II – O Pensamento Mítico
Síntese elaborada por Pe.
Paolo Cugini
O PROBLEMA DE UMA
“FILOSOFIA DA MITOLOGIA
E também o mito deve ser compreendido como
um tal elemento inteiramente positivo. Seu entendimento filosófico começa com a
idéia de que ele não se move num mundo de pura “invenção” ou “poesia”, mas que
lhe compete um modo próprio de necessidade, e com isso, de acordo com o
conceito de objeto da filosofia idealista, um modo próprio de realidade.
Somente onde uma tal necessidade é demonstrável, a razão, e com isso a
filosofia, tem o seu lugar. O meramente arbitrário, o simplesmente acidental e
contigente, para ela não poderia sequer ser objeto de questão- pois a
filosofia, a doutrina da essência, não pode firmar o pé no vazio puro e
simples, num domínio que em si mesmo não tem verdade essencial. Nada parece
claramente mais díspar à primeira vista do que verdade e mitologia-nada, por
isso mesmo, mais oposto do que filosofia e mitologia. “Mas justamente na
antítese repousam o desafio determinado e a tarefa de descobrir razão mesmo
nessa desrazão aparente; sentido, na aparência sem-sentido, isto é, não da maneira
como até agora se tentou, por meio de uma diferenciação arbitrária, ou seja, de
que algo, acolhido como racional ou com sentido, seja declarado essencial, e
todo o resto declarado meramente contigente, visto como roupagem ou deturpação.
Ao contrário, a intenção deve ser a de que também a forma se mostre necessária
e, deste modo, racional.”
Na relação de mito e história, aquele se
revela o primário; esta, o secundário e derivado. Não é através da história de
um povo que uma mitologia lhe é determinada, mas dá-se o inverso: através de
sua mitologia a história lhe é determinada- ou, mais do que isso, esta não
determina, mas é ela mesma o destino desse povo, a sorte que lhe caba desde o
começo.
A mitologia surge propriamente através de
algo independente de toda invenção, até mesmo contrário a ela, formal e
essencialmente: através de um processo necessário (aos olhos da consciência),
cuja origem se perde no trans-histórico, a quem talvez a consciência se oponha
em momentos isolados, mas que no todo não pode deter, muito menos fazer
retroceder. Vemo-nos aqui transportados para uma região onde não há tempo para
invenção
(tenha
ela partido de alguém isoladamente ou do próprio povo), ou para roupagem
artificial ou mau entendimento. Quem entende o que é para um povo sua
mitologia, que poder interno ela possui sobre ele e quanta realidade manifesta
assim, admitirá que a mitologia foi inventada por indivíduos singulares tão
facilmente, quanto considerada possível que também a linguagem de um povo tenha
surgido através de esforços singulares no seu seio.
Schelling reclama expressamente como
mérito seu, antes de todos, a idéia de substituir inventores, poetas ou
indivíduos em geral, pela própria consciência humana, e de provar que ela é a
sede, o subjectum agens da mitologia. De qualquer forma, a mitologia não teria
uma realidade fora da consciência; mas embora ela só decorra em determinações
da consciência, ou seja, em representações, esse decurso, essa sucessão de
representações não pode ser, como tal, meramente representado [vorgestellt],
mas precisa efetivamente ter acontecido, ter efetivamente ocorrido na
consciência. A mitologia, assim, não é um panteão, apresentado sucessivamente;
mas o politeísmo sucessivo, em que ela consiste, só pode ser explicado se
admitimos que a consciência da humanidade efetivamente se deteve sucessivamente
em cada momento dele.
O processo mitológico é um processo
teogônico, no qual o próprio Deus vem a ser, no qual, como o verdadeiro Deus,
ele se produz por etapas. Cada uma das etapas dessa produção, podendo ser
compreendida como ponto necessário de transição, tem sua significação própria:
mas somente no todo, na conexão ininterrupta do movimento do mítico que
atravessa todos os momentos, desvenda-se completamente seu sentido e sua
verdadeira meta. Pois neste todo aparece como necessária e, nesta medida,
justificada, também cada fase particular e condicionada. O processo mitológico
é o processo da verdade que se reconstitui e, assim, se efetiva.
A “objetividade” do mito-assim como, do
ponto de vista crítico, toda espécie de objetividade espiritual-não deve ser
determinada materialmente [dinglich], mas sim funcionalmente: ela não reside
num ser empírico-psicológico que está atrás dele, mas naquilo que ele próprio é
e faz, na maneira e forma de objetivação que ele consuma. Ele é “objetivo na
medida em que também ele seja reconhecido como um dos fatores determinantes,
por força dos quais a consciência se libera do aprisionamento passivo na impressão
sensível e progride para a criação de um "mundo” próprio, formado segundo
um princípio espiritual.
Para Schelling, que se apoia
principalmente na simbólica mitologia dos povos antigos de Creuzer, toda
mitologia é essencialmente doutrina e história dos deuses. Para ele, o conceito
e o conhecimento de Deus constituem o começo de todo pensamento mitológico-uma
“notitia insita”, como a qual só então ele propriamente começa. Ele volta-se
enfaticamente contra aqueles para quem o desenvolvimento da humanidade, em vez
de partir da unidade do conceito de Deus, parte da multiplicidade de
representações inteiramente parciais e mesmo inicialmente locais, parte do
assim chamado fetichismo ou de uma deificação da natureza, que nem ao menos
deifica conceitos ou gêneros, mas objetos singulares da natureza, como por
exemplo esta árvore ou este rio.
Um outro caminho para avançar até uma
última unidade da formação de mitos pareceu abrir-se quando se procurou essa
unidade menos como natural, do que como unidade espiritual-portanto, quando se
concebeu a unidade não como de um círculo de objetos, mas como unidade de um
círculo cultural histórico. Uma vez que se conseguiu comprovar um tal círculo
cultural como origem comum dos grandes motivos míticos fundamentais e como
ponto central, a partir do qual eles aos poucos se difundiram por toda a
amplidão do círculo da Terra, então com isso pareceu explicada por si mesma
também a conexão interna e a coerência sistemática desses motivos.
Como de fato concluiu a teoria do
“panbabilonismo”, o mito jamais poderia ter evoluído para uma ‘visão de mundo”
em si mesma conseqüente, se tivesse surgido simplesmente de representações
mágicas primitivas ou de experiências oníricas, crenças anímicas ou qualquer
outra superstição. O caminho para uma tal visão de mundo estava dado somente
ali onde havia um determinado conceito, uma idéia de mundo como um todo
ordenado- condição apenas satisfeita nos primórdios da astronomia e cosmogonia
babilônicas. Somente a partir dessa orientação conceitual e histórica pareceu
abrir-se a possibilidade de conceber o mito não como puro aleijão da fantasia,
mas como um sistema fechado em si mesmo e por si mesmo inteligível.
O mito surge da fantasia subjetiva ou, em
cada caso singular, remonta a uma “intuição real” na qual se funda? Ele
desempenha o papel de uma forma primitiva de conhecimento e é, nessa medida,
essencialmente uma produção do intelecto, ou pertence, segundo as suas
exteriorizações fundamentais , à esfera da paixão e da vontade?
Embora o mito não se limite a um circulo
singular de coisas ou processos, mas sim abarque e penetre a totalidade do ser,
e embora precise de potências espirituais das mais diversas espécies como seus
órgãos, ele apresenta um “ponto de mira” unitário da consciência, a partir do
qual aparecem sob nova figura a “natureza” bem como a “alma”, o ser “externo”
bem como o “interno”. É preciso apreender esta sua “modalidade” de entender
suas condições.
Assim como, no âmbito do conhecimento, a
mera “rapsódia das percepções” transforma-se num sistema de saber, por força de
determinadas leis formais do pensamento, igualmente é lícito e imperativo
perguntar pela constituição daquela unidade formal que faz com que o mundo
infinitamente multiforme do mito não seja um mero conglomerado de
representações arbitrárias e idéias sem relação, mas sim componha uma produção
espiritual característica.
Mas se, por esse lado, a inclusão do
mito no sistema global das “formas simbólicas” se mostra imediatamente
indispensável- então é evidente que ela envolve também um determinado perigo.
Pois a comparação da forma mítica com outras formas fundamentais do espírito ameaça levar a um
nivelamento de seu próprio teor, tão logo este seja tomado puramente segundo o
conteúdo e se procure fundamentá-lo em concordâncias ou relações meramente de
conteúdo. De fato, não faltam tentativas de tornar o mito “inteligível,
reduzindo-o a alguma outra forma do espírito, seja à do conhecimento, seja à da
arte ou da linguagem.
A “explicação” lingüística de motivos
míticos não costuma mais aparecer nessa forma evidentemente ingênua; mas é
sempre atraente a tentativa de provar a linguagem, em geral e no detalhe, como
o veículo próprio da formação dos mitos. De fato, a mitologia comparada, assim
como a história comparada das religiões, é sempre reconduzida a fatos que
parecem confirmar a equação numina= nomina sob os mais diversos ângulos. A
idéia em que se baseia essa equação foi aplicada por Usener numa profundidade e
fecundidade inteiramente novas. A análise e a crítica dos “nomes dos deuses”
prova ser aqui a ferramenta espiritual que, utilizada corretamente, permite
entender o processo da formação de conceitos religiosa. Com isso abre-se a
perspectiva d uma doutrina geral da satisfação, na qual o lingüístico e o
mítico se unem inseparavelmente e se referem um ao outro correlativamente. O
progresso alcançado pela filologia e pela a história das religiões, do ponto de
vista filosófico, através dessa teoria de Usener, consiste também aqui em que a
interrogação não seja mais dirigida ao conteúdo desnudo dos mitos singulares,
mas ao mito e á linguagem como um todo, como formas espirituais com legalidade
própria. Para Usener, a mitologia não é senão a doutrina do mito ou “morfologia
das representações religiosas”. Ela ambiciona nada menos do que “mostrar a
necessidade e legalidade do representar mítico, e com isso tornar inteligíveis
não apenas as produções mitológicas das religiões populares, mas também as
formas d representação de religiões monoteístas”. Os nomes de deuses de Usener
são um admirável exemplo de quão longe consegue penetrar esse método de ler a
essência dos deuses a partir de seus
nomes e da história de seus nomes, e quão clara é a luz que ele consegue lançar
sobre a estrutura do mundo mítico.
Já nas primeiras e, em certo sentido,
“mais primitivas” manifestações do mito, torna-se claro que não estamos lidando
com um mero reflexo do ser, mas com uma elaboração formadora própria e com uma
apresentação. Também aqui se pode acompanhar como os poucos se desfaz uma
tensão inicialmente existente entre “sujeito” e “objeto”, entre o“dentro” e o
“fora”, na medida em que entre os dois mundos aparece, de forma cada vez mais
multiforme e rica, um novo reino intermediário. Ao mundo das coisas, que o envolve
e domina, o espírito contrapõe um mundo de imagens próprio e autônomo- ao poder
da “impressão” opõe-se aos poucos, e de maneira cada vez mais nítida e
consciente, a força ativa da “expressão”. Mas é claro que essa criação ainda
não carrega consigo o caráter do ato espiritual livre, mas o caráter da
necessidade natural, o caráter de um determinado “mecanismo” psicológico.
Justamente porque nesse estágio ainda não existe um Eu autônomo e consciente de
si, vivendo livre em suas produções, mas antes porque estamos somente no limiar
do processo espiritual destinado a delimitar “eu” e parecer á própria
consciência uma efetividade inteiramente “objetiva”. Todo começo do mito,
especialmente toda concepção mágica de mundo, está impregnado dessa crença na
essência objetiva e na força objetiva do signo. A magia da palavra, a magia da imagem e a magia
da escrita formam o acervo fundamental da atividade mágica e da visão mágica de
mundo.
O mundo mítico é “concreto” não porque tem
a ver somente com conteúdos sensível-objetivos, nem porque exclui de si e
rejeita todos os momentos meramente “abstratos”, tudo o que é unicamente
significação a signo; mas sim porque nele os dois momentos, o momento-coisa e o
momento-significação, se dissolvem sem distinção, porque aqui eles cresceram
juntos , “concresceram” em uma unidade imediata. Em face do mundo da impressão
sensível- passiva, o mito, como um modo originário de configuração, também
traça desde o início um determinado limite- ele também surge, assim como a arte
e o conhecimento, num processo de cisão, numa separação do “efetivo” imediato,
isto é, do simplesmente dado. Mas, neste sentido ele significa um dos primeiros
passo para além do “dado”, não obstante logo retorna, com o seu próprio
produto, novamente à forma do “dado”[Gegebenheit]. Ele se eleva espiritualmente
acima do mundo das coisas; porém nas figuras e imagens que coloca em seu lugar,
somente substitui uma forma de existência e servidão por outra. O que parecia
libertar das amarras das coisas torna-se-lhe agora outra amarra, que tanto mais
indestrutível, quanto a dominação que experimenta já não provém aqui de poder
meramente físico, mas sim de um poder espiritual . Mas um tal coração,
evidentemente, , já contém em si mesma a
condição imanente de sua futura superação; contém a possibilidade de um
processo espiritual de libertação que se cumpre de fato no progresso do estágio da visão de mundo mágico-mítica
para a visão de mundo propriamente religiosa.
CARÁTER E
ORIENTAÇÃO FUNDAMENTAL DA CONSCIÊNCIA DE OBJETO MÍTICA
Uma das primeiras
e essenciais idéias da filosofia crítica é a de que os objetos não são “dados”
á consciência prontos e fixos, na nudez de seu “em-si”, mas que a referência da
representação ao objeto pressupõe um ato espontâneo e autônomo da consciência.
O objeto não subsiste antes dela é que ele é constituído- não é uma forma
acabada que simplesmente se impõe e imprime à consciência, mas é o resultado de
uma conformação que se efetua por força dos recursos fundamentais da
consciência, por força das condições da intuição e do pensamento puro. A
filosofia das formas simbólicas adota esse pensamento crítico fundamental, esse
princípio em que se baseia a “revolução copernicana” de Kant, com vistas a amplia-lo. Ela não procura as categorias da
consciência do objeto apenas na esfera
teórico-intelectual; ela se baseia em que tais categorias têm que vigorar em
toda parte onde, dos caos das impressões, se forme um cosmo, uma “imagem do
mundo” característica e típica. Cada uma de tais imagens de mundo só é possível
através de atos específicos de objetivação, de transmutação das meras
“impressões” em “representações” em si determinadas e configuradas.
Dessa tarefa imposta ao pensamento teórico
da experiência, porém, resultam também os meios intelectuais dos quais ele tem
de servi-se progressivamente para cumpri-la. Se a sua meta consiste na síntese
mais elevada e geral, na composição de todo particular na unidade abrangente da experiência, não obstante os métodos
graças aos quais unicamente essa meta pode ser alcançada apontam ao contrário
para o caminho aparentemente inverso.
O mito vive num mundo de puras
configurações, que se lhe antepõem como algo integramente objetivo, como o
próprio objetivo. Mas a referência a elas ainda não mostra nada daquela “crise”
decisiva, com a qual começa o saber empírico e conceitual. Mas, mesmo os seus
conteúdos lhe sejam dados num suporte objetivo como “conteúdos efetivos”, ainda
assim essa forma de efetividade ainda é em si totalmente homogênea e
indiferenciada. Ainda faltam aqui, por completo, as nuances de significação e
de valor que o conhecimento estampa em seu conceito de objeto e em virtude das
quais chega á distinção rigorosa entre diversos círculos de objetos, á linha de
demarcação entre o mundo da “verdade” e o da “aparência”. O mito mantém-se
exclusivamente na presença de seu objeto: na intensidade com o qual este, em um
determinado instante, arrebata a consciência e toma posse dela. Por isso, falta
ao mito toda possibilidade de estender o instante para além dele mesmo, olhar
antecipadamente além dele e retrospectivamente por trás dele, referi-lo como
elemento particular ao conjunto dos elementos da efetividade. Em vez do
movimento dialético do pensamento, para o qual cada particular dado será apenas
a ocasião para vinculá-lo a outro, para agregá-lo a outros numa série e desse
modo, finalmente, ordená-lo a uma legalidade geral do acontecer, uma vez disso
ocorre aqui o mero abandono à impressão mesma e à sua “presença” caso a caso. A
consciência está no mito, como em algo preso ao que simplesmente é, ela não
possui o impulso nem a possibilidade de corrigir, criticar o dado aqui e agora,
limitá-lo em sua objetividade uma vez que é medido por um não dado, algo
passado ou futuro. Mas se falta essa medida mediata, então todo o ser, toda
“verdade” e efetividade se desmancha na mera presença do conteúdo, e com isso
todo aparecer em geral se concentra necessariamente num único nível.
Um rápido exame nos fatos da consciência
mítica ensina, com efeito, que essa consciência desconhece absolutamente
determinadas linhas divisórias que o conceito empírico e o pensamento
empírico-científico consideram como simplesmente necessárias. Falta aqui
sobretudo aquela linha demarcatória fixa entre o meramente “representado” e a
percepção “efetiva”, entre desejo e satisfação, entre imagem e coisa. Isto
aparece com toda clareza na significação decisiva que têm as vivências oníricas
para a gênese e para a construção da consciência mítica. É claro que a teoria
animista- que tenta derivar todo o conteúdo do mito essencialmente dessa única
fonte, que faz com que o mito desponte principalmente de uma “confusão” e
mistura entre vivências de vigília- permaneceu unilateral e insuficiente.
Não pode haver dúvidas de que
determinados conceitos míticos fundamentais serão inteligíveis e transparentes
em sua estrutura própria apenas quando se ponderar que, para o pensamento
mítico e para a “experiência” mítica, há uma passagem permanentemente oscilante
entre o mundo do sonho e o mundo da “efetividade” objetiva. Também em sentido
puramente prático, também na atitude adotada pelo homem, não na mera
representação. Mas no agir e fazer na efetividade, determinadas experiências
oníricas possuem a mesma força e o mesmo alcance, e lhes cabe portanto,
mediatamente, a mesma “verdade” que coube ao que foi vivido em vigília. Toda a
vida e ação de muitos “povos primitivos” foi determinada e conduzida por seus
sonhos, até os menores detalhes. E, assim como não há uma diferença rígida
entre sonho e vigília, tampouco há para o pensamento mítico um corte nítido que
separe a esfera da vida da esfera da morte.
Estamos acostumados a conceber esses
conteúdos como “simbólicos”, na medida em que por detrás deles é procurado um
outro sentido, oculto, para o qual apontam mediatamente. Desse modo, o mito
torna-se mistério: sua autêntica significação e sua autêntica profundidade não
residem naquilo que encobre. A consciência mítica equivale a uma escritura
cifrada, inteligível e legível apenas para aquele que possui a sua chave- ou
seja, para quem os conteúdos particulares dessa consciência no fundo não são
senão signos convencionais de um “outro” que não está contido neles. Daqui
resultam os diversos tipos e correntes de interpretação dos mitos, de
tentativas de trazer à luz o sentido, teórico ou moral, que os mitos abrigam.
Onde vemos uma relação de mera
“representação”, para o mito, se ainda não se desviou de sua forma fundamental
e primordial e se ainda não perdeu seu caráter original, há uma relação de
identidade real. A “imagem” não representa a “coisa”- ela é a coisa; ela não é
apenas suplente, mas sim age como ela, de forma, de forma que a substitui em
seu presente imediato. Consequentemente, pode-se se apontar exatamente como uma
característica do pensamento mítico a ausência, nele, da categoria do “ideal”,
e que, por isso, onde quer que nele surja algo puramente significante, a fim de
compreendê-lo deve transformar esse mesmo significante em algo material, em
algo assemelhado ao ser.
Já se salientou corretamente que, na
relação entre mito e rito, este é o mais antigo, aquele é o mais tardio. Em vez
de explicar a ação ritual a partir do conteúdo de fé, como um mero conteúdo
representativo, temos que tomar o caminho inverso: aquilo que no mito pertence
ao mundo teórico da representação, o que nele mero relato ou narrativa em que
se crê, temos que estender como uma interpretação mediata daquilo que está vivo
imediatamente na ação do homem e em sua paixão ou vontade. Assim compreendido,
porém, nenhum rito tem originalmente sentido meramente “alegórico”, de imitação
ou encenação, mas um sentido inteiramente real: os ritos estão inseridos na
realidade do agir efetivo de modo que formem um seu componente indispensável. É
uma crença geral, encontrada sob múltiplas formas e nas mais diversas formas
culturais, que a perpetuação da vida humana, e mesmo a existência do próprio
mundo, repousa na correta prática dos ritos.
Essa incapacidade do pensamento mítico de
apreender uma mera significação, algo puramente ideal e significativo,
exprime-se mais marcadamente na posição que aqui as dá à linguagem. Mito e
linguagem estão em constante contato recíproco- seus conteúdos portam e
condicionam um ao outro. Além do feitiço da imagem, há o feitiço da palavra e
do nome, que constitui um componente da visão mágica do mundo. Mas aqui o
pressuposto decisivo reside também em que a palavra e o nome não possuem mera
função representativa, mas em ambos estão contidos o próprio objeto e suas
formas reais.
É especialmente próprio que está ligado
dessa maneira, por vínculos misteriosos, ao que é próprio á existência.
Sempre volta a surgir no âmbito da história
das religiões a idéia fundamental de que a autêntica natureza do deus, o vigor
e a diversidade de sua ação estão encerrados em seu nome e como que condensados
nele. No nome reside o mistério da abundância divina.
No Egito, que, como terra clássica da
magia e do feitiço do nome, também estampou muito claramente esse traço na
história de sua religião, considera-se que não apenas o universo foi feito pelo
lógos divino, mas também o mesmo primeiro deus surgiu através da força de seu
poderoso nome próprio: no princípio era o nome, que então desprendeu de si todo
ser, também o ser divino. Quem conhece o verdadeiro nome de um deus ou demônio
pode apropriar-se também ilimitadamente do poder de seu portador.
E assim como o nome, é especialmente a
imagem de uma pessoa ou de uma coisa o que permite tornar imediatamente clara a
indiferença do pensamento mítico com respeito a toda a variedade de “graus de
objetivação”. Do ponto de vista do pensamento mítico, para o qual todo
percebido já possui como tal um caráter de realidade, para a imagem vista vale
o mesmo que para a palavra dita e ouvida- é dotada de forças reais.
Em geral, a peculiaridade do pensamento
mítico e a decisiva oposição em que ele se encontra diante da apreensão
puramente “teórica” de mundo podem ser apreendidas não menos claramente a
partir de seu conceito de causualidade do que a partir de seu conceito de
objetivo. Pois esses dois conceitos condicionam-se um ao outro reciprocamente:
a forma do pensamento causal determina a forma do pensamento de objetivo e
vice-versa. A categoria geral de “causa” e “efeito” não falta absolutamente ao
pensamento mítico; ela pertence mesmo, em certo sentido, ao seu próprio acervo
fundamental.
Enquanto a forma de pensar da causalidade
empírica estiver essencialmente orientada para produzir uma relação unívoca
entre determinadas “causas” e determinados “efeitos”, as próprias “causas”
ainda estarão á disposição do pensamento mítico, para uma escolha inteiramente
livre, também lá onde ele formula a pergunta sobre a origem como tal. Aqui tudo
ainda pode vir-a-ser de tudo, porque tudo pode está em contato com tudo,
temporal e espacialmente. Por isso, ali onde o pensamento empírico-causal fala
de “alteração” e ali onde ele tenta
estendê-la a partir de uma regra geral, o pensamento mítico conhece, ao
contrário, somente a simples metamorfose ( compreendida no sentido de Ovídio,
não no de Goethe). Se o pensamento científico se ocupa do fato da “alteração”,
então não é essencialmente à passem de uma coisa sensível-dada singular para
uma outra que seu interesse dirige; mas essa passagem, ao contrário, lhe parece
“possível” e admissível somente se nela se expressa uma lei geral, se está
fundada em certas relações e determinações funcionais que, independentemente do
aqui e agora e da respectiva constelação das coisas aqui e agora, geralmente
não são consideradas válidas. A “metamorfose” mítica, em contrapartida, é
sempre o relato de um acontecimento individual- a progressão de uma forma
individual e concreta, de uma coisa e de uma existência, para outra. O mundo é
pescado das profundezas do mar ou
conformado a partir de uma tartaruga; a Terra é formada a partir do corpo de um
grande animal ou de uma flor de loto flutuando na água; o sol surgem de uma
pedra; os homens, de rochedos ou árvores. Em todas essas “explicações” míticas
tão diversificada, por mais caóticas e anômicas que possam parecer em seus
meros conteúdos, está estampada a mesma orientação da apreensão de mundo.
Enquanto o juízo de causalidade conceitual decompõe o acontecimento em
elementos constantes e procura compreendê-lo a partir da complexão e
interferência desses elementos, de sua repetição idêntica, para a imaginação
mítica, que persiste na representação global como tal, é suficiente a imagem do
simples transcurso do próprio acontecimento. Neste podem se repetir talvez
certos traços típicos, sem que ,contudo, se possa falar de uma regra e, desse
modo, de determinadas condições formais que limitem o ver- a - ser.
Dentro do pensamento mítico parece que a
arbitrariedade anômica é tão pouco considerada, que seríamos antes tentando a
falar do oposto, de uma espécie de hipertrofia do “instinto” causal e da
necessidade de explicação causal. De fato, o princípio de no mundo nada
acontece por acaso, mas sim com intenção consciente, às vezes foi caracterizado
exatamente como um princípio fundamental da visão de mundo mítica.
A essa formulação do conceito de causalidade
se conecta um outro traço da visão de mundo mítica, que foi seguidamente
ressaltado nela como especialmente caraterístico: a saber, a relação peculiar
que ela admite entre o todo de um objetivo concreto e suas partes singulares.
Pare a nossa concepção empírica o todo “consiste” em suas partes; para a lógica
do conceito analítico-científico de causalidade, ele “resulta” delas; porém,
para a concepção mítica, no fundo uma coisa vale tão pouca quanto a outra; aqui
ainda predomina uma efetiva indiferenciação, uma “indiferença” intelectual e
real entre o todo e as partes. O todo não “tem” partes nem se decompõe nelas; a
parte aqui é imediatamente o todo e age e funciona como o tal.
A influência dessa forma de pensamento pode
ser seguida tanto em relação ao tempo como em relação ao espaço: a partir de
si, ela transforma tanto a apreensão do sucessivo quanto do simultâneo. Em
ambos casos, o pensamento mítico tem a tendência de deter o quanto possível
aquela decomposição analítica do ser em momentos parciais e condições parciais
autônomos, com se inicia a compreensão científica da natureza e que permanece
como seu tipo ideal. Segundo a representação fundamental de “magia simpática” ,
há uma combinação duradoura, um genuíno nexo causal entre tudo o que designado
ainda tão exteriormente como “co-pertencente” , através da vizinhança espacial
ou de sua vinculação com o mesmo conjunto material [dinglich].
A conexão simpático-mágico passa por sobre
as diferenças espaciais, assim como sobre os temporais: assim como a dissolução
da contiguidade espacial, a separação física de ma parte do corpo doto corpo,
não suprime a conexão causal entre eles, do mesmo modo misturam-se uns aos
outros os limites do “antes” e “depois”, do “anterior” e “posterior”. Mais
exatamente, a referência mágica não precisa produzir-se somente entre elementos
separados espacial e temporalmente -, isto seria apenas a expressão reflexiva mediata
da relação -, mas ela impede desde sempre que se chegue a uma tal decomposição
em elementos: e também onde a intuição empírica parece imediatamente
proporcional a separação, ela é novamente suprimida pela intuição mágica, de
certa maneira a tensão entre o espacialmente distinto e o temporalmente
distinto é dissolvida na simples identidade do “fundamento” mágico.
Uma conseqüência ulterior dessa limitação
imposta à concepção mítica se mostra na visão material-substancial da ação, que
lhe é absolutamente própria. A análise lógico-causal do acontecimento é
essencialmente orientada a dissolver finalmente o dado em processos simples que
podemos observar por si mesmos e que podemos controlar na regularidade de seu
transcurso- a concepção mítica inversamente (também onde se dedica à
consideração do processo do acontecimento, onde formula a pergunta pelo
surgimento e pela origem) vê a própria “gênese” desde sempre vinculada a um
ser-aí concreto dado. Ela só conhece e compreende o processo da ação sempre
como simples alternância entre formas de ser-aí concreto-individuais. Ali o
caminho vai da “condição” , da intuição “substancial” para a intuição
“funcional”; aqui também a intuição do vir-a-ser permanece ligada à do simples
ser-aí. Se o conhecimento, quanto mais avança, tanto mais se contenta em
interrogar o puro “como’ do vir-a-ser, isto é, sua forma legal, então o mito
interroga exclusivamente o seu “o que”, o de-onde e o para-onde. O mito exige
ver diante de si este de-onde e este para-onde em sua completa determinado
material.
O pensamento mítico também procura, sim,
produzir uma espécie de continuidade entre “causa” e “efeito’, intercalado
entre ambos, como estado inicial e final, uma série de membros intermediários.
Mas, não obstante, também estes últimos conservam aqui o mero caráter de coisa
[Sachcharakter]. A perenidade do acontecimento é produzida, do ponto de vista
da causalidade analítica-científica, essencialmente porque uma lei unitária,
uma função analítica, é apresentada, através da qual o todo do acontecimento pode
ser dominado pelo o pensamento, e pode ser determinada a evolução de momento a
momento.
Se comparamos a imagem de mundo
empírico-científica com a imagem de um mundo mítica, torna-se prontamente claro
que a oposição entre ambas não se baseia em empregarem categorias completamente
diferentes na consideração e interpretação do real. Não é pela natureza, pela
as qualidades dessas categorias, mas sim por sua modalidade, que o mito e o
conhecimento empírico-cietífico se diferenciam. Os modos de ligação que ambos
utilizam para dar ao sensível-mútlipo, a forma da unidade, para levar o disperso à configuração,
mostram analogia e correspondências
generalizadas são as mesmas “formas” mais gerais da intuição e do pensamento
que constituem a unidade da consciência como tal, e por isso também a unidade
da consciência mítica, assim como a unidade da pura consciência do
conhecimento. Desse ponto de vista, pode-se dizer que cada uma dessas formas,
antes de receber sua configuração e sua marca lógica determinadas tem que haver
passado por um prévio estádio mítico.
Muito antes de se tornar pura unidade
de medida, o número foi venerado como “número sagrado” – e uma aura dessa
veneração ainda paira sobre os primórdios da matemática científica. Assim,
consideradas abstratamente, são as mesmas formas de relação de unidade e de
pluralidade, de “convivência”, de “proximidade” e de “sucessão” que dominam a
explicação mítica e a explicação científica do mundo. Cada um desses conceitos,
porém, tão logo o desloquemos de volta para a esfera mítica, de pronto recebe
uma peculiaridade inteiramente particular e por assim dizer uma determinada
“tonalidade” própria. Essa tonalidade, essa matização dos conceitos singulares
dentro da consciência mítica parece, à primeira vista, algo completamente
individual, que se pode apenas sentir, mas não conhecer e “compreender”.
Contudo, mesmo nesse individual ainda subjaz um universal. Na constituição
particular e no que é próprio a cada categoria singular repete-se, como mostra
uma consideração mais apurada, um determinado tipo de pensamento. A estrutura fundamental do pensamento mítico,
que se apresentou na orientação de consciência de objeto mítico, no caráter de
seu conceito da realidade, de seu conceito de substância de causalidade, vai
mais além: ela abrange e determina também as configurações singulares deste
pensamento e, por assim dizer, nelas imprime o seu selo.
Também o mito aspira a uma “unidade do
mundo” – e, para satisfazer essa aspiração, ele se move por caminhos bem
determinados, que lhe são previamente traçados por sua “natureza” espiritual.
Já nos degraus inferiores do pensamento mítico ( nos quais ele ainda parece
completamente à impressão sensível imediata e dominado pela mais elementar vida
pulsional sensível), já na apreensão mágica que faz com que o mundo se
decomponha numa multiplicidade multicor de forças demoníacas, é possível
apontar traços indicadores de uma espécie de articulação, de uma “organização”
futura dessas forças. E quanto mais o mito se eleva para formações superiores,
quanto mais determinadamente ele transforma em deuses que têm suas próprias
individualidades e história, tanto mais claramente para eles se vão delimitado,
uma das outras, a essência e a eficácia destes últimos. Assim como o
conhecimento científico almeja uma hierarquia de leis, uma superordenação e
subordinação sistemática de causas e efeitos, o mito aspira a uma hierarquia de
forças e divindades. O mundo torna-se-lhe cada vez mais transparente, à medida
que o reparte entre os diversos deuses; à medida que o subordina
circunscrição particular da existência e
da atividade humana à proteção de um deus particular. Mas por mais que também o
mundo mítico trame a si mesmo em um todo – este todo da intuição ainda assim
exibe um caráter completamente outro do que aquele todo do conceito no qual o
conhecimento procura concentrar a realidade. Aqui, não são as formas ideais de
relação que constrói um mundo objetivo, como um mundo legalmente-determinado
por inteiro, mas aqui todo ser se funde
em unidade concreto-plásticas. E essa oposição, que se torna viável no resultado, baseia-se finalmente numa
oposição de princípio. Cada ligação singular efetuada no pensamento mítico
já carrega o caráter que, uma vez no todo, apenas chega à clareza visibilidade
completas. Enquanto o conhecimento científico só é capaz de ligar os elementos
ao diferenciá-los um dos outros, no mesmo ato fundamental triplo, o mito
aglomera, por assim dizer, numa unidade diferenciada tudo aquilo que toca. As
relações que estabelece são tais, que através delas os componentes que nelas
entram não entram apenas numa relação recíproca ideal, mas até mesmo se tornam
idênticos una aos outros, tornam-se uma e mesma coisa. Tudo aquilo que
“contata” um ao outro, ainda tão somente no sentido mítico- seja esse contato
entendido como contiguidade espacial ou temporal, ou como qualquer (mesmo que
distante) semelhança ou pertença a uma mesma “classe” ou “gênero”-, no fundo
deixou de ser plural e múltiplo: adquiriu uma unidade substancial de essência.
Essa intuição aparece claramente já nos mais baixos degraus do mito.
Essa lei peculiar da concrescência ou coincidência dos elementos
de relação no pensamento mítico pode ser acompanhada através de todas as
suas categorias, singulares. Se começamos pela categoria de quantidade, então já se revelou como o
pensamento mítico não estabelece, entre o todo e as partes, nenhuma linha
divisória nítida; como, para ele, a parte não apenas representa [vertritt], mas até mesmo é o todo. Para a visão
científica, que toma a quantidade como forma sintética de relação, a grandeza é
um dentre muitos: ou seja, unidade e pluralidade constituem nela momentos
igualmente necessários, rigorosamente correlativos. A ligação dos elementos num
“todo” pressupõe sua aguda distinção, sua diferenciação como elementos.
O mesmo estado de coisas aparece
ainda mais claramente se o consideramos sob o ponto de vista da qualidade; ou seja, se examinarmos a
relação da “coisa” para com suas “propriedades” em vez da relação entre o
“todo” e suas “partes”. Aqui também observamos a mesma coincidência peculiar
dos termos da relação: a propriedade, para o pensamento mítico, não é tanto uma
determinação “na” coisa, mas sim expressa e encerra a totalidade da própria
coisa, só que vista sob um determinado ângulo. Para o conhecimento científico,
a determinação recíproca nele produzida baseia-se também aqui numa oposição,
que nessa mesma determinação até mesmo se reconcilia, mas não obstante não
desaparece. Pois o sujeito das propriedades, a “substância” em que “inerem”,
não é ele mesmo imediatamente comparável a uma propriedade qualquer, não pode
ser palpado ou mostrado como algo concreto, mas opõe-se a cada propriedade
particular, e mesmo à totalidade das propriedades, como um “outro”, autônomo.
Aqui, os “acidentes não são “peças” reais materiais da substância—mas esta
constitui o centro e a intermediação ideais, através dos quais se referem uns
aos outros e se reúnem. Para o mito, porém, também aqui a unidade por ele
proporcionada logo se desmancha novamente em mera identidade. Para ele, para
quem tudo é efetivo conflui para o mesmo plano, uma única e mesma substância
não “tem” propriedades diferentes, mas cada particularidade como tal já é
substância; ou seja, ela não pode ser apreendida senão em concreção imediata,
em reificação direta. Já se mostrou como essa reificação afeta também, como
seres, todo mero estado e propriedade, todas as atividades e todas as relações.
Mas o princípio peculiar de pensamento em que ela se fundamenta aparece de
forma ainda mais acentuada do que nos degraus primitivos da intuição de mundo
mítica, ali onde está a ponto de unir-se e misturar-se ao princípio fundamental
do pensamento mítico, ali onde produz junto com ele uma espécie de híbrido: uma
“ ciência” semimítica da natureza.
Não menos do que nas categorias de
“todo” e “parte” e na categoria de “propriedade, a oposição típica entre mito e
conhecimento pode-se revelar também numa categoria como o da “semelhança”. A
articulação dos caos de impressões sensíveis, por sua vez, na medida em que
dele são destacados determinados grupos de semelhança, é comum aos pensamentos
lógico e mítico- sem ela, o mito não conseguiria lhe dar configurações firmes, e o pensamento lógico tampouco lhe daria
conceitos firmes. Mas a apreensão das “semelhanças” das coisas também aqui se
move por trilhos diversos. Para o pensamento mítico, cada semelhança no
fenômeno sensível é suficiente para reunir num único “gênero” mítico o conjunto
de figuras sob as quais aparece. Cada nota característica, qualquer que seja,
vale aqui igualmente- não pode haver uma discriminação nítida do “interno” e do
“externo”, do “essencial” e do “inessencial”, porque justamente aquela
igualdade ou semelhança perceptível é, para o mito, a expressão imediata de uma
identidade da essência. Por isso, a
igualdade ou semelhança nunca é aqui um mero conceito de relação e de reflexão,
mas sim uma força real, algo simplesmente efetivo, simplesmente eficaz.
Mas é claro que poderia parecer que, com
essa demarcação da forma de pensamento
mítica e lógica, tal como até agora foi tentado, nada se tenha conquistado para
o entendimento do mito como um todo,
para a inspeção da camada espiritual primordial da qual é oriundo. Pois isso
não significaria já uma petitio princippi,
isso não acabaria numa falsa racionalização do mito, se procuramos entendê-lo a
partir de sua forma de pensamento? Mesmo concedendo que exista uma tal
forma—significaria ela mais do que a
casca externa que envolve o cerne do mítico e o oculta nesse invólucro? Não
significa o mito uma unidade da intuição, uma unidade intuitiva, que antecede e fundamenta todos os desmembramentos que
sofre no pensamento “discursivo”? E
mesmo essa forma da intuição ainda não caracteriza a última camada da qual é
oriundo e da qual flui vida nova para ele permanentemente. Pois não se trata
absolutamente, no mítico, de um olhar passivo, de uma consideração aqui parte
de uma ato de tomada de posição, de um ato da paixão e da vontade. Por mais que
o mito se condense em figuras permanentes, por mais que ponha diante de nós os
contornos nítidos de um mundo “objetivo” de formas -a significação desse mundo só se nos tornará tangível,
quando percebemos, ainda atrás dele, a dinâmica do sentimento da vida [
Lebensgefuhl] , dinâmica da qual ele brota originalmente. Somente onde esse
sentimento da vida é despertado desde dentro, onde se exprime em amor e ódio,
em temor e esperança, em alegria e tristeza, chega-se àquele despertar da
fantasia mítica de onde brota um determinado mundo da representação. Porém, daí
parece resultar que toda caracterização das formas
de pensamento míticas alcança apenas algo mediado e derivado- que ela
permanecerá incompleta e insuficiente, enquanto não conseguir retroceder da
mera forma de pensamento do mito para sua forma
de intuição e para sua própria forma de vida. Que essas formas jamais
se diferenciem umas das outras, que permaneçam entrelaçadas umas às outras,
desde as mais primitivas figuras [Gebilden]
até as mais elevadas e puras formas do mítico, é exatamente isso o que confere
ao mundo mítico seu hermetismo peculiar e sua marca específica. Também este
mundo se configura e se articula segundo as formas fundamentais da “intuição
pura”: também ele se desmembra em unidade e pluralidade, numa “coexistência” de
objetos e numa seqüência de acontecimentos.
O MITO COMO FORMA DE INTUIÇÃO
Construção e Articulação
do Mundo
Espaço-Temporal na Consciência Mítica
A OPOSIÇÃO FUNDAMENTAL
A construção teórica da imagem do mundo
inicia-se no ponto em que a consciência primeiramente leva a termo uma
superação clara entre “aparência” e “verdade”, entre o meramente “percebido” ou
“representado” e o “verdadeiramente”, entre o “subjetivo e o “objetivo”.
Para o sentimento mítico originário, o
sentido e o poder do “sagrado” ainda não estão limitados a uma circunscrição
especial, a uma esfera singular do ser ou a uma esfera singular do valor. Ao
contrário, é na pletora, na concreção imediata e na totalidade imediata da
existência e do acontecimento, que este sentido se manifesta. Aqui não há
limite nítido que divida o mundo, por assim dizer espacialmente num “aqui” e
num “além”, numa esfera simplesmente “empírica” e uma esfera “transcendente”. A
diferenciação efetuada na consciência do sagrado é antes puramente qualitativa.
Cada conteúdo da existência, por mais cotidiano que seja, pode ganhar o caráter
distintivo de sagrado, tão logo caia na perspectiva
especificamente mítico-religiosa; tão logo, em vez de permanecer preso ao
âmbito usual do conhecimento e da ação, ele apanhe o “interesse” mítico de um
ângulo qualquer e o incite com especial intensidade. A nota característica do
“sagrado”, por isso, não está restrita desde sempre a determinados objetos e
grupos de objetos – mas cada conteúdo, por mais “indiferente” [gleichgultige] que seja, pode
repentinamente ganhar participação nessa nota característica.
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