LIVRO I
CAPÍTULO I O OFÍCIO DO PEDAGOGO
Há três coisas a serem regradas no homem: os hábitos, as
ações e as paixões. Para regrar os hábitos é preciso recorrer à exortação, que
é como o guia da religião e da piedade, e uma maravilhosa ajuda para
introduzir-se na fé. Por ela, afastamo-nos dos velhos erros e entramos com
alegria na via da salvação, como nos diz o profeta: “O Deus de Israel é bom
para os puros de coração”. (Sal 73 [72]) É preciso se servir dos preceitos para
regrar as ações, mas para remediar as paixões da alma existe a via das consolações.
Por esse artifício, o homem abandona seus velhos costumes nos quais fora
criado, para instruir-se segundo as máximas da fé que conduzem a Deus. Chama-se
exortação esse discurso pelo qual o homem põe-se a procurar as vias de sua
salvação. A religião é uma espécie de exortação, além de um culto piedoso que
se rende ao bom Deus. Trata-se, contudo, de uma instrução perpétua, para nos
fazer aprender a levar uma vida correta, inspirando-nos a desejar ardentemente
a vida futura. Por isso, estamos usando o nome de Pedagogo, por conta dos
remédios e preceitos que Ele nos dá. Afinal, Ele mesmo nos prometeu a cura de
nossas paixões, conquanto sejamos dóceis e sigamos as suas instruções. Quando
se considera a palavra em relação às ações, ao invés das relações para com a
disciplina e os preceitos, e mais na intenção de tornar a alma melhor do que
apenas instruí-la, então damos ao discurso o nome de exortação – embora noutros
casos possa ser usado como instrução, pois afinal o discurso que se emprega
para a explicação dos preceitos é também instrutivo Quando o Pedagogo se
utiliza das regras morais e exorta o discípulo a cumprir todos os seus deveres
em relação a elas, está a dar lições práticas:
além de explicá-las, expõe-se vivamente, e de forma bem
natural, todas as faltas cometidas pelos discípulos. Portanto, esses dois
métodos são muito vantajosos. A exortação obriga à submissão através das
imagens dos vícios que se apresentam, resultando em dois efeitos: ou elas
estimulam a prática das virtudes, tendo como exemplo as pessoas de bem, ou
inspiram, pelo menos, o horror às libertinagens. Após ter conhecido as paixões
da alma através dos pecados cometidos, por meio de retratos que podemos ter diante
dos olhos, o Pedagogo nos indica preceitos simples que assemelham-se aos
remédios mais doces e suaves. Dessa forma, dá-nos o conhecimento perfeito da
verdade que geme sob o peso dos vícios. É preciso dizer que há uma grande
diferença entre o conhecimento e a santidade: um é adquirido através da
disciplina; e a outra, pela purgação. Aquele que está doente jamais se deve
preocupar com o que observa a doutrina, até que tenha remediado seus crimes e
se encontre perfeitamente curado de seus vícios. Enfim, não se devem prescrever
as mesmas coisas a quem se está instruindo e a quem está doente. Obviamente,
devem-se ensinar os primeiros, e curar os segundos. No entanto, da mesma forma
que um corpo atingido por alguma enfermidade necessita de um médico, aqueles que
têm um espírito doente necessitam de um diretor espiritual que lhes possa
prescrever remédios contra as suas paixões; têm necessidade de um doutor que os
instrua, que os faça apreender as máximas da Santa Doutrina, ao mesmo tempo em
que, com todo o cuidado, conduza-os ao mais alto grau de perfeição através das
regras da mais exata disciplina. O verbo, pleno de bondade e amor pelos homens,
exorta a todos interiormente; Ele mesmo exerce o ofício de Diretor, e lhes
revela todos os mistérios da sua doutrina.
CAPÍTULO II É POR CAUSA DE NOSSOS PECADOS QUE NECESSITAMOS
ESTAR SOB OS CUIDADOS DO PEDAGOGO
Nosso pedagogo, meus filhos, é igual a Deus, seu Pai. Ele é
incapaz de ser levado pelas paixões ou pelos vícios; é perfeito, por isso não é
possível dirigir-lhe qualquer censura. Nosso pedagogo é Deus feito homem, mas,
acima de tudo, um homem sem fraquezas. Ele é totalmente
submetido à vontade do Pai; é o verbo feito
carne, o Deus que está assentado à direita de Deus Pai, e com
Ele é um só Deus. É a sua imagem pura e sem mácula, que não poupa esforços para
que nossas almas assemelhem-se a Ele. Não sente jamais as desordens nem as
agitações das paixões. Eis porque somente Ele merece a condição de juiz, pois é
totalmente isento de pecado, ao passo que nós devemos incessantemente evitar,
tanto quanto possível, cometê-los. Nossos primeiros cuidados, portanto, devem
ser livrar-nos de nossas paixões e de todas as doenças de nossa alma. Em
seguida, afastamo-nos de qualquer hábito que nos possa levar ao pecado. O
melhor seria jamais pecar, mas isso é próprio de Deus, como já dissemos. No
entanto, é possível, pelo menos, esforçarmo-nos para jamais cair no pecado
voluntariamente; isso é o que convém às pessoas sábias. Depois, devemos nos
abster, à medida que nos for possível, de pecar involuntariamente; isto é, o
que esperamos daqueles que foram bem instruídos e estão sob a condução do bom
pedagogo. A última etapa é recuperar-se o quanto antes dos pecados cometidos.
Cumpre lembrar que aqueles que são chamados à penitência deverão preparar-se
para grandes combates. É justamente o que o pedagogo disse pela voz de Moisés:
“se alguém morre de uma morte súbita na presença daquele que é consagrado a
Deus, será preciso rapar sua cabeça para purificá-lo” (Num 6, 9). Podemos, de
alguma forma, comparar o pecado involuntário a uma morte súbita, que polui
aquele que a testemunha, com o pecado aprofundando-se na alma. É preciso
incessantemente aplicar o remédio: raspar a cabeça, ou seja, dissipar as trevas
da ignorância que ofuscam a razão, a fim de que se esteja liberto da substância
do pecado – que é como uma matéria grosseira – e se possa recorrer, com mais
facilidade e prontidão, à penitência. Podemos concluir, daquilo que disse
Moisés, que o pecado é uma ação irracional; ele compara a morte súbita ao
pecado involuntário, e podemos acrescentar: aquele que pecada age contra a
razão. Eis porque o Pedagogo recorre às leis para impedir o desregramento pelo
pecado. Ele nos adverte que ao crime seguir-se-á um rigoroso julgamento,
conforme nos ensinam os profetas quando dizem que os que se afastam dos pecados
não se sentem ameaçados, mas os que não lhes deram ouvidos e deleitaram-se em
abominações terão a paga merecida (Is 65-66). A profecia trata de dois objetos:
a obediência e a desobediência, a
fim de que sejamos salvos por uma e punidos por causa da
outra. A função do pedagogo é curar, através de suas reprimendas, as
incriminações, as inclinações viciosas da alma. O Verbo é o único médico que
nos pode livrar das doenças da nossa alma. Lembrai-vos do que escreveu o
profeta: “Vós sois meu Deus; tende piedade de mim, Senhor, é a vós que eu
invoco todos os dias! Alegrai a vida do vosso servo, pois é a vós, Senhor, que
eu me elevo! Vós sois bom e perdoais, Senhor, atendei a minha prece, considerai
a minha voz suplicante” (Sal 85 [86]). “O médico, diz Demócrito, foi inventado
para curar as doenças do corpo”. A sabedoria alivia os distúrbios da alma.
Nosso bom pedagogo, que é a sabedoria e o verbo do Pai eterno, que pe o criador
do Céu e da terra, que vela pela conservação de todas as criaturas, que as
liberta de suas enfermidades corporais e espirituais, que é o médico e o
Salvador da natureza humana, disse ao paralítico: “Levanta-te, toma a tua cama
e vai para casa” (Mat 9, 6b). Com essas palavras, curou-lhe inteiramente da
doença, restituindo-lhe a sua saúde e vigor. Disse também a um morto: “Lazaro,
vem para fora!” (Jo 11, 43); e o morto apareceu tal como estava antes de
morrer. Ele nos dá não apenas os remédios indicados para as enfermidades do
corpo, mas também os que curam a alma pelos seus preceitos e pelo tesouro
inesgotável de sua graça. Eis por que Ele diz a nós, pecadores: “Vossos pecados
serão perdoados” (Mc 2, 9-12). Colocou-nos, primeiro, numa situação vantajosa
pela disposição de sua sabedoria infinita que aparece maravilhosamente na
criação da terra e do céu, no movimento do sol e das estrelas e, sobretudo,
quando criou o homem, que d‟Ele
recebe cuidados especiais. Como é a mais bela e a mais nobre criatura, embelezou
sua alma infundindo toda sorte de virtudes, prudência, sabedoria e temperança. Estendeu os traços de beleza sobre o seu corpo, dando
justa proporção a todos os
seus membros e, para aperfeiçoar sua obra, deu ao homem a inclinação para o bem, pois tudo o que se
observa de bom e virtuoso nas ações humanas é tão somente o efeito da graça de
Deus.
CAPÍTULO III DA BONDADE DO PEDAGOGO E DE SEU AMOR PELOS HOMENS
O Senhor nos é útil e nos ajuda em todas as coisas como homem
verdadeiro e Deus verdadeiro: perdoa os nossos pecados enquanto Deus;
instrui-nos enquanto homem, ensinando-nos a não pecar. Como o homem foi criado
por Deus, por Ele é amado. Todas as outras criaturas também surgiram do nada,
através de um só de seus comandos. Mas Ele modelou o homem com as próprias
mãos, insuflando-lhe na alma todas as virtudes que lhe são próprias. Se Deus
nos quis criar à sua imagem e semelhança, é evidente que o fez ou por causa da
excelência da nossa natureza, ou por algum outro motivo igualmente digno de sua
solicitude e de seu amor. Se por Ele fomos criados por causa da bondade de
nossa natureza, esse Deus, a suma bondade, amou em nós aquilo que é bom; pois
há no homem algo de amável, e isto é o que provém da própria vontade de Deus.
Sendo por um outro motivo, não há a menor dúvida de que, não fosse a criação,
as outras obras de Deus, privadas da faculdade de conhecer e adorar seu
criador, jamais poderiam testemunhar a divina perfeição. Ele criou as coisas
para o homem; portanto, o homem deveria necessariamente ser criado. Logo, Deus
criou as coisas materiais por um motivo alheio a essas mesmas coisas: criou-as
somente por causa do homem. Ele sabia o que ia fazer e fez aquilo que era a sua
vontade, pois não há nada que Deus não possa fazer. O homem, criatura de Deus,
é, portanto, um ser amado. Ora, Deus não poderia deixar de amar tudo aquilo que
merece ser amado. Logo, Ele nos ama. Como não nos amaria, dado que, do seu coração
paternal, ele nos envia seu único filho, que é fonte inesgotável de amor e de
fé? E o próprio Senhor reconhece que esse amor, quando nos disse: “Pois o
próprio Pai vos ama, porque me amastes e crestes que vim de Deus” (Jo 16, 27).
E reafirma, quando volta-se ao Pai: “Amaste-os como amaste a mim” (Jo 17, 23).
Segue, portanto, que a vós se revela a vontade do pedagogo; a natureza de seus
auxílios e a maneira doce e afetuosa pela qual nos convida a praticar o bem e
desviar-nos do mal. Ainda é mais claro que esse Verbo divino exerce a nosso
favor um outro ofício, cujo objetivo é de nos instruir nas coisas invisíveis,
espirituais e misteriosas. Mas como não é uma questão que pretendo tratar agora
nesses ensinamentos, éme suficiente fazer-vos observar como é adequado
retribuir, de alguma forma, a um Deus que por amor nos conduz à suma bondade.
Observemos como é justo conformar nossa vida aos seus mandamentos, não apenas
cumprindo fielmente aquilo que Ele nos ordena – ou evitando fazer aquilo que
Ele nos proíbe – mas, procurando sempre assemelhar-se a Ele da maneira mais
perfeita que nos seja possível, com a ajuda dos
exemplos que nos aparecem diante dos olhos – seja para
imitá-los, seja para deles fugir. De fato, passamos por profundas trevas nesta
vida, e não saberíamos delas sair sem o apoio de um guia que jamais se engana,
enfim, um guia confiável e fiel. E este guia é por excelência o bom pedagogo,
que não é, como nos diz a Escritura, um cego conduzindo cegos ao precipício.
“Se um cego conduz outro cego, ambos cairão no abismo” (Mat 15, 14). Pelo
contrário, é o Verbo cujo olhar austero penetra nos mais secretos vincos do
nosso coração. Como não há luz que não ilumine, nem motor que não faça mover
coisa qualquer, também é impossível que a suma bondade não seja útil aos
homens; que não os conduza para a salvação. Tiremos, portanto, nossos preceitos
de seus exemplos e obras. O Verbo se fez carne para melhor nos ensinar a
prática e a teoria da virtude. Que esta seja a nossa única lei: encaremos os
seus preceitos e seus avisos como a via mais curta e mais direta para nos
conduzir à eternidade. Seus mandamentos estão repletos de razão –– e não de
medo!
CAPÍTULO IV O VERBO INSTRUI IGUALMENTE OS HOMENS E AS MULHERES
Abracemos, então, cada vez mais essa salutar obediência.
Entreguemonos inteiramente ao Senhor. Ponhamo-nos a bordo, sem hesitação, desse
navio da fé, e estejamos certos de que as virtudes que esta fé nos ordena a
seguir são de igual privilégio para o homem e para a mulher. Afinal, se ambos
têm o mesmo Deus, têm também o mesmo pedagogo e uma só e mesma Igreja. A
previdência, a temperança e o pudor são virtudes comuns aos dois sexos. Eles se
nutrem dos mesmos alimentos, unem-se pelo casamento; a respiração, a visão, a
audição, a inteligência, a esperança, a caridade, enfim, a disposição em
obedecer aos mandamentos de Deus, tudo lhes é comum. Tendo o homem e a mulher o
mesmo tipo de vida, igualmente tomam parte das mesmas graças e da mesma
salvação. São amados de Deus pelo mesmo amor; instruídos
com os mesmos cuidados. Diz-nos o Senhor: “Os filhos deste
mundo casam-se e dão-se em casamento; mas os que forem julgados dignos de ter
parte no outro mundo e na ressurreição dos mortos não tomam nem mulher nem
marido, como também não podem morrer: são semelhantes aos anjos e são filhos de
Deus, sendo filhos da ressurreição” (Luc 20, 34-36). As recompensas, destinadas
às virtudes que fazem da união conjugal cristã uma comunidade santa, não são
mais prometidas ao homem do que à mulher; são prometidas ao homem em geral, ou
seja, ao gênero humano – assim, podemos dizer que, nesse aspecto, não há
diferença alguma entre homem e mulher, a não ser a que é estabelecida pela
concupiscência. Assim, compreendemos que a palavra „homem‟, tomada na sua generalidade, compreende tanto
os homens quanto as mulheres, Creio ser por isso que os atenienses deram o nome
de „criança‟ (παιδάριον – paidárion) tanto para os jovens rapazes quanto para
as jovens moças. E, se
posso requerer a autoridade de Menandro, eis as palavras que o dramaturgo
colocou na boca de um pai, na sua peça intitulada Rapizomene: “Minha filhinha,
porque me é mais doce chamá-la de minha criança”. Também a eles é comum o uso
da palavra „cordeiro‟ (αρνες)
para designar tanto machos quanto fêmeas, esse animal tão frágil e tão doce que é mesmo símbolo da simplicidade. O próprio Senhor nos pastoreia para todo o
sempre. Amém! Nem os
rebanhos podem existir sem um pastor, nem as crianças o podem sem um pedagogo, nem os
servos sem um mestre.
CAPÍTULO V TODOS OS QUE TOMAM A VIDA DA VERDADE SÃO FILHOS DE
DEUS
Não é necessário explicar que a pedagogia tem por objetivo a
condução das crianças, isto é, a sua instrução; a etimologia própria desta
palavra é suficiente como prova. Mas ainda resta-nos examinar quais são as
crianças de que tratam as Escrituras – e colocá-las sob a direção de um
Pedagogo. Buscando as Escrituras, saberemos que essas crianças somos todos nós.
Muitas vezes elas empregam a palavra „criança‟ para designar uma série de alegorias que exprimem a mesma
ideia; isso para nos fazer ver,
através de diversas maneiras, quão simples deve ser a nossa
fé. Como o Senhor nos diz no Evangelho, dirigindo-se aos discípulos que estavam
a pescar: “Minhas crianças, acaso tendes algum peixe?” (Jo 21, 4-5) Portanto, o
Senhor chama de crianças àqueles que acostumam-se e tomam o hábito de viver
junto d‟Ele. O Evangelho nos diz mais: “Naquele momento, foram-lhe trazidas
crianças para que
lhes impusesse as mãos e fizesse uma oração, Os discípulos, porém, as repreendiam. Jesus, todavia,
disse: „Deixai as
criancinhas, e não as impeçais de vir a mim, pois delas é o Reino dos Céus‟. Em seguida, impôs-lhes as mãos e partiu dali” (Mat 19, 13-14). O Senhor mesmo nos
explica o sentido, dizendo: “...se não vos converterdes e não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no Reino
dos Céus” (Mat 18, 3b). De fato, Ele não fala aqui de uma regeneração alegórica, mas da simplicidade que é natural às crianças, recomendando-nos que nos tornemos
simples tal como elas o são. Também o espírito profético nos designa como crianças de
Deus. Vejamos o que nos ensina o Evangelho: “A numerosa multidão estendeu suas
vestes pelo caminho, enquanto outros cortavam ramos das árvores e os espalhavam
pelo caminho. As multidões que os precediam e os que o seguiam gritavam:
„Hosana ao Filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor!‟ ” (Mat 21, 8-9) Ou seja, luz, glória, louvores e súplicas ao Senhor! Pois tal é o significado da palavra hosanna, se
traduzido do hebraico para o grego. Parece-me que o Evangelho cita esta
profecia para fazer-nos envergonhar de nossa preguiça e apatia. Decerto, vós
vos apercebestes: “Da boca dos pequeninos e das criancinhas de peito
preparastes um louvor para vós” (Sal 8, 3). Ainda por esta razão é que o
Senhor, prestes a retornar à casa do Pai, encoraja seus discípulos a escutá-lo
mais atentamente, esforçando-se para neles inspirar um amor mais ardente aos
seus ensinamentos; fazendo-os compreender que aproximava-se a hora de
deixá-los. E, como consequência, eles se deveriam apegar com mais avidez às
palavras da Verdade que deveriam apressar para que desfrutassem de sua presença
enquanto Ele ainda não havia partido para o Céu. Então, novamente, Jesus
refere-se a eles como se fossem suas crianças: “Filhinhos, por pouco tempo
ainda estou convosco” (Jo 12, 33). Mais uma vez, Ele compara o Reino dos Céus
às crianças sentadas nas praças pública e que gritam às outras crianças: “Nós
vos tocamos flauta, mas não dançastes! Nós entoamos lamentações, mas não
chorastes!” (Luc 7, 31-33) Encontram-se nos Evangelhos diversas outras
passagens semelhantes, e também entre os profetas. Escutemos, pois, o que disse
Davi: “Crianças, louvai o Senhor, louvai o nome do Senhor” (Is 8, 18).
Escutemos ainda
o que o Espírito Santo fez ouvir da boca de Davi: “Eis-me
aqui, eu e os filhos que o Senhor me deu” (Heb 2, 13). Surpreende o fato de o
Senhor ver também os gentios como filhos? Ignorais, por certo, que os Áticos
dão nomes diferentes às donzelas nascidas livres (παιδίζκαι – paidiskai) e às donzelas nascidas escravas (παιδίζκάρια
–
paidiskaria). Contudo, quando ainda muito jovens, na flor da idade, referem-se
a elas com o termo comum „criança‟
(παις – pais).
Quando o senhor nos diz que as ovelhas estarão à sua direita (cf Mat 25, 33a), faz
alusão às simples crianças, que pela pureza são mais semelhantes a ovelhas e
cordeiros do que aos homens. E o Senhor dá preferência ao termo „cordeiro‟ para mostrar que, no homem, a disposição à ternura e à simplicidade marca a inocência do espírito, da mesma forma quando nos
compara de forma figurada a ovelhas no meio de lobos, ou ainda como simples e
inocentes pombas. Quando o Senhor ordena, pela boca de Moisés, a oferecer duas rolas e duas
pombas em expiação de nossos pecados (Lev 5, 7), compreendemos
que a inocência da mais tenra idade, a inexperiência do mal, a facilidade de
esquecer as injúrias, coisas tão naturais às crianças, são virtudes
infinitamente agradáveis a Deus; claro, a expiação de um pecado dever ser
proporcional ao número e à gravidade das faltas cometidas e a fragilidade dos
pássaros é uma imagem do terror que nos deve inspirar frente ao pecado. De
qualquer forma, o Senhor nos chama de pequeninos, conforme atesta a Escritura:
“como a galinha reúne seus pintinhos debaixo de suas asas” (Mat 23, 37),
Portanto, somos os pequeninos do Senhor; e esse termo de ternura, do qual se
serve o Verbo, esse termo tirado da fragilidade da infância, expressa, de uma
maneira misteriosa e admirável, qual deve ser a simplicidade da nossa alma. Às
vezes, o Senhor nos chama de crianças, de pequeninos, de criancinhas; ou de
filhos, queridos filhos, ou ainda: meu povo; novo povo. “Meus servos receberão
um novo nome” (Is 65, 15-16). Novo, ou seja, eterno, sem manchas, simples,
inocente, verdadeiro, coberto de bênçãos sobre toda a face da terra. Novamente
Ele nos chama alegoricamente de jovens potros, querendo dizer que não somos
submissos ao jogo do vício, e que não somos domados pela malícia. Enfim, que
somos simples e erguemo-nos apenas para correr para os braços de nosso Pai; que
vivemos na feliz ignorância dessas paixões furiosas que tornam o homem
semelhante aos animais; que nossa alma é livre e inocente como a das crianças
recém-nascidas; que corremos para a fé e a verdade; que estamos prontos para
chegar à salvação, prontos
para desprezar e pisotear as riquezas e os prazeres deste
mundo. “Exulta muito, filha de Sião, solta gritos de júbilo, filha de
Jerusalém; eis que vem a ti o teu rei, justo e vitorioso; Ele é humilde e vem
montado sobre um jumento, sobre um jumentinho, filho de uma jumenta” (Zac 9,
9). A Escritura não se contenta de se servir do termo „jumento‟: acrescenta que é “um jumentinho”, exprimindo com simplicidade como o
Cristo é novo
segundo a carne, e eterno segundo a geração divina; como o Senhor guia esse
animal fraco e hesitante, entregando-se a nós, que somos suas crianças, o
alimento e a direção que nos são necessárias. A infância desse animal é a
imagem da nossa infância. “Amarra o jumentinho à videira” (Gen 49, 11), Ou
seja, amarrar ao Verbo um povo simples e novo. O Verbo é a vinha; como a vinha
produz o vinho, o Verbo dá o seu sangue. E, dessas duas bebidas saudáveis ao
homem, uma alimenta o seu corpo e a outra remedia a alma e a põe a caminho da
salvação. Já em relação a Ele nos chamar de cordeiros, o Espírito Santo dá
testemunho pela boca de Isaías: “Como um pastor, vai apascentar seu rebanho,
reunir os animais dispersos, carregar os cordeiros nas dobras de seu manto,
conduzir lentamente as ovelhas que amamentam” (Is 40, 11) Os cordeiros, que
representam o que há de mais tímido e amável no rebanho, são uma alegoria dessa
simplicidade infantil que agrada ao Senhor. Nós mesmos damos à Educação – o que
há de mais belo e mais precioso entre os bens deste mundo – um nome cuja
etimologia é tirada da palavra „criança‟. Chamamos pelo nome de Pedagogia (παιδεία – paidéia) a condução da infância, essa arte que tem como objetivo
o estudo da virtude e nos ensina a praticá-la. O próprio Senhor nos revela tudo o que há de grandioso e nobre quando nos
qualifica como crianças, ao resolver a questão surgida entre os Apóstolos: “Quem é o maior no Reino do Céus?” (Mat 18, 1b) Pois tendo colocado uma
criancinha no meio deles, disse: “Aquele que se fizer humilde como esta criança será maior no reino dos céus” (Mat 18, 4). Portanto, não é porque,
como muitos acreditam, as crianças são incapazes de refletir e de fazer uso da
sua razão que o Senhor no-las apresenta como modelos. É preciso evitar
compreender o sentido dessas palavras como se Ele tivesse dito: “Se não fordes
como as criancinhas, não entrareis no Reino de Deus”. Não! Esta interpretação
seria extremamente viciada. Uma vez que somos as crianças do Senhor, não mais
nos arrastamos na lama; não nos rastejamos mais sobre a terra como as
serpentes; isso quer dizer que nos livramos inteiramente, como no início, da
baixeza dos apetites grosseiros de nosso corpo; nossas almas erguem-se para o
céu; renunciamos ao mundo e ao pecado e tocamos a terra
somente com a ponta dos pés. Isso significa que só estamos
ainda nesse mundo para marchar em direção à sabedoria divina, algo que os maus
encaram como uma loucura. Reconhecer somente a Deus como Pai, ser simples,
puro, inocente, despretensioso, honestos; tais são as características da
verdadeira infância. Dessa forma, é àquele que já avançaram na doutrina do
Verbo que o Senhor ordena afastar todas as preocupações inoportunas das coisas
necessárias à vida, e imitar as criancinhas que deixam esse cuidado a seus
pais. É nesse sentido que devemos entender as seguintes palavras: “Não vos
preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã vos trará suas
próprias preocupações. A cada dia basta o seu mal” (Mat 6, 34). Ou seja,
abandonai toda preocupação inútil, apegai-vos somente a vosso Pai, que vos dará
tudo aquilo que necessitais. Aquele que observa esse preceito é verdadeiramente
criança; de fato, será vista aos olhos do mundo com todo o desprezo; mas, aos
olhos de Deus, será amado com todo o amor que Ele dedica aos seus filhos. E se,
como diz a Escritura, há somente um Senhor, criador do Céu e da Terra, resta
apenas concluir que todos os que estão na terra se devem portar como fiéis.
Quem poderia negar? A ciência e a perfeição são o apanágio do Senhor; já a
ignorância e fraqueza são o nosso. O cargo de instruir é de Deus, assim como o
do homem é aprender. Contudo, os profetas honram com o nome de homem tudo o que
é perfeito, seja para o bem, seja para o mal. A profecia diz – referindo-se ao
demônio – pela boca de Davi: “O senhor abomina os homens sanguinários” (Prov 6,
16). Davi chama ao demônio de homem porque aquele é perfeito na sua malícia; no
entanto, o Senhor também é chamado de homem, para exprimir a perfeição da sua
justiça. Eis o que diz o apóstolo em uma de suas epístolas aos coríntios: “Eu
vos tenho desposado com Cristo, para vos apresentar como virgem pura ao único
esposo” (2 Cor 11, 2). Ele se explica ainda mais claramente na sua carta aos
efésios, e lá esclarece nestes termos a questão que nos ocupa: Até que todos
cheguemos a unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus, ao estado de
varão perfeito, segundo a medida da idade completa de Cristo; para que não
sejamos já meninos flutuantes, nem nos deixemos levar em toda de qualquer vento
de doutrina, pela malignidade dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro.
Mas praticando a verdade em caridade, cresçamos em todas as coisas n’Áquele que
é a cabeça, o Cristo (Ef 4, 13-15)
O apóstolo assim se exprime para chegar à edificação do corpo
de Nosso Senhor Jesus Cristo, que é cabeça e homem, o único perfeito na
justiça. Mas nós, que somos as crianças, devemos guardar-nos para não ser
levados pelos ventos da heresia, e confiar na palavra daqueles que nos instruem
em doutrinas contrárias às de nossos pais. O único meio de nos tornarmos
perfeitos é aceitando a Jesus Cristo como nosso chefe e participando da sua
Igreja. Devemos observar também, no que concerne o termo „criança‟, (νηπιος – nêpios), que ele não se refere aos tolos. Quando dizemos
nêpios, é a doçura que desejamos exprimir. Nêpios é composto das sílabas nê e êpios, que quer dizer „doce‟. É isso que o bem-aventurado São Paulo exprime claramente quando
diz: “Embora como
apóstolos de
Cristo pudéssemos vos
ser gravosos, ao contrário, fizemo-nos párvulos no meio de vós, como uma mãe que amamenta a seus
filhos” (I Ts 2, 7). A criança é naturalmente simples e doce, mas aqueles que
são crianças diante de Deus acrescentam a essa doçura uma simplicidade que
ignora a malícia e a dissimulação, um coração cheio de probidade e elevação. É
esse o fundamento verdadeiro da simplicidade e da verdade. Diz o Senhor: “Para
quem olharei eu, pois, senão para o pobrezinho, e quebrantado de espírito?” (Is
66, 2) Os jovens falam com uma sinceridade virginal; não observamos no seu
discurso malícia nem dissimulação. Daí vem nosso costume de dar aos jovens
epítetos que exprimam a flexibilidade e a doçura do seu caráter. Quanto a nós,
não é a fragilidade da nossa idade que nos torna semelhantes às crianças, mas a
facilidade com a qual nos deixamos persuadir e ser conduzidos ao bem, a
ausência de toda espécie de amargura e de toda mistura de perversidade. A
geração anterior é perversa e tem o coração duro; já a nova o tem simples e
inocente, como o de uma criança. Nós, digo eu, é que somos essa geração nova, e
o apóstolo exprime vivamente o quanto o apraz essa simplicidade e essa
inocência, quando, na sua Carta aos Romanos, ele define, por assim dizer, o
verdadeiro caráter da infância: “Quero que vós sejais sábios no bem e simples
no mal” (Rom 16, 19) Na palavra nêpios, que quer dizer „criança‟, a partícula né não é entendida por nós de modo restrito, embora os gramáticos concedam tal sentido a essa
partícula.
Portanto, se qualquer um, baseando-se no falso sentido que eles atribuem à palavra nêpios, tratar-nos como insensatos,
será a Deus mesmo que ele blasfemará, porque enxergará como
insensatos aqueles que buscam refúgio no seio de Deus. Se, ao
contrário, ao nos chamar de nêpios, eles desejam falar da nossa simplicidade,
aceitemos de bom grado sua qualificação. A simplicidade da infância substitui
em nós o orgulho da razão, desde que as luzes do Novo Testamento nos iluminaram
a respeito. Foi após o advento de Cristo que Deus foi verdadeiramente
conhecido: “Ninguém conhece o Filho senão o Pai. Tão pouco alguém conhece o Pai
senão o Filho, e a quem o Filho quiser revelar” (Mat 11, 27). Nós somos uma
gente nova, distinta da gente antiga. Nós somos jovens porque aprendemos a
conhecer as novas bênçãos. Encontramos na nova lei uma fonte inesgotável de
vida, uma juventude que não conhecerá jamais a velhice, um vigor não cessa de
renascer para elevar-nos ao conhecimento de Deus, uma fonte inalterável. É
deveras necessário que os discípulos de um novo Verbo sejam novos como Ele, e
que aqueles que se apegam Àquele que é eterno tornem-se tão incorruptíveis
quanto Ele. Nossa vida assemelha-se a uma primavera perpétua, porque a verdade
que está em nós não conhece as misérias da velhice, e essa verdade, que se
espalha através de nossas ações, renova-nos sem cessar. A sabedoria que nos
ilumina é como uma árvore sempre verde. Esta sabedoria, longe de ser mutante e
variável, é eternamente a mesma. As crianças, diz o profeta, “sobre os joelhos
vos acariciarão; como uma mãe acaricia o seu filhinho, assim vos consolarei eu,
e em Jerusalém serão consolados” (. Da mesma maneira como uma mãe reúne seus
filhos ao seu redor, assim nos reuniremos ao redor da Igreja, que é nossa Mãe.
Tudo o que é jovem e fraco inspira-nos ainda um vivo interesse, encanta-nos,
toca-nos, enternece-nos por essa fraqueza mesmo que clama por nosso socorro.
Nós somos naturalmente dispostos a confrontar aqueles que precisam de nossos
cuidados. Como os pais e as mães não vêem nada mais doce do que a sua
progenitura; os cavalos, seus jovens potros; as vacas, seus bezerrinhos; os
leões, seus leõezinhos; a corça, seus filhotes; o homem, seu filho; assim o Pai
comum a todos os seres recebe prazerosamente aqueles que imploram seu socorro e
se refugiam no seu seio. Vendo-os cheios de doçura e regenerados pelo Espírito
Santo, adota-os, ama-os, protege-os, combate por eles, defende-os, e dá-lhes o
doce nome de filhos. Isaac, cujo nome significa „riso‟, parece-me ser a imagem das verdadeiras crianças. Um dia, quando ele jogava com
Rebeca, sua esposa e seu apoio, um rei examinava seus jogos com uma atenção curiosa. Esse rei que se chamava
Abimelec, parece-me ser a imagem da sabedoria supra-mundana; sabedoria que
contempla desde o alto os
mistérios dos jogos e da educação infantil. Rebeca significa
„paciência‟. Que jogos amáveis! Que sábia instrução! O riso faz-se acompanhar da paciência, e o rei o contempla,
assombra-se e admira o espírito daqueles que são crianças de acordo com Deus, e
no qual toda a vida é um exercício de paciência e doçura. Esse jogos contém
algo de misterioso e de divino. Heráclito supõe que seu deus Júpiter jogou
assim. O que há de mais conveniente a um homem sábio e perfeito que jogar e
regozijar-se na espera das bênçãos verdadeiras, suportando corajosamente as
coisas penosas por amor a Deus? Essa profecia pode significar ainda que devemos
regozijar-nos como Isaac, por nossa salvação. Livre do medo da morte, ele joga
com sua esposa, imagem da Igreja que é nosso sustentáculo, para guiar-nos pelo
caminho da salvação. Damos à Igreja o nome de σπομονη (uponomê), que significa paciência, estabilidade, seja porque ela
deve subsistir eternamente, numa alegria inalterável, seja porque exprimimos que ela
se sustenta devido à paciência e à constância dos fiéis que a compõe, e que, membros de Jesus Cristo,
rendem testemunho contínuo à sua divindade pelas perpétuas ações da graça. Esse seria, portanto, o jogo
misterioso da alegria e da paciência para consolar e sustentar os fiéis. Jesus
Cristo, que é nosso contempla nossos jogos de sua glória, e quando, para
servir-me dos termos das Escrituras, Ele vê através da janela nossas ações de
graça, nossas bendições, nossa alegria, essa paciência que empresta a todos o
seu apoio, e a constância junto a elas. Ele reconhece sua Igreja, e, mostrando
sua face, dá a ela a perfeição que ela não possui. Mas que janela é essa
através da qual se mostra o Senhor? Essa janela é carne na qual Ele se
manifestou. Ele é Isaac, pois este (nós podemos agora tomá-lo neste sentido) é
o tipo e a figura do Senhor, como criança e como filho, porque era filho de
Abraão, como Cristo é de Deus; vitima oferecida em holocausto como o Senhor,
embora não tenha sido imolado como Ele. Isaac apenas levou a lenha para o
Sacrifício, assim como o Senhor levou a madeira da Cruz. Seu riso misterioso
exprime a alegria com a qual o Senhor nos preencheria, por nos livrar da corrupção
e da morte pela efusão do seu sangue; Isaac não padeceu, a fim de deixar ao
verbo a parte mais nobre do sacrifício. Podemos mesmo dizer que o fato de não
ter sido imolado designa simbolicamente a divindade de Cristo, pois, do mesmo
modo que Isaac escapou da morte, Jesus Cristo saiu de sua tumba vitorioso e
incorruptível. Citarei ainda outra passagem que sustenta e defende o assunto do
qual trato. O Espírito Santo, profetizando pela boca de Isaías, chama de
criança a Jesus Cristo: “Porquanto, já
um pequeno se acha nascido para nós, e um filho nos foi dado,
posto o principado sobre seu ombro: e o nome com que se apelide será „admirável
conselheiro‟ ” (Is 9, 6). É esta criança que é nosso modelo e da qual devemos ser a
imagem. O Espírito Santo,
pela boca do mesmo profeta, conta-nos e faz-nos admirar a grandeza dessa criança divina. Ele o chama de admirável, conselheiro, Deus bom, Pai
eterno, príncipe da
paz; Ele o honra com esses nomes porque Ele sabe completar nossa educação, e porque a paz que Ele trará ao
mundo não terá fim. Quão poderoso é esse Deus! Quanta perfeição nesse Filho!
Como as instruções que recebemos dessa criança não seriam perfeitas, essas
instruções que Ele dá como pedagogo, a nós que somos seus Filhos? Ele estende a
nós suas mãos, suas mãos que semearam a fé no mundo. São João, o maior dos
profetas entre os filhos das mulheres, também dá testemunho dessa criança: “Eis
aqui o Cordeiro de Deus” (Jo 1, 29) E com efeito, a Igreja, que honra as
crianças com o doce nome de cordeiro, honra igualmente ao Verbo que é Deus, que
se fez homem por nós e que desejou assemelharse em tudo a nós, fazendo-se
chamar Cordeiro de Deus, Filho de Deus.
CAPÍTULO VI CONTRA OS QUE PENSAM QUE „CRIANÇA‟ REPRESENTA UMA MARCA DA FRAQUEZA
NASCENTE DA NOSSA INSTRUÇÃO
Deve, sem dúvida, ser-nos permitido repreender aqueles que
repreendem os outros. Não somos chamados crianças porque nossa instrução ainda
é pueril e desprezível, como alegam caluniosamente aquele cuja ciência inspira
um orgulho insensato. No momento em que somos regenerados, recebemos aquela
perfeição à qual tendem todos os nossos esforços; rendemos a luz, isto é,
conhecemos a Deus. E não é imperfeito quem chegou a conhecer o mais perfeito
dos seres. Não me recrimineis se vos confesso conhecer a Deus; porque o próprio
Verbo disse: “Aquele que conhece a Deus é livre. No instante no qual o Senhor
recebia o Batismo, uma voz descia do Céu, e, rendendo testemunho ao amor que
Deus trazia consigo, disse: “Este é o meu filho amado, no qual tenho posto toda
a minha complacência” (Mat 3, 17)
Perguntemos então aos sábios: é o Cristo hoje regenerado já
perfeito ou, o que é o cúmulo da absurdidade. Falta-lhe alguma coisa? Levando
em consideração esta última hipótese, Ele deveria aprender alguma coisa;
contudo, é impossível que tenha que aprender alguma coisa, visto que é Deus.
Houve algo maior do que o Verbo? O Mestre por excelência teve necessidade de um
mestre? Ou, antes, nossos adversários não serão forçados a admitir, mesmo a
despeito deles, que o Verbo nascido de um Pai perfeito é Ele mesmo perfeito, e
que foi perfeitamente regenerado conforme uma ordem preexistente e misteriosa?
Por que então, se já era perfeito, foi batizado? Batizados, recebemos a luz
esclarecidos, somos feitos filhos de Deus; filhos de Deus, tornamo-nos
perfeitos, tornamo-nos imortais. Somos todos filhos do altíssimo, diz Ele. (Sl
81, 6) Diversos nomes distinguem essa operação divina e misteriosa. Chamamo-la
graça, iluminação, perfeição, batismo. Batismo, porque ela apaga e lava nossos
pecados; graça, porque ela nos redime das penas que nossos pecados merecem
iluminação, porque ela nos faz ver essa luz santa e salutar através da qual nos
apercebemos das coisas divinas; perfeição, porque nada falta a ela. Com efeito,
o que falta àquele que conhece a Deus? Não seria absurdo chamar de graça de
Deus uma graça que não fosse perfeita e completa? Um Deus perfeito pode
conceder-nos graças imperfeitas? Não. Como a criação de todas as coisas ocorreu
no instante mesmo em que Ele assim ordena, nós temos necessidade apenas da sua
vontade para receber a plena e inteira efusão de graças. Quando Deus age,
aquilo que parecia o tempo aos olhos dos homens desaparece diante d‟Ele pela força da sua volição. Ademais, o fim do mal é o começo da salvação. Nós, os cristãos, somos os únicos perfeitos desde o início (Batismo); vivemos assim que
somos separados do império da morte. A salvação consiste em seguir a Jesus Cristo,
pois quem está n‟Ele está na vida. “Em verdade, em verdade vos digo que
quem ouve a minha palavra, e crê n‟Aquele
que me enviou, tem a vida eterna, e não incorre na condenação, mas passou da
morte para a vida”. Ele passou da morte para a vida. Assim, a perfeição na vida
repousa sobre a fé e sobre a regeneração. Deus nunca é fraco e deficiente. Como
a sua vontade é a obra mesma das suas mãos e chama-se mundo, assim também é sua
vontade a salvação do homem, e chama-se Igreja. Ele conhece desde o início
aqueles que chamou e salvou, e eles foram chamados de salvos ao mesmo tempo.
“Vós mesmos aprendestes de Deus”, diz o apóstolo. Não seria ilícito pensar que
aqueles que Ele instrui permanecem imperfeitos? Aquilo que aprendemos d‟Ele é a salvação eterna que recebemos do nosso
salvador eterno, ao qual as graças devem ser dadas pelos
séculos. Amém. Somente devemos ser batizados – regenerados –
para que as trevas que nos cegam dissipem-se a luz de Deus nos ilumine. Somos
semelhantes àqueles que acabaram de despertar de um sono profundo ou, melhor,
àqueles que tentam livrar os olhos da catarata que os impede de receber a luz
exterior, da qual, se veem privados, mas, livrando-se ao fim do que obstruía
seus olhos, deixam livres suas pupilas. Assim o batismo, lavando-nos de nossos
pecados, que são como densas trevas, abre nossa alma ao Espírito Divino. O olho
do nosso espírito torna-se imediatamente claro e lúcido; o Espírito Santo desce
em nós e nós vemos claramente as coisas divinas. Somos capazes de perceber as
coisas a luz eterna. O semelhante procura seu semelhante; aquele que é santo ama
naturalmente Aquele que é a fonte de sua santidade e que recebe com propriedade
o nome de “luz”. “Porque noutro tempo éreis trevas, mas agora sois luz no
Senhor. Andai como filhos da luz”. (Ef 5, 8) É por isso, penso eu, que os
antigos gregos chamavam o homem de θωηα (phôtà), isto é, luz. No entanto, dizem eles, o
homem ainda não recebeu a
mais perfeita das graças. Eu também o admito; mas ele caminha na luz e
as trevas não impedem
que ele o faça. Não há nada entre a luz e a escuridão. A ressurreição é o fim último dos crentes; não se trata de outra coisa para eles
senão colher o
fruto da promessa. O fim e os meios têm, um e outro, uma época diferente, assim como o tempo e
a eternidade não são uma única e mesma coisa, não mais do que o luto e o gozo. É
verdade que um conduz ao outro, e que ambos têm por objeto um único Ser. Mas eu
diria que o desejo é a fé que preconiza o nascimento dos tempos, e que o gozo é
a posse da promessa que durará pelos séculos dos séculos. O próprio Senhor nos
revela a estabilidade do estado da salvação: “É a vontade de meu Pai que me
enviou é esta: que todo aquele que vê o Filho, e crê n‟Ele, tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei
no último dia” (Jo 6, 40) Somos perfeitos tanto
quanto podemos ser neste mundo, que Jesus Cristo chama de: “Último dia”, cuja
duração é subordinada à vontade do seu Criador. A fé é a perfeição da doutrina.
“O que crê no filho tem a vida eterna”, Se, portanto, a vida eterna é o prêmio
da fé, podemos dizer que há algo abaixo da possessão deste prêmio? A natureza
da fé é ser inteira e perfeita. Se qualquer coisa faltasse a ela, ela não seria
perfeita; a fé não pode ser nem frágil nem defeituosa. Ela não espera os crentes
em outro mundo; é neste que ela é recebida por todos, sem distinção, de modo
que será por termos crido primeiro neste mundo n‟Aquele que nos ressuscitará que seremos recompensados, a fim de
que se cumpra a palavra: “Faça-se segundo a vossa fé”.
A fé supõe necessariamente uma promessa, e a perfeição da
promessa é seu cumprimento. A luz dá o conhecimento, o conhecimento produz o
repouso, repouso eterno na qual a posse satisfaz e acaba o desejo. Assim como a
experiência é corrigida pela inexperiência e a dúvida é destruída pela certeza,
as trevas o são pela luz. As trevas são a ignorância que nos arrasta ao pecado,
fechando nossos olhos para a verdade; a luz é o conhecimento que dissipa a
ignorância é comunica-nos a faculdade de ver, pois ver e rejeitar o mal já é
conhecer o bem. A venda que a ignorância colocou sobre nossos olhos é arrancada
pelo conhecimento; os laços que nos prendem ao mal são desatados, por um lado,
pela fé do homem e, pelo outro, pela graça de Deus. O Batismo, como um remédio
soberano, cura todos os nossos pecados, sem exceção, fazendo-os desaparecer sem
deixar o menor traço. Ele chega, pela graça da iluminação que é derramada sobre
nós, de tal modo que já não somos mais os mesmos de antes de havê-lo recebido.
Se o conhecimento nos aparece ao mesmo tempo em que a iluminação; se a luz vem
sempre iluminar nosso espírito; se, de grosseiros e ignorantes que seríamos
imediatamente, nós merecermos, num instante, ser chamados de discípulos, isso é
efeito a instrução que recebemos? Seria difícil precisar quando isso ocorreu. A
instrução que recebemos pelos sentidos dos ouvidos conduz-nos à fé. A fé nos é
ensinada pelo Espírito Santo no instante em que recebemos o Batismo. Que a fé,
com efeito, é a salvação universal, e que a justiça e a bondade de Deus são
comunicadas igualmente a todos os homens, o apóstolo Paulo assegura-nos nestes
termos: “Antes que a fé viesse, estávamos debaixo da guarda da lei, encerrados
para aquela fé que havia de ser revelada” (Gal 3, 23) Assim, a lei foi nossa primeira
pedagoga em Jesus Cristo, a fim de que a fé nos justificasse. Vindo a fé, a lei
deixou de ser a nossa pedagoga. Vós não sabeis que não estamos mais sob o jugo
dessa lei severa que nos governava pelo medo, mas sim, sob a condução do Verbo,
que é o pedagogo do livre-arbítrio? O apóstolo acrescenta em seguida palavras
que nos fazem ver que Deus não faz distinção das pessoas: De fato, todos vós
sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo. Pois todos vós, que fostes
batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo. Não há judeu nem grego, não há
servo nem livre, não há homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Jesus
Cristo. (Gal 3, 26-28)
Não somente os verdadeiros gnósticos e aqueles que não têm
senão alegria junto ao Verbo, mas todos que rejeitaram seus desejos carnais são
iguais perante Deus e vivem no seu Espírito. O mesmo apóstolo escreve alhures:
“Porque num mesmo Espírito fomos batizados todos nós, para sermos um mesmo
corpo, sejamos judeus ou gentios, servos ou livres, e todos temos bebido em um
mesmo Espírito” (I Cor 12, 13) Contudo, não é fora de propósito utilizar as
mesmas palavras e o sentimento daqueles que desejam o retorno ao bem de que
este provém da purgação dos pecados da alma, de modo que regressar ao bem e
livrar-se do mal seriam a mesma coisa. Assim que um homem vira-se para o bem,
ele deve necessariamente arrepender-se do mal que fez; ele é então levado à
virtude pelo arrependimento. É assim que, tocados pleo arrependimento de nossas
faltas, renunciando ao pecado e às suas consequências desastrosas, somos
purificados pelo Batismo e corremos até a luz eterna, como ao seu Pai. É ainda
por isso que nosso Salvador dizia, transportado por uma alegria santa: “Graças
vos dou, Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque escondestes estas coisas aos
sábios e entendidos, e as revelastes aos pequeninos”. Deus nos chama de filho e
pequenos, pois estamos mais dispostos a caminhar rumo à salvação que os sábios
do mundo, estes falsos sábios, que, orgulhosos de sua sabedoria, cegam-se a si
mesmos com a fumaça do seu orgulho. Ele diz, então, num sentimento de viva
alegria, como se estivesse Ele próprio entre essas crianças queridas: “Sim, Pai,
porque assim foi do vosso agrado”. Por isso que aquilo que ocultou aos sábios e
prudentes do século, Ele o revelou às crianças. Somos, sem dúvida, filhos de
Deus; nós que, após termos nos despojado do homem velho, despido a túnica do
vício e revestido a incorruptibilidade de Jesus Cristo, a fim de nos tornarmos
um povo renovado e santo e conservarmos o homem puro e incorruptível,
regenerados e purificados da mancha do vício, como bebês de Deus. O apóstolo
São Paulo expôs essa questão em termos muito claros, quando disse, na sua
primeira carta aos Coríntios: “Irmãos, não sejais meninos no julgar, mas sede
pequeninos na malícia; e sede perfeitos no julgar”. E a expressão do mesmo
apóstolo, na qual ele faz alusão a si mesmo: “Quando eu era menino, falava como
menino, julgava como menino, discorria como menino” (I Cor 13, 11) Esta
mensagem expressa a sua conduta sob o jugo da antiga lei, enquanto suas
palavras e suas ações não eram aquelas de um homem simples, mas de um
insensato; enquanto ele perseguia os discípulos do Verbo, ele ultrajava o
próprio Verbo com injúrias e blasfêmias. É preciso observar aqui que a palavra
nêpios, que significa „criança‟,
pode ser tomada também no
sentido de „tolice‟ ou „insensatez‟. “Depois que eu cheguei a ser homem feito, dei de
mão às coisas que eram de menino” (I Cor 13, 11) O apóstolo não fala aqui de uma idade pouco avançada, nem do tempo que a natureza
fixou à vida do
homem; ele não faz alusão às ciências profundas e abstratas, as quais
apenas o homem pode atingir; ele igualmente não despreza a verdadeira infância, mas, ao contrário, anuncia o novo reino em todos os
seus escritos. Ele chama de crianças aqueles que, submissos à lei, são perturbados por medos vãos, como as
crianças o são pelas máscaras de teatro. Ele, ao contrário, chama-nos de homens
feitos, nós, mestres da nossa vontade, obedientes ao Verbo e crentes n‟Êle; nós que, salvos por escolha voluntária, não somos afetados por medos tolos, mas
por um medo de sábio e regrado. O apóstolo dá testemunho dessa verdade quando diz
que os judeus são herdeiros segundo o antigo testamento, e nós, segundo a promessa: Digo, pois,
que pelo tempo em que o herdeiro é menino, em nada difere do servo, ainda que seja
senhor de tudo. Mas está debaixo dos tutores e curadores, até o tempo
determinado por seu pai; assim também nós, quando éramos meninos, servíamos
debaixo dos rudimentos de mundo. Mas, quando veio o cumprimento do tempo, Deus
enviou seu Filho, concebido de mulher, concebido sujeito à lei,a fim de remir
aqueles que estavam debaixo da lei, para que recebêssemos adoção de filhos.
(Gal 4, 1-5)
Observai como ele chama de crianças aqueles que estão
submissos ao medo e ao pecado, e como ele chama de filhos àqueles que vivem sob
a fé, a fim de melhor distingui-los das crianças, que estão sob o jugo da lei.
Diz: “E assim já não és servo, mas filho. E se és filho, também és herdeiro por
Deus” Que falta então aos filhos herdeiros? Eis aqui a explicação que podemos
dar a essas palavras de São Paulo (que era judeu de nascimento) : “Quando eu
era menino, falava como menino, julgava como menino, discorria como menino. Mas
depois que eu cheguei a ser homem feito, dei de mão às coisas que eram de
menino” (I Cor 13, 11). Mas a infância , segundo Cristo, é a perfeição.
Devemos, portanto, defender aqui nossa infância contra a infância da ei; e aqui
devemos ainda dar a interpretação das seguintes palavras do mesmo apóstolo: “E
eu, irmãos, não vos pude falar como a espirituais, senão como a carnais, como a
pequeninos em Cristo. Leite vos dei a beber, não comida,
porque ainda não podíeis; e nem agora ainda o podeis, porque ainda sois
carnais”. (I Cor 3, 1-2) Não creio que seria preciso compreender essas palavras
de uma maneira judaica, e eu oporei aqui outras palavras da Escritura: “Desci
para livrá-los das mãos dos egípcios, e para fazê-los passar desta terra para
outra terra boa, e espaçosa; para uma terra onde correm arroios de leite e de
mel” (Ex 3, 8) Uma dúvida extrema nasce da comparação dessas duas passagens. Se
o começo da fé em Jesus Cristo é a infância caracterizada pelo leite, e se esta
infância deve ser desprezada como fútil e pueril, como é possível que o repouso
concedido, após o festim, ao homem perfeito e ao verdadeiro douto seja
simbolizado pelo leite, que não parece ser outra coisa senão o apoio da
infância? Nós poderíamos esclarecer as dificuldades dessas duas passagens lendo
a primeira da seguinte maneira: “Leite vos dei a beber”, e adiciona, após um
curto intervalo, “como às crianças”, a fim de que a separação que eu indico
leve-nos a esta interpretação: eu vos instruí em Jesus Cristo, eu fiz correr no
vosso espírito um alimento simples, natural, espiritual, tal como o leite, que
é o alimento dos animais, que jorra dos seios cheios de amor. Assim, podemos
entender a passagem do apóstolo de maneira seguinte: “Como as amas alimentam
com seu leite os recém-nascidos, assim também eu, com o Verbo, que é o leite de
Cristo, alimento-vos com um alimento espiritual”. O leite, portanto, é o mais
perfeito dos alimentos e aquele que nos conduz à vida eterna. Por isso, a
Escritura promete-nos o leite e o mel após a cessação das nossas fadigas. É com
justiça que o Senhor promete igualmente o leite aos justos, a fim de provar que
o Verbo é duas coisas ao mesmo tempo, o alfa e o ômega, o começo e o fim.
Parece que Homero adivinhou, sem intenção, essa natureza misteriosa do leite,
quando ele chama aos homens virtuosos de “seres que se alimentam de leite” (γαλακηοθάγοι – galaktofágoi). Podemos então tomar no mesmo sentido estas
palavras do mesmo apóstolo: “E eu, irmãos, não vos pude falar como a
espirituais, senão como a carnais, como a pequeninos em Cristo”. O apóstolo
entende por pessoas espirituais aqueles que já creem no Espírito Santo, e por pessoais
carnais os catecúmenos que não foram ainda purgados por seus antigos erros. Ele
os chama de carnais porque seus pensamentos, como o dos gentios, eram ainda
pensamentos carne. “Porquanto havendo entre vós zelos e contendas, não é assim
que sois carnais, e andais segundo o homem?” (I Cor 3, 3) Por isso o apóstolo
diz: “Leite vos dei a beber”, o que quer dizer: “Eu derramei em vós, pelas
minhas instruções, conhecimentos que vos servirão de alimentos para a vida
eterna” (1 Cor 3, 2). O leite
que ele os deu a beber é o símbolo da felicidade perfeita que
os espera. Deveras, os homens „bebem‟ e as crianças mamam: “O meu sangue verdadeiramente é bebida”. Quando o apóstolo diz que nos deu a beber do
leite, não é claro que ele deseja falar dessa
alegria perfeita, isto é, o conhecimento da verdade que encontramos no
verbo, que é nosso
leite, nosso alimento? Estas palavras que ele acrescenta: “não comida, porque ainda não podíeis”, podem significar, sob a figura de
um alimento mais resistente, essa grande revelação que terá lugar na vida
futura, quando veremos Deus face a face. “Nos”, diz o mesmo apóstolo, “agora
vemos a Deus como por um espelho em enigmas, mas então o veremos face a face”
(I Cor 13, 12) Prosseguindo com o mesmo assunto, ele acrescenta: “E nem ainda
agora podeis, porque ainda sois carnais. Porquanto havendo entre vós zelos e
contendas”, não seremos mais dominados pela carne, como pensaram alguns, mas
tendo uma face semelhante à dos anjos, veremos a promessa face a face”. Como,
então, se o cumprimento dessa promessa nos espera no fim da vida, podem eles se
gabar de saber que “o olho não viu, nem o ouvido ouviu, nem jamais veio ao
coração do homem”, já que tudo o que sabem aprenderam pelo ministério dos
homens em vez do ministério do Espírito Santo? Como compreenderiam esses
mistérios que não foram revelados senão àqueles que foram arrebatados ao
terceiro céu, mistérios impenetráveis que são cobertos de um profundo silêncio?
Mas se é a sabedoria humana que o fazem falar, e se é o único motivo que podem
nos dar, não poderíamos dizer que tem glórias vãs da sua ciência? Escutem a
regra que prescreve a Escritura: “Não se glorie o sábio no seu saber, nem se
glorie o forte na sua força, e não se glorie o rico nas suas riquezas; porém,
nisto se glorie aquele que se glóría em conhecer-me e em saber que eu sou o
Senhor” (Jer 9, 23-24) Nós, que somos instruídos pelo Senhor, nos gloriamos no
nome de Cristo. Como, então, não supor que o Apóstolo falou aqui do leite que
damos às crianças, já que somos os pastores que governam as Igrejas à imagem do
Bom Pastor, e que vós sois as ovelhas que nos foram confiadas? Dizendo que o
Senhor é o leite do rebanho, não dizemos alegoricamente que Ele é o guardião?
Mas voltemos novamente nosso espírito ao verdadeiro significado destas
palavras: “Leite vos dei a beber, não comida, porque ainda não podíeis”, isso
não significa que se trata de um tipo de alimento distinto do leite, que já é
um alimento mais substancial do que os outros. Pois o Verbo é por vezes doce e
fluido como o leite, por vezes compacto e sólido como os outros alimentos.
Podemos ainda comparar o leite à pregação da palavra divina, que corre e se
espalha por
todos os lados, e o alimento sólido à fé, que, auxiliada pela
instrução, torna-se o fundamento inabalável de todas as nossas ações. Por esse
alimento, nosso espírito transforma-se, por assim dizer, em um corpo firme e
sólido. Tal é o alimento do qual o Senhor nos fala no Evangelho segundo São
João, quando nos diz: “Comam da minha carne e bebam do meu sangue” (Jo 6, 53)
Este alimento é a imagem evidente da fé e da promessa. Através dessa bebida e
desse alimento, a Igreja, semelhante a um homem formado por diversos membros, é
regada e solidificada. Ela alimenta seu corpo e seu espírito: seu corpo, de fé;
seu espírito; de esperança. Ela, como o Senhor, também é constituída de carne e
sangue. A esperança é o sangue da fé, animando-a e fazendo-a viver no nosso espírito.
Destituída da esperança, a vida da fé seria como aquela de um homem que perde
seu sangue. Se alguém deseja dar sua opinião e disser que o Apóstolo, sob o
símbolo do leite, pensou falar das primeiras instruções, comparando-as à
primeira alimentação da alma, e que por alimentos sólidos ele se referia aos
conhecimentos espirituais que servem de degrau para alcançar uma ciência mais
alta, eles sabem, quando dizem que a carna e o sangue de Jesus Cristo são
alimentos sólidos, que essa ciência ilusória . Deveras, o sangue é a primeira
coisa feita no corpo do homem. Por isso mesmo é que alguns filósofos não temem
vê-lo como a essência do espírito. O sangue, após a mulher ter concebido, muda
de natureza por uma espécie de cocção: ele engrossa, descolore-se, perde vida.
O amor materno crê poder assegurar a existência da criança. O sangue é mais
fluído que a carne; pois ele é uma espécie de carne líquida, e o leite é a
parte mais doce e sutil do sangue. Contudo, somente o sangue transforma e
aumenta os seios, que então começam a inchar, por ordem de Deus, autor da
geração e que alimenta a todos. Ali, mudando de natureza, com o auxílio de um
doce calor, ele se transforma em um alimento muito agradável à criança. O leite
provém então do sangue. Partindo das numerosas veias que atravessam os seios em
todos os sentidos, o sangue se refugia no reservatório natural, onde se forma o
leite. Este sangue, agitado pelos espíritos vitais, embranquece, como
embranquecem as ondas do mar quando, perturbadas pelo sopro impetuoso dos
ventos, lançam sua espuma na orla. No entanto, a substância do sangue não muda.
É assim que a água dos rios, quando é arrebatada por uma corrente rápida e luta
contra os ventos, transforma-se na superfície em uma branca espuma que jorra
longe das suas margens. É assim que a saliva embranquece na nossa boca sob
influência do nosso hálito. Que haveria, então, de extraordinário em afirmar
que o sangue pode tomar essa
cor magnífica devido ao calor interior? O leite não muda de
substância, mas de qualidade; e certamente vós não encontrareis alimento que
seja mais nutritivo, mais doce e mais branco do que o leite. Portanto, o leite
é em tudo semelhante ao alimento espiritual, que é doce como a graça, nutritivo
como a vida, branco como o Cristo. Nós já provamos que o sangue do verbo possui
todas as propriedades do leite; aquele alimenta a alma, e este dá a vida. O
Cristo oferece-nos seu sangue da mesma maneira como o leite é fornecido à
criança após seu nascimento. Os seios, que se mantêm direitos e firmes, parece
que são instruídos a apresentar um alimento fácil de tomar, alimento elaborado
previamente pela natureza. É assim que o fiel tira o leite da salvação. Os
seios não são naturalmente cheios de leite, como uma fonte que está repleta de
água; eles possuem as disposições necessárias para transformar os alimentos em
leite e para destilá-lo. Deus, que é o Pai e provedor de todos os seres
engendrados e regenerados, prepara com suas próprias mãos o alimento mais
conveniente ao recém-nascido; como o maná, alimento celeste dos homens, foi
derramado do alto do céu pelos antigos hebreus. Sem dúvida, daí vem que as amas
chamam de maná o primeiro leite que escapa de seu seio. De mais a mais, as
mulheres grávidas quando se tornam mães, produzem naturalmente o leite. Nosso
Senhor Jesus Cristo, o Filho de uma Virgem, não diz que os seios das mulheres
sejam afortunados; ele não tira daí sua subsistência. Mas enviado do alto do
céu por um pai pleno de bondade e de amor pelos homens, Ele se dá a si mesmo
aos homens sábios, como um alimento espiritual. Ó milagre místico! Há somente
um Pai, um verbo, um Espírito Santo, este Deus único que é o Pai de todos os
seres e está presente em toda parte. Há somente uma mãe que é virgem, e é a
Igreja, a qual eu amo a ponto de honrá-la com o doce nome de mãe. É a única mãe
que não teve leite, pois é a única que não foi mulher. Ela é ao mesmo tempo
virgem e mãe, pura como uma virgem e terna como uma mãe. Ela chama e reúne ao
seu redor seus filhos, que alimenta com o leite da sua palavra; ela não teve
leite porque o corpo de Jesus Cristo é o alimento que ela dá aos seus filhos, a
essa gente nova que os sofrimentos do Senhor criaram, e das quais ele mesmo envolveu
o corpo nascente e levou-o com seu precioso sangue. Ó Santo! Ó Santo Admirável!
O verbo é tudo para essa criatura: Pai, mãe, pedagogo, ama. “Comam da minha
carne”, disse-nos Ele, e “bebam do meu sangue”. Eis os alimentos requintados
que o Senhor nos dá: Ele nos oferece sua carne e verte seu sangue, a fim de que
seus filhos não sintam falta de nada para se nutrir e crescer. Ó mistério que
supera a razão! Ele ordena que nos despojemos do homem carnal e
corrompido, ordena que nos abstenhamos dos velhos alimentos,
a fim de que, participando da nova alimentação que Ele nos preparou, e
recebendo Ele próprio, nosso Pai e Salvador, no nosso seio, possamos, pela sua
presença, purificar nossa alma das paixões! Desejais desses mistérios uma
explicação menos sábia e mais comum? Escutai, então, o que vou dizer: o
Espírito Santo que criou a carne do salvador, é o símbolo da carne; o sangue
designa o Verbo, pois o Verbo espalha-se sobre a vida como um sangue rico e fecundo,
o Senhor é a reunião do Verbo e do Espírito. O Senhor, que é tanto Espírito
como Verbo, é o alimento das crianças. Este alimento é Nosso Senhor Jesus
Cristo; este alimento é o verbo de Deus; este alimento é o Espírito feito
carne, a carne celeste santificada, o leite do Pai, o único alimento dos
filhos; o verbo, que é nosso amigo e nosso provedor, e cujo sangue verteu por
nós; o salvador da humanidade, por quem nós cremos em Deus, por quem nós
corremos a beber no seio do Pai, onde o leite faz-nos esquecer nossas
dificuldades. Eis porquê o apóstolo São Pedro diz: “Deixai, pois, toda malícia,
todo o engano, fingimento e inveja, e toda a sorte de detrações. Como meninos
recém-nascidos, desejai o leite espiritual com todo o ardor, para com ele
crescerdes para a salvação. Se é que haveis de provado quão doce é o Senhor”.
Nossos adversários afirmam que o leite não é um alimento sólido? É fácil
provar-lhes que estão enganados e que não estudaram bem as operações
misteriosas da natureza. Quando o inverno estreita os poros do corpo e não
deixa saída ao calor interior, os alimentos bem digeridos trazem às veias uma
grande abundância de sangue, pois o corpo nada perde pela transpiração. Por
isso, as amas têm mais leite nessa estação do em qualquer outra. Já demonstramos
que o sangue transforma-se em leite nas mulheres grávidas, sem que essa
transformação altere em nada a substância daquele. É como ocorre com a
cabeleira dos velhos, que antes loira, torna-se branca. Durante o verão, ao
contrário, estando os poros mais abertos, os alimentos são digeridos mais
rapidamente; também é o leite menos abundantes, assim como o sangue, pois não
se assimila todo o alimento. Se os alimentos preparados com o calor natural
transformaram-se em sangue, e se o sangue converte-se em leite, não podemos
negar que aquele seja matéria-prima deste, como a vinha e do vinho; somos
alimentados com leite desde o nosso nascimento. Mal somos regenerados, já somos
embalados pela esperança do repouso eterno e da Jerusalém celeste que nos foi
anunciada, donde manam o mel e o leite, conforme a Escritura, que são os
símbolos materiais do alimento espiritual que ali nos é preparado. Já que o
Verbo é a fonte eterna da vida, recebendo também o nome de rio de azeite, não
é sem razão que São Paulo, para continuar a alegoria, chama-o
de leite, alimento que ele nos dá a beber e que nos conduz à salvação,
fazendo-nos cidadãos do Céu e incorporando-nos ao coro dos anjos. Por isso, diz
o Apóstolo: “Leite vos dei a beber”. (I Cor 6, 13) Do Verbo se bebe; o Verbo,
alimenta da verdade. A bebida é certamente um alimento líquido; a mesma
substância pode ser bebida ou comida, conforme as diversas maneiras de
considerá-la: o leite condensado serve de alimento; já o leite líquido serve de
bebida. Não desejo presentemente procurar outros exemplos; me é suficiente
dizer que a mesma substância pode fornecer duas espécies de alimento. O leite
sozinho já é suficiente para alimentar as crianças pequenas: é sua carne e sua
bebida. “Eu tenho para comer um manjar, que vós não conheceis”, disse Jesus, e
“a minha comida é fazer eu a vontade d‟Aquele que me enviou, para cumprir a sua obra”. Eis aqui, então, outra espécie de alimento, alegórica como leite: a vontade de Deus.
Ele também deu o nome
de cálice aos
sofrimentos destinados à sua paixão; deste cálice amargo somente Ele deveria
beber até o final. Desse modo, o alimento de Jesus Cristo seria o cumprimento
da vontade do Pai, enquanto que, para nós, pequenos, Cristo é nosso alimento.
Os gregos servem-se de uma palavra, masnusai, para exprimir a ação de uma
criança, que procura de sua mãe. Somos semelhantes a essas crianças, quando
procuramos o leite do verbo, cuja ternura por nós é inesgotável. Enfim, o
próprio Verbo declara que Ele é o Pão do Céu: Nossos pais comeram o maná no
deserto, segundo o que está escrito: Ele lhes deu a comer o pão do Céu. E Jesus
lhes respondeu: Em verdade, em verdade vos digo: Moisés não vos deu o pão do
céu, mas meu Pai é quem vos dá o verdadeiro Pão do Céu. Eu sou o pão vivo, que
desceu do céu. (Jo 6, 1-33)
Observemos aqui o mistério deste pão que Jesus Cristo chama
de sua carne. Como um grão de trigo germina até tornar-se espiga, do mesmo modo
a carne sairá do túmulo. Ela será igualmente que cobrirá a Igreja de alegria,
como o trigo, quando ele é transformado em pão pelo cozimento. Mas trataremos
mais abertamente dessa matéria no livro sobre a Ressurreição. O Senhor disse: O
pão, que eu darei, é a minha carne,”, (Jo 6, 52) carne esta que é irrigada pelo
sangue, o qual designamos alegoricamente de vinho. Como é sabido, o
pão, cortado em pequenos pedaços e mergulhado em uma mistura
de água e vinho, absorve este, mas não a água. Assim também a carne do Senhor,
que é o Pão dos Céus, absorve o sangue, tornando incorruptíveis aqueles que
aspiram à salvação, e abandonando à corrupção as paixões carnais. O verbo é
representado por diversas alegorias: a carne, pão, sangue, leite, tudo o que
alimenta; o Senhor se dá a nós, que cremos n‟Ele, sob todas as formas, para nos fazer d‟Ele gozar. Não me censureis por dar o nome de
leite ao sangue de Nosso Senhor, já que a Escritura também dá a Ele o nome de
vinho: “Lavará a sua túnica no vinho, e a sua capa no sangue da uva. (Gen 49,
11) Ele afirma que adornará com seu sangue quem está unido ao verbo, assim como
Ele alimentará aqueles que têm fome do Verbo. Que o sangue cria o Verbo, ou a
palavra, é provado pelo sangue de Abel, que clama por Deus. O sangue não
emitiria sons se ele não fosse o verbo. Aquele justo antigo, Abel, é a imagem e
o tipo do novo justo; o antigo sangue que clama por vingança, clama por
vingança pelo novo. O sangue, que é o verbo, interpela a Deus para indicar os
sofrimentos futuros do Verbo. Contudo, a carne e o sangue que há nela
reanimam-se e crescem com o leite, por uma espécie de amoroso reconhecimento. A
formação da criança dá-se no ventre da mãe, a partir da união do sêmen do homem
com o sangue da mulher, após a purificação menstrual. O sêmen tem a faculdade
de reunir o sangue em glóbulos ao seu redor, assim como o coalho coalha,
tornando o corpo da criança nem muito frio, nem muito quente; uma temperatura
amena geralmente é produtiva, já as temperaturas extremas podem causar a
esterilidade. É assim que a semente apodrece na terra excessivamente
umedecida, e murcha na terra excessivamente seca. Ao
contrário, uma terra viscosa, nem muito úmida, nem muito firme, conserva a
semente e a faz crescer. Alguns naturalistas afirmam que o sêmen dos animais é,
em substância, a espuma do seu sangue. Diógenes, de Apolônia, igualmente chamou
essas operações de αθροδιζια
(afrodisia), palavra que significa “proveniente da espuma”. Está claro, então, depois do que dissemos, que o
sangue é a substância, o principio essencial, do corpo
humano. Primeiramente, o sangue depositado no útero é uma espécie de substância
úmida e leitosa. Esta substância compacta-se e faz-se carne, tornando-se
embrião e tomando vida. Esse mesmo sangue alimenta a criança depois do parto,
dado que o fluxo do leite é produto do sangue, e o leite é a fonte de alimento
para a criança. É isso também é isso também que nos faz reconhecer que uma
mulher é verdadeiramente mãe e o princípio da ternura natural que ela tem por
seus filhos. É por isso que o Espírito Santo afirma, misticamente, através do
apóstolo, servindo-se da linguagem do Senhor: “Leite vos dei a beber”. Se com
efeito, somos regenerados em Cristo, Aquele que nos regenerou alimentou-nos do
leite que é Ele próprio, isto é, sua palavra. É justo que aquele que dá a vida
tome logo o cuidado de nutrir a criança à qual a vida foi dada. Como essa
regeneração é totalmente espiritual, é preciso que o alimento também o seja.
Nós estamos intimamente unidos a Jesus Cristo; primeiramente, somos seus filhos
e seus aliados por seu sangue, do qual Ele se serviu para a nossa redenção;
simpatizamos com Ele pela palavra com a qual Ele nos nutre; enfim, seremos
incorruptíveis se desejarmos seguir suas instituições. É frequente que as amas
tenham pelas crianças que lhes são confiadas um amor mais vivo e terno do que
as verdadeiras mães destes pequenos. Esse sangue, portanto, que tem a mesma
substância que o leite, é o símbolo da paixão e da doutrina de Jesus Cristo.
Assim, cada um de nós está no direito de se gloriar por ser Filho de Deus, e de
exclamar: “Eu me glorio de ser filho de um bom Pai e de um sangue ilustre”.
(lliada, XXI, 109; XX 241). É evidente que o leite se forma de sangue, como já
demonstramos. O leite que vem das vacas e das ovelhas é ainda outra prova. Com
efeito, esses animais, durante a primavera, estação na qual o ar é úmido e na
qual as ervas que os alimentam são mais suculentas, enchem-se primeiramente de
sangue, como podemos ver pela espessura das veias das suas mamas. Essa abundância
de sangue produz, então, uma grande abundância de leite. Ao contrário, no
verão, seu sangue endurece e seca com o calor, produzindo pouco leite. Há uma
grande afinidade natural entre o leite e a água, como a que existe entre o
alimento espiritual e o Batismo espiritual. Aqueles que adicionam um pouco de
água fria no leite beneficiam-se em seguida de notórios resultados. Essa
afinidade existente entre a água e o leite não permite que este último azede,
devido à simpatia que esses dois líquidos tem entre si. O Verbo e o Batismo tem
entre si a mesma afinidade que o leite e a água. O leite, que dentre todos os
líquidos é o que melhor suporta a mistura com a água, purifica o corpo do
homem, assim como o Batismo purifica a alma pela remissão dos pecados. Misturamos
também o leite e o mel, sendo esta mistura um alimento agradável para o corpo
ao mesmo tempo em que o purga. O Verbo, a palavra adoçada pelo amor dos homens,
cura-nos, de uma vez, de nossas paixões e purga-nos de nossos vícios. Estas
palavras, “sua voz fluía mais doce que o mel” (Ilíada, I, 249), parecem-me
poder ser aplicada ao Verbo, que é o mel. Os profetas, em milhares de
passagens, exaltam a doçura do Verbo, acima daquela do favo de mel. Mistura-se
ainda, às vezes, o leite ao vinho doce. Esta mistura é bastante salutar para o
corpo: ela é a imagem das paixões corrigidas pela união com a pureza. O vinho
atrai o soro do leite e todos os corpos estranhos que podem corrompê-lo e
alterá-lo. Esta é também a união espiritual da fé com o homem, que é sujeito às
paixões; ela sufoca a maldade das suas concupiscências carnais, conduz o homem
à eternidade e o faz partilhar da imortalidade de Deus. Igualmente, muitos se
utiliza da gordura do leite, que chamamos de manteiga, para alimentar o fogo de
suas lamparinas. Esta é ainda uma alegoria que representa a misericórdia
infinita do Verbo luminoso, que, sozinho, faz crer e ilumina seus filhos. Por
isso, a Escritura diz do Senhor: “Ele o estabeleceu sobre uma terra alta, para
que comece os frutos do campo, para que chupasse o mel que saía da pedra, e
gostasse do azeite que se dava nos mais duros rochedos. Da manteiga das vacas,
e do leite das ovelhas, com a gordura dos cordeiros, e dos carneiros” (Dt 332,
13-14). Um outro profeta, falando sobre o nascimento do Filho de Deus, disse:
“Ele comerá manteiga e mel” (Is 7, 15) Eu frequentemente me surpreendo a
admirar a audácia daqueles que não temem ver-se a si mesmos como perfeitos e
verdadeiros gnósticos, que estão inflados pela sua ciência vã e que têm em si
próprios uma opinião demasiadamente alta, que o próprio São Paulo não tinha
dele mesmo. Vejam, como efeito, o que diz o apóstolo, falando da fé: Não que
tenha eu já alcançado, ou que seja já perfeito; mas eu prossigo, para ver se de
algum modo poderei alcançar aquilo, para o que eu também fui tomado por Jesus
Cristo. Irmãos, eu não julgo havê-lo já alcançado. Mas ante o que agora faço, é
que esquecendo-me por certo do que fica para trás, e avançando-me ao que resta
para o diante, prossigo segundo o fim proposto ao prêmio da soberana vocação de
Deus em Jesus Cristo. (Fil 3, 12-14)
O apóstolo não se crê perfeito senão por ter renunciado à sua
antiga vida em busca de uma mulher; ele não se vangloria de ter conhecimentos
perfeitos, mas, sim, deseja a perfeição. Eis por que ele acrescenta: “E assim
todos os que somos perfeitos vivamos nestes sentimentos” (Fil 33, 15) dando-nos
assim a entender que a perfeição
consiste em renunciar ao pecado e em ser regenerado na lei do
Único que é perfeito, para marchar em uma via perfeita, diferente daquela que
deixamos.
Capítulo VII QUEM É NOSSO PEDAGOGO E QUAL É A SUA PEDAGOGIA
Após haver demonstrado que somos todos chamados de filhos
pela Sagrada Escritura; que este nome foi dado principalmente por alegoria
àqueles que seguem os passos de Jesus Cristo; que somente Deus, o Pai do
Universo, é perfeito; que o Filho está n‟Ele e o Pai está no Filho; diremos agora, para seguir
uma ordem metódica, quem é nosso pedagogo. Seu nome é Jesus, mas Ele mesmo,
frequentemente, chama-se de „Pastor‟:
“Eu sou o Bom
Pastor”, metáfora tomada dos pastores que conduzem
seus rebanhos. Aquele que conduz as crianças deve ser visto como um pedagogo: é
um pastor que governa as crianças. Estas devem ser comparadas às ovelhas por
sua simplicidade. “Haverá um só rebanho, e um só pastor”, diz o Senhor. O Verbo
é chamado, com razão, de Pedagogo, pois Ele nos conduz – nós, que somos seus
filhos – à salvação. É evidente que é d‟Ele mesmo que Ele fala, quando fala pela boca de
Oseias: “Eu, porém, sou o mestre de todos eles” (Os 5, 2) A religião é uma instituição que ensina o culto ao divino e que
nos conduz à verdade. É uma regra um método de vida que nos
faz chegar ao Céu. A palavra „instrução‟ (pedagogia) é tomada em muitos sentidos. É a ação daquele que é dirigido e instruído, assim como daquele que dirige e
instrui. Essa palavra também é tomada no sentido de conduta e, enfim, das
coisas ensinadas, tais como os mandamentos. A instituição divina é uma direção que a própria verdade nos receita, para
conduzir-nos à contemplação de Deus. É um modelo de ações santas que ela coloca
incessantemente diante dos nossos olhos, para nos fazer perseverar na justiça.
Do mesmo modo como um bom general governa sabiamente sua falange e cuida da
vida de cada um de seus soldados, do mesmo modo como um piloto sábio dirige o
leme de seu navio de maneira a salvar a todos os que lá estão; assim o
Verbo Pedagogo, cheio de solicitude para com seus filhos, conduz estes por uma
rota que assegurará sua salvação. Em uma palavra, tudo aquilo que pedimos
sensatamente a Deus nos será concedido se obedecermos ao pedagogo. Assim como o
piloto não cede sempre aos ventos, mas luta e resiste a eles, opondo a proa do
seu navio à violência da tempestade, o Pedagogo também não cede jamais ao sopro
inconstante das leis deste mundo, e tampouco expõe seu filho ao choque violento
e brutal das paixões, do mesmo modo como o piloto não conduz seu navio para
colidir com os rochedos. Mas Ele abre as asas somente ao vento próspero da
verdade, segurando com firmeza o leme de seu filho; pode-se dizer que o Senhor
apodera-se dos ouvidos de seus filhos para que a mentira nunca penetre ali, e
os conduz sãos e salvos até o feliz porto do Reino dos Céus. Aqueles costumes
que são chamados de ancestrais passam rapidamente; as instituições divinas
duram por toda a eternidade. Acredita-se que Fênix foi o preceptor de Aquiles,
e Adrasto, dos filhos de Creso. Alexandre teve por preceptor Leônidas, e
Felipe, Nausínoo. Mas Fênix ardia em amor insensato pelas mulheres. Os crimes
de Adrasto fizeram com que ele fosse banido. Leônidas não pode abafar a
arrogância macedônia do coração de Alexandre, nem Nausínoo curar Felipe do
vício da bebida. O trácio Zópiro não reprimiu a luxúria de Alcebíades. Zópiro
foi comprado como escravo; os filhos de Temístocles tinham por preceptor
Siquimo, escravo frívolo e efeminado, inventor de uma dança à qual os gregos
deram seu nome. Ninguém ignora que os reis da Pérsia confiavam à educação de
seus filhos a quatro homens, escolhidos entre os mais distintos da nação, e
chamados de instrutores reais; mas os filhos dos reis persas aprendiam somente
o manejo do arco, e, mal chegando à puberdade, entregavam-se a todo tipo de
atividade sexual com suas irmãs, mães, e uma infinidade de mulheres que eles
reúnem em seus palácios, sob o nome de esposas concubinas. Mas nosso Pedagogo é
Jesus, Deus Santo, o Verbo, Chefe supremo de toda a humanidade, cheio de doçura
e clemência. É d‟Ele que o Espírito Santo fala no Cântico: Ele o achou numa terra
deserta, num lugar horroroso, e numa vasta solidão. Ele o conduziu por diversos
caminhos, e o ensinou; e o guardou como a menina dos seus olhos. Como uma águia provoca seus filhos a voar, e de
contínuo voa
sobre eles, assim o Senhor estendeu as suas asas sobre o seu povo, e o tomou, e
o levou sobre seus ombros.
O Senhor somente foi o seu condutor, não era com Ele, deus
algum estranho. (Deut 32, 10-12)
Estas palavras da Escritura fazem, parece-me, conhecer nosso
Pedagogo e o modo pelo qual Ele nos conduz. Ele mesmo confessa que é
efetivamente nosso Pedagogo quando afirma da sua própria boca: “Eu sou o
Senhor, teu Deus, que os tirei da terra do Egito” (Ex 29, 46) Quem, portanto,
tem o poder de fazer entrar e fazer sair? Não é o Pedagogo? Ele apareceu a
Abrão e disse-lhe: “Eu sou o Deus Todo-Poderoso; anda em minha presença e serás
perfeito” (Gen 17, 1) Em seguida, dá a ele os melhores conselhos que um Pedagogo
pode dar a uma criança que lhe é querida: “Eu farei aliança contigo, e te
multiplicarei infinitamente” (Gen 17, 1) Estas palavras são o sinal de uma
amizade benevolente e protetora. É evidente que Ele também foi o mestre e
pedagogo de Jacó: “Eu serei o teu condutor por toda a parte por onde fores; e
eu tornarei a te trazer a este país; e não te deixarei, a menos que não tenhas
executado tudo o que te prometi” (Gen 28, 15) Este era o pedagogo que
influenciava e sofria, que instruía seu aluno, ensinandoo a defender-se e
repelir os ataques do maligno. As palavras seguintes deixam claro que era o
Verbo, o pedagogo do gênero humano, o adversário de Jacó: “Fez Jacó esta
pergunta: „Dize-me como te chamas tu?‟. ” Mas ele respondeu: “Por que me perguntas tu o meu nome?” (Gn 32, 29) Deus, que ainda não se havia feito homem, não tinha nome: “Pôs Jacó àquele lugar o nome de Fanuel,
dizendo: Eu vi a Deus face a face, e a minha alma foi salva” (Gen 32, 31) O Verbo é a face de Deus, por meio da qual Ele
se faz visível e é
conhecido. Foi então que Jacó foi apelidado de Israel, quando viu o Senhor, seu
Deus. O mesmo Deus, o verbo diz a ele muito depois: “Não temas: vai para o
Egito”. (Gen 46, 1) Vede como o pedagogo sempre acompanha o homem justo,
incita-o ao combate e ensina-o a vencer seu inimigo! É Ele também que dá a
Moisés tudo o que é necessário para que este sustente bem o ofício do pedagogo.
O Senhor diz: “Eu apagarei do meu livro aquele que pecar contra mim. Tu, porém,
vai e conduze o povo ao lugar que eu te indiquei”. (Ex 32, 33-34) O Senhor era,
na pessoa de Moisés, o pedagogo dos povos antigos; mas Ele próprio foi, face a
face, o Guia do novo povo. O Senhor diz a Moisés: “O meu anjo irá adiante de
ti” (Ex 32, 24) Este anjo representa o poder evangélico como Verbo, sua
autoridade e dignidade como Deus. “Quando chegar o dia das contas”,
afirma o Senhor, “visitarei eu este pecado que ele cometeu”. Isto é, “no dia em
que eu aparecer como Juiz, medirei o castigo de acordo com a ofensa”. Deveras,
o Verbo é nosso pedagogo e nosso juiz ao mesmo tempo; Ele juga e pune aqueles
que desobedecem, mas, cheio de uma bondade terna, Ele não se cala para seus
pecados; ao contrário, Ele os mostra e censura-os, a fim de exortá-los a fazer
penitência: “Eu não quero a morte do que morre, diz o Senhor Deus;
convertei-vos e viverei” (Ez 18, 23-32; 33-11) Deus os ameaça para nos
instruir, mostrando o castigo para nos separar do pecado. Quais crimes eles não
cometeram? Na sua cólera eles massacraram os homens e mutilaram os animais.
Cólera horrível e abominável! Qual mestre é, portanto, mais doce e mais humano
do que o Verbo era o motor da lei antiga, enquanto que o amor é o motor da
nova; e o temor transformou-se em amor. O Verbo era firme em fazer guardar a
lei; mas hoje Ele é o doce, o terno Jesus que nos ensina o amor. Ele disse
outrora: “Teme o Senhor teu Deus” (Deut 6,2; 110, 20). Mas agora nos exorta:
“Amarás ao Senhor teu Deus” (Mat 22, 37) Eis, portanto, suas novas ordens:
“Cessai de obrar perversamente, aprendei a fazer o bem” (Mc 12, 30); “Tende
amor à justiça e detestai a iniquidade” (Luc 10, 27) Esta nova aliança é uma
continuação da antiga. Não a rejeitemos por sua novidade. “Não digais: „Sou um
menino‟, porquanto a todos a quem eu te
enviar, irás; e tudo o
que eu te ordenar; falarás; antes que eu te formasse no ventre de tua mãe; eu te conheci” (Jer 1, 5-7)
Declarou o Senhor em Jeremias. Esta profecia, aplicada ao homem, pode
significar que Deus via e conhecia seus fiéis, antes da criação do mundo, os
seus eleitos, que são chamados seus filhos, pois, chamados à salvação, cumpriram
sua vontade. O Espírito Santo acrescenta: “Eu te santifiquei, e te estabeleci
profeta entre as nações” (Jer 1, 5) A lei é a antiga graça que o Verbo deu aos
homens pelo ministério de Moisés. Observemos a maneira pela qual a Escritura
exprime-se sobre este assunto: “A lei foi dada por meio de Moisés”, isto é,
pelo Verbo, do qual Moisés era o servidor e o enviado; eis porque a dor durou
pouco tempo. Contudo, “a graça e a verdade vem a nós diretamente de Jesus
Cristo” (Jo 1, 3); eis porque a nova graça é eterna; não dizemos que ela foi
dada pelo verbo, mas sim que foi trazida por Jesus Cristo, sem a qual, nada
poderia ser feito. Moisés, animado por um espírito profético, vê o Verbo no
futuro, e, cedendo à sua perfeição, exorta o povo a obedecer fielmente aos
preceitos deste novo Guia: “O Senhor teu Deus te suscitará um profeta, como eu,
da tua nação e dentre teus irmãos” (Deut 18, 15) Moisés fala aqui de Josué,
mas sabemos que Josué é, na Escritura, a figura de Jesus Cristo. Ele dá ao povo
os conselhos que sabe que serão úteis: “O que não quiser ouvir as suas
palavras, que ele falar em meu nome, eu me vingarei dele” (Deut 18, 19) Esta
profecia ensina-nos o nome do nosso divino pedagogo e nos mostra a sua
autoridade. Ela coloca nas suas mãos as marcas da sua sabedoria, do seu império
e do seu poder. Aqueles que o Verbo não curar pela persuasão serão ameaçados;
aqueles que as ameaças não curarem serão castigados; os incorrigíveis, mesmo
pelo castigo, serão consumidos pelo fogo do inferno. “E sairá uma vara do
tronco de Jessé” (Is 11, 1) Esta vara é o pedagogo, cheio de sabedoria, doçura
e autoridade. Ele não julgará, conforme os discursos e opiniões vãs dos homens,
mas restituirá a justiça ao humilde e confundirá os orgulhosos. E pela boca de
Davi, declara: “Castigou-me severamente o Senhor, mas não me entregou à morte”
(Sal 117, 8) Ser castigado pelo Senhor é ser instruído pelo Pedagogo, é ser
libertado da morte. O mesmo profeta declara ainda: “Serão governados com cetro
de ferro” (Sl 1, 9) É o mesmo pensamento do qual trata o apóstolo, quando
afirma aos Coríntios: “Que quereis? Irei a vós com vara, ou com caridade e espírito
de mansidão?” (I Cor 4, 21) Davi afirma ainda: “De Sião estenderá o Senhor o
cetro de tua potência: „Domine entre os teus inimigos‟ ” (Sal 109, 2) O mesmo profeta declara em outra
parte: “Vosso cajado
e vosso báculo são meu conforto” (Sal 22, 4) O poder do Pedagogo é,
portanto, como podeis ver, um poder firme, venerável, consolador e salvador.
Capítulo VIII CONTRA AQUELES QUE CREEM QUE O JUSTO NÃO É BOM
Temos agora que combater outra espécie de adversários, que
sustentam que o medo e as ameaças não combinam com a bondade de Deus. Eles não
compreendem estas palavras da Escritura: “Aquele que teme a Deus converter-se-á
do fundo do seu coração” (Eclo 21, 7) Além disso, eles se esquecem que, por
excesso de amor, o Senhor fez-se homem para nos salvar. Quando o profeta se
dirige a Ele, com
abandono, esta prece cheia de tristeza: “Ele sabe do que
somos feitos: tem presente que não passamos de pó” (Sal 102, 14), é como se
dissesse: “Tende piedade de nós, vós que conheceis por experiência própria a
debilidade da carne” (Heb 4, 15) Como, então, acusar nosso bom e divino
pedagogo de não nos amar, Ele que, por excesso de clemência e amor, sofre com
os sofrimentos de cada um de nós? “Vós amais todas as coisas que existem, e não
desprezais nada de quanto fizestes, pois nenhuma delas estabelecestes ou
fizestes desprezando-a” (Sab 11, 25) Deus não pode odiar uma coisa e querer ao
mesmo tempo sua existência; tampouco pode querer que não exista algo e ao mesmo
tempo fazer com que aquilo exista; somente sua aversão é suficiente para isso.
Nada que Ele deseja que não exista existe. Isto que eu disse de Deus, digo
também do Verbo, pois o Verbo e Deus são somente um. Ele mesmo declarou: “No
princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (Jo 1, 1)
Deus não odeia nenhuma de suas criaturas; Ele as ama todas, principalmente o
homem, a mais nobre que saiu das mãos, a única que é capaz de conhecê-lo, de
amá-lo e de servi-lo. O homem é o objeto do amor de Deus e, consequentemente,
do Verbo. Aquele que ama esforça-se para ser útil ao objeto amado; aquele que é
útil é preferível àquele que não o é. Nada é preferível àquilo que é bom, e
aquilo que é bom é útil. Deus é bom, portanto, Deus é útil, e sua bondade, que
se comunica naturalmente, é nos útil em todas as coisas. Deus não nos é apenas
útil, Ele ainda cuida de nós; e Ele não apenas cuida de nós, como também nos
serve com a mais terna solicitude. Essa solicitude terna prova que Ele nos
socorre voluntariamente e com alegria; mas o fato de Ele nos ter enviado o
Verbo é ainda melhor prova de que tem pelos homens a mesma benevolência do Pai.
Nem Deus, nem a justiça são bens devidos a alguma virtude que haja neles; Deus
é bom porque Ele é a própria bondade; a justiça é boa porque é da sua natureza
o ser. Ela não é agradável, ela é útil, pois ela não concede favores, mas dá
tudo por méritos. Mas afirmam nossos adversários, se Deus é bom e ama os
homens, donde vem a sua irritação para com eles e sua punição? É necessário
tocar nesse ponto, ainda que muito brevemente. Esta explicação não será um
socorro fraco aos filhos. As paixões cedem frequentemente ao rigor e à
severidade dos preceitos; elas morrem diante do medo dos suplícios. As
reprimendas são ao espírito o que a cirurgia é ao corpo; elas curam até a
paixões mais inveteradas; elas purificam nosso espírito das manchas de uma
vida
impudica e licenciosa; elas cortam as carnes do orgulho, assim como os
instrumentos cirúrgicos cortam as carnes doentes do nosso corpo; elas nos levam
assim, à santidade e nos conduzem à salvação. Um general do exército que pune
os crimes dos seus subordinados, seja pela multa, seja pela prisão, ou, às
vezes, pelo suplício último, tem a intenção de corrigir através dessas punições
exemplares aqueles que as testemunham. Assim também é o verbo, que é como o Rei
e General de todo o Universo; Ele se esforça para levar até diante de Si,
através de exemplos ameaçadores , aqueles distanciados pelas paixões; Ele nada
esquece para levá-los à obediência, para livrá-los da escravatura, para
fazê-los vencer seu inimigo e entrar na estadia tranquila da paz eterna. Do
mesmo modo como persuade, exorta e consola, Ele também louva a reprimenda e a
censura, que são antes um sinal de bondade e de benevolência, e não de aversão
ou de ódio. Deus, portanto, não odeia os homens porque os ameaça, já que,
podendo justamente perdê-los, Ele morreu para os salvar. Ele utiliza a ameaça
como um chicote para despertar nosso espírito da preguiça. No momento de punir,
Ele pára, exortando então. Aqueles que não são induzidos pelo louvor, Ele
repreende; aqueles que a censura deixa insensíveis. Ele se esforça, através da
ameaça, para conduzir à verdade: “Aquele que ensina ao insensato é como o que
quer tornar a unir os cacos de um vaso quebrado” (Eclo 22, 7) O Filho de Deus
utilizou-se de diversas alegorias para nos fazer conhecer os cuidados ue Ele
toma a fim de nos levar ao nosso dever: “Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai
é o agricultor. Todos os ramos que não derem frutos em mim, Ele os cortará, e
todos os que derem fruto, Ele os podará, para que deem mais abundantemente “
(Jo 15, 1-2) Toda videira que não é podada torna-se selvagem e cessa de
produzir. Assim também é o homem; mas o Verbo, como uma espécie de faca, corta
os apetites desregrados, que impedem o fruto da virtude de nascer. Ele estuda
as inclinações e os modos de cada pessoa em particular para repreendê-los, de
uma maneira veemente ou mais docemente, conforme a sua diferença de gênio,
considerando apenas sua salvação. Eis porque Moisés disse aos Israelitas: “Não
temais. Pois o Senhor veio para vos provar, e para imprimir em vós o seu temor,
a fim de não pecardes” (Ex 20, 20) Platão afirma admiravelmente: “Todos os que
sofrem um castigo recebem, um grande bem, já que se beneficiam no sentido de
que sua alma, ao serem castigados, apresenta uma notável melhora”. (Gorgias, 477a)
Este pensamento prova que a justiça e a bondade são uma e mesma coisa. O
próprio medo é-nos útil: “O espírito dos que temem dos que
temem o Senhor é buscado por Ele” (Eclo 34, 14) A esperança produz o medo, o
medo produz a salvação. O próprio Deus, que é o verbo, nos pune e nos julga;é
sobre Ele que o profeta Isaías declarou: “O Senhor carregou sobre si a
iniquidade de todos nós” (Is 53, 6) O Senhor o escolheu para corrigir e
castigar os pecados. Somente Ele tem o poder de nos restabelecer dos nossos
pecados, pois Deus o nomeou nosso Pedagogo; somente Ele pode discernir a
obediência e a desobediência às suas leis. Suas ameaças provam com clareza que
Ele não tem intenção nenhuma de nos fazer mal, nenhum desejo de cumpri-las, mas
sim que Ele se esforça para nos inspirar um pavor salutar pelo pecado. Elas
provam, digo eu, sua benevolência para conosco, já que, mostrando-nos incessantemente
o castigo, faz-nos conhecer a sua boa vontade e os males aos quais se expõem os
que perseveram no pecado. A serpente, que é má, morde assim que é magoada. Deus
que é bom, adverte muito antes de castigar: Eu amontoarei sobre eles os males,
e empregarei neles todas as minhas setas. A fome os consumirá e as aves os
despedaçarão com as suas cruéis mordeduras; eu ararei contra eles os dentes das
feras, e o furor das que se revolvem e arrastam sobre a terra. Por fora os
devastará a espada, e por dentro o pavor.
Deus não se irrita conosco, como pensam alguns, mas sua
inesgotável bondade não deixa de nos mostrar o caminho que é preciso seguir e o
caminho que é preciso evitar. Não é um cuidado admirável assustar para não ter
que punir? “O temor do Senhor evita os pecados; sem temor é impossível ser
justificado” (Eclo 1, 22) Não é por um espírito de vingança ou de cólera que o
Senhor nos pune, mas pelo espírito da justiça. Sua justiça é toda por nossos
interesses e benefícios; Ele não pode violar a justiça por nossa causa. Cada um
escolhe seu próprio castigo quando peca voluntariamente; a falta desta escolha
nos pertence e não pode ser imputada a Deus, pois Ele não é culpável: “Se a
nossa injustiça, porém, faz brilhar a justiça de Deus, que diremos? Acaso Deus,
que castiga com ira, é injusto? Como homem, falo: não, por certo. De outra
maneira, como julgará Deus a este mundo?” Ele declara, ameaçando-nos: Se eu
afiar como raio a minha espada, e a minha mão se armar para fazer justiça, eu
me vingarei dos meus inimigos, e darei a paga aos que me
aborrecerem. Eu embeberei as minhas setas em sangue dos mortos, e a minha
espada devorará as carnes dos inimigos, que estão no cativeiro com a cabeça
rapada. Deut 32, 41-42
Portanto, aqueles que não odeiam nem o Verbo nem a verdade,
aqueles que não odeiam a própria salvação, não são merecedores dos castigos
merecidos pelo ódio. “O temor a Deus é a plenitude da sabedoria” (Eclo 1, 20) O
verbo explica-nos o motivo da sua conduta nesta passagem do profeta Amós: “Eu
vos destruí, como Deus destruiu Sodoma e Gomorra, e vós ficastes parecendo-vos
como um tição, que se tira apenas de um incêndio; não voltastes para mim, diz o
Senhor” (Am 4, 11) Vede como o Senhor procura o arrependimento em todo lugar,
como suas intenções benevolentes brilham sobre suas ameaças: “Então disse:
Esconderei deles a minha face, e considerarei o fim que os espera” (Deut 32,
20) Onde ele deixa de olhar, penetram o vício e a desordem; a maldade humana,
contida e sufocada por sua presença, reaparece assim que Ele se retira.
“Considerai, pois a bondade e a severidade de Deus: a severidade por certo com
aqueles que caíram, e a bondade de Deus para contigo, se permaneceres na
bondade; doutra maneira, tu também serás cortado” (Rom 11, 22), diz o apóstolo.
Aquele que é naturalmente bom odeia naturalmente o vício e se compraz em
castigar aqueles que nele caem, pois o castigo lhes é bom e útil. A vingança
divina é uma punição para um crime cometido, punição vantajosa ao culpado.
Como, sem isso, a vingança comprazeria a Deus, Ele que nos manda rezar por
aqueles que nos perseguem e caluniam? A bondade de Deus não necessita ser
provada; todos a reconhecem e a confessam. Para provar sua justiça, eu preciso
apenas mostrar-vos esta passagem do Evangelho. Para que eles sejam todos como
um, como Vós, Pai sois em mim, e eu em Vós, para que também eles sejam um em
nós e creia o mundo que vós me enviastes. E eu lhes dê a glória que vós me
havíeis dado, para que eles sejam um, como também nós somos um. Eu estou neles
e Vós estais em mim, para que eles sejam consumados na unidade, e para que o
mundo conheça que vós me enviastes e que Vós os amastes, como amastes também a
mim (Jo 17, 21-23)
Deus é um, está mais além do um e acima da unidade mesma, de
modo que esta partícula pessoal, “Vós”, possui uma força demonstrativa para
fazer conhecer este Deus, Ser único, que é, que era e que será; um só Nome,
Ser, contém estes três tempos diferentes. Que este Deus que é único seja também
o único justo, o mesmo evangelho prova: Pai, a minha vontade é que onde eu
estou, estejam também aqueles que Vós me destes, para verem a minha glória, que
Vós me destes, porque me amastes antes da criação do mundo. Pai justo, o mundo
não vos conheceu, mas evos conheceu, mas Eu conheci, e estes sabem que Vós me
enviastes. E eu lhes fiz conhecer, a fim de que o mesmo amor com que Vós me
amastes esteja neles, e eu neles. (Jo 17, 24-26)
Este é Ele: “Eu sou o Senhor o teu Deus, o Deus forte e
zeloso, que vinga a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta
geração daqueles que me aborrecem; e que faz misericórdia até mil gerações
àqueles que me amam e que guardam meus preceitos”. É Ele que coloca uns à sua
direita, outros à sua esquerda. Nós atribuímos a bondade ao Pai e a justiça ao
Filho, que é o verbo do Pai, porque estas virtudes são inseparáveis como suas
Pessoas, e seu poder é idêntico ao seu amor. “Ele julga os homens segundo suas
obras” (Eclo 16, 13), fazendo-nos primeiramente conhecer a Jesus, que é sua
justiça; e Jesus, fazendo-nos conhecer seu Pai, que é sua bondade. “A
misericórdia e a ira sempre o acompanham”, pois Ele é tão paciente quanto
poderoso, e ameaça para perdoar. Sua misericórdia e sua cólera têm um mesmo
objetivo: a salvação dos homens. O Filho de Deus declara-nos que a bondade de
seu Pai estende-se igualmente aos bons e aos maus: “Sede, pois”, diz Ele,
“Misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso”. E acrescenta:
“Ninguém é bom, senão Deus”, “Vosso Pai que está nos Céus, o qual faz nascer o
sol sobre bons e maus, e vir a chuva sobre justos e injustos” (Mat 119, 17. O
profeta declara: “Quando vejo o firmamento, obra de teus dedos” (Sal 8, 4); “O
Senhor firmou no Céu o seu trono” (Sal 2, 4); “O Senhor está no seu templo
santo” (Jr 13, 18) O Filho de Deus declarou na prece que Ele nos deixou como
modelo: “Pia nosso que estais no céu”. Aquele que criou os Céus é também o
Criador do mundo; não podemos negar que o Verbo não seja o Filho do Criador.
Todos concordam que o Criador é justo, e que o Verbo é seu filho, sendo
Ele, portanto, Filho desse Ser que é a própria justiça. Eis porque São Paulo
disse: “Mas agora sem a lei, tem-se manifestado a justiça de Deus, testificada
pela lei e pelos profetas. E a justiça de Deus é infundida pela fé de Jesus
Cristo em todos, e sobre todos que crêem n‟Êle: porque não há nisto distinção alguma; pois todos pecaram, e
ficaram privados da glória de Deus, tendo sido justificados
gratuitamente por sua graça, pela redenção que têm em Jesus Cristo” (Rom 3, 21-24) O justo é sempre bom,
eis por que ele escreveu: “A lei é na verdade santa, e o mandamento é santo,
justo e bom” (Rom 7, 12) A justiça e a bondade formam o poder divino: “Ninguém
é bom, senão apenas Deus” (Rom 7, 12) Mas o Filho, que está no Pai, não é
também bom, e não é este o sentido de suas palavras: “Nem alguém conhece o
Pai”? O Pai era muito antes de o Filho vir ao mundo. Há somente um Deus, bom,
justo, criador, Pai e Filho ao mesmo tempo, ao qual, graças sejam restituídas
pelos séculos dos séculos. Amém! É natural a doçura do Verbo ameaçar aqueles
que Ele deseja salvar. É um digno remédio da sua bondade divina fazer-nos corar
por nossas faltas e pela vergonha ante o pecado. Se a culpa é útil, igualmente
o são as ameaças. Elas despertam nossa alma do entorpecimento na qual ela
perece, e, em vez de abençoá-la mortalmente, levam-na à salvação, assegurando a
isenção de uma morte eterna apenas como uma ligeira dor. A sabedoria do
Pedagogo aparece em mil diferentes formas; Ele testemunho em favor dos bons,
conhece-os, chama-os a Ele e exorta-os a obrar melhor. Aqueles que, ao
contrário, desejam ofendê-lo, o Senhor lhes mostra o caminho certo, no qual
essas novas leis os vão conduzir a uma vida mais virtuosa e regular. Há graça
maior do que o testemunho que Ele nos presta? É nosso Salvador que
presta testemunho ante o
juiz. Inclusive a cólera de Deus – se podemos chamar de cólera seus avisos
cheios de benevolência – é uma prova do seu amor; devemos igualmente levar em
consideração que, se Deus se ressente de nossas paixões, é porque Ele se fez
homem para nos salvar.
Capítulo IX É PRERROGATIVA DO MESMO PODER FAZER O BEM E PUNIR
JUSTAMENTE – DO MÉTODO QUE O VERBO EMPREGA PARA NOS CONDUZIR
O Verbo divino, que desejou ser nosso mestre e nosso guia,
emprega todos os esforços da sabedoria para nos conservar. Ele nos dá conselhos
salutares, censura-nos, reprime-nos, ameaça-nos, promete-nos; Ele remedia
nossos males; Ele nada esquece para reprimir nossas inclinações desregradas e
nossos desejos desordenados. Em uma palavra, Deus faz conosco o que os pais
fazem com seus filhos. Recomenda a sabedoria: “Tens filhos? Ensina-os bem, e
acostuma-os à sujeição desde a sua meninice. Tens filhas? Conserva a pureza de
seus corpos, e não mostres para elas o teu rosto risonho” (Eclo 7, 25-26)
Aquele que não repreende seus filhos nas suas faltas, por temer afligi-los, não
os ama. Aquele, ao contrário, que os repreende com severidade, edifica-lhes um
grande bem à custa de um castigo momentâneo. O Senhor não nos deseja a efêmera
volúpia terrena, mas a beatitude do Céu, que é eterna. Estudemos, então, com
cuidado as lições do Verbo, e procuremos nos Livros Santos seus métodos para
nos instruir, onde Ele mesmo os gravou. Primeiramente, Ele adverte, e suas
primeiras advertências estão envolvidas de uma terna censura, muito propícia
para fazer reviver a sabedoria nos corações que a esqueceram. Escutai Ele mesmo
no Evangelho: “Jerusalém, Jerusalém, que mata os profetas e apedreja os que te
são enviados! Quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, do mesmo modo como
uma galinha recolhe debaixo das asas os seus filhotes, e tu não o quiseste?”
(Mt 23, 37) Escutai-o em Jeremias: “E pela facilidade da sua prostituição, contaminou
ela toda a terra, e a adulterou com a pedra e com o pau” (Jer 3, 9; 7, 9; 32,
29). Está aqui uma das maiores provas da bondade de Deus, que, conhecendo todo
o orgulho, toda a insolência das gentes revoltadas contra Ele e sua lei, não
deixa de ter piedade deles e de exortá-los à penitência pela boca de Ezequiel:
“Filho do homem, não tenhas medo deles, nem temas as suas palavras: porque os
que estão contigo são uns incrédulos e pervertedores, e tu habitas com os
escorpiões” (Ez 2, 6) Ele também diz a Moisés: “Irás ao rei do Egito,e lhe
dirás: O Senhor Deus dos hebreus nos chamou. Mas eu sei que o rei do Egito não
vos há de deixar ir” (Ez 3, 18-19) O Senhor, vede nós, conhece o futuro; mas
Ele nos deixa livres, a fim de oferecer-nos a ocasião de uma penitência
voluntária. Não deixando jamais de advertir, Ele diz a seu povo, pela boca de
Isaías: “Este povo se volta para mim com a sua boca, e com os seus lábios me
glorifica, mas o seu coração está contudo longe de mim” (Is 29, 13) A essas
censuras, Ele acrescenta este aviso: “Eles me deram culto movidos de ordenanças
e doutrinas de homens” Esta reprimenda, que fez conhecer o mal, fez conhecer ao
mesmo tempo o remédio necessário para curá-lo. A culpa é uma censura jogada às
ações vergonhosas e ilícitas. Sobre isso, eis um belo exemplo em Jeremias:
“Tornaram-se cavalos de lançamento, quando estão no maior ardor: cada um
rinchava à mulher do se próximo. Pois não hei de castigar eu estas coisas? E
numa gente como esta não se há de vingar a minha alma?” (Jer 5, 8-9) Ele junta
às censuras um motivo de temor, pois “o temor a Deus é o princípio da
sabedoria” (Prov 1, 7). “Eu não irei com a minha visita” (Os 4, 14), diz o
Senhor pela boca de Oseias, “Porque eles tinham trato com as meretrizes e
sacrificavam com os efeminados, e o povo sem entendimento será castigado”. É
preciso conhecer claramente o crime desse povo, mostrando que ele foi
instruído, e que se abandonou à desordem pela fraqueza de uma vontade
depravada. “A inteligência é o olho da alma” (Platão, A República, VII; O
banquete). O nome Israel dado ao povo escolhido significa „aquele que vê a
Deus, isto é, aquele que o conhece. A queixa é uma censura dirigida à
negligência e ao desprezo. O pedagogo a emprega nesta passagem de Isaías:
“Ouvi, ó Céus, e tu, ó terra, escuta, porque o Senhor é quem falou. Criei uns
filhos, e engradeci-os; porém, eles me desprezaram. Conheceu o boi o seu dono,
e o jumento o presépio do seu dono, mas Israel não me reconheceu” (Is 1, 1-2)
Não é indigno que aquele que tem o conhecimento de Deus não reconheça o seu
Senhor? O boi e o jumento, que são animais estúpidos e insensatos, conhece
aqueles que os alimenta. Mas o povo de Israel é muitos menos razoável. Após se
queixar várias vezes, o profeta Jeremias acrescenta: “Deixaram-me a mim, diz o
Senhor” (Jer 2, 13-19) A censura transforma-se, em seguida, em uma acusação
veemente. É deste remédio que se serve o Pedagogo nesta passagem de Isaías:
“Aí, filhos desertores, diz o Senhor, para que tomásseis um conselho, mas não
de mim, e urdísseis uma teia, mas não pelo meu Espírito” (Is 1, 4) O Senhor os
intimidou pelas ameaças para fazê-los entrar pela via do temor da sua salvação.
Quando preparamos a lã para tingi-la, apertamo-la fortemente para que a cor que
escolhemos penetre com mais facilidade; a reprimenda ou a refutação é uma
exposição do crime que evidenciamos e manifestamos a todos. Deus é constrangido
a recorrer a esse remédio, pois a fé de muitos é fraca e lânguida. Eis como Ele
se exprime pelo profeta Isaías: “Abandonaram o Senhor, blasfemaram contra o
Santo de Israel, voltaram para trás alienando-se” (Is 1, 4); e por
Jeremias:
“Pasmai, Céus, sobre isto; e ficai em total desolação, diz o Senhor. Porque
dois males fez o meu povo: deixaram-me a mim, fonte de água viva e cavaram para
si cisternas rotas, que não podem reter as águas” (Jer 1, 12-13); “Jerusalém
cometeu um grande pecado, por isso ela se tornou errante; todos os que a
honravam a desprezaram, porque viram a sua ignomínia” (Lam 1, 8) Ele adoça de
alguma maneira o azedume e a veemência dessas repressões, e para consolar seus
filhos, Ele lhes dá marcas de seu amor, quando exorta pela boca de Salomão:
“Não rejeiteis, meu filho, a correção do Senhor, nem caias em abatimento,
quando por Ele és castigado; porque o Senhor castiga aquele a quem ama, e acha
n‟Ele sua complacência, como um pai em seu filho” (Prov 3, 11-12) O Espírito Santo declara pelo profeta: “Fustigue-me o justo, é caridade; repreenda-me, é perfume na minha cabeça” (Sal 140, 5) O castigo é uma repreensão que endireita o espírito e que devolve inteligência àqueles que a perderam. Deus ainda
utiliza frequentemente este tipo de instrução: “A quem falarei eu? E a quem
admoestarei que me ouça? Eis que os seus ouvidos estão incircuncidados, e não
podem ouvir; eis que a palavra do Senhor foi para eles motivo de escarnio”. Que
admirável paciência! Esse povo tem o coração incircuncidado, isto é, é rebelde
e desobediente; esses são os filhos infiéis. A procura é uma severa repreensão;
vemos um exemplo no Evangelho: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e
apedreja os que te são enviados! Quantas vezes quis eu ajuntar teus filhos, do
mesmo modo como uma galinha recolhe debaixo das asas os seus filhotes, e tu não
o quiseste?” (Mat 23, 37) Essa repetição de nome redobrou a amargura e a força
da repreensão. Como pode aquele que conhece a Deus ter a audácia de perseguir
seus ministros? Por isso, acrescenta: “Eis que vos ficará deserta vossa casa.
Porque eu vos declaro que desde agora não me tornareis a ver até que digais:
„Bendito seja o que vem em nome do Senhor‟” (Mat 23, 38-39) Se vós não vos aproveitais da sua clemência e
doçura, vós sentireis o efeito da vingança. A maldição é um discurso enérgico e
veemente; é um remédio do qual Deus às vezes se serve, como quando diz pelo
profeta Isaías: “Aí da nação pecadora, do povo carregado de iniquidade, da ralé
maligna, dos filhos malvados!” (Is 1, 4) O evangelista São João utiliza
expressões semelhantes: “Raça de víboras”. A acusação na boca de Deus, é uma
censura dirigida àqueles que cometem alguma injustiça. É ainda um outro tipo de
remédio que o rei Davi e o profeta Jeremias empregam nas seguintes passagens:
“Serviu-me um povo que não me conhecia; apenas ouviu falar de mim, prestou-me
obediência. Lisonjearam-me os estrangeiros, empalideceram e, espavoridos, saíram de suas
fortalezas”; “porque havia adulterado a pérfida Israel, eu a tinha desamparado,
e lhe havia dado libelo de divórcio; e não teve temor a prevaricadora Judá”; “a
casa de Israel e a casa de Judá foram-me infiéis” (Jer 3, 8; 1, 1-2) Ás vezes, usando
de um artifício terno e seguro, Ele lembra e deplora os castigos terríveis dos
quais os pecadores endurecidos tornam-se presas. Escutemos as lamentações de
Jeremias: “Como, assim, solitária está assentada uma cidade cheia de povo!
Chegou a ser como viúva a Senhora das Gentes; chorou sem cessar durante a
noite, e as suas lágrimas correm pelas faces”. (Jer 1, 1-2) A injúria é uma
queixa envolvida pela censura, como podemos ver por estas palavras do profeta
Jeremias: “O descaramento duma mulher meretriz se apoderou de ti, não quiseste
ter vergonha. Logo ao menos chama-me agora dizendo: Tu és meu pai, tu o guia da
minha virgindade” (Jer 3, 3-4) Após insultar uma virgem, comparandoa a uma
mulher desonrada. Ele se esforça para retirá-la de suas desordens e de
inspirá-la com sentimentos de pudor. A indignação é uma repreensão legitima
para reprimir o orgulho de seus filhos, que muito aumenta. Moisés serve-se
disto quando ele diz aos israelitas: “Geração depravada e perversa! Assim é o
que tu, povo louco e insensato, mostras o teu agradecimento ao Senhor? Não é
Ele teu pai, que te possui, e te fez, e te criou?” Isaías também diz: “Os teus
príncipes são infiéis, companheiros de ladrões; todos amam as dádivas, andam
atrás de recompensas. Não fazem justiça ao órfão” (Is 1, 23) Enfim, Deus
utiliza todo tipo de meios para inspirar o temor aos homens e para salvá-los
por esta via. Como sua natureza é bondade, sua vontade é salvar-nos: A
misericórdia de Deus estende-se a toda a carne. Ele, como cheio que é de
consideração, ensina, e castiga os homens como um pastor faz ao seu rebanho.
Ele se compadece daquele que recebe a doutrina da sua misericórdia, e do que se
dá pressa a se submeter aos seus mandamentos (Eclo 18, 2-14) É por essa via
que Ele conserva a vida de seiscentos mil homens no deserto; Ele amolecerá
pelas punições a dureza dos seus corações. Ele pune severamente, ele tem
compaixão das suas misérias; Ele procurará remédio para elas; enfim, Ele os
adverte com uma doçura divina. É um grande bem não pecar; mas é também um
grande benefício arrepender-se dos seus pecados e fazer penitência. Não há
estado mais agradável do que gozar de uma saúde perfeita; mas ficamos
muito felizes ao nos curar de uma doença perigosa. É por isso que nos adverte
também o Pedagogo pela boca de Salomão: “Não queiras subtrair a correção ao
menino, porque se tu o fustigares com a vara, ele não morrerá. Tu o fustigarás
com a vara, e livrarás a sua alma do inferno” (Prov 23, 13-14) Os castigos e as
reprimendas, segundo a etimologia grega, são golpes que açoitam a alma para
punir os desvios e salvá-la da morte; eles inspiram a moderação e a temperança
àqueles que se deixam levar pelo descontrole e pela intemperança. Platão, que
estava bastante persuadido da eficácia das reprimendas na elevação do espírito
dos homens, e de que não poderíamos inventar um remédio melhor para
purificá-los da imundície de seus crimes, sustentava que aqueles que se
abandonam às suas paixões infames não podem sofrer das suas correções; ao
contrário, aqueles que são dóceis aos avisos que lhes são dados chegam a um
alto grau de virtude e gozam de grande felicidade (O sofista, 230 d-e). Se os
príncipes e magistrados não inspiram temor à gente de bem, como seria possível
que Deus, que é a própria bondade, apavore aqueles que tem sob sua guarda para
não caírem no pecado?” “Mas se obrares mal, teme” (Rom 13, 4), diz o apóstolo;
foi para imitar a conduta de Deus que São Paulo fez reprimendas amargas às
Igrejas, pois ele conhecia a debilidade daqueles que o escutavam. Disse ele aos
gálatas: “Tornei-me eu logo vosso inimigo, porque vos disse a verdade?” (Gal 4,
16) As pessoas que gozam de uma saúde perfeita não precisam de um médico; só os
doentes necessitam deste socorro. Assim, nós, que temos inclinações viciosas
como doenças, e que nos abandonamos à intemperança e ao arrebatamento, temos a
assistência perpétua de nosso Salvador; Ele não utiliza sempre remédios doces e
gradáveis, mas também amargos e acres; as raízes amargas do medo impedem o
transbordamento do pecado. A amargura desse remédio não é destruída pela sua
influência salutar. Por estarmos enfermos, é justo que reconheçamos nossa
necessidade de um Salvador; de um guia, pois estamos extraviados; de um diretor
que nos ilumine, pois estamos cegos; de uma fonte, para apaziguar o ardor da
sede que nos queima; do Príncipe da Vida, para nos ressuscitar; de um Pastor,
para nos conduzir como ovelhas; de um Pedagogo, para nos educar como crianças.
Toda a natureza humana precisa de socorro do Messias para que, pecadores como
somos, não sejamos condenados ao suplício eterno, mas, ao contrário,
encontraremos um lugar na casa de nosso Pai, após sermos separados da palha: “A
sua pá encontra-se na sua mão; ele limpará muito bem a sua eira, e recolherá
seu trigo no celeiro; mas queimará as palhas num fogo que jamais se apagará”
(Mat 3, 12) Podemos conhecer a Sabedoria soberana do nosso santo Pastor,
que é o verbo Todo-Poderoso do Pai; podemos conhecê-la, digo, pela alegoria da
qual Ele mesmo se serve, quando compara-se a um Pastor que conduz as ovelhas;
Ele declara aos sacerdotes, falando pela boca de Ezequiel, e expõe-lhes os
cuidados e as inquietudes que a condução do seu rebanho lhe impõe: “Eu irei
buscar se que se tinham perdido, e farei voltar as que estavam desgarradas; Eu
as levarei a pastar nas pastagens mais férteis (Ez 34, 16-14) Estas são as
resoluções do Bom Pastor . “Saciai -nos, Senhor, como às ovelhas; conduzi-nos
até vossa santa montanha, a esta Igreja que está acima das nuvens e que toca o
céu” (Sal 14, 1; 47, 2-3) “Eu serei, afirma Ele, o seu Pastor, e permanecerei
sempre junto a elas; eu as envolverei como a vestimenta envolve o corpo;
restituirei a saúde ao seus corpos, e as vestirei com o manto da
incorruptibilidade”; elas então, dirão: “Ele ungiu o meu corpo; chamou-me, e eu
disse „eis-me aqui‟ ”. Vós, Senhor, atendestes minhas preces
muito mais rápido do que as minhas esperanças: “Então invocarás tu o Senhor, e
Ele te atenderá” (Is 59, 9) Deveras, não cairemos ante a corrupção, passando à
incorruptibilidade, pois Deus nos sustentará. Tal é o caráter d‟Aquele que nos conduz, cuja bondade é infinita: O Filho do homem não veio para ser servido, mas para
servir, e para dar sua vida em redenção por muitos”. (Mat 20, 28) É por isso que o Evangelho
representa-O fatigado, devido às penas que Ele carregava pelo gênero humano, que lhe custou a vida,
até a última gota do seu sangue. Apenas Ele merece o título de Bom Pastor. Ele
é benevolente e liberal, ao ponto de sacrificar sua vida pela salvação do seu
rebanho. Sua bondade pelos homens é inconcebível; Ele se fez homem, para
tornar-se seu irmão, ainda que fosse seu Senhor; enfim, por amor, Ele morreu
por nós. Sua justiça Ele o fez declarar pelo profeta Jeremias: “Se vós ainda
depois disto não quiserdes tomar o ensino, mas continuardes a andar contra mim,
também eu andarei contra vós” (Lev 26, 23-27) Esses caminhos tortuosos são as
censuras que Ele faz aos pecadores. A bondade que Ele tem por aqueles que
receberam a fé é constante e inalterável. As reprimendas que Ele dirige aos
pecadores lhes são muito úteis: “Porque eu vos chamei, e vós não quisestes
ouvir-me; estendi a minha mão, e não houve quem olhasse para mim. Desprezastes
todos os meus conselhos, e não fizestes caso das minhas repreensões” (Prov 1,
24-25) A este propósito, Davi diz ainda: “Uma geração rebelde e contumaz,
geração de coração inconstante, e de espírito infiel a Deus. Não guardaram a
aliança de Deus, não quiseram andar na sua lei” (Sal 77, 8-10) Eis o que traz a
cólera do Senhor, e o que o obrigou a vir em qualidade de Juiz para vingar-se daqueles que não
quiseram levar uma vida virtuosa; eis porque Ele os tratou mais duramente: para
frear o impulso que os conduz à morte. Através de David, explica claramente o
assunto: “E, apesar de tudo, pecaram ainda, não tiveram fé nos seus prodígios Quando
os fazia morrer, procuravam-no; convertidos, tornavam a buscar a Deus.
Lembravam-se que Deus era o seu rochedo, e o Altíssimo o seu redentor” (Sal 77,
32-35) Ele reconheceu que eles são convertidos somente pelo temor, e que
desprezam a bondade. Às vezes temos menos consideração pela bondade, pois ela é
sempre benevolente; respeitamos antes Aquele que se faz temer ao fazer o bem.
Há dois tipos de temor; o primeiro está envolvido pelo pudor, tal como o que os
cidadãos têm para os bons príncipes, e o que temos para com Deus, ou o que as
crianças prudentes tem para com seus pais e mães: “Um cavalo indômito faz-se
intratável, e um filho deixado à sua vontade sairá precipitado” (Eclo 30, 8) O
segundo tipo de temor está envolvido pelo ódio, tal como o que os servidores
tem por seus patrões quando estes são incômodos e difíceis, e tal como o dos
judeus, que veem Deus antes como Mestre do que como Pai. No que concerne à
religião e à piedade, há uma grande diferença entre as coisas que são livres,
voluntárias e de bom coração e aquelas que são feitas por necessidade e por
obrigação. Deus é misericordioso; Ele terá compaixão de suas fraquezas. Ele não
as destruirá, mas desviará a sua cólera e não se abandonará à indignação. A
justiça e a equidade do Pedagogo fazem-se conhecer na misericórdia. O Espírito
Santo, falando pela boca de David, atribui a Deus essas duas virtudes: “A
justiça e o direito são os alicerces do vosso trono; precedem a vossa face a
bondade e a fidelidade”. Reconhece que pertencem ao mesmo poder julgar e fazer
o bem; o mesmo Deus que é justo e bom discerne o bem do seu contrário. O
espelho, que reflete as coisas, tais como elas são, não é mau com um rosto
feio, assim como o médico não é mau com um enfermo quando ele conta da sua
febre. Assim, aquele que faz reprimendas a um homem de espírito doente não
deseja o mal a ele por isso, pois não é ele a causa das suas desordens; apenas
as faz serem percebidas, a fim de que o doente renuncie aos seus maus hábitos.
Deus é soberanamente bom por si mesmo e justo conosco devido à sua bondade. Ele
nos faz conhecer pelo seu Verbo aquele que é justo; antes de ser Criador, Ele
era Deus, Ele era bom; eis porque Ele desejou criar o mundo e ser Pai. Essa
disposição amorosa foi o princípio da justiça; esta que o obrigou a criar o sol
e a enviar seu Filho ao mundo. Este anunciou em primeiro lugar a justiça
celeste, quando declarou: “Ninguém conhece o Filho senão o Pai. Nem alguém
conhece o Pai senão o Filho”. Este
conhecimento recíproco é o símbolo da justiça primitiva. Esta justiça é
manifestada aos homens pela Lei e pelo verbo, constrangendo os homens a fazer
penitência, pois ela é boa. Mas vós não obedeceis a Deus; vós mesmos sois a
causa da visita do Juiz.
Capítulo X O MESMO DEUS, PELO MESMO VERBO, AFASTA A
HUMANIDADE DO PECADO PELA AMEAÇA, E SALVA-A PELA EXORTAÇÃO
Após ter considerado o método que o Verbo utiliza para
dirigir a natureza humana, para impedir os homens de cair no vício ou para
exortá-los à penitência, é preciso agora considerar sua mansidão e doçura. Já
mostramos que Ele é justo, que nos cobre de princípios, e que nos coloca a
trabalhar para a nossa salvação, fazendo-nos conhecer aquilo que é útil e
vantajoso para o nosso destino. O homem é a matéria do panegírico, enquanto que
a utilidade é o motivo do qual se serve aquele que deseja persuadir; este gênero
oratório (deliberativo) tem duas relações, pois ele ou exorta ou dissuade. Já o
Panegírico (gênero encomiástico) ou elogia, ou censura, conforme a necessidade.
Aquele que deseja persuadir precisa exortar ou dissuadir, assim como o
Panegírico é obrigado a elogiar ou a censurar, consoante as ocorrências. Nosso
instrutor elogia-nos com mais frequência, pois sua finalidade é fazer-nos
conhecer aquilo que é útil. Após ter explicado o que é censurar e dissuadir, é
preciso explicar o que é elogiar e exortar. Nosso pedagogo exorta-vos quando
deseja que empreendamos coisas úteis. Eis como Salomão exprime-se nos
Provérbios: “A vós, ó homens, é que eu estou continuamente clamando, e aos
filhos dos homens é que se dirige a minha voz; ouvi, porque tenho de vos falar
acerca de grandes coisas” (Prov 8, 4-6) Ele aconselha o que é salutar; o
conselho é útil quando precisamos tomar uma decisão ou abster-nos de algo.
Sobre este assunto, David declara: “Ditoso o homem que não se deixa levar pelo
conselho dos ímpios, nem envereda pelo caminho dos pecadores, ou toma assento na
companhia
dos soberbos; mas se compraz na lei do Senhor, e a medita dia e noite” (Sal 1,
1-2) O conselho deve estar acompanhado de três particularidades; é preciso
apoiá-los a exemplo do passado, como o que aos israelitas, que Deus puniu por
adorarem o bezerro de ouro e por abandonarem à indecência. É preciso considerar
também a situação das coisas presentes e daquilo que abate o sentido; é o que
observa o Filho de Deus, quando Ele responde aos judeus, que lhe perguntaram
através de João Batista: Tu és o que hás de vir, ou é outro o que esperamos? E
respondendo Jesus, lhes disse: “Ide contar a João o que vistes e ouvistes. Os
cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os
mortos ressuscitam, aos pobres é anunciado o Evangelho, e bem-aventurado aquele
que não for escandalizado por causa de mim” Mat 11, 3-6. É também a este
propósito que trata o profeta “Como ouvimos dizer, assim o vimos” (Sal 47, 9).
A segunda particularidade, que devemos observar para dar um bom conselho
serve-se dos acontecimentos futuros para se precaver e proteger-se das
circunstâncias, assim como vemos nesta ameaça do Evangelho, para os que caíram
em pecado: “Mas os filhos do Reino serão lançados nas trevas exteriores. Ali
haverá choro e ranger de dentes” (Mat 8, 12; 22, 13; 25, 30) Vemos que o Senhor
nada poupa, e que tentou por todos os meios procurar a salvação dos homens; Ele
consola os pecadores para impedi-los de se abandonar ao desespero, para
abrandar o ardor da sua cobiça e para alimentar a esperança que sempre deve ter
da sua salvação. Eis o que diz através do profeta Ezequiel aos pecadores: “Mas
se o ímpio fizer penitência de todos os seus pecados que cometeu, e se guardar
todos os meus preceitos e agir conforme a equidade e a justiça, ele certamente
viverá e não morrerá” (Ez 19, 21) Diz ainda em algum lugar: “Vinde a mim todos
vós que estais cansado, e vos achais sobrecarregado, e eu vos aliviarei” (Mat
11, 28) Deus exorta os homens, pela boca de Salomão, a ter bons sentimentos:
“Bemaventurado o homem que encontrou a sabedoria, e que está rico de prudência”
(Prov 3, 13) Encontramos o que é bom se o procuramos com cuidado. O profeta
Jeremias elogia a prudência: “Ditosos somos, ó Israel, porque as coisas que
agradam a Deus não são manifestas; ouve, ó Israel, os mandamentos da vida!
Aplica os teus ouvidos, para aprenderes a prudência” (Bar 3, 9; 4, 4) Podemos
conhecê-la pela ajuda do Verbo, que nos pode tornar prudentes e felizes. O
Senhor, falando através de Moisés, que tanto zelo tinha por seu povo, prometeu
um recompensa àqueles que pensassem seriamente na sua salvação: “E sabendo qual
é a sua dor, desci para livrá-los das mãos dos egípcios, e para fazê-los passar
desta terra para outra terra boa, e espaçosa; para uma terra onde correm
arroios de leite e mel” (Ex 3, 8) E também através de Isaías: “Eu os trarei ao
meu santo monte. E os alegrarei na casa da minha oração” (Is 56, 7) A esperança
de um caminho santo é, ainda, outra espécie de instrução; feliz daquele que não
peca, declara o profeta: Ditoso o homem que não se deixa levar pelo conselho
dos ímpios. Nem envereda pelo caminho dos pecadores, ou toma assento na
companhia dos soberbos; é como a árvore plantada à beira das águas correntes,
que, em tempo próprio, dá o seu fruto, e cujas folhas não murcham. Tudo o que
ele fizer há de medrar Salmo 1, 1-3
São esses os sentimentos que Deus inspira em nós, a fim de
que sejamos felizes. Ele nos mostra que seguida o reverso da medalha,
advertindo-nos dos males que atingem os ímpios: “Não são assim os ímpios, mas
serão como a palha que o vento leva” (Sal 1, 4) Depois de ter nos advertido das
penas às quais os pecadores estão expostos, e da destruição que os ameaça, na
qual serão dissipados em cinzas, o Senhor utiliza este mesmo motivo para
retirar-nos dos vícios que nos fazem cair nos mesmos males; mas, ao advertir-nos
dos suplícios aos quais os nossos crimes nos atiram, Ele também faz ver a
magnificência com a qual recompensa aqueles que lhe servem. Ele nos faz
conhecer o caminho que devemos seguir para sermos felizes: “Se tu tivesses
andado pelo caminho de Deus, seguramente perseverarias numa paz eterna” (Bar 3,
13) Ele promete perdoar aqueles que se extraviaram por algum mal, e dar novos
conhecimentos àqueles que se desviaram do caminho da verdade: “Detende-vos
sobre os caminhos, vede e perguntaivos sobre as antigas veredas, para conhecer
o bom caminho e andar por ele, e achareis refrigério para as vossas almas” (Jer
6, 16) Ele nos inspira sentimentos de penitência, para que consigamos trabalhar
para a nossa salvação; se te arrependes, “O Senhor teu Deus circundará o teu
coração” (Deut 30, 6). Eu poderia apoiar essa doutrina do sufrágio nos
filósofos, que afirmam que somente o homem perfeito merece louvores, e que o
mau é digno de censura (cf. Diógenes Laércio, Vida dos filósofos mais ilustres,
VIII, 100) Mas como a maioria desses filósofos não tem conhecimento perfeito da
verdadeira felicidade, e nem da benevolência de Deus pelos homens, eles não
conhecem exatamente as recompensas merecidas pela virtude. Posso acrescentar
que a crítica e a censura serão ainda bons métodos para tirar os homens do
vício; a maioria vive com insensatez, e somente Deus é sábio e a fonte de toda
a sabedoria. Somente Ele é perfeito e, consequentemente, o único que merece
verdadeiro louvor. Mas eu não quero aprofundar-me nisso. Direi apenas que o
louvor e a censura são remédios muito necessários ao homem. Para os que são
difíceis de curar – e aqueles inveteradamente maus – é preciso empregar o fogo,
o martelo e a bigorna – isto é, as reprimendas, as censuras e as ameaças. Já
aqueles que se entregam à fé, que se instruem e fazem bom uso da sua liberdade,
crescem com o elogio. A virtude elogiada cresce como uma árvore (Baquílides,
Fragmentos, 56) É nisto que se baseia essa máxima de Pitágoras: “Se obrou mal,
repreende-te; se obrou bem, alegra-te” (Pseudo-Pitagoras, Versos Aureos, 44).
Poderíamos nos referir a uma infinidade de outras máximas para trazer os homens
à virtude e tirá-los do vício: “Para os ímpios não há paz, diz o Senhor” (Is
48, 22). Salomão diz aos jovens: Meu filho, se pecadores te quiserem seduzir,
não consintas; se te disserem: Vem conosco, faremos emboscadas para [derramar]
sangue, armaremos ciladas ao inocente, sem motivo, como a região dos mortos,
devoremo-lo vivo, inteiro, como àquele que desce à cova Prov 1, 10-12.
Essas palavras podem ser aplicadas à Paixão do Salvador. O
profeta Ezequiel ainda nos sugeriu máximas muito úteis: Eis que todas as almas
são minhas, e como é a alma do pai, assim também é a alma do filho; a alma que
pecar, essa morrerá. E se um homem for justo e obrar conforme a equidade e a
justiça; se não comer nos montes, e não levantar os seus olhos para os ídolos
da casa de Israel; e se não ofender a mulher do seu próximo, e não se ajuntar
com a menstruada; se não entristecer a ninguém; se tornar o penhor ao seu
devedor; se não tirar nada do alheio por violência; se der do seu pão ao que
tem fome, e ao nu cobrir com vestido; se não emprestar a juro,
e não receber mais do que emprestou; se apartar a sua mão da iniquidade, e
fizer um verdadeiro juízo entre homem e homem; se andar nos meus preceitos, e
guardar os meus mandamentos, para obrar segundo a verdade; este tal é justo, e
certissimamente viverá, diz o Senhor EZ 18, 4-9. Essas máximas são
o modelo da vida que os cristãos devem levar; mas, para encorajá-los,
damos-lhes a esperança de uma felicidade eterna.
Capítulo XI O VERBO ASSUME O OFÍCIO DE PEDAGOGO ATRAVÉS DA
LEI E DOS PROFETAS
Fiz-vos ver tanto quanto me foi possível quão grande é o amor
de Deus pelos homens, e o método pelo qual Ele se serve para os instruir. Ele
se compara a Si mesmo a um grão e mostarda: que semeamos, que é possuidor de
inúmeras qualidades, que pode representar os maravilhosos efeitos da natureza,
o sentido místico e espiritual da Palavra, as vantagens e a santidade da alma
razoável, o amargor das reprimendas e a utilidade destas para retificar os
costumes. Esse grão, que é tão pequenino, pode ocasionar aos homens vários
benefícios consideráveis. Embora o mel seja doce, ele origina a bile, assim
como aquele que é bom frequentemente faz nascer o desprezo e cria ocasião para
o pecado. Já o grão de mostarda propicia a bile e diminui a fleuma, isto é, a
luxúria e o orgulho, de modo que ele origina a santidade da alma e,
consequentemente, bens eternos. Moisés e outros profetas foram intermediários
do Verbo; as regras da disciplina foram inventadas para reter no dever as
crianças insolentes que não conseguem acostumar-se ao jugo: “Todo o povo se
assentou a comer e beber, e depois se levantaram a brincar” (Ex 32, 6; I Cor
110, 7) O termo grego significa encher-se de cuidados, como se os judeus
saciassem-se com alimentos que fossem convenientes apenas aos animais em vez de
comer coisas que são mais comuns aos homens. Como eles comeram contra as regras
da razão, eles jogaram também de modo insensato. Eis por que a memória
da lei enchia-os de temor, a fim de que o remorso por seus crimes levasse-os a
fazer penitência e ações virtuosas, seguindo as máximas do Verbo, que se adapta
às necessidades. Conforme a doutrina de São Paulo, Jesus Cristo, o verbo de Deus,
o Filho do Pai Eterno, engendrado à sua imagem, é nosso verdadeiro mestre, pois
somente Ele é bom, justo e santo. Deus nos colocou sob seu guiamento, como um
pai cuidadoso dos nossos interesses. Diz-nos: “Este é meu Filho amado, no qual
tenho posto toda a minha complacência. Ouvi-O” (Mat 17, 5; Mc 9, 7; Lc 9, 35)
Este Mestre bem merece que tenhamos por Ele toda a docilidade da qual somos
capazes, pois Ele possui três excelentes qualidades: a ciência, a bondade e a
capacidade de falar com muita liberdade. Ele é a Sabedoria Eterna do Pai: “Toda
a sabedoria vem do Senhor Deus e com Ele esteve sempre” (Eclo 1, 1) Ele fala
livremente porque é o Criador do Universo: “Todas as coisas foram feitas por
Ele, e nada do que foi feito, foi feito sem Ele” (Jo 1, 3) O amor que tem por
nós obrigou-o a oferecer-se como vítima: “O Bom Pastor dá a própria vida pelas
suas ovelhas” A benevolência não é mais do que querer o bem do próximo, por ele
mesmo.
Capítulo XII NOSSO PEDAGOGO FEZ UM AMÁLGAMA DA SEVERIDADE COM
O RIGOR E A BONDADE
Após ter-nos instruído desse modo, é preciso ainda que nosso
Mestre Jesus dê-nos máximas para bem conduzirmos nossa vida. Essas regras não
são nem muito austeras nem muito brandas; Ele nos dá, ao mesmo tempo, a força
para colocar em prática aquilo que ordena. Ele criou o homem com o pó,
regenerou-o com a água, fortificou-o pelos dons do Espírito Santo, adotou-o
como seu filho, abriu-lhe a via da salvação pelos santos preceitos que deixou;
embora tenhamos nascidos da terra, Ele nos fez homens celestes pelo seu
advento; é principalmente depois deste evento que é possível aplicar a verdade
deste oráculo: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança” (Gen 1, 26) Somos
filhos de um bom Pai, escutemos com docilidade as máximas do nosso mestre,
imitemos a vida e a santidade do nosso Salvador; tracemos o plano de uma vida
inteiramente celeste, que nos faça semelhantes a anjos, que nos cubra de uma
alegria inalterável, que nos faça participar da incorruptibilidade do nosso
mestre e seguir inviolavelmente seus vestígio. É somente Ele que prescreve as
leis que devemos observar para levar uma vida santa e virtuosa. Contentemo-nos
puramente com coisas necessárias a vida, rejeitemos tudo o que é supérfluo para
nos colocar no caminho da vida eterna; persuadidos de que Deus tomou o cuidado
de fornecer-nos todas as nossas necessidades, “não andeis inquietos pelo dia de
amanhã” (Mat 6, 34); todos os que estão comprometidos a seguir Jesus Cristo
devem contentar-se com seu estado, sem se inquietar para fazer montões para
viver. Não somos educados para a guerra, mas para as alegrias da paz eterna.
Aqueles que desejam levar uma vida prazerosa são obrigados a fazer preparativos
abundantes e sustentar grandes combates; ao contrário, aqueles que se contentam
com uma vida simples e frugal são dispensados de fazer provisões e de se munir
de armas. É o Verbo que os alimenta; é o Verbo que os conduz e os dirige, que
os ensina a frugalidade, a simplicidade, a modéstia; somente Ele inspira o
desprezo pelo fausto e o amor pela liberdade, pela honestidade, pela doçura e
pela mansidão. A prática das virtudes torna-nos semelhantes a Deus. (Gene 1,
26; Platão, Teeteto, 176a) Não é preciso, portanto, abandonar-nos à preguiça e
À indolência criminosas; é preciso trabalhar sem relaxo e sem desencorajamento
para alcançar uma felicidade que ultrapassa todos os nossos conhecimentos e
esperanças. Os filósofos seguem outros modos e outros gêneros de vida do que os
dos oradores ou dos atletas; assim, as máximas que aprendemos na escola de
Jesus Cristo inspiram-nos sentimentos de generosidade e liberdade; aqueles que
os praticam tornam-se graves, honestos e virtuosos e levam uma vida conforme a
disciplina do seu Mestre. Sua conduta não é nem violenta nem embaraçosa; ela é
moderada e uniforme. O Verbo sugeriu aos homens meios salutares para alcançar a
salvação; Ele é atento para observar discretamente todas as ocasiões para nos
fazer entrar no bom caminho e para tornar-nos razoáveis; Ele nos faz conhecer
os males aos quais estamos expostos afastando-nos das suas máximas; Ele nos
mostra a fonte e a origem das nossas paixões e ganância, que combatem a razão;
Ele as arranca pela raiz; Ele ordena que fiquemos sob sua responsabilidade; Ele
nos trata como enfermos e dá-nos todos os remédios necessários para obter uma
cura perfeita. A grande obra da bondade e de todo o poder de Deus é a salvação
do gênero humano. Os enfermos desgostam-se dos médicos que não receitam nenhum
remédio. Não devemos, pois, dar eternas ações de graça ao nosso Mestre, que nada
disfarça,
que nos ameaça com antecedência, para impedir-nos de cair no pecado, que nos
faz conhecer as desordens das nossas paixões e as más consequências que elas
podem ter, que nos ensina tudo o que devemos observar para bem conduzir nossas
tarefas? Essas boas ações merecem grandes reconhecimentos e agradecimentos. Um
homem dotado de razão não deveria dedicar-se a outra coisa senão à contemplação
do divino. Contudo, é preciso também fazer reflexões acerca da natureza humana,
para viver conforme às máximas da verdade e os preceitos Mestre, que são tão
justos e tão convenientes. É preciso que nossas ações correspondam ao nosso
discurso e que nos assemelhemos perfeitamente ao nosso modelo.
Capítulo XIII AS AÇÕES VIRTUOSAS ESTÃO EM CONFORMIDADE COM A
RETA RAZÃO; O PECADO AO CONTRÁRIO, É UM ATO CONTRÁRIO À RAZÃO
Tudo o que é contrário à reta razão é pecado. Eis como os
filósofos definem as paixões em geral: “A concupiscência é um apetite que não
obedece a razão; o temor é uma falha que não obedece à razão; a volúpia é uma
revolta da alma contra a razão”. A desobediência que se comete contra o Filho
de Deus, que é a própria razão, é um pecado; ao contrário, a submissão que
temos pela fé é honesta e virtuosa, já que a virtude não é outra coisa que um
movimento bem preparado da alma, que sempre se submete ao império da razão.
Dizem, ainda, que a filosofia é o estudo da reta razão, de modo que tudo o que
é feito por uma razão errônea é pecado. Quando o primeiro homem pecou e
revoltou-se contra Deus, ele se tornou semelhante às bestas e perdeu de certa
maneira, o uso da razão. É por isso que a Escritura afirma que um homem adulto
assemelha-se a um cavalo furioso que persegue uma égua sem temer o cavaleiro.
Este homem não age mais conforme as leis da razão; ele não fala mais como um
homem, mas peca contra aquilo que a razão prescreveu. Os animais. Os animais
abandonam-se às suas paixões, seguindo apenas seus impulsos. Os discípulos dos
estoicos chamam pelo nome de ofício aquele que está em conformidade com a
razão; a obediência está baseada nos preceitos, nos quais o fim é fazer
conhecer e amar a verdade. O fim da piedade e da religião é o repouso eterno em
Deus. O começo da eternidade é nosso fim. Essas são as obras que fazem conhecer
aquilo que
há de honesto na piedade e que é feito por motivos virtuosos, de modo que os
ofícios consistem mais em ações do que em palavras. Uma ação virtuosa, e que
convém a um cristão, é a operação da alma razoável, de acordo com o bom juízo e
desejo da verdade, realizada através do corpo, ao qual está unida. A vontade
age por um motivo apenas, e, pela vida eterna, jamais se afasta dos deveres da
honestidade e da virtude, a fim de vive-la livremente. A vida cristã, da qual
falamos agora, é um ajuntamento de ações razoáveis, isto é, que são conduzidas
pela razão. É isto o que chamamos de fé, que é um hábito firme e constante, com
o qual não podemos nos desviar. A fé compreende os mandamentos de Deus, as
máximas que Ele nos ensinou, os conselhos espirituais que Ele nos deu, e que
são de grande utilidade para nossa conduta. Os preceitos que Deus nos deu para
cooperar com a nossa salvação são do ofício e do caráter do Pedagogo e estão
perfeitamente de acordo com as regras da boa conduta. Alguns desses preceitos concernem
à vida civil que devemos levar na terra, enquanto que outros servem para
dispo-nos à vida bem-aventurada no outro mundo. Trataremos aqui dos princípios da Escritura.
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