sexta-feira, 4 de agosto de 2023

CLEMENTE- antologia



 

 

 (material elaborado pelo prof. Paolo Cugini)

            “E’ da natureza do gnóstico não obedecer senão aos impulsos necessários para o sustento corporal, tais como a fome, a sede, e outros do mesmo gênero. Entretanto, seria ridículo afirmar que o corpo do Senhor, enquanto corpo, necessitasse de serviços para o seu sustento. Pois Ele não se alimentava por causa do seu corpo, que era conservado por uma força sagrada, mas com o único intuito de evitar que os seus familiares viessem a formar uma idéia errada a seu respeito, como, de fato, mais tarde alguns julgaram que a sua revelação não passasse de mera aparência. Todavia, não estava sujeito a nenhuma paixão, e era inacessível a quaisquer movimentos passionais de prazer ou de dor. Também os Apóstolos, instruídos pelo Senhor, eram capazes de dominar, à maneira de verdadeiros gnósticos, a ira, o temor e a concupiscência; não cediam nem mesmo aos impulsos passionais tidos em conta de bons, tais como a coragem, o zelo, a alegria e jovialidade, mantendo-se numa espécie de disposição de ânimo inteiramente inabalável, e numa atitude de domínio inalterável de si próprios – pelo menos após a ressurreição do Senhor.  

            Pois ainda que os referidos impulsos sejam considerados bons na medida em que se fazem acompanhar da razão, não se pode contudo admiti-los no homem perfeito. Pois este não tem motivo para ser corajoso, visto não expor-se a perigos, porque nada do que a vida lhe depara lhe parece perigoso, e porque, mesmo independentemente da coragem, nada consegue demovê-lo do amor de Deus. Tampouco necessita da alegria, pois nunca cede à tristeza, convencido de que tudo lhe reverterá em bem; também não se irrita, porque nada pode provocar à ira a quem não cessa de amar a Deus e de entregar-se inteira e exclusivamente a Ele. Pela mesma razão não alimenta ódio contra qualquer criatura de Deus. É-lhe estranho também todo zelo apaixonado, pois de nada carece para conformar-se ao bem e ao belo; e com razão não ama a pessoa alguma com este amor comum; ao contrário, ele ama o Criador através das criaturas.

            Não está, pois, sujeito à cobiça, nem a qualquer outro desejo, e não sente falta de coisa alguma., pelo menos no que respeita à alma; pois já se encontra unido ao seu amado pela caridade, e inseparavelmente ligado a ele por sua própria escolha; aproxima-se progressivamente dele, graças ao seu autodomínio; sente-se feliz na abundância dos seus  bens e esforça-se por assemelhar-se o mais possível ao Mestre pelo domínio das paixões.

            Pois a palavra de Deus é espiritual, e por isso a Sua imagem só se manifesta no homem; com efeito, o homem bom é igual e semelhante a Deus, graças à sua alma, como também deus é semelhante ao homem. Pois a nota distintiva de todo homem é o espírito, pelo qual participamos da essência que nos caracteriza. Por este motivo, aquele que peca contra um homem é criminoso e ímpio.

            Há quem diga, com vã loquacidade, que não convém privar  o gnóstico e o perfeito da ira e do ânimo, porque sem estas qualidades ele se tornaria incapaz de enfrentar os reveses e suportar os perigos. Se, além disso, lhe tirássemos a alegria, ele sucumbiria ao peso das adversidades, e sua morte seria extremamente triste. Mais ainda: quem carece de toda aspiração apaixonada não sente nenhum desejo pelas coisas que nos aparentam como belo e o bem; é assim que muitos pensam. 

            E, perguntam eles, se é impossível achegar-se ao belo sem almejá-lo, como poderia alguém aspirar a ele sem sentir-me apaixonado? Os que assim falam parecem desconhecer o modo de proceder do amor divino; pois este, ao invés de ser uma aspiração do amante, é uma aproximação amorosa, que transporta o gnóstico à unidade da fé, e isto, sem qualquer dependência do espaço e do tempo. O amor lhe faz atingir, desde já, o lugar que lhe está reservado para o futuro, antedando-lhe, pelo conhecimento, o objeto de sua esperança. Por isso já não deseja coisa alguma, pois já possui, na medida do possível, tudo quanto é digno de ser desejado. É, pois, com razão, que ele, amando à maneira dos gnósticos, se mantém naquela disposição inalterável. Também não tende apaixonadamente a assemelhar-se ao belo, pois já participa da beleza pelo amor. que lhe aproveitariam o ânimo e o desejo, um vez que já lhe foi dado aproximar-se, pelo amor, do deus impassível, e ser contado, pelo mesmo amor, no rol dos seus amigos?

            Ser gnóstico ou perfeito, portanto, significa estar livre de toda agitação da alma. Pois o conhecimento produz o domínio de si próprio, e este, fixando-se numa disposição ou estado durável, tem por efeito a apatia, e não a simples moderação das paixões; pois a apatia é o fruto da completa extinção dos apetites.

            Mas o gnóstico também se aparta das chamadas tendências boas, ou seja, das emoções que acompanham as paixões; quero referir-me, por exemplo, à alegria (que acompanha o prazer), ao abatimento (que se prende à aflição) e à cautela (que nasce do temor). Renuncia igualmente à exaltação apaixonada (associada à ira), se bem que muitos afirmem que tais emoções são um bem, e não um mal. Pois é impossível que, uma vez chegado à perfeição da caridade, e admitindo às alegrias imperecíveis, perenemente deliciosas e inesgotáveis da contemplação, alguém possa continuar a agradar-se nas coisas inferiores e terrenas. Com efeito, que motivo racional haveria para volver aos homens mundanos, depois de atingida a “luz inacessível”, senão em termos de tempo e lugar, pelo menos por meio daquele amor gnóstico que conduzirá à herança e à restauração, quando o “retribuidor” virá confirmar efetivamente aquilo que o gnóstico já antecipou pelo amor, graças à sua decisão? Na verdade, o gnóstico que, impelido pelo amor, sai em busca do Senhor, - embora o tabernáculo do seu corpo permaneça visível na terra, - por certo não se desfaz da própria vida (isto lhe é vedado), mas torna a viver, depois de haver destruído seus apetites e cessado de depender do seu corpo, ao qual permite apenas o uso do que é necessário para impedir sua dissolução”.

(Stromata 6,9; 71,1 – 75, 3)

 

 

            A maior de todas as ciências, ao que parece, é conhecer a si mesmo; quem, com efeito, conhece a si mesmo, conhecerá a Deus e, conhecendo Deus, se tornará semelhante a ele, não levando ouro nem manto filosófico, mas operando  o bem e tendo necessidade de pouquíssimas coisas.

            Apenas Deus não tem necessidade de nada e goza sumamente vendo-nos puros na ordem do pensamento e na do corpo, revestidos de uma estola cândida, a temperança.

            - Tríplice é a atividade da alma. A de entender – que se chama racional – é o homem interior, e guia este homem visível; o homem interior, ao contrário, é guiado por outro, ou seja, Deus. A alma irascível, sendo algo de ferino, está próxima da mania. Multiforme é a apetitiva que é a terceira, mais variada que o deus marinho Proteu; toma formas diversas e estimula os adultérios, a volúpia e a molície.

            Tornou-se primeiro um leão barbudo (ainda há o enfeite); os pêlos do queixo mostram que é um homem; depois um dragão, um leopardo, um grande porco; o amor pelo ornamento escorregou na intemperança. O homem não aparece mais semelhante a uma forte fera, mas tornou-se água mole e árvore altíssima.

            Desencadeiam-se as paixões, se desenfreiam os prazeres, murcha a beleza e quando sopram contra ela as paixões eróticas da devassidão cai por terra ainda mais depressa que a pétala, e antes mesmo o outono perde o viço e se destrói. A concupiscência, com efeito, torna-se tudo e se transforma em tudo e tudo quer embelezar para esconder o homem.

            Mas o homem, com o qual coabita o Logos, não altera seu aspecto, não se transforma, tem a forma do Logos, é semelhante a Deus, é belo, não se enfeita. É a beleza verdadeira e, com efeito, é Deus; tal homem se torna Deus, porque Deus o quer.

            De fato, Heráclito disse bem: “Os homens são deuses, os deuses homens, uma vez que a razão é a mesma”. O mistério é claro: Deus está no homem e o homem se torna Deus, e o mediador realiza a vontade do pai. Mediador é o Logos, que é comum a ambas: filho de Deus, salvador dos homens, de Deus servo, de nós pedagogo.

            Uma vez que a carne é serva, conforme Paulo atesta, quem de fato irá querer enfeitar esta criada, á guisa de alcoviteiro? Que a carne seja forma de servo é atestado pelo Apóstolo quando fala do Senhor. “Aniquilou a si mesmo, tomando a natureza de escravo”, chamando escravo o homem de carne antes que  Senhor se tornasse escravo e se encarnasse.

            O próprio Deus, porém, sofrendo na carne, libertou a carne da corrupção e, depois de tê-la afastado da escravidão portadora de morte e amarga, o revestiu de imortalidade, dando-lhe este santo ornamento de eternidade: a imortalidade.

            Existe ainda outra beleza dos homens, a caridade. “A caridade – diz o Apóstolo – é magnânima, é benigna, não é invejosa, não se vangloria, não se incha”. É vanglória o ornamento que tem a aparência do supérfluo e do não necessário. Por isso acrescenta: “não se comporta indecorosamente”. Indecorosa é uma figura estranha e não segundo a natureza. A alusão é estranha, como claramente explica o Apóstolo, dizendo: “não procura aquilo que não é seu”. A verdade, com efeito, chamam natural aquilo que lhe é próprio: a ambição, ao contrário, procura o que é de outrem, permanecendo fora de Deus, do Logos e da caridade.

            Que o próprio Senhor fosse feio de aspecto o atesta o Espírito pela boca de Isaías: “Nós o vimos, não tem aparência nem beleza, mas um aspecto desprezível, rejeitado diante dos homens”. Todavia, quem é melhor que o Senhor? Não a beleza enganadora da carne, mas a verdadeira beleza da alma e do corpo ele fez ver, mostrando a benevolência da alma e a imortalidade da carne. 

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