domingo, 15 de outubro de 2023

René Girard, a rota antiga dos homens perversos

 



                          São Paulo, PAULUS,2009

 

 Digitação: Jaciara Souza Pereira

Síntese pe Paolo Cugini 



                                                  Primeira Parte

                                                  O CASO DE JÓ           

                                                                1

                                             JÓ, VÍTIMA DE SEU POVO

A novidade que proponho não está oculta no obscuro recôndito do livro de Jó. É muito explícita; expõe-se em numerosas e copiosas passagens inequívocas.

Jó diz claramente o que lhe faz sofrer: ver-se condenado ao ostracismo, perseguido pelos seres que o rodeiam. Não fez nada de mal e todo mundo se afasta dele, enfureceu-se contra ele. É o bode expiatório de sua comunidade:

       Ele afastou de mim os irmãos, os parentes procuram evitar-me.

       Abandonaram-me vizinhos e conhecidos, esqueceram-me os hóspedes de minha casa.

      Minhas servas consideram-me um intruso, a seu ver sou um estranho.

      Chamo ao meu servo, e não me responde, devo até suplicar-lhe.

     Á minha mulher repugna meu hálito, e meu mau cheiro, aos meus próprios irmãos.

   Até as crianças me desprezam e insultam-me, se procuro levantar-me.

  Todos os meus íntimos têm-me aversão, meus amigos voltam se contra mim (Jó 19,13-                 19)*.

Jó lembra o trágico bode nesse fétido odor que sua mulher o critica por exalar e que, significativamente, reaparece em numerosos mitos primitivos. (p.9 e 10)

As passagens reveladoras são abundantes. Como não posso multiplicar ao infinito as citações, escolhi a que considero mais significativa, na ótica que me interessa. Nela aparece um subgrupo que desempenha na sociedade de Jó um papel de bode expiatório permanente:

     Mas agora zombam de mim moços mais jovens que eu, a cujos pais teria recusado    deixar com os cães do meu rebanho.

  (...) bandidos das sociedades dos homens,a gritos, como a ladrões, morando em barracos escarpados, em covas e grutas do rochedo.

 (...) gente vil, homens sem nome, são rejeitados pelo país!

E agora sou alvo de suas zombarias, o tema de seus escárnios.

Cheios de medo, ficam a distância, e atrevem-se a cuspir-me no rosto.

Porque Deus tornou-se fraco e sem força perderam toda a compostura diante de mim.

Á minha direita levanta-se a canalha, olham se estou tranqüilo (Jó 30, 1-12) (p.11 e 12)

Decerto, Jó lamenta de males físicos, mas esse lamento particular se associa sem dificuldade ao conteúdo fundamental de suas queixas: ele á a vítima de inúmeras brutalidades; a pressão psicológica que pesa sobre ele é insuportável. (p. 12)

A revelação do bode expiatório é tão insignificante para a posteridade quanto para seus amigos. No entanto, consideramo-nos muito atentos ao que Jó diz; lamentamos por não vê-lo compreendido. Mas estamos de tal modo preocupados em fazer de Deus o responsável por todas as desgraças do homem, sobretudo quando não cremos nele, que o resultado final permanece o mesmo. Somos apenas um pouco mais hipócritas que seus amigos. Para todos aqueles que sempre fingiram dar ouvidos a Jó, mas no fundo não ouvem, suas palavras não passam de vento. (p. 13)

                                                                 

                                                                 2

                                              JÓ, ÍDOLO DE SEU POVO

Por que Jó tornou a ovelha negra de sua comunidade? Nenhuma resposta direta é dada. E talvez seja melhor assim. Se o autor sugerisse com muita clareza um elemento exato ou mencionasse um incidente qualquer, uma origem possível, qualquer que fosse, acreditaríamos saber, e automaticamente deixaríamos de nos questionar. Na realidade, saberíamos menos do que nunca. (p. 15)

Jó não diz que nunca pecou, mas que não fez nada para merecer tamanha desgraça; ainda ontem era considerado infalível e tratado como santo, enquanto hoje todo mundo o consterna. Não foi ele quem mudou, mas os homens que estão ao seu redor. Aquele Jó que todo mundo execra não pode diferir muito daquele que todo mundo venerava. (p. 16)

Antes de se tornar bode expiatório, Jó viveu um período de popularidade tão prodigiosa que beirava a idolatria. Vemos aqui, com toda clareza, que o prólogo não é pertinente. Se Jó tivesse perdido realmente seu rebanho e seus filhos, essa lembrança do passado seria ocasião para mencionar essa perda. Mas como se vê, não se fala dela...

O contraste entre o presente e o passado não representa a mudança da riqueza para pobreza, da saúde para a enfermidade, mas do favor para o desfavor de um único e mesmo público. (p. 17)

O único ponto comum entre ambos os períodos é a unanimidade da comunidade, primeiro na adoração, depois na aversão. Jó é vítima da mudança maciça e súbita de uma opinião pública, visivelmente instável, caprichosa, indiferente a qualquer moderação. Ele não parece muito ser mais responsável pela mudança dessa multidão do que Jesus, por uma mudança muito semelhante, [situada] entre o Domingo de Ramos  e a Sexta da Paixão.

Para que haja essa unanimidade nos  dois sentidos, deve atuar um mimetismo de multidão. Os membros da comunidade influenciam-se mutuamente, imitam-se uns aos outros na adulação  fanática e, em seguida, na hostilidade ainda mais fanática. (p. 19)

                                                           3

                          A ROTA ANTIGA DOS HOMENS PERVERSOS

Os acontecimentos que Elifaz evoca parecem longínquos e, portanto, excepcionais – mas não o bastante para impedir que o observador os agrupe e reconheça neles um fenômeno recorrente. Observa-se aí um caminho traçado: muitos homens seguiram por ele; agora é a vez de Jó. Todos esses  destinos trágicos têm o perfil característico do ídolo decaído; como o de Jó, são obrigatoriamente determinados pela conversão de uma multidão adoradora em multidão perseguidora. (p.22)

No contexto de uma sociedade aldeã, “júbilo dos justos” e a “zombaria do inocente” necessariamente têm de acarretar conseqüências. É preciso pensar aqui na formidável eficácia de reprovação unânime num ambiente como esse. Para suscitar todos os desastres que lhe são atribuídos, a divindade(¹[N. do T.] Perfeitamente traduzir por divindade o vacábulo “dieu” (deus), como apareceno original.)  tem a única opção de não se por a esse justos que clamam por vingança.

No meio da multidão se encontram a vítima e todos os seus pertences. O que se poderia repartir, os agitadores já repartiram; talvez tenham sorteado entre si esses pertences, para não acabarem se matando. O que resta, incluindo o antigo proprietário, é destruído em imensas fogueiras festivas.

O desastre que espera os “homes perversos” ao terminar sua carreira, ao final da “rota antiga”, deve se assemelhar a essas festas primitivas cujo desfecho, ainda que seja atenuado e ritualizado, faz pensar um fenômeno de multidão. Tudo sempre termina com um simulacro de bode expiatório que é queimado ou afogado. Os antigos etnólogos enxergavam violências mais graves por baixo das formas que observam. Muitos pesquisadores contemporâneos os consideram vítimas de sua imaginação romântica e colonialista. Ao contrário, penso que os antigos etnólogos tinham razão. É certo que tinham preconceitos,porém, também temos os nossos, e uma vertente rousseauniana que volta a fervilhar em nossa época rejeita os inúmeros testemunhos que contradizem sua paixão com excessiva desenvoltura para inspirar confiança. (p. 23 e 24)

Ainda que o tema de Jó como “opressor do povo” já apareça nos três amigos, Eliú o utiliza ainda mais. Por trás de suas fórmulas político-religiosas, transparece a violência popular .

          Em um instante, Deus:

...aniquila os poderosos sem muitos inquéritos e põe outros em seu lugar.

Conhece a fundo suas obras!

Derruba-os numa noite e são destruídos.

Açoita-os como criminosos e em público lança-lhes cadeias (Jó 34,23-26). (p.24)

Cito a Bíblia Jerusalém: sua tradução sugere admiravelmente a identidade entre a divindade e a multidão. A divindade é que derruba os grandes, mas a multidão os pisoteia. É a divindade que acorrenta as vítimas, mas sua intervenção é pública, efetuando-se na presença dessa mesma multidão que talvez não tenha permanecido completamente passiva perante espetáculo tão interessante. Observamos que os poderosos são destruídos “sem inquérito”: suspeitava-se um pouco disso. A multidão está sempre disposta a prestar sua assistência á divindade quando esta se presta a castigar os malvados. E, imediatamente, aparecem outros grandes para substituir os que caíram. A própria divindade os entroniza, mas é a multidão que os adora, para descobrir um pouco mais tarde que, naturalmente, uma vez mais, são falsos eleitos e não valem mais do que seus predecessores.

Vox populi, Vox dei. Como na tragédia grega, a ascesão e a queda dos grandes constituem um mistério propriamente sagrado, cuja conclusão é a parte mais aparecida. Embora seja sempre a mesma, é sempre esperada com impaciência. (p. 24 e 25)

                                                     Segunda Parte

                                          MITOLOGIA E VERDADE

                                                         

                                                          4

                                       OS EXÉRCITOS CELESTES

Sempre se alude á mesma intenção fundamental: o encurralamento de uma vítima solitária por uma multiplicidade de inimigos. É a mesma violência em ambas as partes. E é essa violência que se deve questionar para compreender a relação entre os dois estilos. Ela é o verdadeiro “referente”, mal dissimulado nas ameaças dos amigos, evidente nas palavras de Jó. Por mais distantes que pareçam entre si, os dois tipos de discurso tratam, á sua maneira, do mesmo fenômeno: a conversão do herói em bode expiatório, o linchamento cujas primícias Jó saboreia. (p. 33)

A multidão turbilhonante é por excelência o modo de ser da vingança divina. Precipita-se sobre sua vítima e a dilacera em pequenos pedaços; em todos os participantes, o terrível apetite de violência é idêntico. Nenhum deles quer renunciar a infligir o golpe decisivo. As imagens de dilaceração e fragmentação fazem pensar nos incessantes despedaçamentos mitológicos e rituais, nas inúmeras variantes do diasparagmos dionisíaco.

O todos contra um da violência coletiva se faz presente no grupo dos três e, posteriormente, dos quatro ao redor de Jó, até mesmo na estrutura de seus discursos. (p.33)

Cremos que a divindade metafísica é, de antemão, fruto de uma imaginação metafísica, e que os exércitos celestes são fabricações secundárias, de alcance relativamente menor. Sempre pensei que se deveria inverter o sentido dessa gênese. Esses exércitos, que não são celestes, mas reais, devem ser tomados como ponto de partida. Deve-se partir da violência coletiva. E, por uma vez, não devemos postular nem contemplar essa violência como uma simples hipótese. O autor a coloca diante de nossos olhos o tempo todo. Ela forma uma realidade com essa perseguição de que Jó se lamenta. (p. 34 e 35)

Em toda revolta contra os chefes que o favor popular conseguiu provocar, a comunidade vê  automaticamente a intervenção de uma Justiça absoluta. O que se desdobra no discurso dos amigos é uma verdadeira mitologia da vingança divina.

Porque participam de seu linchamento, os amigos não compreendem o papel de bode expiatório representado por Jó. O paradoxo da violência fundadora se revela aqui de maneira espetacular. Aqueles que constroem o sagrado com sua própria violência são incapazes de enxergar a verdade. É exatamente isso que faz com que os amigos fiquem totalmente surdos aos apelos que Jó lhes dirige constantemente. Quanto mais participam da violência contra o desafortunado, mais se vêem arrastados por seu lirismo bárbaro e menos compreendem o que estão fazendo.

Os três amigos sabem perfeitamente o que a ordem social exige deles, mas esse saber não contradiz em absoluto sua ignorância fundamental no tocante ao bode expiatório, nem sua impotência para conceber o ponto de vista de Jó. Não entrevêem a reprovação moral que o fenômeno inspira em Jó e, depois dele, em todos nós, por graça exclusiva do texto bíblico.

Como diriam posteriormente os Evangelhos a respeito de um caso parecido, os três  amigos “não sabem o que fazem”, no plano moral e religioso. No entanto, sabem perfeitamente o que têm de fazer e o que têm de evitar quanto a determinada preparação vitimaria, cuja significação geralmente nos escapa, porém, não é, em hipótese alguma, irrecuperável. (p. 35 e 36)          

                                                                  5                       

                                    REALISMO E TRANSFIGURAÇAO

Todos os grandes sistemas mitológicos, não somente os indo-europeus, possuem essas tropas de assassinos sobrenaturais que atuam em conjunto, unanimemente, e que, ao fazê-lo, produzem o sagrado, ás vezes chegam a divinizar suas vítimas. É a versão plenamente mitológica dos exércitos celestes, ou seja, dos perseguidores de Jó. (p.38)

Ora, o livro de Jó impõe que se opte entre a análise moral e metafísica do problema do mal, a partir a leitura do prólogo, de um lado, e o reconhecimento dessa temível equivalência entre a violência e o sagrado, não conscientemente afirmada pelos amigos, mas conscientemente repudiada pelo bode expiatório, de outro. (p. 38)

                                                             6

                                                     ÉDIPO E JÓ

O contraste entre o discurso sagrado e o discurso de dessacralização faz surgir uma verdade que se pode generalizar: a verdade de toda a religião violenta. Ele desmistifica a perspectiva tradicional não apenas sobre Jó e sobre os outros bodes expiatórios presentes na sociedade de Jó, como também sobre todos os bodes expiatórios produtores de sagrado violento(¹[N.do T] No original: “sacré violent”.) (p.41)

Com a mesma rapidez desconcertante, o ídolo se converte em maldito, maculado, pestífero,  aquele cujo castigo coletivo restituirá a bênção divina, temporariamente retirada de uma comunidade que estava demorando muito para se mobilizar contra o “inimigo de Deus. (p.42)

Um mito nada mais é do que essa fé absoluta na onipotência do mal presente numa  vítima; essa fé que liberta os perseguidores de suas recriminações e forma, conseqüentemente , um mesmo todo a fé absoluta numa onipotência de salvação. (p. 43)

O mito é um “caso Jó” narrado do início ao fim pelos perseguidores. Os diálogos de Jó são um Édipo  cuja vítima se recusa até o fim a unir-se a voz daquele que a perseguem.

Édipo é um bode expiatório bem-sucedido, pois nunca reconhecido enquanto tal. Jó é um bode expiatório malsucedido. Ele desestabiliza a mitologia que deveria devorá-lo, montando seu ponto de vista diante do consenso fabuloso que se fecha em torno dele. Permanecendo fiel a sua verdade de vítima, Jó  é verdadeiramente esse herói do conhecimento que Édipo não é, apesar de ser considerado como tal pela tradição filosófica. (p.44)

A idéia de que o mito seja por inteiro ficção o torna tão impenetrável quanto a idéia contrária, a do religioso que faz dele a verdade. O humanismo cético é visto como a crítica suprema ao religioso, enquanto na realidade é seu herdeiro, por isso tem todo interesse, como qualquer herdeiro, na multiplicação do capital de que usufrui para não ser secretamente respeitoso. Em condição radicalmente alteradas pela revelação bíblica, o humanismo cético impede a revelação  do papel  representado pelo mecanismo vitimário  na gênese e organização dos mitos. Ele se situa no prolongamento direto do religioso vitimário, cujo segredo protege. (p.47)

                                                                       7

                                  “POR CAVALOS ESTA RAINHA PISOTEADA”              

Aristóteles marca nitidamente os limites da desmistificação trágica em sua Poética, ao anunciar a proibição, para o dramaturgo, de trazer modificações muito radicais ao conteúdo das histórias legendárias por ele adaptadas. O povo conhece essas histórias de cor e poderia incomodar acaso o poeta as transformasse muito, sobretudo se essa transformação  o privasse ( o público) do espetacular castigo de uma vítima. (p.51)

A perseguição coletiva sempre é apenas uma ilusão de nossos sentidos enganados? As verdadeiras vítimas existem? Sim ou não? Que diferença existe entre o abuso da psiquiatria e a negação dos horrores reais da história? O que verdadeiramente é projetado em todas as “projeções persecutórias” e nos “fantasmas do corpo desmembrado”?

Não pretendo dizer quem ganhe em perspicácia de Racine, de Sófocles, de todos os autores trágicos ou do autor dos diálogos. Isso seria perfeitamente  ridículo. Sófocles certamente não tem sobre o mito as mesmas ilusões que valorizamos; Racine também não, mas o saber de ambos permanece ambíguo e, por fim, estéril. Ele procede por alusões e conversa sempre algo de esotérico. (p.55)

                                                      Terceira Parte

                                                    O mimetismo

 

                                                                          8

                   “PELO MAL DOS ARDENTES (¹[N.doT.] “Mas dos ardentes”, também chamado “Mal de Santo Antônio” ou “Fogo de Santo Antônio”, foi uma doença de origem alimentar que surgiu por volta do ano 1000,causada por um congumelo formado a partir do grão de centeio,o esporão de centeioque, misturado á farinha, causava graves intoxicações. Trata-sede um nome dado na Idade Média ao ergotismo gangrenoso.)   TODO UM PAÍS ACOMETIDO” (¹ Saint-John, poeta)

Uma dimensão essencial da tese vtimária resta ainda a ser resgatado:  o mimetismo. Penso que todas as condições de sua presença estão aqui reunidas. (p.59)

A ausência de distância social favorece a imitação recíproca dos iguais. Jó se confunde com seu sucesso, de modo que desejar esse sucesso é desejar o próprio Jó, o ser incomparável de Jó. Essa identificação é eminentemente  concorrencial, por isso mesmo ambivalente logo de cara. Em suas classe social, Jó tem apenas rivais que se esforçam por alcançá-lo. Todos eles querem se tornar essa espécie de rei não coroado que ele era. (p. 60)

Mas a realeza, por definição, não pode ser partilhada. Jó não pode ser bem-sucedido, como de fato ocorre, sem provocar em seu meio uma inveja impressionante. Ele é o modelo obstáculo da teoria mimética. Ele suscita o ressentimento nietzschiano; o movimento da admiração sempre vem se chocar – ó escândalo! – contra a barreira que o modelo se torna para ela. Pelo fato mesmo de repousar sobre o desejo mimético, a fascinação exercida pelo rival extremamente feliz tem a tendência de se converter em ódio implacável; de fato, ela sempre esteve impregnada por esse ódio. É entre pessoas socialmente próximas que floresce o tipo de fascinação  odiosa que transparece em quase todas as palavras dos amigos. (p. 60)

A inveja dos “amigos” e das pessoas de seu meio é essencial na passagem da primeira unanimidade mimética á segunda. A igualdade de condições aumenta a duplicidade fundamental das reações miméticas inspiradas pelo “grande homem”. Mas se a imitação e o desejo são modulados de maneira diferente, em níveis sociais diferentes: no fim das contas, encontramos ambos em todos os níveis, de modo que a frustração do modelo obstáculo é universal. Nunca há diferença essencial entre os amigos e o resto do povo. (p. 61)

Enquanto são seus inimigos declarados, os homens perversos sempre são cumulados por Deus de bens. Pó que essa longa indulgência da divindade? É muito fácil, uma vez mais, considerar esse tema “puramente” imaginário, dando como pretexto ser ele  religioso. No tema do auxilio divino que se detém exageradamente sobre o malvado, a porção de realidade pode ser deduzida das observações precedentes.

Esse período ao longo do qual os malvadas, os malditos, gozam do patrocínio divino tem duração suficientemente  longa para conduzir os “justos” ás margens do desespero. O que quer dizer? Pó que a divindade demora tanto para destruir seus inimigos? Ela poderia ser tapeada por eles? É impossível. A resposta clássica no interior do religioso vitimário afirma que, muito longe de se enganar, a divindade recorre á estratégia, armando uma cilada diabólica áqueles que se rebelam contra ela. Ela estimula neles a arrogância, que acabará se lhes tornando fatal.

Por si só, essa resposta sugere uma participação popular na vingança divina. Quanto mais os benefícios divinos se demoram sobre os malvados, mais sua arrogância aumenta. Se a divindade cultiva essa arrogância, não é poeque precise dela para formar uma opinião sobre a maldade  dos malvados. A arapuca que arma para eles mostra que ela já os condenou.

A arrogância do perverso não excita a divindade, mas o povo, ainda encantado. Ela suscita em muitos homens uma inveja legítima, um ressentimento justo. Ela facilita a mobilização geral dos exércitos celestes. Se a divindade se encarregasse sozinha de aplicar a pena, toda essa manobra seria inútil. Ainda aqui, ela recorre visivelmente ao intermédio de uma multidão que dá demonstração de longa paciência, mas que acaba por desfazer-se do próprio estupor  diante dos excessos daqueles que souberam ganhar seu favor.

A divindade protela sua intervenção, para que possa tornar a queda dos perversos tão espetacular e cruel quanto possível. Caso se rejeite a concepção sádica do divino implicada em tudo isso, será preciso interpretar bem essa idéia de vingança retardada  em relação aos sentimentos invejosos que podemos pressentir nos amigos de Jó.

Os rivais infeliz dos poderosos ficam impacientes diante da relativa estabilidade de um poder forçosamente contrário – segundo eles – á vontade divina, porque lhes ofusca o brilho. Eles gostariam de apressar o curso provável das coisas, mas não ousam se opor abertamente áqueles a quem a ralé ainda não deixou de venerar.(p.62 e63)

Os grandes homens são muito populares para sucumbir logo em seguida ás intrigas que proliferam em seu redor. A inveja mimética bajula durante muito tempo na surdina. Eis o significado, em minha opinião, do “atraso” da vingança divina. Mas a opinião se cansa de seus ídolos; ela acaba por queimar aquilo que adorava, no esquecimento de sua própria adoração. É esse o “triunfo” dos amigos e o momento em que se situam os diálogos. (64)

                                                     9

                                         O SALMO 73 

Nessa idéia de que a inveja de que Jó é alvo não é explícita, meu raciocínio conserva um caráter conjectural. Os amigos, particularmente, não dizem nada a respeito disso, é claro. Jó não faz mais do que alusões a isso. O texto que uniria diretamente a inveja mimética ao fenômeno do bode expiatório sacralizado não se encontra em Jó, mas em outro lugar da Bíblia: no Salmo 73, que é ao mesmo tempo muito próximo e muito diferente pela perspectiva. (65)

Contrariamente aos outros salmos trágicos, sempre escritos a partir do ponto de vista da vítima, esse é um dos salmos, muitos raros, que refletem a outra perspectiva: a dos amigos. De fato, é o único a respeito do qual se pode afirmar – sem hesitação, ao que me parece – que reflete a perspectiva dos perseguidores. (p.65)

A queda final dos perversos é percebida como uma dupla vitória: para a divindade e para o justo tão humilhado. A derrota se fez esperar demoradamente, é certo, mas não se deve nunca desesperar. A opinião pública, por muito tempo fiel a seu favorito, muito mais tempo fiel do que a elite invejosa gostaria, acaba sempre por se livrar de sua apatia e acertar as contas com os miseráveis.

Quando um homem se eleva acima de nós e nos torna a existência insuportável, é certo que ele também a torna insuportável para muitas outras pessoas. Pode-se esperar, portanto, que cedo ou tarde o mecanismo da revolta popular seja acionada. Quanto  mais tempo levar para ser acionada, mais lenta parecerá a justiça divina,ou mesmo duvidosa, mas ela recuperará, no fim das contas, sua reputação de inefabilidade. (p.67 e 68)

Na tragédia grega, encontramos reflexões muito semelhantes áquelas do Salmo 73. O coro se mostra indignado com o sucesso dos arrogantes e a ação divina desperta nele uma tentação de ceticismo e impiedade. De que adiantaria servir os deuses se hybris(¹[N.do T.] Hybris remete a excesso dos homens, insolência em relação aos deuses.) permanecesse impune? No fim das contas, felizmente, a hybris sempre é punida. Uma ascensão muito rápida tem como resultado uma queda precipitada. Ésquilo, Sófocles, Eurípides, todos eles tecem comentários sobre a afinidade recíproca entre a extrema elevação e a extrema degradação. O coro celebra a própria mediocridade, que considera apaziguadora. Os destinos barulhentos atraem a ira divina. (p. 68 e 69)

                                                              10

                                    A TORRENTE DAS MONTANHAS

Essa ausência de moderação, essa conjunção perpétua da falta e do excesso caracterizam o universo entregue ao mimetismo. A rivalidade resulta naturalmente da imitação dos desejos, de modo que mimetismo acaba considerando o rival triunfante como indispensável. Ele dá propriedade ao obstáculo em relação ao modelo. Ele escolhe o modelo em função do obstáculo. Se nada o contraria, o mimético-masoquismo deixa de desejar. Ele não vê mais modelo digno de ser imitado. (p. 74)

Mas as imagem da torrente descreve também uma metamorfose objetiva do mundo. O que primeiramente é apenas aparência subjetiva, desejo transforma logo em realidade, porque o mesmo não surge onde quer que seja sem causar estrago. Sendo mimético, ele dissemina o mimetismo por todo lado e, sem nunca fazer nada, trabalha de modo eficaz para própria difusão. Seus efeitos sempre multiplicados são para nós cada vez mais refletidos, para nosso prejuízo, pelo espelho mimético do desejo do outro e o mundo realmente se torna do modo como nosso desejo nos permite ver. (p.75)

                                                               Quarta Parte

                                           DO MECANISMO AO RITUAL 

                                                                   11

                                                     O TOFET PÚBLICO

Compreender o papel do duplo mimetismo na história de Jó é compreender aquilo que impulsiona as sociedades humanas a seguir cegamente certos indivíduos e, depois, a se voltar contra eles, não menos cegamente. (p.79)

A teoria mimética permite compreender como o mimetismo do modelo obstáculo, fonte secreta de homogeneidade conflituosa, pode desembocar na adoção mimética de um único o mesmo modelo obstáculo:  o bode expiatório de todos, sem exceção. (p.79)

O sofrimento é a ruína de uma vítima, ainda que não merecidos, constituem um fator de boa conduta entre os homens, um princípio de dedicação moral, um tônico milagroso para o corpo social. O pharmakos se converte aqui em plarmakon: a vítima propiciatória se transforma em droga maravilhosa, certamente terrível, porém, na dose certa, capaz de curar todas as doenças. (p.81)

Maldizer Jó em uníssono é cumprir  a vontade divina, na medida em que seja fortalecer a harmonia do grupo, aplicar um bálsamo poderoso ás chagas da comunidade. Os três amigos nada mais fazem do que isso. (p.81)              

Jó descreve aqui efeito benéfico que perseguição injusta produz em sua comunidade. (p.82)

O Tefet público é objeto de execração unânime; aqui, trata-se de um homem. Não muda nada dizer um bode expiatório; não vejo nenhuma diferença de uma linguagem a outra. O equívoco não é possível, apesar das voltas inumeráveis que nos dá a linguagem, não vejo nenhum motivo para nos lamentarmos em relação a sua impotência em continuar significados decisivos. (p. 83 e 84)

 

                                                                   12

                                                     O ÓRFÃO SORTEADO

Os três amigos estão entre esses justos que se sentem confirmados em seus caminhos pela visão do bode expiatório. Já sabemos que são invejosos. Em seu comportamento em relação a Jó, vimos que essa inveja busca antes de mais nada satisfazer-se. (p.85)

O mimetismo invejoso tem esse interesse principal de acionar o mecanismo do bode expiatório. Aquele Jó que os amigos perseguem não é mais somente o rival invejado, mas o bode expiatório de toda a comunidade. (p.85)

Podemos conceber sem dificuldade que os homens religiosos se dediquem de corpo e alma a esse mistério que os salva. Tanto neste aspecto quanto nos outros, os três amigos não se diferenciam em nada daqueles que os rodeiam. A sociedade vê perfeitamente que ela tem em sua vítima uma coisa boa: um purgativo eficaz para seus maus  humores. Ela vê também que o processo é assustador, tanto quanto benéfico. Ele é acionado apenas ao final de um período de incerteza e de tumulto, repleto de uma desordem e de uma violência sempre possíveis de degenerar-se.

A comunidade tem, portanto, grande necessidade de homens de confiança, que não buscarão sufocar a violência em seu estágio inicial, como seria feito em nossos dias, mas que buscarão impedi-la de se propagar aleatoriamente na comunidade, direcionando-a para a vítima certa, a que tem maior capacidade de congregar  contra ela própria, a vítima, cujos sucessos excepcionais e responsabilidades brilhantes revelam aos invejosos e aos descontentes a vítima já marcada para a cólera divina. (p.86)

Imolando um órfão, reduz-se ao mínimo a tentação, para os membros da comunidade, de se tornarem os vencedores da vítima; consequentemente, diminui-se o risco de alimentar o fogo da violência. Crescem as chances de um sacrifício eficaz. (p.89)

Aos olhos de Jó, os três amigos são traficantes de carne humana. Eles parecem honestos e de fato o são, na perspectiva que defendem, a de seu sistema religioso; mas no universo em que Jó penetra, eles nos lembram especialistas um tanto suspeitos, que têm a habilidade e o saber exigidos para resolver na surdina as questões mais sórdidas. (p.90)

                                                                     13

                                                          ORIGEM E REPETIÇÃO                       

Na ordem da teoria estrita, a dimensão ritual é indispensável. O mecanismo em estado puro só poderia aparecer de maneira exclusivamente mitológica, pelo menos em Elifaz e seus companheiros, e não é exatamente esse o caso nos discursos da rota antiga. O caso de Jó deve ser considerado á parte. Da parte dos perseguidores, o aspecto sociológico do fenômeno não deveria aflorar, o que acontece em diversos lugares. (p.93)

                                                                14

                                                                JÓ E O REI SAGRADO

Basta admitir que o caso Jó serve de modelo, para que se possa ver o sistema ritual da monarquia se desdobrar de uma extremidade a outra. Voltamos a encontrar indubitavelmente os “crimes” imaginários do bode expiatório na monarquia sagrada. Na maior parte dos casos, o sistema oferece uma combinação absolutamente significativa dos crimes atribuídos a Jó e daqueles que atribuem a Édipo. O rei supostamente dá demonstrações de arrogância, brutalidade e até mesmo ferocidade. Ele é esse opressor do povo que também os “homens perversos” de Elifaz aparecem como tendo sido. Para demonstrar generosidade, pode-se ao monarca para tornar-se oficialmente culpado por uma variante qualquer de crimes “edipiano”, como o assassinato do pai ou de um parente próximo, algum incesto bem escolhidos, materno ou fraterno. (p.101)

Proíba o obrigatório, torne o proibido obrigatório e você desestabilizará os dois sentidos, para deles extrair um terceiro, que parece completamente novo, mas que é verdadeiramente a combinação dos dois outros. A menor reflexão mostra que o sentido novo deve ser aquele que justamente aparece nas monarquias concretas: o sentido da etapa iniciática. A realeza está tão longe do comum, que ela exige ritos muito assustadores. A velha conotação criminosa se insinua ainda por trás da idade  corrente de que o rei um sujeito vigoroso. Ele passa pela etapa de provação entregando-se a atividades que seriam vistas como crimes pelo comum dos mortais. (p.102)

Somente a convicção unânime de deter um culpado autêntico pode conferir ao rito sua eficácia. Desse modo, não se deve ver na obrigação imposta ao rei – de se tornar esse mesmo criminoso cuja prova supostamente se encontra no bode expiatório – o fato de os perseguidores e seus descendentes manipularem cinicamente o processo vitimário, mas ao contrário, o fato de não o manipularem de modo nenhum e de se esforçarem o melhor que podem para recriar todas as circunstâncias (sem exceção) em relação ás quais se espera que sejam novamente propulsoras do mecanismo salvador, porque  foram elas que o ativaram no passado. (p.103)

                                         

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                                                       A EVOLUÇÃO DOS RITOS

É preciso reabilitar a idéia de que os rito evoluem; e isso, pelo fato de seu caráter rigidamente imitativo. Mas por que a imitação ritual produz formas tão diferentes quanto o rei e o órfão sorteado? A realeza se define, com toda certeza, pelo poder absoluto do rei. Esse poder tem como modelo a primeira fase dos fenômenos de multidão descritos em Jó, durante a qual a futura vítima é o ídolo de seus futuros carrascos.

A monarquia sagrada se caracteriza pela predominância da primeira fase sobre a segunda; assim podemos falar de monarquia. Em toda instituição cujo personagem principal não é em primeiro lugar e principalmente um ídolo vivo, um mestre poderosíssimo, de preferência a um bode expiatório, vemos algo diferente de uma monarquia, ainda que  sagrada. (p.105)

Resumindo: os ritos de que acabo de falar privilegiam a primeira fase, a relação de idolatria entre o povo e aquele que por essa razão, se torna rei. Esse privilégio tende a cada vez mais adquirir proporções excessivas, em detrimento da outra fase, a do bode expiatório, que se torna uma comédia simbólica e acaba por desaparecer completamente. (p.107)

As tendências permanentes do espírito religioso sempre fazem (e em toda a parte) os ritos evoluírem. O lugar que ocupa um rito numa escala ou noutra revela o grau de evolução do sistema, em relação a sua diacronia própria. A evolução global vai sempre no mesmo sentido e a possibilidade de uma história universal não está descartada.

Assim como existe uma lógica da imitação cobiçosa,(¹[N.doT.]No original, “imitation envieuse”, que se poderia traduzir tanto como imitação invejosa, quanto imitação desejosa. Preferimos utilizar o adjetivo cobiçoso, por nos parecer intermediário entre os dois sentidos mais imediatos.) Existe uma lógica da imitação religiosa; penso que não temos mais do que desenvolvê-la  a partir da “rota antiga”de Elifaz, descobrir as incompatibilidades que ela comporta e as tensões fecundas que ela suscita, para compreender o que faz dela uma potência criadora de formas. É ela que suscita as instituições mais diversas a partir de um único ponto de partida. Uma dinâmica da imitação ritual preserva certas coisas da origem, mas necessariamente modifica e perde outras. (p.110)

                                              Quinta Parte

                               A CONFISSÃO DA VÍTIMA

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                              UM PROCESSO TOTALITÁRIO

A inveja e as rivalidades miméticas desaparecem no fenômeno do bode expiatório e se metamorfoseiam em positividade religiosa, com a condição de que, evidentemente, a operação não deixe resíduos, ou seja, a unanimidade contra o bode expiatório seja perfeita. (p.117)

O sistema consiste em inocentar a comunidade, denegrindo  o bode expiatório. Para consolidá-lo, é preciso reforçar a crença nessa perfídia mítica. O mais eficaz, evidentemente, é uma confissão com todas as letras do culpado. É preciso que Jó afirme publicamente sua infâmia, que a proclame em alta voz, num tom extremamente eloqüente.

Veja Édipo, no final da tragédia, ressaltando mais de uma vez sua mácula horrível, ingnóbil ao extremo, diante dos deuses e dos homens, o que se chama em grego um miasma. É ele quem exige a própria expulsão com um entusiasmo que lhe restituirá, com o tempo, a estima da comunidade. Sua mansidão lhe vale logo em seguida circunstâncias atenuantes por parte dos tebanos, naquele tempo, que se contentam em exilá-lo, e em nossa época, por parte de todo mundo. No fim das contas, ele só tem a vida salva por causa de sua conduta de vítima exemplar, exatamente o contrário da conduta de Jó.

Pode-se á vítima que indique a seus concidadãos todo o mal que convém pensar dela a partir de então. Isso facilita adesão de todos á ortodoxia em vias de elaboração. Nas sociedades primitivas, a força dessa adesão permite fechar o cerco e faz do bode expiatório o principio da unidade social, um deus simultaneamente nocivo e benéfico.

No caso de Jó, o cerco já se desfez. Há muito tempo o processo vitimário não produz mais esse gênero de divindade, mas a crise sacrifícial só torna mais necessária a adesão entusiasta e espontânea da vítima á onde de mimetismo que desonra e aniquila .

Sempre que um “homem perverso” se apresenta, a comunidade aciona sua rígida máquina ritual, mas a insubordinação de Jó desestabiliza a trama: os atores não estavam preparados para esse tipo de resistência. (p.128 e 129)

É preciso garantir uma coincidência perfeita entre a perspectiva dos carrascos e a das vítimas. As existências de uma verdade única está em jogo, uma verdade propriamente transcendente, que se imporia a todos os homens, sem exceção, mesmo áqueles que são aniquilados pelo triunfo de seu cortejo a passar. É preciso mostrar que essa verdade é de tal modo radiante, que se impõe, no fim das contas, mesmo áqueles que, tendo-a ingnorado, devem sofrer as conseqüências. Eles devem reconhecer que pecaram e que tudo o que padecem é por justo merecimento.

A exigência de uma vítima resignada caracteriza o totalitarismo moderno, tanto quanto certas formas religiosas e pararreligiosas do mundo primitivo. As vítimas dos sacrifícios humanos são sempre apresentadas como extremamente favoráveis á própria imolação, absolutamente convencidas de sua necessidade. É o ponto de vista dos perseguidores, que o neoprimitivismo atual é incapaz de criticar. (p. 131)

As ideologias totalitárias destroem a crença numa justiça imparcial e soberana, alheia aos conflitos da cidade terrestre. Os regimes que triunfam sobre as ruínas de uma legalidade sistematicamente vilipendiada não dispõem mais dela quando, por sua vez, dela necessitam. De fato, eles destruíram a transcendências efetiva da lei em relação aos indivíduos que compõem a sociedade real. (p.132)

É preciso que os vencidos reconheçam livremente sua falta. É preciso uma confissão das culpas que não pareça arrancada á força. Exige-se que os malditos dêem sua bênção á maldição que os atinge. Não se pede a eles para perdoar, em hipótese alguma para perdoar, o que daria a entender que a perseguição não é necessariamente infalível. A eles se pede uma adesão entusiasta á decisão que os anula.

É exatamente isso o que os três amigos pedem a Jó. Os vencidos devem reconhecer que desde sempre estiveram no erro e na traição. Consideraram-se inocentes, mas eram culpados, parricidas e incestuosos desde a origem. Conseguiram enganar o povo, fazendo-se aclamar, quando de fato não encarnavam autenticamente a verdade.

Uma vez destruída, a transcendências institucional só pode estabelecer-se de maneira temporária e precária, por meios análogos áqueles das sociedades primitivas, que também carecem de transcendência permanente, mas por razoes inversas: porque ainda não a engendraram. As sociedades totalitárias modernas acabaram destruindo essa transcendências; as sociedades primitivas não conseguiram produzi-la.

Tanto num caso como noutro, há apenas um recurso: o mecanismo do bode expiatório. Antes do totalitarismo, as sociedades modernas não chegaram a eliminar os bodes expiatórios, mas baniram sua pior violência em suas margens, ao mesmo tempo em que atenuavam essa violência no interior de suas fronteiras. Esses modestos progressos são comprometidos em nossos dias pela virulência progressiva dos conflitos internacionais e pelo retorno  vigoroso do processo vitimário, tanto no terrorismo quanto no totalitarisma.

Não mais do que os procuradores soviéticos, aos três amigos não interessa a verdade. Eles estão ali para persuadir Jó a reconhecer-se publicamente culpado, pouco importa de que, desde que seja aos olhos de todos. Em última análise, pode-se ao infeliz para reconhecer-se atingido por um deus infalível, mais do que por homens falíveis. A ele se pede para confirmar a união sagrada do linchamento unanime. (p. 132 e 133)

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                                         A REPUTAÇÃO

Podemos identificar outros traços comuns aos processos totalitários e ao processo de que Jó é a vítima. Um dos mais espetaculares é a supressão da memória, a vontade de eliminar não adeve mais pronunciar.(p.135)

Nada é mais ritual e tradicional do que essa abolição da memória, essa erradicação total do pseudoculpado. Essa exigência de destruição hiperbólica ressurge em nossa época de forma laicizada. Certas atitudes religiosas lembram procedimentos profiláticos em caso de epidemia e, ainda em nossos dias, a medicina está frequentemente  metida com esse tipo de trabalho. Todo um conjunto primitivo reaparece no totalitarismo moderno.

A eliminação radical dos “culpados” lembra a manipulação de que a história é alvo no mundo totalitário. (p.136)

medida em que garante automaticamente a eliminação de tudo o que é visto como imperfeito e faz parecer imperfeito, indigno de existir, tudo o que é violentamente eliminado. (p. 140)

                                                               18

                                             ESMORECIMENTOS DE JÓ

Minha interpretação geral se fundamenta no caráter irredutível da posição da fala dos amigos á fala realista de Jó. De um lado, a visão persecutória da sociedade, geradora de mitologia e ritual; de outro, a visão de Jó, que subverte a primeira a primeira, revelando-o como o bode expiatório injustamente perseguido.

Mas eis que, agora, Jó passa para o lado do inimigo, imitando a forocidade dos amigos em todos os textos que o mostram fiel á divindadedos bodes expiatórios, á divindade bárbara da tribo.

Tudo isso produz uma impressão de desordem caótica. (p. 144 e 145)

O assedio dos amigos faz suas certezas mais fortes vacilarem, podendo destruí-las. É a própria inocência que Jó defende com mais força e eis que mesmo essa última convicção vacila.

Estamos no mesmo domínio, antigo e moderno simultaneamente, que Dostoievski e Franz Kafka exploram com genialidade. Mesmo num universo que não reconhece oficialmente como divina, a unanimidade social, na maioria das vezes sem dificuldade, triunfa sobre resistências individuais. Isso não é sempre verdadeiro no caso de Jó, o que dele uma vítima excepcional. (p. 146)

Para a vítima, ser-se exposta á hostilidade pessoal da divindade é a experiência mais terrível, mas que oferece, curiosamente, uma espécie de compensação da qual os carrascos não podem privá-la: pois a vítima retoma uma idéia que lhes é própria. Se eles a contradizem, eles também se contradizem a si mesmos. Para reconquistar uma superioridade de que seus perseguidores não podem destituí-la, a vítima é revalorizada. (p.147 e 148)

Um velho instinto religioso não o autoriza a desconfiar do direito dos perseguidores de invocar a autoridade do deus social. São “ímpios”. Jó não acredita em sua autoridade enquanto homens, mas enquanto mandatórios da divindade, uma vez que o próprio deus o entregou a esses perversos. Ele se esforça para recusar a autoridade sagrada do linchamento, para dissociar a divindade e os perseguidores humanos, mas quase sempre sem sucesso, de modo que sua linguagem permanece em conformidade com o sistema da violência e do sagrado. Mesmo em sua boca, encontramos impotentes definições do divino como expressão transcendente da violência coletiva. (p.150)

Para Jó, em suma, a voz unânime da comunidade é a voz da própria divindade: Vox populi, Vox dei. O adágio latino é a expressão rigorosa do sistema expiatório. Não é de se espantar que Jó, de vez em quando, esmoreça naquilo em que é mais forte: em sua declaração de inocência. Que ele não tivesse fraqueza seria difícil de aceitar. (p.150 e 151)

Morrer bem, para um chefe do povo, é morrer de modo bem diferente de bode expiatório: venerado até a morte. Para os poderosos deste mundo, para os homens em cuja direção converge o mimetismo invejoso de mil rivais, o tema do prestígio intacto e da multidão numerosa nas cerimônias fúnebres tem muita importância para não sugerir o temor de acabar como “homem perverso”.

Jó considerou-se destinado a morrer bem; acreditou na retribuição por tanto tempo quanto na fidelidade de seus admiradores, mas a partir de agora já não acredita mais. Não podemos nos espantar ao ver um Jó repudiado por seu povo combater a idéia de uma equivalência entre a simpatia popular e o mérito real de um indivíduo. (p. 155)

O mal só revela seu caráter intratável neste mundo a partir do momento em que o mecanismo vitimário é contestado, abalado.portanto, minha leitura é compatível com a Plilippe Nemo, que eu desejaria somente um pouco mais atento á responsabilidade dos homens nos sofrimentos do ídolo repudiado.(p.156)

                                                             19

                                    MEU DEFENSOR ESTÁ VIVO

Se não houvesse nada além disso, seria necessário concluir que a audácia de Jó permanece puramente “existencial”, sem eficácia propriamente  religiosa. Mas há duas exceções á regra que se desenha. Dois textos importantes fogem ao conformismo que acabamos de observar.

De súbito, Deus se mostra atento aos clamores de Jó. Nele subjaz uma testemunha defesa, um defensor do Justo injustamente tratado. Talvez seja o próprio Jó ou o clamor de Jó que sobe até Deus. Os acusadores, os demônios, não são mais os únicos a ser ouvidos. Deus dá ouvidos á vítima:

          Tenho, desde já, uma testemunha nos céus,

          e um defensor nas alturas;

         intérprete de meus pensamentos junto a Deus,                                   

        diante do qual correm as minhas lágrimas;                         

       que ele julgue entre o homem e Deus,

      como se julga um pleito entre homens (Jó 16, 19- 21).

Esses versos não refletem mais a submissão mimética ao deus de violência, nem o contrário, a revolta que perpetua o império desse deus. O desespero pela primeira vez cede lugar á esperança. Isso não aconteceria se a própria concepção de Deus não tivesse mudado. (p.157 e 158)

Vindo de uma vítima universalmente rejeitada, essa transformação não nos surpreende. Privada de todo o apoio da parte dos homens, a vítima se volta para Deus; ela abraça a idéia de um Deus das vítimas e não permite que seus perseguidores monopolizem a idéia de Deus. Vivemos num universo em que nada é mais fácil e mais natural do que essa apropriação de Deus pela vítima. (p.158)

Jó não vai ao extremo de repudiar o deus dos perseguidores, mas instala junto dele não o acusador, o diabo, que esse deus já é por definição, mas seu contrário, um representante dos acusados, um advogado de defesa. Esse deus não se torna por isso exclusivamente o deus das vítimas – o que ainda é impensável! -,  porém, ele já não é mais o deus apenas dos acusadores, apenas dos perseguidores. Parece-me que o texto da Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB) (¹[N.do T.] No Brasil, essa tradução, baseada na versão francesa, foi publicada pela Loiola, em 1994.) torna essa dualidade visível, sugerindo uma verdadeira oposição no ângulo do divino:

                Tenho agora uma testemunha nos céus,

            possuo um fiador lá nas alturas.

            Meus amigos fazem troça de mim,

             Mas os meus olhos prateiam para Deus.

              Defende ele contra Deus o homem,

              Como o ser humano intervém  por seu igual (Jó 16, 19-21).

            

Este primeiro texto deixa o deus dos perseguidores e o Deus das vítimas um diante do outro. Mas um segundo texto empurra para a frente o movimento que me parece interrompido na metade do primeiro. Os dois aspectos da divindade dupla não podem  equilibrar se, nem estabilizar-se. Eles são incomparáveis e incompatíveis. Três capítulos adiante, o movimento recomeça e Jó dá um passo a mais em direção em direção ao impensável: um Deus das vítimas:

          Eu sei que meu Defensor está vivo

          E que no fim se levantará sobre o pó:

          Quando tiverem arrancado esta minha pele,                                                                                  

          Fora de minha carne verei a Deus.        

         Aquele que eu vir será para mim,

         Aquele que meus olhos contemplarem não será um estranho (Jó 19, 25-27).

Desta vez, Deus está sinceramente do lado de Jó: ele intervém em favor da vítima, mas somente depois da morte de Jó, possivelmente após a morte de todos os homens, para fazer justiça áquele que foi injustamente condenado. Ao que tudo indica, no fim dos tempos, entre Deus, e o justo maltratado se estabelecerá  uma relação viva. Junto a Deus, Jó estará em casa, será justificado e consolado de sua desventura. (p. 159 e 160)

Somente Jó falou bem de Deus, aparentemente cobrindo-o de insultos, denunciando sua crueldade e injustiça. Os amigos, no entanto, que jamais cessaram de falar em seu favor, falaram mal dele. Deve-se ler nessa frase um julgamento profundo sobre os diálogos em seu conjunto. Esse epílogo tem razão, decerto, mas por outro lado é tão tímido e mistificador, que somos surpreendidos por sua audácia.

O único deus que Jó ataca é o deus dos linchadores. A conclusão não vê essa distinção essencial; ela contribui o melhor que pode para torná-la invisível, porém, nesse julgamento, poderia se dizer que ela a pressente. (p. 163 e 164)

                                                     

                                                                 20

                             O RESGATE SANGRENTO PELA PERDIÇÃO DA CIDADE

Em nenhum lugar da Bíblia você encontrará a idéia de que a cidade dos homens deva se conformar com a violência fundadora, dar lhe espaço, com a desculpa de ser isso “um maravilhoso remédio para os humanos”. Num movimento que se deve qualificar como prétotalitário, num sentido que me parece aplicar-se a certos diálogos de Platão, Ésquilo se faz o pastor dessa violência. Também é esse o por que, mas esse o sentido profundo e violento do pastor do ser de Heidegger. Não sei pó que, mas essa expressão sempre me fez pensar no lobo em pele de cordeiro da fábula. Por baixo da pele imaculada do cordeiro sacrificial, uma pata escura se desvela.

A alma única do ódio: ou seja, o ódio que todos os cidadãos experimentam simultaneamente, mas também e sobretudo o ódio que sentem por um único indivíduo ou grupo de indivíduos.

Somente a Bíblia menciona a vítima enquanto vítima. De fato, a questão é apenas essa. Nossas escolas de interpretação não se interessam por tal diferença, não mais do que a maior parte dos exegetas religiosos. O clamor de Jó, o clamor incessante das vítimas pode tornar a Bíblia insuportável a muita gente, talvez a todos os homens, sem exceção.

Paradoxalmente, só Nietzsche presta atenção á voz dessas vítimas. Mas ele só faz isso para acabrunhá-lhas ainda mais, e acusá-las de ressentimentos.

A vingança interiorizada, a vingança recalcada dos péssimos cristãos é certamente um mal terrível, mas é preciso ser a criança mimada da Bíblia e do helenismo, no sentido de Ésquilo, é preciso realmente ter esquecido o gosto do sangue negro no pó da terra para procurar no retorno á vingança real, como faz Nietzsche, consciente ou inconscientemente, o novo remédio maravilhoso contra o ressentimento. Nietzsche inverte Ésquilo de maneira desvairada. Nietzsche realmente é louco, mas ninguém se dá conta disso num mundo que se faz de tudo para pegar sua loucura. (p. 170 e 171)

A conclusão do livro de Jó desperta em nós um desejo de revanche que se considera moralmente superior, porque vence em bode expiatório que não se deu certo, mas isso nada mais é do que uma versão abrandada e invertida dos exércitos celestes. Não basta celebrar as vítimas,  chorar ruidosamente sobre elas, como sabemos fazer tão bem, ao mesmo tempo em que nos proclamamos “nietzschianos”, para nos livrarmos do sistema de ação e de representação fundado sobre o bode expiatório. Ao contrário, é pela atividade infinita das substituições, atenuações e transfigurações sutis, tanto quanto das inversões cheias de astúcia, que o sistema expiatório conseguiu se manter, chegando até nós, dominando ainda nosso pensamento, fazendo-nos crer em sua inexistência.

O deus de Beemot  e de Leviatã se faz passar pelo Deus dessa vítima inocente que é Jó; mas ele continua a ser o deus dos perseguidores, o deus das versões modernizadas de Elifaz, ou seja, o deus praticamente todo mundo, exatamente como as Eumênides  continuam a ser as deusas da vingança, depois de serem recicladas na civilização. Não se deve superestimar esse progresso, como se faz antigamente, depois de Ésquilo; nem subestimá-lo, como frequentemente faz a intelligentsia contemporânea atrás de Nietzsche.

Ainda não encontramos em nenhum lugar o Deus das vítimas pelo qual Jó anseia. A verdadeira grandiosidade de Jó, como também a dos Salmos, está no fato de que, ao lado do anseio por vingança, que não desapareceu, existe nesses textos um anseio pelo Deus das vítimas. Jó dá início a algo que permanece inacabado.

Talvez esta expressão, o Deus das vítimas, seja apenas um artifício. Afinal, que pode significar o Deus das vítimas, o Deus dos fracos e dos oprimidos? Ao fim de nosso estudo sobre Jó, vemos as dificuldades extraordinárias que implica essa nação. (p.171 e 172)

                                                                                      

 

                                                                         21

                                                       OS DEUS DAS VÍTIMAS

Existe um candidato explícito ao papel de Deus das vítimas: o Deus dos Evangelhos. O Pai envia seu filho ao mundo para defender as vítimas, os pobres, os deserdados. No Evangelhos de João, Jesus designa o Espírito de Deus e se designa a si mesmo como um Paráclito – termo que significa o advogado de defesa num tribunal. É preciso aproximá-lo da palavra que a Bíblia de Jerusalém traduz por “defensor”, no último texto de Jó que mencionei, o herdeiro “goel”, um termo jurídico que significa algo semelhante. (p. 173)

As perseguições são verdadeiras perseguições e os acidentes, verdadeiros acidentes. Quanto ás enfermidades hereditárias, são apenas enfermidades hereditárias. Pelo fato de atraírem os perseguidores, os homens vêem nas desgraças uma condenação divina. Jesus rejeita esse tipo de religião. Aos discípulos que lhe perguntam quem pecou para que um homem tenha nascido cego (seus pais ou ele próprio), Jesus responde: “nem ele nem seus pais pecaram, mas é para que nele sejam manifestadas as obras de Deus” (Jó 9, 2-3). (p.175)

Esse Deus não poupa nada para socorrer as vítimas. Mas se ele não pode forçar os homens, pode o que então? Ele tentará primeiro persuadi-los. Ele lhes mostrará que eles próprios se consagram ao escândalo por seus desejos que se entrecruzam e se contrariam de tanto se imitarem.

Jesus recomendará aos homens que o imitem e procurem a glória que vem de Deus, ao invés daquele que vem dos homens. (p.175)

Jesus não convencerá quase ninguém. Sua revelação será recebida apenas para despertar em seus ouvintes o desejo de abafá-la. (p.1760

O Logos de Deus das vítimas está praticamente invisível aos olhos do mundo. Quando os homens refletem sobre o modo como Jesus leva a cabo sua obra, eles vêem quase exclusivamente sua derrota, que eles inclusive consideram, cada vez mais, como definitiva, irrevogável.

Longe de negar essa derrota, a grande teologia cristã a afirma, mas para logo em seguida convertê-la em esplendorosa vitória. A morte se transmuda em ressurreição. (p. 178 e 179)

Jó e Jesus diferem em muitos aspectos, mas se assemelham pelo fato de um outro dizerem a verdade sobre o que lhes advém. A semelhança se situa menos nos indivíduos do que na relação desses indivíduos com os homens que os rodeiam. Por diferentes razoes, mas que chegam ao mesmo resultados, acontece com Jó, diante de seu povo, algo semelhante ao que ocorre com Jesus, diante das multidões de Jerusalém e das diversas autoridades que acabam por crucificá-lo. Assim como Jó, Jesus conhece um período de grande favor. A multidão quer fazer dele uma espécie de rei, até o dia em que, por mimetismo persecutório, ela se volta contra seu ídolo, com a mesma harmonia que a comunidade de Jó [se volta] contra o seu. A hora da unanimidade violenta soou: a hora da solidão absoluta para a vitima. Os amigos, os parentes, os mais chegados, os que lhe desviam reconhecimentos, aqueles que Jesus mais ajudou, aqueles que curou, aqueles que salvou, os discípulos  mais estimados se afastam dele e, ao menos passivamente, participam da agitação social. (p.180 e 181)

Tudo aquilo que os leitores de Jó conseguem não ver, há mais de dois milênios, com a ajuda do prólogo, do epílogo etc., os relatos da Paixão nos obrigam, ou melhor, nos abrigariam a ver se não conseguimos, mais uma vez, nos escudar contra sua mensagem. (p.181)

Desse modo, precisamos de outro texto, de algo,  ou melhor, de alguém para vir em nosso auxílio: o texto da Paixão, Jesus Cristo – eis o que nos permite compreender Jó, porque Cristo conclui o que Jó só consegue pela metade, e isso paradoxalmente, é seu próprio desastre no âmbito do mundo, essa Paixão cujo relato logo se inscreverá no texto dos Evangelhos.

Para que o verdadeiro alcance dos diálogos apareça, em suma, é preciso fazer o que os Evangelhos recomendam: prestar atenção á vítima, ir em seu socorro, levar em conta o que ela diz. (p. 183)

Nos textos, os símbolos que manipulamos são reais, na medida em que resolvem enigmas, inocentam vítimas, libertam prisioneiros e, de modo particular, revelam que o deus deste mundo é de fato o acusador, Satanás, homicida desde o primeiro. Ao vir em socorro de Jó, reforçando a revelação dessa vítima excepcional, a revelação desta vítima mais excepcional ainda que é Cristo constitui um golpe fatal para um sistema do mundo que retoma em linha direta ás formas mais primitivas da violência contra os bodes expiatórios: a perseguição de Jó e o homicídio de “Abe, o Justo”. (p.184)

A pertinência do texto cristão na interpretação de Jó sempre foi reconhecida,  secretamente, pela doutrina que faz da obra um livro “profético” ( no sentido cristão), um livro que anuncia e prefigura Jesus Cristo. A profundidade dessa doutrina aparece quase que unicamente em suas primeiríssimas aplicações, as dos Evangelhos e das epístolas de Paulo. A medida que se avança no tempo do cristianismo histórico e que essas aplicações se multiplicam, na Idade Média, elas se tornam cada vez mais superficiais. (p. 184 e 185)              

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