A atividade da causa segunda no
conhecimento
Material elaborado por Paolo Cugini
Respondo que
em três pontos ocorre idêntica diverg6encia de opiniões, a saber: quanto à educação
das formas ao ser, quanto à aquisição das virtudes e quanto à aquisição das
ciências.
Pois alguns
afirmaram que as formas sensíveis se originam todas de fora, a saber, de uma
substância ou forma separada (da matéria), a que dão o nome de doador das
formas ou inteligência agente. Afirmam, além disso, que todos os agentes
naturais inferiores outra coisa não fazem senão preparar a matéria para a
recepção da formas. De modo semelhante diz Avicena em sua metafísica que a
nossa ação não é a causa do hábito da
honestidade (i. é, das virtudes), mas que ela impede apensa o que é contrário a
este hábito, preparando-lhe assim o terreno, para que ele lhe advenha mediante
uma substância aperfeiçoadora das almas humanas, a saber, por uma inteligência
agente ou outra substância semelhante. Afirmaram igualmente que a ciência não
se efetua em nós senão por um agente separado (o “intellectus”). Por isso
Avicena declara (no segundo livro De Naturalibus) que as formas inteligíveis
defluem de um inteligência agente para o nosso espírito.
Outros, porém,
são de opinião contrária, e julgam que tudo isto é intrínseco às coisas; estas
não o recebriam de uma causa externa, mas apenas o manifestariam por sua
atividade exterior. Pois alguns asseguram que todas as formas naturais estão
atualmente latentes na matéria, e que o agente natural outra coisa não faz
senão extraí-las e trazê-las à luz a parir do seu estado de latência.
Semelhantemente;
alguns asseveram que todos os hábitos virtuosos nos são implantados pela
natureza; mas que pelo exercício das obras afastam-se os impedimentos que, por
assim dizer, ocultam os referidos hábitos, do mesmo modo como pela limagem se
remove a ferrugem, a fim de pôr à vista o brilho do ferro. Igualmente afirmaram
alguns que a ciência de todas as coisas
é concriada com a alma, e que o ensino e os demais recursos da ciência servem
apenas para fazer com que a alma torne a recordar ou a atender às coisas já
sabidas previamente; e por isso dizem que o aprendizado não passa de simples
recordação.
Ambas estas
opiniões, porém, carecem de fundamento. Pois a primeira exclui as causas
próximas, ao atribuir exclusivamente às causas primeiras todos os efeitos que
ocorrem nas coisas inferiores; o que significa uma derrogação à ordem do
universo, que é uma contextura ordenada e concatenada de causas; porquanto a
primeira causa, em sua excessiva bondade, confere às outras coisas não apenas o
ser, como também o ser causa. A segunda opinião incorre num inconveniente quase
idêntico: pois aquilo que afasta um obstáculo não move senão acidentalmente
como se diz no 8º Livro da Física. De sorte que, se os agentes inferiores outra
coisa não fazem senão trazer à luz o que estava latente, mediante a remoção dos
impedimentos que ocultavam as formas e os hábitos das virtudes e do
conhecimento, então todos os agentes inferiores agem só acidentalmente.
Por isso,
segundo a doutrina de Aristóteles, importa seguir um caminho médio entre estas
duas em todas as questões acima referidas. Pois as formas naturais preexistem
na matéria, não em ato, como diziam alguns, mas só em potência, da qual são
trazidas ao ato um agente extrínseco próximo, e não exclusivamente pelo agente
primeiro, como supunha a outra opinião. De modo semelhante, segundo a sentença
do mesmo autor no 6º livro da Ética, também os hábitos virtuosos preexistem em
nós anteriormente à sua consumação em
forma de certas inclinações naturais, que são como que os inícios das virtudes,
e que depois são levadas ao seu devido acabamento pela prática das obras.
O mesmo se
deve dizer da aquisição do saber. Preexistem em nós certos germes do saber,
isto é, os conceitos supremos do intelecto, imediatamente conhecidos pela luz
do intelecto agente, mediante as espécies abstraídas das coisas sensíveis, quer
sejam compostos, como acontece com os primeiros princípios, quer simples, como
ocorre com a noção do ser, do uno, e de outras semelhantes, que são apreendidas
imediatamente pelo intelecto. Destes princípios universais derivam todos os
princípios, como de suas razões seminais. Portanto, toda a vez que, a partir
destes conhecimentos universais, o espírito chega a conhecer atualmente as
coisas particulares que antes eram conhecidas em potência e como que
universalmente, dir-se-á que alguém adquire um saber.
Assim como há
uma dupla maneira de curar-se: ou pela simples operação da natureza, ou pela
natureza assistida pela medicina, assim também há dois modos de adquirir o
saber: ora, a razão natural chega por si mesma ao conhecimento das coisas
desconhecidas - e neste caso temos o que
se sói chamar uma invenção ou descoberta: ora a razão natural é auxiliada por
outro e de fora – e a este processo se dá o nome de ensino. Pois bem: nas
coisas produzidas pela natureza e pela arte, esta última atua de modo idêntico
e com os mesmos meios que a natureza. Pois assim como a natureza restituiria a
saúde por calefação, a quem sofresse de uma causa ‘fria’, assim procede também
o médico. Por isso se diz que a arte imita a natureza. O mesmo se dá na
aquisição do saber: o que ensina a
outrem o conduz ao conhecimento de coisas desconhecidas do mesmo modo como se
conduziria a si mesmo ao conhecimento de algo desconhecido por meio da invenção.
Eis o processo
que a razão emprega para atingir ao conhecimento do desconhecido pela invenção:
ela aplica os princípios comuns e
auto-evidentes a certos objetos e a partir daí procede a certas conclusões
particulares, e destas, a outras. De maneira análoga se diz que alguém ensina a
outrem quando, por meio de sinais, lhe expõe este processo da razão realizado
em si próprio pela razão natural. E assim, a razão natural do aluno, por meio
destes (sinais) que lhe são propostos, chega ao conhecimento de coisas
desconhecidas, como que servindo-se de certos instrumentos.
Portanto,
assim como se diz que o médico produz a saúde no enfermo pela operação da
natureza, assim se diz que um homem causa o saber em outro pela operação da razão natural deste. E
nisto consiste o ensino. E por isso se diz que um homem ensina a outro e é seu
mestre. Neste sentido diz o Filósofo no 1º livro dos Analíticos Posteriores que
a demonstração é um silogismo que conduz ao saber.
Mas se alguém
propuser a outro alguma coisa não incluída nos princípios auto-evidentes, ou
não manifestamente incluído neles, este tal não produz nenhum saber naquele
outro, mas, quando muito, uma opinião ou uma crença, embora também isto seja
causado de algum modo a partir dos princípios inatos; pois é na base dos
próprios auto-evidentes que ele julga dever reter com certeza o que deles
necessariamente decorre, e rejeitar totalmente o que lhes é contrário; às
outras coisas, porém, poderá prestar assentimento, ou não.
Esta luz da
razão, pela qual estes princípios nos são conhecidos, nos foi implantada por
Deus, e é uma como semelhança da verdade incriada que refulge em nós. Visto,
pois, que qualquer doutrina humana não pode ter
eficácia senão em virtude daquela luz, consta que só Deus ensina
interiormente e em primeiro lugar, assim como a natureza cura principalmente
por sua ação interna. Contudo, é da maneira supramencionada que propriamente se
fala em curar e ensinar.
(De
veritate, quaestio 11, articulus 1)
É preciso, portanto, saber que, como
afirma o Filósofo no V livro da
Metafísica, o ente por si diz-se em dois modos: no primeiro, é ente aquilo que
se divide nos dez gêneros; no outro, é ente aquilo que significa a verdade das
proposições. A diferença está aqui no fato de que no segundo sentido podemos
dizer ente tudo aquilo em torno do qual é possível formar uma proposição
afirmativa, mesmo quando não indica nada de real; e neste sentido dizemos entes
também as privações e as negações: dizemos, com efeito, que a afirmação é
oposta à negação, e que a cegueira está no olho. No primeiro modo, ao
contrário, podemos dizer ente apenas aquilo que põe algo de real, e neste
sentido a cegueira e as outras coisas deste tipo não são entes.
O termo
essência, portanto, não se consegue a partir da segunda acepção de ente:
denominam-se com efeito entes deste modo algumas coisas que não possuem uma
essência, como é evidente nas privações; a essência deduz-se, ao contrário, da
primeira acepção de ente. Por isso o Comentador, no mesmo lugar, diz que o ente
entendido deste primeiro modo é aquilo que indica a substância da coisa. E uma
vez que, como se disse, o ente entendido deste modo se divide nos dez gêneros, é preciso que a ess6encia indique
algo de comum a todas as naturezas através das quais os diversos entes podem
ser colocados nos vários gêneros e nas várias espécies, assim como a humanidade
é a ess6encia do homem, e assim por diante.
E uma vez que
aquilo por meio do qual a coisa é constituída no próprio gênero a definição que
exprime aquilo que a coisa é, daí se segue que o termo essência é mudado pelos
filósofos no de qualidade: e este é também aquilo que o próprio filósofo chama
de “aquilo que era o ser”, isto é, aquilo por meio do qual algo possui o fato
de ser aquela coisa. A essência é chamada também forma, à medida que como forma
se entende a certeza de cada coisa, como diz Avicena no segundo livro da sua
Metafísica. E com outro nome, a essência também é chamada natureza, tomando
“natureza” conforme a primeira das quatro acepções distintas por Boécio no
tratado Sobre duas naturezas, isto é, aquela pela qual se diz natureza tudo
aquilo que de qualquer modo pode ser apreendido pelo intelecto; com efeito,
toda coisa é inteligível apenas em virtude de sua definição e essência, e neste
sentido também o Filósofo afirma, no quinto livro da sua Metafísica, que toda
subst6ancia é uma natureza. Todavia, o termo natureza, entendido deste modo,
parece significar a essência da coisa
enquanto é ordenada à sua própria operação, a partir do momento que nenhuma
coisa pode faltar à sua operação essencial; o termo qüididade e, ao contrário,
tomado daquilo que é expresso através da definição. Mas diz-se essência pelo
fato de que o ente possui seu ser em virtude dela e nela.
Enquanto o ente se diz em sentido absoluto e em
primeiro lugar das substâncias, e secundariamente e quase em sentido relativo
dos acidentes, podemos concluir que a essência está própria e verdadeiramente
nas substâncias, enquanto nos acidentes está de algum modo, e em sentido relativo.
Entre as substâncias algumas são simples
e algumas compostas, e em ambos os tipos está a essência, mas nas simples de
modo mais verdadeiro e mais nobre, à medida que também seu ser é mais nobre:
elas são, com efeito, causa das compostas, ou ao menos o é a substância
primeira simples, que é Deus. Mas, uma vez que as essências das substâncias
simples são para nós menos manifestas, é preciso partir das essências
compostas, de modo que partindo das coisas mais fáceis o procedimento se torne
mais maleável.
Parece que a
alma é um corpo. Com efeito:
1.
A alma é o elemento motor do corpo. Mas não se pode dizer que
seja um móvel não movido. Tanto porque parece que nada possa imprimir um
movimento, se não for por sua vez movido; pois ninguém dá aquilo que não tem,
como um objeto não quente não aquece. E também porque, se existisse um motor
não movido, causaria um movimento sempiterno e uniforme, como prova
Aristóteles; e isto não se verifica no movimento do animal, que provém da alma.
Portanto, a alma é um motor movido. Mas todo motor movido é corpo. Portanto, a
alma é um corpo.
2.
Todo conhecimento ocorre mediante uma semelhança. Ora, não
pode acontecer que um corpo se assemelhe
a uma coisa incorpórea. Portanto, se a alma não fosse um corpo, não poderia
conhecer as coisas materiais.
3.
É necessário que haja um contato entre o motor e a coisa
movida. Mas o contato não acontece a não ser entre os corpos. Por isso, se a
alma move o corpo, também ela deve ser um corpo.
Em contrário: Santo Agostinho ensina que a alma “é
dita simples por respeito ao corpo, pois ela não ocupa o espaço mediante a
quantidade”.
Respondo: Para indagar sobre a natureza da alma, é preciso
partir do pressuposto que a alma é o primeiro princípio da vida nos viventes
que nos circundam”: com efeito, chamamos, animados os seres viventes, e
inanimados os que são privados de vida. A vida, depois, se manifesta
especialmente na dupla atividade do conhecimento e do movimento. Os antigos
filósofos, que não conseguiam elevar-se acima da imaginação, consideravam que o
princípio de tais atividades fosse um corpo; por isso afirmavam que somente os
corpos são seres reais e que fora deles só há o nada. Em base a isso, diziam
que a alma não é mais que um corpo.
Embora se possa mostrar a falsidade
de tal opinião de muitos modos, todavia usaremos um só argumento que, por sua
universalidade e certeza, prova como a alma não é um só corpo. Com efeito, é
evidente que nem todo princípio de operações vitais é uma alma, de outra forma
também o olho seria uma alma, sendo princípio da operação visiva; e poderíamos
dizer o mesmo dos outros órgãos da alma. Nós, ao invés, chamamos de alma o
primeiro princípio da vida. Ora, ainda que um corpo possa ser em certo sentido
princípio de vida, o coração, por exemplo, é princípio de vida no animal;
todavia, um corpo jamais poderá ser primeiro princípio de vida. Com efeito, é
manifesto que ao corpo, enquanto corpo, não pertence nem ser princípio de vida,
nem ser um vivente: de outro modo todo corpo seria um vivente, ou princípio de vida.
Portanto, se um corpo é vivente ou princípio de vida, isso depende do fato de
que ele é tal corpo. Ora, um ser é atualmente tal por força de um princípio,
que é chamado o seu ato. Por isso a alma, que é o primeiro princípio de vida,
não é um corpo mas ato de um corpo: como o calor, que é princípio do
aquecimento, não é um corpo, mas o ato (ou a perfeição) de um corpo.
Solução
das dificuldades:
1)
Embora tudo aquilo que se move seja movido por outro, não se pode, todavia, remontar ao
infinito e, portanto, é necessário afirmar que nem todo movente é movido. Com
efeito, se o mover-se não é mais que um sair da potência para o ato, o motor há
ano ao móvel aquilo que tem, enquanto o atua. Ora, como prova Aristóteles,
existe um motor inteiramente imóvel, que não se move nem por natureza nem
indiretamente: e tal motor é capaz de imprimir um movimento uniforme. Ao
contrário, há outros motores que, embora não estando sujeitos ao movimento por
força de sua natureza, a ele estão sujeitos indiretamente: por isso eles não
imprimem um movimento sempre uniforme. A alma é um deste: Há, finalmente,
outros motores, que são sujeitos ao movimento por força de sua natureza, isto
é, os corpos. Mas uma vez que os antigos filósofos naturalistas só acreditavam
na existência dos corpos, afirmavam que todo motor era movido, e que a própria alma estava
sujeita ao movimento por força de sua natureza, e que ela fosse um corpo.
2)
Não é necessário que a semelhança da coisa conhecida se
encontre atualmente na natureza do cognoscente; porque se temos um ser, o qual
antes seja cognoscente em potência e
depois em ato, não é necessário que a semelhança (ou imagem) do objeto
conhecido se encontre em ato na natureza do cognoscente, mas basta que aí se
encontre em potência; assim a cor não está atualmente mas apenas potencialmente
na pupila. Portanto, não é necessário que as semelhanças das coisas materiais
se encontrem atualmente na essência da alma, mas que esta esteja em
potência a (receber) tais semelhanças.
Mas, uma vez que os antigos Naturalistas não sabiam distinguir entre ato e
potência, afirmavam que a alma era um corpo, justamente para que pudesse
conhecer os corpos; mais ainda, afirmavam que era composta dos princípios
(elementares) de todos os corpos, a fim de que seu conhecimento pudesse se
estender que seu conhecimento pudesse se estender a todos os corpos.
3)
Pode haver duas espécies de contatos: o contato quantitativo
e o virtual. Com o primeiro um corpo só pode ser tocado por um corpo. Com o
segundo, um corpo pode ser tocado também por um ser incorpóreo, que o move.
Parece que a
alma humana não é algo subsistente. Com efeito:
1)
Aquilo que é subsistente é um hoc aliquid (isto é, um ser
concreto). Ora, não a alma, mas o composto de alma e corpo é um hoc aliquid.
Portanto, a alma não é subsistente.
2)
Tudo aquilo que subsistente podemos dizer que opera. Ora, não
se pode afirmar que a alma opere; uma vez que, conforme Aristóteles, “Dizer que
a alma sente ou que entende, é como dizer que ela tece ou que edifica”.
Portanto, a alma não é um ser subsistente.
3)
E se a alma fosse algo subsistente, deveria ter uma atividade
qualquer sem o corpo. Ao contrário, não existe nenhuma atividade sem o corpo,
nem mesmo o entender; uma vez que não há intelecção sem fantasma, e isso não é
possível sem o corpo. Portanto, a alma humana não é algo subsistente.
Em contrário: Santo Agostinho ensina: “Quem vê a
natureza da mente, isto é, como ela é uma substância, e além do mais não
corpórea, vê também que aqueles, os quais opinam que ela é corpórea, enganam-se
ao atribuir-lhe aquelas coisas sem as quais não podem conceber nenhuma
natureza, isto é, os semblantes dos corpos”. Por isso, não só a natureza da
mente humana é imaterial, mas é ainda uma substância, isto é, algo subsistente.
Respondo: Devemos necessariamente afirmar que o princípio da
operação intelectiva, isto é, a alma do homem, é incorpóreo e subsistente. Com
efeito, é sabido que o homem com sua inteligência pode conhecer a natureza de
todos os corpos. Ora, quem tem a faculdade de conhecer as coisas, não deve
possuir nenhuma delas em sua natureza; porque, a que estivesse inserida nela
por natureza impediria o conhecimento das outras. Com efeito, vemos que a
língua do enfermo, quando está infectada de humor bilioso e amargo, não pode
perceber o doce, mas tudo lhe parece amargo. Portanto, se o princípio
intelectivo tivesse em s mesmo a natureza de algum corpo, não poderia conhecer
todos os corpos. Tanto mais que cada corpo possui uma natureza determinada. Por
conseguinte, é impossível que o princípio intelectivo seja um corpo.
Da mesma
forma, é impossível que ele entenda mediante um órgão corpóreo, porque também a
natureza desse órgão material impediria o conhecimento de todos os corpos; com
efeito, se determinada cor além de estar na pupila (no momento do conhecimento)
também está no recipiente de vidro, os líquidos nele vertidos aparecerão
(sempre) da mesma cor.
Por isso o
princípio intelectivo, chamado mente ou intelecto, tem uma atividade própria,
na qual o corpo não entra. Ora, nada pode operar por si mesmo, se não subsiste
por si mesmo. A operação, com efeito, só compete ao ente em ato; tanto é
verdade que as coisas operam conforme seu modo de existir. Por isso não dizemos
que o calor aquece; quem aquece é o sujeito do calor (calidum). Portanto, permanece
demonstrado que a alma humana, que é chamada mente ou intelecto, é um ser
corpóreo e subsistente.
Solução das dificuldades:
1)
A expressão hoc aliquid pode ser tomada em dois sentidos:
para indicar qualquer ser subsistente ou então para indicar um ser subsistente
que é completo na natureza de dada espécie. Tomado no primeiro modo, exclui a
inerência, própria do acidente e da forma material: no segundo exclui ainda a
imperfeição que tem a parte (em relação ao todo). Portanto, a mão, por exemplo,
se poderá dizer hoc aliquid no primeiro modo, mas não no segundo. Ora, sendo a
alma uma parte da espécie humana, poder-se-á denominar hoc aliquid no primeiro
modo, sendo adotada de uma subsistência, mas não no segundo modo. Neste
sentido, (apenas) o composto de alma e de corpo se diz hoc aliquid.
2)
Aristóteles usa aquelas palavras não para exprimir seu
parecer, mas o de quem dizia que o entender é um movimento, como se depreende
do contexto.
Também se pode
responder que a operação propriamente pertence a quem propriamente existe. Por
vezes porém, se pode dizer que uma coisa propriamente existe quando, sem ser um
acidente ou uma forma corpórea, é todavia parte (de um todo). Mas se diz que
uma coisa é rigorosa e propriamente subsistente, quando não só não é inerente a
um sujeito no modo dito acima, mas não é nem mesmo parte (de um todo). Sob este
ponto de vista, nem o olho nem a mão se podem dizer propriamente subsistentes,
e por conseguinte nem sequer propriamente operantes. É por isso que as
operações das partes são atribuídas ao todo. Com efeito, dizemos que é o homem
que vê mediante o olho e apalpa mediante a mão, mas não como um objeto quente
que aquece mediante o calor: pois o calor, falando propriamente, não aquece de
nenhum modo. Portanto, podemos afirmar que a alma entende, como o olho vê; mas
em sentido rigoroso é melhor dizer que é o homem que entende, mediante a alma.
3)
Para que o intelecto aja requer-se o corpo, não como um órgão
necessário para exercitar tal ação, mas apenas como objeto: com efeito, a imagem
fantástica está no intelecto, assim como o calor para a vista. Mas ter tal
necessidade do corpo não exclui que o intelecto seja subsistente; de outro modo
também o animal não seria um ser subsistente, pois tem necessidade das coisas
exteriores sensíveis para senti. (A suma
teológica, vol. V)
Parece que não
seria necessário a existência de uma lei divina (positiva). Com efeito:
1)
A lei natural, conforme dissemos, é uma participação humana
da lei eterna. Mas a lei eterna, conforme vimos, é lei divina. Portanto, não é
necessário que, além, da lei natural e das leis humanas que dela derivam,
também exista outra lei divina.
2)
Está escrito que “Deus deixou homem na mão de seu conselho”.
Ora, vimos acima que o conselho é um ato da razão. Portanto, o homem foi
entregue ao governo da própria razão. Mas o ditame da razão humana forma, como
dissemos, a lei humana. Portanto, não é preciso que o homem seja governado por
uma lei divina.
3)
A natureza humana é provida melhor do que as criaturas
privadas de razão. Ora, estas criaturas não têm
uma lei divina, distinta de sua inclinação natural inata. Muito menos,
portanto, deverá ter uma lei divina a criatura racional.
Em contrário: Davi pede a Deus expressamente a
imposição de uma lei: “Senhor, impõe-me uma lei no caminho de teus estatutos”.
Respondo: Para a orientação de nossa vida era necessária, além
da lei natural e da humana, uma lei divina (positiva). E isso por quatro
motivos. Primeiro, porque o homem, mediante a lei, é guiado em seus atos em
direção ao fim último. Se ele, com efeito, fosse ordenado apenas a um fim que
não supera a capacidade das faculdades humanas, não seria necessário que
tivesse uma orientação de ordem racional superior à lei natural e à lei humana
positiva que dela resulta. Mas, sendo o homem ordenado ao fim da
bem-aventurança eterna, a qual ultrapassa, conforme vimos acima, as capacidades
naturais do homem, era necessário que ele
fosse dirigido a seu fim, acima da ei natural e humana, por uma lei dada
expressamente por Deus.
Segundo, porque
a propósito dos atos humanos há muitas diferenças de valoração, dada a
incerteza do julgamento humano, especialmente em relação aos fatos contingentes
e particulares. Por isso, para que o homem pudesse saber sem nenhuma dúvida
aquilo que deve fazer ou evitar, era necessário que em seus atos fosse guiado
por uma lei revelada por Deus, na qual não pode haver erro.
Terceiro,
porque o homem se limita a legislar sobre aquilo que pode julgar. Ora, o homem
não pode julgar os atos internos, que estão escondidos, mas apenas os extremos
e visíveis. Todavia, a perfeição da virtude requer que o homem seja reto em uns
e nos outros. Portanto, a lei humana não podia reprimir, u comandar
eficazmente, os atos interiores; para isso era necessário a intervenção da lei
divina.
Quarto, como
nota Santo Agostinho, a lei humana não é capaz de punir e de proibir todas as
ações más, pois, se quisesse eliminar todas elas, muitos bens seriam eliminados
e ficaria comprometido o bem comum, necessário para o relacionamento humano.
Por isso, para que nenhuma culpa permanecesse impune, era necessário a
intervenção da lei divina, que proíbe todos os pecados.
Esses quatro
motivos são acenados em uma frase dos salmos: “A lei do Senhor é sem mancha”,
ou seja, não admite nenhuma fealdade de pecado; “refaz as almas”, pois regula
não só os atos externos, mas também os internos; “o testemunho do Senhor é
seguro”, por causa da certeza da verdade e da retidão; “dá a sabedoria aos
pequeninos”, enquanto ordena o homem ao fim sobrenatural e divino.
Solução das dificuldades:
1)
A lei eterna é participação pela lei natural conforme a
capacidade da natureza humana. Mas o homem tem necessidade de ser guiado de
modo mais alto ao fim último sobrenatural. Eis por que se tem uma lei divina positiva, mediante a qual a
lei eterna é participada em um grau mais alto.
2)
O conselho é uma busca: e, de fato, deve mover a partir de
alguns princípios. Mas, pelas razões aduzidas, não basta basear-se sobre
princípios postos em nós pela natureza, que são os preceitos da lei natural; é
necessário, ao invés, recorrer a outros princípios, isto é, aos preceitos da
lei divina.
3)
As criaturas irracionais não são ordenadas a um fim superior
às suas capacidades naturais. Por isso a comparação não se sustenta. (A suma teológica, vol.
XII)
Nenhum comentário:
Postar um comentário