Pags.
(141-142)
19. A crítica de Karl
Mark. Novo sentido da realidade
Com Karl Marx (1818-1883), o método adquire nova
modificação. Em primeiro lugar, deve-se notar que, em seu desdobramento formal, o método se inspira na dialética
hegeliana, mas por seu conteúdo, por sua intenção,
pela noção de realidade, introduzem-se
radicais novidades. Está na tradição Hegel-Feurbach, embora receba igualmente
de Schelling, inadvertida e indiretamente, a influência da positividade histórica; historia essa que já não é a da relação
homem-divindade (como historia da mitologia: nível simbólico da cultura), e sim relação homem-n
atureza (como história das forças e da divisão produtiva do trabalho: nível econômico da cultura). A genialidade de Marx
constitui em saber tratar operativamente e de maneira estreitamente cientifica
o âmbito da economia em seu nível político (dasociedade civil ou burguesa; a burgerliche Gesellschaft de Hegel). A Marx não
interessa a ética hegeliana pela doutrina do direito ou da moralidade, mas
centra-se exclusivamente na eticidade (Sittlichkeit), e nesta importa-lhe essencialmente a
questão da “sociedade civil ou burguesa” – em alemão burgerliche significa tanto civil como burguesa – em si mesma e em relação ao estado (Staat). Marx co mo antigo estudante de direito em Bonn,
além de sua tese doutrinal em filosofia sobre a Diferença da filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro, ocupou-se desde sua
primeira juventude com questões relacionadas com a “sociedade civil ou
burguesa”. Nisto não há ruptura, como tam-pouco haverá ruptura ontológica,
enquanto é necessário ver como o mesmo tema abordado de maneira metódica desde
a juventude até a idade madura, sem que se chegue àquilo que Bachelard
denominaria de “ruptura epistemológica” – tema tratado por Althusser em suas
obras. – E não há ruptura
porque o método dialético foi o único método
que Marx utilizou desde sua juventude, muito embora ainda usado sem suficiente
autoconsciência e em problemas de raiz mais filosófica, até o fim . é por isso,
e pelo fato de este obra não ser um estudo exclu sivo sobre Marx (trabalho que
desejamos encarar em futuro próximo) que tomaremos a mais explicita referência
ao método que nosso pensador tenha escrito. Trata-se de um parágrafo da
introdução à obra em Rascunho, Elementos
fundamentais para a crítica da economia política (1857): “O método da
economia política”. Isto nos permitirá, quando seja necessário, lançar mão de
textos da juventude ou de O
capital. Pags. (148-149).
O método não será, como para Hegel, o próprio
processo do real concreto, mas “o caminho do pensar abstrato, que se eleva do
simples ao complexo, que pode corresponder (entspraeche) ao processo histórico real”. O conhecimento do real é, então, uma
adequação, correspondência, “representação” ou “reprodução” do conhecido. Sem
medo de equívocos, podemos dizer que se trata de um realismo crítico. Por isso
exporemos primeiramente a questão do conhecer
adequadamente o real, para depois encarar a
problemática da realidade do próprio processo histórico, sempre no contexto
restrito do parágrafo que estamos comentando. Pag.(154)
Trata-se agora de perguntar pelo movimento ou pelo
sentido mesmo do método dialético, aplicado, por exemplo, à economia política
(âmbito no qual Marx definitivamente se especializa). Ter-se-ia um modo
equivocado de conhecer teoricamente se, por exemplo, considerando um país, se
começasse “pela população; ter-se-ia assim uma representação caótica da
totalidade (eine chaotische Vorstellung des Ganzen)”. De toda maneira,
depois de uma análise em diversas linhas, chegar-se-ia a conceitos cada vez
mais simples (auf einfachere Begriffe), e do concreto
caótico representado subir-se-ia a abstrações cada vez mais simples. Isto quer
dizer que, de toda maneira, o método seguido historicament e pela economia
política nascente alcançou, pelo menos, certos resultados. Pag. (157)
Qual a totalidade que se trata de
descrever? Marx explica: “A sociedade burguesa é a mais complexa e desenvolvida
organização histórica da produção. As categorias que expressam suas condições e
a compreensão de sua organização permitem ao mesmo tempo compreender a
organização e as relações de produção de todas as formas passadas de sociedade,
sobre cujas ruínas e elementos ela foi edificada e cujos vestígios, ainda não
superados, ela continua arrastando, quando meros indícios nela desenvolveram
sua significação plena”. É aqui onde começa a evidenciar-se a limitação do
método dialético hegeliano utilizado, muito embora com o tema e sentido
invertidos. A totalidade da sociedade burguesa ou capitalista, objeto da obr a
culminante, O capital, é então
cientificamente (de-dutiva ou apo-diticamente) exposta em cada um de seus
momentos constitutivos, até fechar um ciclo onde tudotenha sido articuladamente
compreendido. O movimento das categorias interpretativas reproduz
representativamente o movimento real da totalidade burguesa. A realidade que se
buscava interpretar, anterior ao conhecer e ponto de partida das categorias é,
então e privilegiadamente, a sociedade burguesa. Essa realidade não é um todo
isolado, aparecido por geração espontânea, ou eterno. Pelo contrario, é “o
produto de condições históricas”, é uma realidade como “processo histórico
real”.
O trabalho como último horizonte ontológico de
compreensão do econômico, não é “somente categoria (teórica), mas também
realidade, (é) o meio para criar a riqueza em geral”, é o fundamento da
realidade existencial ou de sua interpretação existenciária: é o ser. Ser é trabalhar. Pags. (158-159)
20. a primeira
síntese da crítica, mas novamente teologizante: Soren Kierkegaard
A totalidade especulativa
sistemática hegeliana deve, então, ser superada pela passagem a um novo
horizonte que se abre a partir de uma nova atitude: “a estética num homem é
aquilo pelo qual esse homem é imediatamente o que é; a ética é aquilo pelo qual
se torna o que devém”. É então a passagem da totalidade objetiva à
subjetividade ainda não claramente como existência em seu sentido pleno. A subjetividade
ética para Kierkegaard é ainda o respeito a uma universidade objetiva (a lei ou
norma), não tão alienada, porém, como a consciência especulativa: Pag. (162).
A superação do ético – relação obrigatória do
individuo no geral ou na totalidade ética – significa afirmar o homem como
subjetividade individual existente, como o único (Einzeln). “Hegel e Goethe – pensa Kierkegaard – quiserem
restaurar o classicismo situado novamente o indivíduo na totalidade, na cultura ou estado. Contudo, bem
cedo o pensar de kierkegaard voltou-se não para a totalidade pensada, mais para
o indivíduo, a vida subjetiva”. Trata-se então de “uma suspensão teleológica da
ética”, isto é, de uma superação por radicalização do nível do dever meramente
moral. É a passagem do “herói trágico” ao “pathos patéticos”. “O herói trágico
conclui logo o combate; cumpre o movimento infinito e agora encontra segurança
no geral”, pelo contrário “o patético consiste em expressar a existência existindo”,
isto é, “a tarefa do pensador subjetivo consiste em se compreender a si mesmo na existência”.
Pag. (163-164).
A fé é um para-doxo (lembremos que em grego dóxa significa “opinião”: paradoxo indica
então algo fora ou contra a opinião da totalidade estética ou ética) e, neste
sentido, se opõe, supera ou é um absurdo da (para) razão especulativa ou ética.
Na fé, que para Kierkegaard é uma “paixão infinita”, trata-se de um ir mais
além (metá-) do horizonte
ontológico, seja ele especulativa ou ético (níveis 1 e 2 do esquema 8), para
afirmar a realidade meta-física do outro (claro que aqui exclusivamente
teológico): “O objeto da fé é então a realidade de Deus, no sentido
de existência... isto é, como individuo, ou de outro modo, que D eus existiu
como um homem individual”. Pode-se ver, como em Feuerbach, que é para a
cristologia que Kierkegaard aponta, e por isso, embora sua alteridade seja
teológica, é antropológica na pessoa humana de Cristo. Contudo, é ainda um
cristo sem configuração ou condicionamento histórico concreto: não é uma
autentica alteridade antropológica, o pobre estrangeiro, o pobre oprimido.
Pags. (165-166).
21. Sentido
ontológico do movimento dialético de Heidegger
A ordem da compreensão existenciária é igualmente
dialética como ontologia fundamental, porque toda questão colocada deve ser
lançada em direção ao horizonte fundamental, para o ser como horizonte do ente: dia-légein(através do horizonte do ente para o
horizonte ontológico). O método fenomenológico de Heidegger inverte a direção:
fenômeno é o que aparece, na obviedade cotidiana, como mera aparência, como
este ente. Através do que aparece como
mera aparência, deve-se abrir um horizonte onde o ser se mostre. O
fenomenológico é assim uma hermenêutica que implanta o ente desde (er) o âmbito (Ero rterung) do ser. Na verdade,
já pouco tem a ver com a fenomenologia, é uma hermenêutica ontológica, é
dialética, como o caminho que atravessa (méthodos) os diversos horizontes até fundar o ente no ser.
Não é um método ôntico, não é um método científico, não é um método que conduza a algo (porque o ser não é algo, não é coisa
alguma, e contudo é o horizonte transcendental). É o início originário do
filosofar que parte da cotidianidade para afirmá-la, implantá-la no fundamento.
Para o homem jamais haverá identidade entre pensar e práxis, entre o
existenciário e o existencial. O sonho hegeliano da identidade foi superado.
Heidegger colocou a questão indicada em Ser e tempo. O tempo trará aclarações fundamentais,
mas não resolverá acabadamente três momentos da estrutura ontológica. Nestas
três frentes a Europa tentará uma superação de Heidegger, não porém por um
regresso a Descartes, a Kant, a Hegel ou a Marx. Podemos e devemos voltar a
outros momentos da história da ontologia para que o pensado nos faça pensar
novamente, mas para superar um pensador contemporâneo a única maneira factível
é derrubar a parede dos fundos que transforma o beco num aparente “beco sem
saída”. Se volvermos sobre nossos passos não abriremos o beco a suas
possibilidades germinais, mas simplesmente teremos uma vez mais evitado a
questão sem resolvê-la. Pags. (174 -175)
24. “Ensaio sobre a
exterioridade” do outro em Levinas
A relação entre aquele que vê e o visto é uma
relação neutra, impessoal, enquanto “a justiça consiste em tornar possível
novamente a expressão na qual, sem reciprocidade, a pessoa se apresenta como única”. Se o ser é a presença ou “o visto”,
sua conseqüência é a violência. Porque o outro é englobado numa totalidade, num
sistema onde já tem seu lugar e seu sentido “no” meu mundo. Pelo contrário, se o ser é um
“de algum modo sempre encoberto” que, como outro se revela pela palavra, diante
dele devo guardar o devido respeito e cumprir a justiça que me interpela em seu
rosto. Uma exterioridade se ergue atrás do horizonte de meu mundo.
Exterioridade nunca totalmente fr anqueável, in-superável, por essência. Este
resto imenso de exterioridade deixa à dialética um âmbito sempre aberto, já
enquanto dialético da natureza, mas da história. O outro, como outro livre e que
exige justiça, instaura uma história imprevisível. O outro como mistério é o
para onde, o mais além de meu mundo, que o movimento dialético não pretenderá
compreender como totalidade totalizada, uma vez que, por sua estrutura finita,
sabe que jamais conseguirá. A totalidade, como o visto feito sistema, opõe-se à infinitização
(infinición) de um movimento
dialético histórico que se abre para ouvir a palavra do outro,
que se revela a partir de uma exterioridade insondável e imprevisível. “A
exterioridade do discurso não se converte em interioridade. O interlocutor não
pode encontrar, de maneira nenhuma, lugar num a intimidade. Ele é, para sempre,
de fora. A relação entre os seres separados não se totaliza jamais, relação sem relação, que ninguém pode englobar nem
tematizar”. O outro, intotalizando, intotalizável, é a
garantia da perene novidade do criado. Na
reminiscência platônica, no sistema dialético hegeliano tudo já está dado, é necessário apenas que termine de
advir (chegar). Na novidade do outro como exterioridade: no mesmo, no dado,
irrompe o realmente novo. Pags. (186-187).
5
SUPERAÇÃO DA
ONTOLOGIA DIALÉTICA A FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO LATINO-AMERICANA
Entre o pensar da totalidade, heideggeriana ou
hegeliana (um, a partir da finitude e o outro, do absoluto), e a revelação
positiva de Deus (que seria o âmbito da palavra teológica, deve-se descrever o
estatuto da revelação do outro,antropológica em
primeiro lugar, e as condições metódicas que tornam possível sua interpretação.
A filosofia já não seria uma ontologia da identidade ou da totalidade, não se
negaria como mera teologia kierkegaardiana, mas seria uma dialética pedagógica
da libertação, uma ética antropológica, antes de mais nada, ou uma metafísica
histórica. Pags. (189-190).
26. O método
dialético positivo. O momento analético
Levinas fala sempre do outro como o “absolutamente
outro”. Tende, então, para o equívoco. por outro lado, nunca pensou que o outro
pudesse ser um índio, um africano, um asiático. O outro, para nós, é a América
latina em relação à totalidade européia; é o povo pobre e oprimido da América
Latina em relação às oligarquias dominadoras e, contudo, dependentes. O método
do qual queremos falar, o Ana-lético, vai mais além, mais
acima, vem de um nível mais alto (aná-) que o do mero
método dial-ético. O método dia-lético é o caminho que a totalidade
realiza em si mesma: dos entes ao fundame nto e o fundamento aos entes.
Trata-se agora de um método (ou do domínio explicito das condições de
possibilidade) que parte do outro enquanto livre, como um além do sistema da
totalidade; que parte, então, de sua palavra, da revelação do outro e que
con-fiado em sua palavra, atua, trabalha, serve, cria. O método dia-lético é a
expansão dominadora da totalidade desde si; a passagem da potência
para o ato de “o mesmo”. O método analético é a passagem da potência para o ato
de “o mesmo”. O método analético é a passagem ao justo crescimento da
totalidade desde o outro e para “servi-lo”
criativamente. A passagem da totalidade a um novo momento de si mesma é sempre
dia-lética. Pag. (196).
Esta ana-lética não leva em conta somente o rosto
sensível do outro (a noção hebraica de basar, “carne”, indica
adequadamente o ser unitário inteligível-sensível do homem, sem dualismo de
corpo-alma), do outro antropológico, mas exige igualmente colocar faticamente a
“serviço” do outro um trabalho-criador (para além, mas assumindo o trabalho que
parte da “necessidade” de Marx). A analética antropológica é então uma economia
(um pôr a natureza a serviço do outro), uma erótica e uma política. O outro
nunca é “um só”, mas também e sempre “vós”. Cada rosto no face-a-face é
igualmente a epifania de uma família, de uma classe, de um povo, de uma época
da humanidade e da própria humanidade como um todo, e a inda mais, do outro
absoluto. O rosto do outro é um ana-logos; ele é a
“palavra” primeira e suprema, é o dizer em pessoa, é o gesto significante
essencial, é o conteúdo de toda significação possível em ato. A significação
antropológica, econômica, política e latino-americana do rosto é nossa tarefa e
nossa originalidade. Dizemos sincera e simplesmente: o rosto do pobre índio
dominado, do mestiço oprimido, do povo latino-americano é o “tema” da filosofia
latino-americana. Este pensar ana-lético, porque parte da revelação do outro e
pensa sua palavra, é a filosofia latino-americana, única e nova, a primeira
realmente pós-moderna e superadora da europeidade.
É uma filosofia da libertação da miséria do homem
latino-americano, mas e ao mesmo tempo, é ateísmo do deus burguês e possibilidade
de pensar um deus criador, fonte da própria libertação. Pag. (197).
O movimento do método é o seguinte: em primeiro
lugar, o discurso filosófico parte da cotidianidade ôntica e dirige-se
dia-lética e ontologicamente para o fundamento. Em
segundo lugar, de-monstra cientificamente (epistemática,
apo-diticamente) os entes como possibilidades existenciais. É a filosofia como
ciência, relação fundante do ontológico sobre o ôntico. Em terceiro lugar,
entre os entes há um que é irredutível a uma de-dução ou de-monstração a partir
do fundamento: o “rosto” ôntico do outro que, em sua visibilidade, permanece
presente como trans-ontológico, meta-físico, ético. A passagem da totalidade
ontológica ao outro como outro é ana-lética: discurso negativo a
partir da totalidade, porque pensa a impossibilidade de pensar o outro
positivamente partindo da própria totalidade, quando pensa a possibilidade de
interpretar a revelação do outro a partir do outro. Essa revelação do outrojá é um quarto movimento, porque a negatividade
primeira do outro questionou o nível ontológico que, agora é criado, com base
num novo âmbito. O discurso se faz ético e o nível fundamental ontológico
descobre-se como não originário, como aberto a partir do ético, que se revela
depois (ordo cognoscendi a posterior) como o que era antes
(o prius da ordo realitatis). Em quinto lugar, o próprio nível
ôntico das possibilidades fica julgado e relançado a partir de um fundamento
eticamente estabelecido, e estas pos sibilidades como práxis analética transpassam
a ordem ontológica e se adiantam como “serviço” na justiça.
Isto é, a aceitação do outro como outro significa
já uma opção ética, uma escolha e um compromisso moral: é necessário negar-se
como totalidade, afirmar-se como finito, ser ateu do fundamento como
identidade. Pags. (197-198)
O saber-ouvir é o momento
constitutivo do próprio método; é o momento discipular do filosofar; é a
condição de possibilidade do saber-interpretar para saber-servir (a erótica, a pedagógica, a política, a
teológica). A conversão ao pensar ontológico é morte à cotidianidade. A
conversão ao pensar meta-física é morte à totalidade. A conversão ontológica é
ascensão a um pensar aristocrático, de poucos, ao pensar de Heráclito que se
opõe à opinião dos “demais” (hoì polloí). A conversão ao pensar Ana-lético ou meta-físico é exposição a um pensar
popular, dos demais dos oprimidos, do outro fora do sistema; é contudo um pod
er aprender o novo. O filósofo Ana-lético ou ético deve descer de sua
oligarquia cultural acadêmica e universitária para saber-ouvir a voz que vem de mais além, do alto (aná), da exterioridade da dominação. Agora a questão é esta: que é a
ana-logia? Como é possível interpretar a palavra ana-lógica? A própria palavra
do filósofo, a filosofia como pedagogia analética da libertação, não é ela
mesma analógica? A filosofia latino-americana não seria um momento novo e
analógico da história da filosofia humana? Deveremos responder a estas quatro
perguntas apenas programaticamente, isto é, resumida e indicativamente. Pags.
(198-199)
27. A palavra
analógica
A ana-logia, porém, quer indicar uma palavra que é
uma revelação, um dizer cuja presença patenteia a ausência que, no entanto,
atrai e pro-voca, do “significado”: o outro mesmo como livre e como pro-jeto
ontológico alternativo; agora ainda incom-preensível, trans-ontológico.
A palavra reveladora do outro como outro
primeiramente é uma palavra que se capta (compreensão derivada inadequada) na
“semelhança”, mas que não se chega a “interpretar” pelo abismal e incompreensível
de sua origem dis-tinta. Pags. (203-204)
28. Do escutar à
interpretação da voz do outro
Somente con-fiados no outro, apoiados firmemente sobre sua palavra, a totalidade pode ser
posta em movimento; caminhando na libertação do outro alcance-se a própria
libertação. Somente quando, pela práxis libertadora, pelo compromisso real e
ético, erótico, pedagógico e político, acendermos à nova totalidade na justiça,
somente então, chegaremos a certa identidade analógica (communitas bonitatis), a partir da qual, somente então, a
palavra antes compreendida confusamente (tanto quanto era necessário para poder
começar a ad-ventura da libertação no amor-de-justiça) alcança a possibilidade
de uma interpretação adequada. Possuindo como próprio o fundamento ontológico
com base no qual o outro, na diacronia da palavra reveladora, pronunciou sua
palavra, agora, no futuro do passado, no presente, pode-se referir aquela
palavra recordada ao horizonte atual e vigente alcançado pela práxis
libertadora e a partir do outro revelante, pro-vocante. Se o método analético
era o saber situar-se para que, das condições de possibilidade da revelação,
pudéssemos aceder a uma reta interpretação da palavra do outro, o que foi dito
mostra-nos o próprio método.
Somente pelo compromisso existencial, pela práxis
libertadora no risco, por um tornar próprio discipularmente o mundo do outro,
pode-se aceder à interpretação, conceitualização e verificação de sua
revelação. Pags. (207-208).
Assim, o autêntico filósofo, “homem do povo com seu
povo”, pobre junto ao pobre, outro na totalidade e primeiro pro-feta do futuro
que hoje é o outro na intempérie, vai em direção do novo pro-jeto ontológico
que lhe dará a chave de interpretação pensada da palavra previamente revelada,
como criança que aprende ainda. A filosofia, neste caso originariamente
ana-lética, caminha dialeticamente, conduzida pela palavra do outro. O
filósofo, racionalidade atual, reflexa, autêntica, sabe que o começo é
com-fiança, fé, no magistério e na verdade do outro: hoje é com-fiança na
mulher, na criança, no operário, no subdesenvolvido, em uma palavra, no pobre: ele, o aluno, tem o magistério, a
pro-vocação Ana-lógica; ele tem o tem a a ser pensado: sua palavra revelante
deve ser criada, ou não haverá filosofia e sim sofística dominadora. Pag.
(209).
29. A filosofia
latino-americana como pensar libertador
A filosofia assim entendida não é uma erótica, nem
uma política, embora tenha função libertadora para o eros e para a política,
mas é estrita e propriamente uma pedagógica: relação
mestre-discípulo, no método de saber crer a palavra do outro e interpretá-la. O
filosofo para ser o futuro mestre deve começar por ser o discípulo atual do
futuro discípulo. Tudo depende disso. Por isso, essa pedagogia analética (não somente dialética da totalidade
ontológica) éda libertação. A libertação é a condição para o mestre ser mestre. Se é um escravo da
totalidade fechada, nada pode realmente interpretar. O que lhe permite
libertar-se da t otalidade para ser a si mesmo é a palavra analética ou
magistral do discípulo (seu filho, seu povo, seus alunos: o pobre). Esta
palavra analógica abre-lhe a porta da sua libertação; mostra-lhe qual deve ser
seu compromisso pela libertação prática do outro. O filósofo que se compromete
com a libertação concreta do outro acede ao mundo novo, onde com-preende o novo
momento do ser, e a partir do qual ele se liberta como sofista e nasce como
filósofo novo, ad-mirado daquilo que venturosamente se desdobra ante seus
olhos, histórica e cotidianamente. O mito da caverna de Platão pretendeu dizer
isso, mas disse justamente o contrário. O essencial não é o ver, nem é a luz: o
real é o amor de justiça e o outro como mistério, como mestre. O supremo não é
a contemplação, mas o face-a-face dos que se amam a partir daquele que ama
primeiro. Pags. (209-210).
A categoria de fecundidade na alteridade deixa lugar meta-físico
para que a voz da América Latina seja ouvida. A América Latina é o filho da mãe
ameríndia dominada e do pai hispânico dominador. O filho, o outro, oprimido
pela pedagogia dominadora da totalidade européia, incluído nela como bárbaro, o bon sauvage, o primitivo ou
subdesenvolvido. O filho não respeitado como outro, mas negado enquanto ente
conhecido (cogitatum dos “Instrumentos
para a América Latina”). O que a América Latina é vive-o povo simples dominado
em sua exterioridade do sistema imperante. Mal podem dizer os filósofos o que é
a América Latina liberta ou qual seja o conteúdo do pro-jeto libertador
latino-americano. O que o filósofo deve saber é como de-struir os obstáculos
que impedem a revelação do outro, do povo latino-americano que é pobre, mas que
não é matéria inerte, nem telúrica posição da fysis. A filosofia latino-americana é o pensar
que sabe escutar discipularmente a palavra analética, analógica do oprimido,
que sabe comprometer-se com o movimento ou com a mobilização da libertação e,
no próprio caminhar, vai pensando a palavra reveladora que interpela à justiça;
isto é, vai acendendo à interpretação precisa de seu significado futuro. A filosofia,
o filósofo, devolve ao outro sua própria revelação como renovada e re-criadora,
crítica, interpelante. O pensar filosófico não aquieta a história
ex-pressando-a pensativamente para que possa ser arquivada nos museus. O pensar
filosófico, como pedagogia analética da libertação latino-americana, é um
grito, um clamor, é a exortação do mestre que faz reincidir sobre o discípulo a
objeção que antes havia recebido; agora, como revelação reduplicadamente
pro-vocativa, criadora. Pags. (210-211).
A QUESTÃO DIALÉTICA E
ANALÉTICA NO PROCESSO DA LIBERTAÇÃO LATINO-AMERICANA
33. Da classe ao povo
Que a revolução superadora do sistema burguês
capitalista deverá contar e partir desse sistema burguês capitalista deverá
contar e partir desse sistema, temos já material suficiente para indicar, neste
nível, uma superação do mero método dialético. Com efeito, se é verdade que as
diferentes classes lutam, e se é verdade que o proletariado de nações de um mesmo tipo pode se unir, também
é verdade que Marx não pôde considerar um duplo aspecto essencial para a
América Latina: em primeiro lugar que há nações do “centro” ou imperiais (fato
que, como veremos, Lênin depois pôde descobrir por razões óbvias) e outras
“dependentes” e por isso subdesenvolvidas (fato que, teoricamente, se descobre
na América Latina a part ir de 1960), e, em segundo lugar, que existe uma
exterioridade do mundo capitalista burguês (por exemplo a cultura chinesa ou a
latino-americana) que pode saltar, sem a medição de um capitalismo
desenvolvido, de uma sociedade primitiva ou tradicional para um sistema
pós-capitalista (seja este um socialismo ou um sistema novo pelas
características de posse dos bens e maneira de trabalho). Para ambos os níveis
a categoria “classe” já não é suficiente para distinguir momentos novos,
concretos, reais que devem ser interpretados. A análise abstrata permite apenas
interpretar a oposição proletariado-burguesia, classe operária-classe detentora
do capital. Pags. (241-242).
Por último queremos indicar que a filosofia, como
pensar analético, sabe que surge da práxis e que o próprio pro-jeto de
estar-na-verdade que torna possível a vida do filósofo não é um projeto
filosófico, mas o projeto de um homem. Homem que antes de ser filósofo teve a
vocação do outro como um estar-em-sua-verdade, em seu des-cobrimento. Por isso
a filosofia na América Latina é latino-americana, embora quase todos a neguem.
Porque aquele que, na América Latina, pensa filosoficamente (se não for um
sofista ou acadêmico irreal) sabe que sua teoria emerge da práxis
latino-americana, de seu mundo histórico e cotidiano. Sabe que seu projeto
filosófico latino-americano é distinto do europeu. A filosofia latino-americana
como tarefa de um homem, como um pensar que pensa a real idade da libertação, é
especifica para cada horizonte cultural. É possível que a Europa, por suas
exigências existenciais e históricas presentes, exija do filósofo e lhe atribua
a vocação de pensar o técnico, o lúdico, ou o artístico. É possível que a América Latina atribua ao filósofo, como vocação de quem
é oprimido, como projeto humano total, pensar o
político, a libertação, porque o político é relação
homem-homem e o homem latino-americano vive prostrado sob a dominação política, econômica,
cultural, humana. O processo do crescimento do homem latino-americano significa
supressão, aniquilação das determinações negantes: trata-se de um movimento de libertação, um libertar no homem
seu ser negado. Este processo que precisa acontecer em todos os níveis da
cultura, o filósofo é chamado a formulá-lo, ou as gerações futuras
lançar-lhe-ão ao rosto essa sua inércia, essa sua culpa por escapismo.
Por isso, colocado as condições de possibilidade de uma correta formulação conceitual que, após o que foi dito, já não poderá ser apenas européia, poder-se-á obter um sistema interpretativo latino-americano para realizar a mudança rápida, revolucionária, pela qual clama um povo subdesenvolvido. Este trabalho abre um caminho, sem maiores pretensões: trata-se de uma re-colocação da questão dialética em Hegel, considerando seus antecedentes e suas possíveis superações para poder intentar uma formulação adequada de um concreto sistema interpretativo latino-americano da revolução libertadora da dominação que as superpotências impuseram, fazendo-nos submergir numa “cultura do silêncio”. Pag. (247).
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