sexta-feira, 8 de setembro de 2023

ERNST CASSIRER - A FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBÓLICAS

 

 


II – O Pensamento Mítico

 

Síntese elaborada por Pe. Paolo Cugini

 

 

      O PROBLEMA DE UMA “FILOSOFIA DA MITOLOGIA

 

     E também o mito deve ser compreendido como um tal elemento inteiramente positivo. Seu entendimento filosófico começa com a idéia de que ele não se move num mundo de pura “invenção” ou “poesia”, mas que lhe compete um modo próprio de necessidade, e com isso, de acordo com o conceito de objeto da filosofia idealista, um modo próprio de realidade. Somente onde uma tal necessidade é demonstrável, a razão, e com isso a filosofia, tem o seu lugar. O meramente arbitrário, o simplesmente acidental e contigente, para ela não poderia sequer ser objeto de questão- pois a filosofia, a doutrina da essência, não pode firmar o pé no vazio puro e simples, num domínio que em si mesmo não tem verdade essencial. Nada parece claramente mais díspar à primeira vista do que verdade e mitologia-nada, por isso mesmo, mais oposto do que filosofia e mitologia. “Mas justamente na antítese repousam o desafio determinado e a tarefa de descobrir razão mesmo nessa desrazão aparente; sentido, na aparência sem-sentido, isto é, não da maneira como até agora se tentou, por meio de uma diferenciação arbitrária, ou seja, de que algo, acolhido como racional ou com sentido, seja declarado essencial, e todo o resto declarado meramente contigente, visto como roupagem ou deturpação. Ao contrário, a intenção deve ser a de que também a forma se mostre necessária e, deste modo, racional.”

 

      Na relação de mito e história, aquele se revela o primário; esta, o secundário e derivado. Não é através da história de um povo que uma mitologia lhe é determinada, mas dá-se o inverso: através de sua mitologia a história lhe é determinada- ou, mais do que isso, esta não determina, mas é ela mesma o destino desse povo, a sorte que lhe caba desde o começo.

 

      A mitologia surge propriamente através de algo independente de toda invenção, até mesmo contrário a ela, formal e essencialmente: através de um processo necessário (aos olhos da consciência), cuja origem se perde no trans-histórico, a quem talvez a consciência se oponha em momentos isolados, mas que no todo não pode deter, muito menos fazer retroceder. Vemo-nos aqui transportados para uma região onde não há tempo para invenção

(tenha ela partido de alguém isoladamente ou do próprio povo), ou para roupagem artificial ou mau entendimento. Quem entende o que é para um povo sua mitologia, que poder interno ela possui sobre ele e quanta realidade manifesta assim, admitirá que a mitologia foi inventada por indivíduos singulares tão facilmente, quanto considerada possível que também a linguagem de um povo tenha surgido através de esforços singulares no seu seio.

 

       Schelling reclama expressamente como mérito seu, antes de todos, a idéia de substituir inventores, poetas ou indivíduos em geral, pela própria consciência humana, e de provar que ela é a sede, o subjectum agens da mitologia. De qualquer forma, a mitologia não teria uma realidade fora da consciência; mas embora ela só decorra em determinações da consciência, ou seja, em representações, esse decurso, essa sucessão de representações não pode ser, como tal, meramente representado [vorgestellt], mas precisa efetivamente ter acontecido, ter efetivamente ocorrido na consciência. A mitologia, assim, não é um panteão, apresentado sucessivamente; mas o politeísmo sucessivo, em que ela consiste, só pode ser explicado se admitimos que a consciência da humanidade efetivamente se deteve sucessivamente em cada momento dele.

 

      O processo mitológico é um processo teogônico, no qual o próprio Deus vem a ser, no qual, como o verdadeiro Deus, ele se produz por etapas. Cada uma das etapas dessa produção, podendo ser compreendida como ponto necessário de transição, tem sua significação própria: mas somente no todo, na conexão ininterrupta do movimento do mítico que atravessa todos os momentos, desvenda-se completamente seu sentido e sua verdadeira meta. Pois neste todo aparece como necessária e, nesta medida, justificada, também cada fase particular e condicionada. O processo mitológico é o processo da verdade que se reconstitui e, assim, se efetiva.

 

     A “objetividade” do mito-assim como, do ponto de vista crítico, toda espécie de objetividade espiritual-não deve ser determinada materialmente [dinglich], mas sim funcionalmente: ela não reside num ser empírico-psicológico que está atrás dele, mas naquilo que ele próprio é e faz, na maneira e forma de objetivação que ele consuma. Ele é “objetivo na medida em que também ele seja reconhecido como um dos fatores determinantes, por força dos quais a consciência se libera do aprisionamento passivo na impressão sensível e progride para a criação de um "mundo” próprio, formado segundo um princípio espiritual.

 

      Para Schelling, que se apoia principalmente na simbólica mitologia dos povos antigos de Creuzer, toda mitologia é essencialmente doutrina e história dos deuses. Para ele, o conceito e o conhecimento de Deus constituem o começo de todo pensamento mitológico-uma “notitia insita”, como a qual só então ele propriamente começa. Ele volta-se enfaticamente contra aqueles para quem o desenvolvimento da humanidade, em vez de partir da unidade do conceito de Deus, parte da multiplicidade de representações inteiramente parciais e mesmo inicialmente locais, parte do assim chamado fetichismo ou de uma deificação da natureza, que nem ao menos deifica conceitos ou gêneros, mas objetos singulares da natureza, como por exemplo esta árvore ou este rio.

 

       Um outro caminho para avançar até uma última unidade da formação de mitos pareceu abrir-se quando se procurou essa unidade menos como natural, do que como unidade espiritual-portanto, quando se concebeu a unidade não como de um círculo de objetos, mas como unidade de um círculo cultural histórico. Uma vez que se conseguiu comprovar um tal círculo cultural como origem comum dos grandes motivos míticos fundamentais e como ponto central, a partir do qual eles aos poucos se difundiram por toda a amplidão do círculo da Terra, então com isso pareceu explicada por si mesma também a conexão interna e a coerência sistemática desses motivos.

 

        Como de fato concluiu a teoria do “panbabilonismo”, o mito jamais poderia ter evoluído para uma ‘visão de mundo” em si mesma conseqüente, se tivesse surgido simplesmente de representações mágicas primitivas ou de experiências oníricas, crenças anímicas ou qualquer outra superstição. O caminho para uma tal visão de mundo estava dado somente ali onde havia um determinado conceito, uma idéia de mundo como um todo ordenado- condição apenas satisfeita nos primórdios da astronomia e cosmogonia babilônicas. Somente a partir dessa orientação conceitual e histórica pareceu abrir-se a possibilidade de conceber o mito não como puro aleijão da fantasia, mas como um sistema fechado em si mesmo e por si mesmo inteligível.

 

      O mito surge da fantasia subjetiva ou, em cada caso singular, remonta a uma “intuição real” na qual se funda? Ele desempenha o papel de uma forma primitiva de conhecimento e é, nessa medida, essencialmente uma produção do intelecto, ou pertence, segundo as suas exteriorizações fundamentais , à esfera da paixão e da vontade?

 

      Embora o mito não se limite a um circulo singular de coisas ou processos, mas sim abarque e penetre a totalidade do ser, e embora precise de potências espirituais das mais diversas espécies como seus órgãos, ele apresenta um “ponto de mira” unitário da consciência, a partir do qual aparecem sob nova figura a “natureza” bem como a “alma”, o ser “externo” bem como o “interno”. É preciso apreender esta sua “modalidade” de entender suas condições.

 

       Assim como, no âmbito do conhecimento, a mera “rapsódia das percepções” transforma-se num sistema de saber, por força de determinadas leis formais do pensamento, igualmente é lícito e imperativo perguntar pela constituição daquela unidade formal que faz com que o mundo infinitamente multiforme do mito não seja um mero conglomerado de representações arbitrárias e idéias sem relação, mas sim componha uma produção espiritual característica.

 

        Mas se, por esse lado, a inclusão do mito no sistema global das “formas simbólicas” se mostra imediatamente indispensável- então é evidente que ela envolve também um determinado perigo. Pois a comparação da forma mítica com outras formas  fundamentais do espírito ameaça levar a um nivelamento de seu próprio teor, tão logo este seja tomado puramente segundo o conteúdo e se procure fundamentá-lo em concordâncias ou relações meramente de conteúdo. De fato, não faltam tentativas de tornar o mito “inteligível, reduzindo-o a alguma outra forma do espírito, seja à do conhecimento, seja à da arte ou da linguagem.

 

      A “explicação” lingüística de motivos míticos não costuma mais aparecer nessa forma evidentemente ingênua; mas é sempre atraente a tentativa de provar a linguagem, em geral e no detalhe, como o veículo próprio da formação dos mitos. De fato, a mitologia comparada, assim como a história comparada das religiões, é sempre reconduzida a fatos que parecem confirmar a equação numina= nomina sob os mais diversos ângulos. A idéia em que se baseia essa equação foi aplicada por Usener numa profundidade e fecundidade inteiramente novas. A análise e a crítica dos “nomes dos deuses” prova ser aqui a ferramenta espiritual que, utilizada corretamente, permite entender o processo da formação de conceitos religiosa. Com isso abre-se a perspectiva d uma doutrina geral da satisfação, na qual o lingüístico e o mítico se unem inseparavelmente e se referem um ao outro correlativamente. O progresso alcançado pela filologia e pela a história das religiões, do ponto de vista filosófico, através dessa teoria de Usener, consiste também aqui em que a interrogação não seja mais dirigida ao conteúdo desnudo dos mitos singulares, mas ao mito e á linguagem como um todo, como formas espirituais com legalidade própria. Para Usener, a mitologia não é senão a doutrina do mito ou “morfologia das representações religiosas”. Ela ambiciona nada menos do que “mostrar a necessidade e legalidade do representar mítico, e com isso tornar inteligíveis não apenas as produções mitológicas das religiões populares, mas também as formas d representação de religiões monoteístas”. Os nomes de deuses de Usener são um admirável exemplo de quão longe consegue penetrar esse método de ler a essência  dos deuses a partir de seus nomes e da história de seus nomes, e quão clara é a luz que ele consegue lançar sobre a estrutura do mundo mítico.

 

      Já nas primeiras e, em certo sentido, “mais primitivas” manifestações do mito, torna-se claro que não estamos lidando com um mero reflexo do ser, mas com uma elaboração formadora própria e com uma apresentação. Também aqui se pode acompanhar como os poucos se desfaz uma tensão inicialmente existente entre “sujeito” e “objeto”, entre o“dentro” e o “fora”, na medida em que entre os dois mundos aparece, de forma cada vez mais multiforme e rica, um novo reino intermediário. Ao mundo das coisas, que o envolve e domina, o espírito contrapõe um mundo de imagens próprio e autônomo- ao poder da “impressão” opõe-se aos poucos, e de maneira cada vez mais nítida e consciente, a força ativa da “expressão”. Mas é claro que essa criação ainda não carrega consigo o caráter do ato espiritual livre, mas o caráter da necessidade natural, o caráter de um determinado “mecanismo” psicológico. Justamente porque nesse estágio ainda não existe um Eu autônomo e consciente de si, vivendo livre em suas produções, mas antes porque estamos somente no limiar do processo espiritual destinado a delimitar “eu” e parecer á própria consciência uma efetividade inteiramente “objetiva”. Todo começo do mito, especialmente toda concepção mágica de mundo, está impregnado dessa crença na essência objetiva e na força objetiva do signo. A  magia da palavra, a magia da imagem e a magia da escrita formam o acervo fundamental da atividade mágica e da visão mágica de mundo.

 

     O mundo mítico é “concreto” não porque tem a ver somente com conteúdos sensível-objetivos, nem porque exclui de si e rejeita todos os momentos meramente “abstratos”, tudo o que é unicamente significação a signo; mas sim porque nele os dois momentos, o momento-coisa e o momento-significação, se dissolvem sem distinção, porque aqui eles cresceram juntos , “concresceram” em uma unidade imediata. Em face do mundo da impressão sensível- passiva, o mito, como um modo originário de configuração, também traça desde o início um determinado limite- ele também surge, assim como a arte e o conhecimento, num processo de cisão, numa separação do “efetivo” imediato, isto é, do simplesmente dado. Mas, neste sentido ele significa um dos primeiros passo para além do “dado”, não obstante logo retorna, com o seu próprio produto, novamente à forma do “dado”[Gegebenheit]. Ele se eleva espiritualmente acima do mundo das coisas; porém nas figuras e imagens que coloca em seu lugar, somente substitui uma forma de existência e servidão por outra. O que parecia libertar das amarras das coisas torna-se-lhe agora outra amarra, que tanto mais indestrutível, quanto a dominação que experimenta já não provém aqui de poder meramente físico, mas sim de um poder espiritual . Mas um tal coração, evidentemente,  , já contém em si mesma a condição imanente de sua futura superação; contém a possibilidade de um processo espiritual de libertação que se cumpre de fato no progresso  do estágio da visão de mundo mágico-mítica para a visão de mundo propriamente religiosa.  

 

 

CARÁTER E ORIENTAÇÃO FUNDAMENTAL DA CONSCIÊNCIA DE OBJETO MÍTICA

 

      Uma das primeiras e essenciais idéias da filosofia crítica é a de que os objetos não são “dados” á consciência prontos e fixos, na nudez de seu “em-si”, mas que a referência da representação ao objeto pressupõe um ato espontâneo e autônomo da consciência. O objeto não subsiste antes dela é que ele é constituído- não é uma forma acabada que simplesmente se impõe e imprime à consciência, mas é o resultado de uma conformação que se efetua por força dos recursos fundamentais da consciência, por força das condições da intuição e do pensamento puro. A filosofia das formas simbólicas adota esse pensamento crítico fundamental, esse princípio em que se baseia a “revolução copernicana” de Kant, com vistas a amplia-lo. Ela não procura as categorias da consciência do objeto apenas na esfera teórico-intelectual; ela se baseia em que tais categorias têm que vigorar em toda parte onde, dos caos das impressões, se forme um cosmo, uma “imagem do mundo” característica e típica. Cada uma de tais imagens de mundo só é possível através de atos específicos de objetivação, de transmutação das meras “impressões” em “representações” em si determinadas e configuradas.

 

     Dessa tarefa imposta ao pensamento teórico da experiência, porém, resultam também os meios intelectuais dos quais ele tem de servi-se progressivamente para cumpri-la. Se a sua meta consiste na síntese mais elevada e geral, na composição de todo particular na unidade abrangente da experiência, não obstante os métodos graças aos quais unicamente essa meta pode ser alcançada apontam ao contrário para o caminho  aparentemente inverso.

 

      O mito vive num mundo de puras configurações, que se lhe antepõem como algo integramente objetivo, como o próprio objetivo. Mas a referência a elas ainda não mostra nada daquela “crise” decisiva, com a qual começa o saber empírico e conceitual. Mas, mesmo os seus conteúdos lhe sejam dados num suporte objetivo como “conteúdos efetivos”, ainda assim essa forma de efetividade ainda é em si totalmente homogênea e indiferenciada. Ainda faltam aqui, por completo, as nuances de significação e de valor que o conhecimento estampa em seu conceito de objeto e em virtude das quais chega á distinção rigorosa entre diversos círculos de objetos, á linha de demarcação entre o mundo da “verdade” e o da “aparência”. O mito mantém-se exclusivamente na presença de seu objeto: na intensidade com o qual este, em um determinado instante, arrebata a consciência e toma posse dela. Por isso, falta ao mito toda possibilidade de estender o instante para além dele mesmo, olhar antecipadamente além dele e retrospectivamente por trás dele, referi-lo como elemento particular ao conjunto dos elementos da efetividade. Em vez do movimento dialético do pensamento, para o qual cada particular dado será apenas a ocasião para vinculá-lo a outro, para agregá-lo a outros numa série e desse modo, finalmente, ordená-lo a uma legalidade geral do acontecer, uma vez disso ocorre aqui o mero abandono à impressão mesma e à sua “presença” caso a caso. A consciência está no mito, como em algo preso ao que simplesmente é, ela não possui o impulso nem a possibilidade de corrigir, criticar o dado aqui e agora, limitá-lo em sua objetividade uma vez que é medido por um não dado, algo passado ou futuro. Mas se falta essa medida mediata, então todo o ser, toda “verdade” e efetividade se desmancha na mera presença do conteúdo, e com isso todo aparecer em geral se concentra necessariamente num único nível.

 

       Um rápido exame nos fatos da consciência mítica ensina, com efeito, que essa consciência desconhece absolutamente determinadas linhas divisórias que o conceito empírico e o pensamento empírico-científico consideram como simplesmente necessárias. Falta aqui sobretudo aquela linha demarcatória fixa entre o meramente “representado” e a percepção “efetiva”, entre desejo e satisfação, entre imagem e coisa. Isto aparece com toda clareza na significação decisiva que têm as vivências oníricas para a gênese e para a construção da consciência mítica. É claro que a teoria animista- que tenta derivar todo o conteúdo do mito essencialmente dessa única fonte, que faz com que o mito desponte principalmente de uma “confusão” e mistura entre vivências de vigília- permaneceu unilateral e insuficiente.

 

       Não pode haver dúvidas de que determinados conceitos míticos fundamentais serão inteligíveis e transparentes em sua estrutura própria apenas quando se ponderar que, para o pensamento mítico e para a “experiência” mítica, há uma passagem permanentemente oscilante entre o mundo do sonho e o mundo da “efetividade” objetiva. Também em sentido puramente prático, também na atitude adotada pelo homem, não na mera representação. Mas no agir e fazer na efetividade, determinadas experiências oníricas possuem a mesma força e o mesmo alcance, e lhes cabe portanto, mediatamente, a mesma “verdade” que coube ao que foi vivido em vigília. Toda a vida e ação de muitos “povos primitivos” foi determinada e conduzida por seus sonhos, até os menores detalhes. E, assim como não há uma diferença rígida entre sonho e vigília, tampouco há para o pensamento mítico um corte nítido que separe a esfera da vida da esfera da morte.

 

      Estamos acostumados a conceber esses conteúdos como “simbólicos”, na medida em que por detrás deles é procurado um outro sentido, oculto, para o qual apontam mediatamente. Desse modo, o mito torna-se mistério: sua autêntica significação e sua autêntica profundidade não residem naquilo que encobre. A consciência mítica equivale a uma escritura cifrada, inteligível e legível apenas para aquele que possui a sua chave- ou seja, para quem os conteúdos particulares dessa consciência no fundo não são senão signos convencionais de um “outro” que não está contido neles. Daqui resultam os diversos tipos e correntes de interpretação dos mitos, de tentativas de trazer à luz o sentido, teórico ou moral, que os mitos abrigam.

 

        Onde vemos uma relação de mera “representação”, para o mito, se ainda não se desviou de sua forma fundamental e primordial e se ainda não perdeu seu caráter original, há uma relação de identidade real. A “imagem” não representa a “coisa”- ela é a coisa; ela não é apenas suplente, mas sim age como ela, de forma, de forma que a substitui em seu presente imediato. Consequentemente, pode-se se apontar exatamente como uma característica do pensamento mítico a ausência, nele, da categoria do “ideal”, e que, por isso, onde quer que nele surja algo puramente significante, a fim de compreendê-lo deve transformar esse mesmo significante em algo material, em algo assemelhado ao ser.

 

       Já se salientou corretamente que, na relação entre mito e rito, este é o mais antigo, aquele é o mais tardio. Em vez de explicar a ação ritual a partir do conteúdo de fé, como um mero conteúdo representativo, temos que tomar o caminho inverso: aquilo que no mito pertence ao mundo teórico da representação, o que nele mero relato ou narrativa em que se crê, temos que estender como uma interpretação mediata daquilo que está vivo imediatamente na ação do homem e em sua paixão ou vontade. Assim compreendido, porém, nenhum rito tem originalmente sentido meramente “alegórico”, de imitação ou encenação, mas um sentido inteiramente real: os ritos estão inseridos na realidade do agir efetivo de modo que formem um seu componente indispensável. É uma crença geral, encontrada sob múltiplas formas e nas mais diversas formas culturais, que a perpetuação da vida humana, e mesmo a existência do próprio mundo, repousa na correta prática dos ritos.

 

     Essa incapacidade do pensamento mítico de apreender uma mera significação, algo puramente ideal e significativo, exprime-se mais marcadamente na posição que aqui as dá à linguagem. Mito e linguagem estão em constante contato recíproco- seus conteúdos portam e condicionam um ao outro. Além do feitiço da imagem, há o feitiço da palavra e do nome, que constitui um componente da visão mágica do mundo. Mas aqui o pressuposto decisivo reside também em que a palavra e o nome não possuem mera função representativa, mas em ambos estão contidos o próprio objeto e suas formas reais.

 

    É especialmente próprio que está ligado dessa maneira, por vínculos misteriosos, ao que é próprio á existência.

 

    Sempre volta a surgir no âmbito da história das religiões a idéia fundamental de que a autêntica natureza do deus, o vigor e a diversidade de sua ação estão encerrados em seu nome e como que condensados nele. No nome reside o mistério da abundância divina.

 

     No Egito, que, como terra clássica da magia e do feitiço do nome, também estampou muito claramente esse traço na história de sua religião, considera-se que não apenas o universo foi feito pelo lógos divino, mas também o mesmo primeiro deus surgiu através da força de seu poderoso nome próprio: no princípio era o nome, que então desprendeu de si todo ser, também o ser divino. Quem conhece o verdadeiro nome de um deus ou demônio pode apropriar-se também ilimitadamente do poder de seu portador.

 

      E assim como o nome, é especialmente a imagem de uma pessoa ou de uma coisa o que permite tornar imediatamente clara a indiferença do pensamento mítico com respeito a toda a variedade de “graus de objetivação”. Do ponto de vista do pensamento mítico, para o qual todo percebido já possui como tal um caráter de realidade, para a imagem vista vale o mesmo que para a palavra dita e ouvida- é dotada de forças reais.

 

     Em geral, a peculiaridade do pensamento mítico e a decisiva oposição em que ele se encontra diante da apreensão puramente “teórica” de mundo podem ser apreendidas não menos claramente a partir de seu conceito de causualidade do que a partir de seu conceito de objetivo. Pois esses dois conceitos condicionam-se um ao outro reciprocamente: a forma do pensamento causal determina a forma do pensamento de objetivo e vice-versa. A categoria geral de “causa” e “efeito” não falta absolutamente ao pensamento mítico; ela pertence mesmo, em certo sentido, ao seu próprio acervo fundamental.

 

      Enquanto a forma de pensar da causalidade empírica estiver essencialmente orientada para produzir uma relação unívoca entre determinadas “causas” e determinados “efeitos”, as próprias “causas” ainda estarão á disposição do pensamento mítico, para uma escolha inteiramente livre, também lá onde ele formula a pergunta sobre a origem como tal. Aqui tudo ainda pode vir-a-ser de tudo, porque tudo pode está em contato com tudo, temporal e espacialmente. Por isso, ali onde o pensamento empírico-causal fala de “alteração” e ali onde  ele tenta estendê-la a partir de uma regra geral, o pensamento mítico conhece, ao contrário, somente a simples metamorfose ( compreendida no sentido de Ovídio, não no de Goethe). Se o pensamento científico se ocupa do fato da “alteração”, então não é essencialmente à passem de uma coisa sensível-dada singular para uma outra que seu interesse dirige; mas essa passagem, ao contrário, lhe parece “possível” e admissível somente se nela se expressa uma lei geral, se está fundada em certas relações e determinações funcionais que, independentemente do aqui e agora e da respectiva constelação das coisas aqui e agora, geralmente não são consideradas válidas. A “metamorfose” mítica, em contrapartida, é sempre o relato de um acontecimento individual- a progressão de uma forma individual e concreta, de uma coisa e de uma existência, para outra. O mundo é pescado das  profundezas do mar ou conformado a partir de uma tartaruga; a Terra é formada a partir do corpo de um grande animal ou de uma flor de loto flutuando na água; o sol surgem de uma pedra; os homens, de rochedos ou árvores. Em todas essas “explicações” míticas tão diversificada, por mais caóticas e anômicas que possam parecer em seus meros conteúdos, está estampada a mesma orientação da apreensão de mundo. Enquanto o juízo de causalidade conceitual decompõe o acontecimento em elementos constantes e procura compreendê-lo a partir da complexão e interferência desses elementos, de sua repetição idêntica, para a imaginação mítica, que persiste na representação global como tal, é suficiente a imagem do simples transcurso do próprio acontecimento. Neste podem se repetir talvez certos traços típicos, sem que ,contudo, se possa falar de uma regra e, desse modo, de determinadas condições formais que limitem o ver- a - ser.   

                           

   Dentro do pensamento mítico parece que a arbitrariedade anômica é tão pouco considerada, que seríamos antes tentando a falar do oposto, de uma espécie de hipertrofia do “instinto” causal e da necessidade de explicação causal. De fato, o princípio de no mundo nada acontece por acaso, mas sim com intenção consciente, às vezes foi caracterizado exatamente como um princípio fundamental da visão de mundo mítica.       

    

   A essa formulação do conceito de causalidade se conecta um outro traço da visão de mundo mítica, que foi seguidamente ressaltado nela como especialmente caraterístico: a saber, a relação peculiar que ela admite entre o todo de um objetivo concreto e suas partes singulares. Pare a nossa concepção empírica o todo “consiste” em suas partes; para a lógica do conceito analítico-científico de causalidade, ele “resulta” delas; porém, para a concepção mítica, no fundo uma coisa vale tão pouca quanto a outra; aqui ainda predomina uma efetiva indiferenciação, uma “indiferença” intelectual e real entre o todo e as partes. O todo não “tem” partes nem se decompõe nelas; a parte aqui é imediatamente o todo e age e funciona como o tal.                

      

   A influência dessa forma de pensamento pode ser seguida tanto em relação ao tempo como em relação ao espaço: a partir de si, ela transforma tanto a apreensão do sucessivo quanto do simultâneo. Em ambos casos, o pensamento mítico tem a tendência de deter o quanto possível aquela decomposição analítica do ser em momentos parciais e condições parciais autônomos, com se inicia a compreensão científica da natureza e que permanece como seu tipo ideal. Segundo a representação fundamental de “magia simpática” , há uma combinação duradoura, um genuíno nexo causal entre tudo o que designado ainda tão exteriormente como “co-pertencente” , através da vizinhança espacial ou de sua vinculação com o mesmo conjunto material [dinglich].              

   A conexão simpático-mágico passa por sobre as diferenças espaciais, assim como sobre os temporais: assim como a dissolução da contiguidade espacial, a separação física de ma parte do corpo doto corpo, não suprime a conexão causal entre eles, do mesmo modo misturam-se uns aos outros os limites do “antes” e “depois”, do “anterior” e “posterior”. Mais exatamente, a referência mágica não precisa produzir-se somente entre elementos separados espacial e temporalmente -, isto seria apenas a expressão reflexiva mediata da relação -, mas ela impede desde sempre que se chegue a uma tal decomposição em elementos: e também onde a intuição empírica parece imediatamente proporcional a separação, ela é novamente suprimida pela intuição mágica, de certa maneira a tensão entre o espacialmente distinto e o temporalmente distinto é dissolvida na simples identidade do “fundamento” mágico.

 

     Uma conseqüência ulterior dessa limitação imposta à concepção mítica se mostra na visão material-substancial da ação, que lhe é absolutamente própria. A análise lógico-causal do acontecimento é essencialmente orientada a dissolver finalmente o dado em processos simples que podemos observar por si mesmos e que podemos controlar na regularidade de seu transcurso- a concepção mítica inversamente (também onde se dedica à consideração do processo do acontecimento, onde formula a pergunta pelo surgimento e pela origem) vê a própria “gênese” desde sempre vinculada a um ser-aí concreto dado. Ela só conhece e compreende o processo da ação sempre como simples alternância entre formas de ser-aí concreto-individuais. Ali o caminho vai da “condição” , da intuição “substancial” para a intuição “funcional”; aqui também a intuição do vir-a-ser permanece ligada à do simples ser-aí. Se o conhecimento, quanto mais avança, tanto mais se contenta em interrogar o puro “como’ do vir-a-ser, isto é, sua forma legal, então o mito interroga exclusivamente o seu “o que”, o de-onde e o para-onde. O mito exige ver diante de si este de-onde e este para-onde em sua completa determinado material.                                              

 

      

     O pensamento mítico também procura, sim, produzir uma espécie de continuidade entre “causa” e “efeito’, intercalado entre ambos, como estado inicial e final, uma série de membros intermediários. Mas, não obstante, também estes últimos conservam aqui o mero caráter de coisa [Sachcharakter]. A perenidade do acontecimento é produzida, do ponto de vista da causalidade analítica-científica, essencialmente porque uma lei unitária, uma função analítica, é apresentada, através da qual o todo do acontecimento pode ser dominado pelo o pensamento, e pode ser determinada a evolução de momento a momento.               

 

 

     Se comparamos a imagem de mundo empírico-científica com a imagem de um mundo mítica, torna-se prontamente claro que a oposição entre ambas não se baseia em empregarem categorias completamente diferentes na consideração e interpretação do real. Não é pela natureza, pela as qualidades dessas categorias, mas sim por sua modalidade, que o mito e o conhecimento empírico-cietífico se diferenciam. Os modos de ligação que ambos utilizam para dar ao sensível-mútlipo, a forma da unidade,  para levar o disperso à configuração, mostram  analogia e correspondências generalizadas são as mesmas “formas” mais gerais da intuição e do pensamento que constituem a unidade da consciência como tal, e por isso também a unidade da consciência mítica, assim como a unidade da pura consciência do conhecimento. Desse ponto de vista, pode-se dizer que cada uma dessas formas, antes de receber sua configuração e sua marca lógica determinadas tem que haver passado por um prévio estádio mítico.

        Muito antes de se tornar pura unidade de medida, o número foi venerado como “número sagrado” – e uma aura dessa veneração ainda paira sobre os primórdios da matemática científica. Assim, consideradas abstratamente, são as mesmas formas de relação de unidade e de pluralidade, de “convivência”, de “proximidade” e de “sucessão” que dominam a explicação mítica e a explicação científica do mundo. Cada um desses conceitos, porém, tão logo o desloquemos de volta para a esfera mítica, de pronto recebe uma peculiaridade inteiramente particular e por assim dizer uma determinada “tonalidade” própria. Essa tonalidade, essa matização dos conceitos singulares dentro da consciência mítica parece, à primeira vista, algo completamente individual, que se pode apenas sentir, mas não conhecer e “compreender”. Contudo, mesmo nesse individual ainda subjaz um universal. Na constituição particular e no que é próprio a cada categoria singular repete-se, como mostra uma consideração mais apurada, um determinado tipo de pensamento. A estrutura fundamental do pensamento mítico, que se apresentou na orientação de consciência de objeto mítico, no caráter de seu conceito da realidade, de seu conceito de substância de causalidade, vai mais além: ela abrange e determina também as configurações singulares deste pensamento e, por assim dizer, nelas imprime o seu selo.   

        Também o mito aspira a uma “unidade do mundo” – e, para satisfazer essa aspiração, ele se move por caminhos bem determinados, que lhe são previamente traçados por sua “natureza” espiritual. Já nos degraus inferiores do pensamento mítico ( nos quais ele ainda parece completamente à impressão sensível imediata e dominado pela mais elementar vida pulsional sensível), já na apreensão mágica que faz com que o mundo se decomponha numa multiplicidade multicor de forças demoníacas, é possível apontar traços indicadores de uma espécie de articulação, de uma “organização” futura dessas forças. E quanto mais o mito se eleva para formações superiores, quanto mais determinadamente ele transforma em deuses que têm suas próprias individualidades e história, tanto mais claramente para eles se vão delimitado, uma das outras, a essência e a eficácia destes últimos. Assim como o conhecimento científico almeja uma hierarquia de leis, uma superordenação e subordinação sistemática de causas e efeitos, o mito aspira a uma hierarquia de forças e divindades. O mundo torna-se-lhe cada vez mais transparente, à medida que o reparte entre os diversos deuses; à medida que o subordina circunscrição  particular da existência e da atividade humana à proteção de um deus particular. Mas por mais que também o mundo mítico trame a si mesmo em um todo – este todo da intuição ainda assim exibe um caráter completamente outro do que aquele todo do conceito no qual o conhecimento procura concentrar a realidade. Aqui, não são as formas ideais de relação que constrói um mundo objetivo, como um mundo legalmente-determinado por inteiro, mas aqui todo ser se funde  em unidade concreto-plásticas. E essa oposição, que se torna viável no resultado, baseia-se finalmente numa oposição de princípio. Cada ligação singular efetuada no pensamento mítico já carrega o caráter que, uma vez no todo, apenas chega à clareza visibilidade completas. Enquanto o conhecimento científico só é capaz de ligar os elementos ao diferenciá-los um dos outros, no mesmo ato fundamental triplo, o mito aglomera, por assim dizer, numa unidade diferenciada tudo aquilo que toca. As relações que estabelece são tais, que através delas os componentes que nelas entram não entram apenas numa relação recíproca ideal, mas até mesmo se tornam idênticos una aos outros, tornam-se uma e mesma coisa. Tudo aquilo que “contata” um ao outro, ainda tão somente no sentido mítico- seja esse contato entendido como contiguidade espacial ou temporal, ou como qualquer (mesmo que distante) semelhança ou pertença a uma mesma “classe” ou “gênero”-, no fundo deixou de ser plural e múltiplo: adquiriu uma unidade substancial de essência. Essa intuição aparece claramente já nos mais baixos degraus do mito.

       Essa lei peculiar da concrescência ou coincidência dos elementos de relação no pensamento mítico pode ser acompanhada através de todas as suas categorias, singulares. Se começamos pela categoria de quantidade, então já se revelou como o pensamento mítico não estabelece, entre o todo e as partes, nenhuma linha divisória nítida; como, para ele, a parte não apenas representa [vertritt], mas até mesmo é o todo. Para a visão científica, que toma a quantidade como forma sintética de relação, a grandeza é um dentre muitos: ou seja, unidade e pluralidade constituem nela momentos igualmente necessários, rigorosamente correlativos. A ligação dos elementos num “todo” pressupõe sua aguda distinção, sua diferenciação como elementos.

          O mesmo estado de coisas aparece ainda mais claramente se o consideramos sob o ponto de vista da qualidade; ou seja, se examinarmos a relação da “coisa” para com suas “propriedades” em vez da relação entre o “todo” e suas “partes”. Aqui também observamos a mesma coincidência peculiar dos termos da relação: a propriedade, para o pensamento mítico, não é tanto uma determinação “na” coisa, mas sim expressa e encerra a totalidade da própria coisa, só que vista sob um determinado ângulo. Para o conhecimento científico, a determinação recíproca nele produzida baseia-se também aqui numa oposição, que nessa mesma determinação até mesmo se reconcilia, mas não obstante não desaparece. Pois o sujeito das propriedades, a “substância” em que “inerem”, não é ele mesmo imediatamente comparável a uma propriedade qualquer, não pode ser palpado ou mostrado como algo concreto, mas opõe-se a cada propriedade particular, e mesmo à totalidade das propriedades, como um “outro”, autônomo. Aqui, os “acidentes não são “peças” reais materiais da substância—mas esta constitui o centro e a intermediação ideais, através dos quais se referem uns aos outros e se reúnem. Para o mito, porém, também aqui a unidade por ele proporcionada logo se desmancha novamente em mera identidade. Para ele, para quem tudo é efetivo conflui para o mesmo plano, uma única e mesma substância não “tem” propriedades diferentes, mas cada particularidade como tal já é substância; ou seja, ela não pode ser apreendida senão em concreção imediata, em reificação direta. Já se mostrou como essa reificação afeta também, como seres, todo mero estado e propriedade, todas as atividades e todas as relações. Mas o princípio peculiar de pensamento em que ela se fundamenta aparece de forma ainda mais acentuada do que nos degraus primitivos da intuição de mundo mítica, ali onde está a ponto de unir-se e misturar-se ao princípio fundamental do pensamento mítico, ali onde produz junto com ele uma espécie de híbrido: uma “ ciência” semimítica da natureza.

           Não menos do que nas categorias de “todo” e “parte” e na categoria de “propriedade, a oposição típica entre mito e conhecimento pode-se revelar também numa categoria como o da “semelhança”. A articulação dos caos de impressões sensíveis, por sua vez, na medida em que dele são destacados determinados grupos de semelhança, é comum aos pensamentos lógico e mítico- sem ela, o mito não conseguiria lhe dar configurações firmes, e o pensamento lógico tampouco lhe daria conceitos firmes. Mas a apreensão das “semelhanças” das coisas também aqui se move por trilhos diversos. Para o pensamento mítico, cada semelhança no fenômeno sensível é suficiente para reunir num único “gênero” mítico o conjunto de figuras sob as quais aparece. Cada nota característica, qualquer que seja, vale aqui igualmente- não pode haver uma discriminação nítida do “interno” e do “externo”, do “essencial” e do “inessencial”, porque justamente aquela igualdade ou semelhança perceptível é, para o mito, a expressão imediata de uma identidade da essência. Por isso, a igualdade ou semelhança nunca é aqui um mero conceito de relação e de reflexão, mas sim uma força real, algo simplesmente efetivo, simplesmente eficaz.

      Mas é claro que poderia parecer que, com essa demarcação da forma de pensamento mítica e lógica, tal como até agora foi tentado, nada se tenha conquistado para o entendimento do mito como um todo, para a inspeção da camada espiritual primordial da qual é oriundo. Pois isso não significaria já uma petitio princippi, isso não acabaria numa falsa racionalização do mito, se procuramos entendê-lo a partir de sua forma de pensamento?  Mesmo concedendo que exista uma tal forma—significaria  ela mais do que a casca externa que envolve o cerne do mítico e o oculta nesse invólucro? Não significa o mito uma unidade da intuição, uma unidade intuitiva, que antecede e fundamenta todos os desmembramentos que sofre no pensamento “discursivo”? E mesmo essa forma da intuição ainda não caracteriza a última camada da qual é oriundo e da qual flui vida nova para ele permanentemente. Pois não se trata absolutamente, no mítico, de um olhar passivo, de uma consideração aqui parte de uma ato de tomada de posição, de um ato da paixão e da vontade. Por mais que o mito se condense em figuras permanentes, por mais que ponha diante de nós os contornos nítidos de um mundo “objetivo” de formas -a significação   desse mundo só se nos tornará tangível, quando percebemos, ainda atrás dele, a dinâmica do sentimento da vida [ Lebensgefuhl] , dinâmica da qual ele brota originalmente. Somente onde esse sentimento da vida é despertado desde dentro, onde se exprime em amor e ódio, em temor e esperança, em alegria e tristeza, chega-se àquele despertar da fantasia mítica de onde brota um determinado mundo da representação. Porém, daí parece resultar que toda caracterização das formas de pensamento míticas alcança apenas algo mediado e derivado- que ela permanecerá incompleta e insuficiente, enquanto não conseguir retroceder da mera forma de pensamento do mito para sua forma de intuição e para  sua própria forma de vida. Que essas formas jamais se diferenciem umas das outras, que permaneçam entrelaçadas umas às outras, desde as mais primitivas figuras [Gebilden] até as mais elevadas e puras formas do mítico, é exatamente isso o que confere ao mundo mítico seu hermetismo peculiar e sua marca específica. Também este mundo se configura e se articula segundo as formas fundamentais da “intuição pura”: também ele se desmembra em unidade e pluralidade, numa “coexistência” de objetos e numa seqüência de acontecimentos.

 

O MITO COMO FORMA DE INTUIÇÃO

 

Construção e Articulação do Mundo

Espaço-Temporal na Consciência Mítica

 

A OPOSIÇÃO FUNDAMENTAL

 

       A construção teórica da imagem do mundo inicia-se no ponto em que a consciência primeiramente leva a termo uma superação clara entre “aparência” e “verdade”, entre o meramente “percebido” ou “representado” e o “verdadeiramente”, entre o “subjetivo e o “objetivo”.

         Para o sentimento mítico originário, o sentido e o poder do “sagrado” ainda não estão limitados a uma circunscrição especial, a uma esfera singular do ser ou a uma esfera singular do valor. Ao contrário, é na pletora, na concreção imediata e na totalidade imediata da existência e do acontecimento, que este sentido se manifesta. Aqui não há limite nítido que divida o mundo, por assim dizer espacialmente num “aqui” e num “além”, numa esfera simplesmente “empírica” e uma esfera “transcendente”. A diferenciação efetuada na consciência do sagrado é antes puramente qualitativa. Cada conteúdo da existência, por mais cotidiano que seja, pode ganhar o caráter distintivo de sagrado, tão logo caia na perspectiva especificamente mítico-religiosa; tão logo, em vez de permanecer preso ao âmbito usual do conhecimento e da ação, ele apanhe o “interesse” mítico de um ângulo qualquer e o incite com especial intensidade. A nota característica do “sagrado”, por isso, não está restrita desde sempre a determinados objetos e grupos de objetos – mas cada conteúdo, por mais “indiferente” [gleichgultige] que seja, pode repentinamente ganhar participação nessa nota característica.

       

Nenhum comentário:

Postar um comentário

IMMANUEL KANT: Crítica da razão pratica 1788

    Kant foi influenciado por Rousseau sobre a necessidade de encontrar uma moral para o sujeito e o Estado. A filosofia crítica de Kant ten...