(material elaborado pelo prof. Paolo Cugini)
“E’ da natureza do gnóstico não
obedecer senão aos impulsos necessários para o sustento corporal, tais como a
fome, a sede, e outros do mesmo gênero. Entretanto, seria ridículo afirmar que
o corpo do Senhor, enquanto corpo, necessitasse de serviços para o seu
sustento. Pois Ele não se alimentava por causa do seu corpo, que era conservado
por uma força sagrada, mas com o único intuito de evitar que os seus familiares
viessem a formar uma idéia errada a seu respeito, como, de fato, mais tarde
alguns julgaram que a sua revelação não passasse de mera aparência. Todavia,
não estava sujeito a nenhuma paixão, e era inacessível a quaisquer movimentos
passionais de prazer ou de dor. Também os Apóstolos, instruídos pelo Senhor,
eram capazes de dominar, à maneira de verdadeiros gnósticos, a ira, o temor e a
concupiscência; não cediam nem mesmo aos impulsos passionais tidos em conta de
bons, tais como a coragem, o zelo, a alegria e jovialidade, mantendo-se numa
espécie de disposição de ânimo inteiramente inabalável, e numa atitude de
domínio inalterável de si próprios – pelo menos após a ressurreição do
Senhor.
Pois ainda que os referidos impulsos sejam considerados
bons na medida em que se fazem acompanhar da razão, não se pode contudo
admiti-los no homem perfeito. Pois este não tem motivo para ser corajoso, visto
não expor-se a perigos, porque nada do que a vida lhe depara lhe parece
perigoso, e porque, mesmo independentemente da coragem, nada consegue demovê-lo
do amor de Deus. Tampouco necessita da alegria, pois nunca cede à tristeza,
convencido de que tudo lhe reverterá em bem; também não se irrita, porque nada
pode provocar à ira a quem não cessa de amar a Deus e de entregar-se inteira e
exclusivamente a Ele. Pela mesma razão não alimenta ódio contra qualquer
criatura de Deus. É-lhe estranho também todo zelo apaixonado, pois de nada
carece para conformar-se ao bem e ao belo; e com razão não ama a pessoa alguma
com este amor comum; ao contrário, ele ama o Criador através das criaturas.
Não está, pois, sujeito à cobiça, nem a qualquer outro
desejo, e não sente falta de coisa alguma., pelo menos no que respeita à alma;
pois já se encontra unido ao seu amado pela caridade, e inseparavelmente ligado
a ele por sua própria escolha; aproxima-se progressivamente dele, graças ao seu
autodomínio; sente-se feliz na abundância dos seus bens e esforça-se por assemelhar-se o mais
possível ao Mestre pelo domínio das paixões.
Pois a palavra de Deus é espiritual, e por isso a Sua
imagem só se manifesta no homem; com efeito, o homem bom é igual e semelhante a
Deus, graças à sua alma, como também deus é semelhante ao homem. Pois a nota
distintiva de todo homem é o espírito, pelo qual participamos da essência que
nos caracteriza. Por este motivo, aquele que peca contra um homem é criminoso e
ímpio.
Há quem diga, com vã loquacidade, que não convém
privar o gnóstico e o perfeito da ira e
do ânimo, porque sem estas qualidades ele se tornaria incapaz de enfrentar os
reveses e suportar os perigos. Se, além disso, lhe tirássemos a alegria, ele sucumbiria
ao peso das adversidades, e sua morte seria extremamente triste. Mais ainda:
quem carece de toda aspiração apaixonada não sente nenhum desejo pelas coisas
que nos aparentam como belo e o bem; é assim que muitos pensam.
E, perguntam eles, se é impossível achegar-se ao belo sem
almejá-lo, como poderia alguém aspirar a ele sem sentir-me apaixonado? Os que
assim falam parecem desconhecer o modo de proceder do amor divino; pois este,
ao invés de ser uma aspiração do amante, é uma aproximação amorosa, que
transporta o gnóstico à unidade da fé, e isto, sem qualquer dependência do
espaço e do tempo. O amor lhe faz atingir, desde já, o lugar que lhe está
reservado para o futuro, antedando-lhe, pelo conhecimento, o objeto de sua
esperança. Por isso já não deseja coisa alguma, pois já possui, na medida do
possível, tudo quanto é digno de ser desejado. É, pois, com razão, que ele,
amando à maneira dos gnósticos, se mantém naquela disposição inalterável.
Também não tende apaixonadamente a assemelhar-se ao belo, pois já participa da
beleza pelo amor. que lhe aproveitariam o ânimo e o desejo, um vez que já lhe
foi dado aproximar-se, pelo amor, do deus impassível, e ser contado, pelo mesmo
amor, no rol dos seus amigos?
Ser gnóstico ou perfeito, portanto, significa estar livre
de toda agitação da alma. Pois o conhecimento produz o domínio de si próprio, e
este, fixando-se numa disposição ou estado durável, tem por efeito a apatia, e
não a simples moderação das paixões; pois a apatia é o fruto da completa
extinção dos apetites.
Mas o gnóstico também se aparta das chamadas tendências
boas, ou seja, das emoções que acompanham as paixões; quero referir-me, por
exemplo, à alegria (que acompanha o prazer), ao abatimento (que se prende à
aflição) e à cautela (que nasce do temor). Renuncia igualmente à exaltação
apaixonada (associada à ira), se bem que muitos afirmem que tais emoções são um
bem, e não um mal. Pois é impossível que, uma vez chegado à perfeição da
caridade, e admitindo às alegrias imperecíveis, perenemente deliciosas e
inesgotáveis da contemplação, alguém possa continuar a agradar-se nas coisas
inferiores e terrenas. Com efeito, que motivo racional haveria para volver aos
homens mundanos, depois de atingida a “luz inacessível”, senão em termos de
tempo e lugar, pelo menos por meio daquele amor gnóstico que conduzirá à
herança e à restauração, quando o “retribuidor” virá confirmar efetivamente
aquilo que o gnóstico já antecipou pelo amor, graças à sua decisão? Na verdade,
o gnóstico que, impelido pelo amor, sai em busca do Senhor, - embora o tabernáculo
do seu corpo permaneça visível na terra, - por certo não se desfaz da própria
vida (isto lhe é vedado), mas torna a viver, depois de haver destruído seus
apetites e cessado de depender do seu corpo, ao qual permite apenas o uso do
que é necessário para impedir sua dissolução”.
(Stromata 6,9; 71,1 – 75,
3)
A maior de todas as ciências, ao que parece, é conhecer a
si mesmo; quem, com efeito, conhece a si mesmo, conhecerá a Deus e, conhecendo
Deus, se tornará semelhante a ele, não levando ouro nem manto filosófico, mas
operando o bem e tendo necessidade de
pouquíssimas coisas.
Apenas Deus não tem necessidade de nada e goza sumamente
vendo-nos puros na ordem do pensamento e na do corpo, revestidos de uma estola
cândida, a temperança.
- Tríplice é a atividade da alma. A de entender – que se
chama racional – é o homem interior, e guia este homem visível; o homem
interior, ao contrário, é guiado por outro, ou seja, Deus. A alma irascível,
sendo algo de ferino, está próxima da mania. Multiforme é a apetitiva que é a
terceira, mais variada que o deus marinho Proteu; toma formas diversas e
estimula os adultérios, a volúpia e a molície.
Tornou-se primeiro um leão barbudo (ainda há o enfeite);
os pêlos do queixo mostram que é um homem; depois um dragão, um leopardo, um
grande porco; o amor pelo ornamento escorregou na intemperança. O homem não
aparece mais semelhante a uma forte fera, mas tornou-se água mole e árvore
altíssima.
Desencadeiam-se as paixões, se desenfreiam os prazeres,
murcha a beleza e quando sopram contra ela as paixões eróticas da devassidão
cai por terra ainda mais depressa que a pétala, e antes mesmo o outono perde o
viço e se destrói. A concupiscência, com efeito, torna-se tudo e se transforma
em tudo e tudo quer embelezar para esconder o homem.
Mas o homem, com o qual coabita o Logos, não altera seu
aspecto, não se transforma, tem a forma do Logos, é semelhante a Deus, é belo,
não se enfeita. É a beleza verdadeira e, com efeito, é Deus; tal homem se torna
Deus, porque Deus o quer.
De fato, Heráclito disse bem: “Os homens são deuses, os
deuses homens, uma vez que a razão é a mesma”. O mistério é claro: Deus está no
homem e o homem se torna Deus, e o mediador realiza a vontade do pai. Mediador
é o Logos, que é comum a ambas: filho de Deus, salvador dos homens, de Deus
servo, de nós pedagogo.
Uma vez que a carne é serva, conforme Paulo atesta, quem
de fato irá querer enfeitar esta criada, á guisa de alcoviteiro? Que a carne
seja forma de servo é atestado pelo Apóstolo quando fala do Senhor. “Aniquilou
a si mesmo, tomando a natureza de escravo”, chamando escravo o homem de carne
antes que Senhor se tornasse escravo e
se encarnasse.
O próprio Deus, porém, sofrendo na carne, libertou a
carne da corrupção e, depois de tê-la afastado da escravidão portadora de morte
e amarga, o revestiu de imortalidade, dando-lhe este santo ornamento de
eternidade: a imortalidade.
Existe ainda outra beleza dos homens, a caridade. “A
caridade – diz o Apóstolo – é magnânima, é benigna, não é invejosa, não se
vangloria, não se incha”. É vanglória o ornamento que tem a aparência do
supérfluo e do não necessário. Por isso acrescenta: “não se comporta
indecorosamente”. Indecorosa é uma figura estranha e não segundo a natureza. A
alusão é estranha, como claramente explica o Apóstolo, dizendo: “não procura
aquilo que não é seu”. A verdade, com efeito, chamam natural aquilo que lhe é
próprio: a ambição, ao contrário, procura o que é de outrem, permanecendo fora
de Deus, do Logos e da caridade.
Que o próprio Senhor fosse feio de aspecto o atesta o
Espírito pela boca de Isaías: “Nós o vimos, não tem aparência nem beleza, mas
um aspecto desprezível, rejeitado diante dos homens”. Todavia, quem é melhor
que o Senhor? Não a beleza enganadora da carne, mas a verdadeira beleza da alma
e do corpo ele fez ver, mostrando a benevolência da alma e a imortalidade da
carne.
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