sábado, 6 de abril de 2024

JESUS ​​E A MULHER SAMARITANA (Jo 4,4-42)

 




 

Texto de: Marizio Marcheselli

Tradução: Paolo Cugini

 

1. “Judeus” ou “Hebreus”

É disso que fala João 4: o salvador que vem dos judeus é o salvador do mundo. Este título reúne dois versículos cruciais: «O salvador que vem dos judeus» (cf. 4,22) é «o salvador do mundo» (4,42). Sublinhemos então que aqui a questão dos judeus (que não estão fisicamente presentes na história) é decisiva. Por um lado, os ioudáioi não estão presentes na cena da história, que se passa em Samaria, mas que, com o v. 9, evoca as difíceis relações entre os samaritanos e os judeus. Por outro lado, os judeus estão absolutamente em primeiro plano na história, precisamente através de Jesus, que a mulher samaritana, novamente no v. 9, identifica-se – corretamente – como judeu. Se por um lado os não-judeus aparecem pela primeira vez no cenário do QE, por outro lado é precisamente a relação dos samaritanos com os judeus que está no centro das atenções.

“Judeu” e “Judeu”: aqui a questão da terminologia é insolúvel. Em italiano os termos "judeu", "hebreus", "judaísmo" são talvez menos conotados do que "judeu", "judeus", "judaísmo". O italiano tem a possibilidade de jogar com uma terminologia dupla, que outras línguas europeias não possuem (em inglês: judeu; em francês: Juif; em alemão: Jude). Em italiano o uso de "Giudeo", "Giudei", "Judaísmo" tornou-se dominante, provavelmente devido à influência de outras línguas europeias. Alternaremos esta dupla terminologia, sem atribuir um significado particular à variação. No QE este é um verdadeiro espaço para rastejar; alguns argumentam que é melhor traduzir “Judeus”, com o risco de transmitir a ideia de que João está a pensar no povo judeu sic et simpliciter, por isso não creio que seja sempre apropriado traduzir “judeu”. Repetimos: na verdade a questão não pode ser resolvida e vamos alternar os dois termos, sem atribuir nenhum significado particular à variação, utilizando-os como sinônimos.

2. A divisão do texto

O texto é claramente composto de duas grandes partes: 1. vv. 4-26; 2. v. 27-42.

Agora vamos ver a primeira parte, ou seja, os vv. 4-26.

Em primeiro lugar, convém notar que nestes primeiros 23 versos a linguagem é muito polarizada: reconhecem-se três núcleos, três áreas de concentração de um determinado léxico particular.

1. Água e beber: fala-se muito de “água”, beber, ânfora, poço, desenhar, etc., com toda uma série de palavras. Isso vai até às 16h15. Há apenas uma exceção: apenas um termo deste campo semântico é encontrado posteriormente, quando se diz que a mulher sai da ânfora (v. 28); todo o resto está firmemente concentrado nesta perícope.

2. Segue-se uma variação e começamos a falar do “marido”, do qual se fala 5 vezes em 3 versículos (4,16-18). Correlativamente, é utilizado o termo gyné, “mulher”. O grego pode brincar mais com isso do que o italiano, porque a mesma palavra pode significar “homem” e “marido”, assim como a mesma palavra gyné pode significar “mulher” e “esposa”. O termo anér/andrós concentra-se apenas nestes 3 versos; em vez disso, o termo gyné é usado em todos os lugares: nestes versículos ele é encontrado uma vez. Limitamo-nos a observar que se trata de um termo ambivalente, precisamos entender até que ponto deve ser explorado. Então passamos da água para o marido, ou para uma questão conjugal.

3. Depois há uma nova variação: a partir do v. 19 a terminologia ainda é massivamente caracterizada, mas é diferente de antes. Agora os termos dominantes são títulos dirigidos a Jesus (“profeta”, “messias”, “Cristo”). Esta seção é abrangida por dois títulos: no início: “Vejo que és profeta” (v. 19); no final: “Eu sei que o Messias deve vir” (v. 25). Aqui o evangelista faz uma intrusão: «O Messias em grego chama-se Christós». Os títulos “profeta” e “Cristo” abrangem a última parte; no meio está o uso massivo do vocabulário de adoração: o substantivo “adoradores” (proskynetés) e o verbo “adorar” (proskynéo), muito mais utilizado que o substantivo. Visto que evidentemente também existem núcleos temáticos (como se deduz das palavras), isso talvez signifique que a discussão toca em três temas, passando de um para outro?

Antecipemos imediatamente que, para compreender o significado deste diálogo, devemos investigar a razão destas mudanças semânticas. A questão é: existe uma ligação intrínseca dos conteúdos? Ou são associações livres de ideias ou mesmo expedientes para despertar a atenção do leitor. Por exemplo, há quem afirme que, quando a mulher lhe diz: “Vejo que és profeta”, ela na verdade quer fugir; se por um lado isto é um total absurdo, por outro significa que se pode pensar que aqui existe uma livre associação de ideias ou uma forma de desviar a atenção e passar para outra coisa.

Então: existe uma conexão entre esses núcleos?

Desde logo é preciso dizer que, entre o campo semântico do casamento e o do culto, da adoração, que está ligado aos dois títulos “profeta” e “messias”, existe uma associação, um vínculo inseparável. Na verdade, a maioria dos comentadores da QV acreditam que o diálogo de Jesus com a mulher samaritana tem dois (e não três) núcleos: o primeiro é o da água e do beber e o resto é tomado como um todo. E na verdade nos vv. 16-26 o tema é unificado: a questão do matrimônio e da adoração estão ligadas, porque, desde pelo profeta Oséias, a metáfora esponsal é utilizada para falar do relacionamento com Deus, portanto da adoração e do verdadeiro culto que deve ser prestado a Deus.Esses dois campos semânticos não estão distantes, mas se relacionam com o mesmo tema. É mais difícil dizer que relação existe entre a parte sobre a água e a segunda sobre adoração e casamento; veremos isso mais tarde. São três focos semânticos claros, das palavras: água e beber, o marido, o culto enquadrado por títulos cristológicos.

Há algum tempo, neste texto, reconhece-se que o alcance do tema esponsal é consideravelmente mais amplo do que os três versículos em que aparece o termo “marido”. A metáfora do casamento, dos casamentos, desempenha um papel decisivo na compreensão deste texto. É como o molde com que Giovanni moldou a história. Toda a história do encontro de Jesus com a mulher samaritana foi construída e moldada por João segundo uma cena clássica do AT: a cena do noivado junto ao poço. Há algum tempo que há uma convergência de consenso sobre este ponto. Na Bíblia, especialmente no Gênesis e no Êxodo (além de alguns outros textos menos diretamente relevantes), encontramos histórias de compromissos que acontecem num contexto que é sempre o do poço. Normalmente três textos são diretamente questionados: Gn 24, Gn 29, Ex 2.

·         Gn 24 é um texto extraordinário, muito rico em detalhes: é o noivado – interposto por um servo – de Isaque com Rebeca.

·         Em Gênesis 29 há o noivado – Isaque presente – de Jacó com Raquel.

·         Finalmente em Ex 2 há o de Moisés com a filha de Jetro, sacerdote de Midiã.

Se por um lado é óbvio que não se envolveram apenas no poço (!), por outro também é verdade que não são apresentadas outras cenas de noivado. Onde é contado, essa cena se repete tem algumas características constantes. O estudioso judeu contemporâneo Robert Alter (1935) está interessado em narratologia: em um de seus estudos sobre a “cena tipo” do AT ele apresenta algumas páginas sobre a “cena tipo” do noivado. Impressiona a forma como resume o enredo desta cena típica, que diz ser igual à de João 4: «A típica cena de noivado prevê que o futuro noivo - ou o seu representante substituto - tenha feito uma viagem num país estrangeiro país. Lá ele conhece uma garota – ou garotas – em um poço. Alguém – seja o homem ou a menina – tira água do poço. Mais tarde a menina – ou meninas – corre para levar para casa a notícia da chegada do estranho. Finalmente, conclui-se um noivado entre o estranho e a jovem, na maioria dos casos só depois de ele ter sido convidado para uma refeição [em João 4, encontra-se: «Rabi, come»]. Até mesmo a notação da hora do dia em que ocorre o encontro no poço tem alguma importância no cenário geral.”

Este é o molde que João usou. Ele deu forma à história, à memória da passagem de Jesus em Samaria, através de uma memória que estrutura o sentido, mas que, para exprimi-lo, necessita da “gramática” da Escritura; não pode ser extraído de nenhum outro lugar, exceto da Bíblia de Israel. E é através desta “gramática”, deste léxico, deste património de imagens, que João devolve ao leitor o sentido que compreendeu quando a memória “despertou”, ou seja, depois da Páscoa. Esta é uma interpretação fundamental: o significado que a dimensão esponsal tem neste texto é decisivo.

João usa uma convenção literária. O uso dessa técnica revela que ele sabe que está escrevendo para pessoas que têm certa familiaridade com a Bíblia de Israel e que, portanto, conseguem reconhecer a adoção do modelo. Então para eles esse fato torna-se imediatamente expressivo. Portanto João quer comunicar que o encontro de Jesus com a mulher samaritana deve ser entendido segundo as categorias esponsais: o messias que vem como noivo; mais: o messias que vem como noivo celebra o casamento com uma noiva que já não coincide simplesmente com Israel entendido como uma entidade limitada a nível nacional. Neste pacto nupcial, que é a nova aliança, é a aliança escatológica, também são convidados a entrar os samaritanos, dos quais a mulher é a representante; ela é o erro de digitação de seu povo. Os samaritanos então entram em cena no final; mas a mulher já os representa. Na verdade, toda a primeira parte já é o encontro de Jesus com o povo dos samaritanos, imerso na imagem nupcial, que é a imagem clássica para expressar a aliança.

3. “Água viva” e beber (Jo 4,4-26)

3.1. A chegada de Jesus ao poço de Sicar (4,4-6)

Os três primeiros versículos (4,4-6) expõem todos os elementos fundamentais para o início da história; eles permanecem no limiar da história real.

«4Foi necessário que ele passasse por Samaria. 5Então ele chegou a uma cidade de Samaria, chamada Sicar, perto do campo que Jacó deu a seu filho José: 6e ali estava a fonte de Jacó. Jesus, portanto, cansado da viagem, sentou-se assim perto da fonte. Foi por volta da hora sexta” (4.4-6).

Qual o significado da expressão “era necessário”, “era necessário”? Uma “necessidade geográfica” deve ser excluída por diversas razões. Na verdade não se diz que era necessário atravessar Samaria; talvez fosse mais conveniente cruzar o rio Jordão. Além disso, o uso desta terminologia está sempre carregado de um “mais” teológico: déi (“necessidade”) é uma expressão que indica uma necessidade de outro tipo, que se refere a uma necessidade de como as coisas são pensadas por Deus. Portanto é uma necessidade teológico: é de acordo com o plano de Deus que Jesus passa por Samaria.

O V. 6 narra o cansaço de Jesus, definindo-o como «fatigado», «cansado» (em grego: kekopiakós). O verbo kopiáo usado aqui aparece novamente duas vezes no final da história, no v. 38, quando Jesus dirá aos seus discípulos: «Eu vos enviei para colher aquilo por que não trabalhastes. Outros trabalharam e você entrou no trabalho deles." Aqui fica claro que o cansaço (kópos) tem a ver com o trabalho apostólico. Esta terminologia também é usada desta forma por Paulo: nas cartas paulinas o kópos é o esforço do trabalho apostólico. Na minha opinião, esta implicação está muito presente aqui também.

Então vamos realçar este aspecto, que talvez também deva ser combinado com a indicação da “sexta hora”, ou seja, a hora mais quente do dia. Contudo, é também a hora que João recordará como conclusão do julgamento perante Pilatos: “Era cerca da hora sexta” (19,14). O único outro ponto em que aparece a indicação deste mesmo tempo é precisamente na conclusão do julgamento perante Pilatos, portanto no momento em que Jesus é condenado. Ao evangelista interessa este sincronismo com a conclusão do processo: o esforço de Jesus (que é um esforço que pode ser definido como “apostólico”) ilumina-se da sua morte. Este é um dos elementos que situa toda a história já na perspectiva pascal; toda a história já se desenrola na perspectiva da Páscoa. Como sustentam alguns estudiosos, a passagem de Jesus na Samaria é «uma grande prolepse», isto é, antecipa num só episódio toda uma série de elementos que, no verdadeiro sentido, caracterizarão o tempo seguinte à Páscoa.

Ao narrar este episódio, o evangelista já o sobrecarrega com todos estes significados que surgem especificamente da realização da obra de Jesus: a verdadeira colheita, Samaria, será feita depois da Páscoa. Mas a história deste episódio (que poderia mesmo algo banal e de dimensões simples) é feito para que fique transparente o que acontecerá depois da Páscoa, pelos discípulos de Jesus.

3.2. O diálogo sobre a “água viva” (4.7-15)

Passemos ao diálogo sobre “água viva”.

«7Uma mulher samaritana vem tirar água. Jesus diz-lhe: «Dá-me de beber». 8Na verdade, seus discípulos tinham ido à cidade comprar alimentos. 9Então a mulher samaritana lhe disse: «Como é que tu, sendo judeu, me pedes de beber, sendo mulher samaritana?».

Na verdade, os judeus não têm relações com os samaritanos (ou: “Eles não usam os objetos dos samaritanos”; há uma dupla interpretação possível). 10Jesus respondeu e disse-lhe: “Se você conhecesse o dom de Deus e quem é que lhe diz: ‘Dá-me de beber!’, você mesma lhe teria pedido, e ele lhe teria dado água viva”. 11A mulher lhe disse: «Senhor, o senhor nem tem balde e o poço é fundo; De onde você tira água viva? 12 Você é talvez maior do que nosso pai Jacó, que nos deu o poço e dele bebeu ele, seus filhos e seus rebanhos?” 13Jesus respondeu e disse: “Quem beber desta água terá sede novamente; 14mas quem beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede; mas a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água que borbulha para a vida eterna”. 15A mulher diz-lhe: «Senhor, dá-me desta água, para que não tenha sede e venha aqui tirá-la»» (4,7-15). A história só começa agora. Nos v. 4-6 a ação ainda não começou, há apenas uma exposição de “quem, onde e quando”; nada aconteceu lá ainda. Para que a ação comece, algo deve ser acionado e uma expectativa deve surgir no leitor; e está no v. 7 que a ação começa.

«7aUma mulher samaritana vem tirar água»: surge a pergunta: concretizar-se-á o que foi anunciado? A mulher realmente tirará água? Qual água? E de que fonte? A espera surge assim: «Uma mulher samaritana vem tirar água». Se a história for banal, a mulher desenha e vai para casa (!), então a ação começa e termina rapidamente. Agora o leitor espera que a mulher faça o que veio fazer.

É Jesus quem começa primeiro: «7bJesus diz-lhe: «Dá-me de beber»».

O V. 7, que põe em movimento a ação, tem uma importância capital na economia da história, pois indica que aqui, especificamente, está em jogo uma dupla sede. Não existe apenas a sede da mulher, mas existe também a sede de Jesus. 7a introduz a sede da mulher: ela vem ao poço porque quer tirar água, portanto tem sede, elemento que a põe em movimento. Contudo, o leitor aprende, pelas primeiras palavras de Jesus, que também ele tem sede. Portanto, existem duas sedas. Isto também pode ser atribuído, de forma orgânica, ao tema conjugal. É evidente que as duas personagens não são perfeitamente simétricas: o messias e a mulher não são simétricos, tal como o parceiro divino, Adonai, da aliança não é simétrico em relação ao parceiro humano, Israel. Isto é evidente. Aqui não se trata de homem e mulher, mas do facto de estarem representados os dois parceiros da aliança. A história não é gerada por uma única sede, mas por duas: ambas têm sede. A dinâmica conjugal que emerge é a seguinte: no final da história pode-se dizer que ambos conseguem saciar a sede; respectivamente: Jesus pela mulher, mas também a mulher por Jesus, dará o que for necessário para saciar essa sede. É realmente uma dinâmica do tipo conjugal. A sede é também um símbolo: é uma experiência humana fundamental, mas é também uma das imagens mais exploradas (por exemplo: “A minha alma tem sede de ti”, Sl 63.2). Jogando com a experiência da sede, o evangelista atribui-lhe um “mais” simbólico. A sede é a expressão do desejo e também é uma expressão da necessidade, assim como a fome. Necessidade e desejo são duas dimensões inseparáveis: um desejo surge de uma necessidade real (então há também muitas necessidades “induzidas”...). Existem necessidades reais, que devem ser ouvidas. A sede é uma imagem de necessidade. O ser humano é “carente”, portanto tem sede; e a necessidade gera desejo. Aqui ainda estamos num contexto positivo: as necessidades reais chamam de satisfação, geram o desejo de serem satisfeitas. Jesus se encarrega absolutamente desta dinâmica real. Portanto não há história se não houver sede. Se não houvesse sede, não haveria história. É a sede que gera a história; é apenas a sede (necessidade/desejo) que põe a história em movimento.

Então a história começa assim. Imediatamente há uma intrusão do narrador, que dá a informação: «Jesus está sozinho, os discípulos não estão, porque foram à cidade comprar comida» (cf. v. 8). A partir de agora podemos perguntar-nos: pode-se comprar o alimento que Jesus procura? Aproximando-nos de João 6, fazemos outra pergunta: o alimento que Jesus dá é comprado? O QE parece ter interesse em mostrar que nem a comida que Jesus come nem a comida que Jesus distribui podem ser compradas; em vez disso, os discípulos foram comprar comida...

Vamos ver a dinâmica da história. Jesus está junto ao poço de Jacó; esta mulher saiu da cidade para ir ao poço. Os discípulos estão agora naquela mesma cidade e sairão para ir ao poço. Então a mulher sairá daquela cidade arrastando consigo alguns samaritanos. O mesmo movimento é reproduzido três vezes, ou seja, da cidade ao poço: 1. a mulher sozinha; 2. os discípulos com alimentos comprados; 3. a mulher arrastando consigo alguns samaritanos, para se encontrarem com Jesus.

A história de João 4 é profundamente unificada de uma ponta à outra: há uma ligação orgânica e profunda entre as duas partes do diálogo entre Jesus e a mulher e entre o diálogo do poço e o segundo parte, com também a questão do pão e da alimentação. É um texto que tem um nível extraordinário de unificação. João é um narrador incrível, como também pode ser visto claramente em João 9, com muita delicadeza na forma de contar. Com a sua intrusão, o narrador explica por que isso é possível: os discípulos não estão ali, então Jesus está sozinho com a mulher.

«9Então a mulher samaritana diz-lhe: «Como é que tu, que és judeu, me pedes uma bebida, que sou samaritana?»»: aqui o uso de «judeu» é importante para a economia de toda a história . Esta declaração da mulher é a base para entender o que Jesus dirá no v. 22: «A salvação vem dos judeus». A frase “A salvação vem dos judeus” nada mais é do que o uso do abstrato para o concreto: Jesus quer dizer que “o salvador vem dos judeus”. Assumindo exatamente o que a mulher disse (“Você, que é judeu”), Jesus responde: “Sim, sou judeu e sou também aquele que você espera”. Portanto, neste texto, a identificação de Jesus como judeu é crucial; toda a dinâmica está aqui. Claramente o texto é universalista, ou seja, apresenta o universalismo da salvação. Contudo, João não pode refletir sobre o universalismo da salvação, exceto em relação a este ser judeu de Jesus; o texto articula exatamente esta relação entre Israel e os gentios: o messias, que vem dos judeus, reconhecido como o messias judeu, é o portador da salvação para o mundo.

Como é que você, que é judeu, me pede uma bebida, que é uma mulher samaritana?”: a mulher tem um duplo espanto, tanto porque é um homem que fala com uma mulher, como porque é um judeu que fala com uma mulher, samaritana. A frase “Na verdade os judeus não têm relações com os samaritanos” também poderia significar: “Eles não usam os objetos dos samaritanos”; há uma dupla possibilidade de interpretação, que seria uma referência ao caso concreto: “Você me pede um drink, mas se tocar no meu balde, você vai se contaminar”. Visto que, para os judeus, os samaritanos estão num estado perpétuo de impureza legal, se um judeu usar os objetos que eles usam, ele fica contaminado.

Assim Jesus sente: «10Jesus respondeu e disse-lhe: «Se conhecesses o dom de Deus e quem é que te diz: «Dá-me de beber!», tu mesma lhe terias pedido e ele te teria dado água Viva"". Começa o mal-entendido: Jesus diz uma palavra que tem um possível duplo nível de significado, que está ligado sobretudo ao valor da expressão: “água viva” e que gera o mal-entendido.

No v. 10 é interessante ver como o motivo da bebida se inverte: Jesus começou pedindo: “Dá-me de beber”, declarando assim a sua sede. Mas agora Jesus torna explícita a sede da mulher. Talvez estejamos no mesmo nível do v. 7a: «Uma mulher saiu para tirar água»? A questão também se aplica aqui: faz sentido opor aqui o material ao espiritual? A sede da mulher, evidentemente superficial, é uma sede material, ela precisa de água para viver; bem, essa sede é apenas aquela sede? Na minha opinião, uma das dinâmicas profundas da história é precisamente que Jesus parte dos dados materiais e leva a mulher a descobrir um “mais”, isto é, um nível mais profundo de sede. Mas não são níveis opostos; se a mulher olhar cuidadosamente para dentro de si mesma, para a sede que sente, ela compreenderá que existe um nível mais profundo de necessidade e desejo dentro dela. Esta história é um ícone de evangelização. O poço de Sicar é uma imagem extraordinária do anúncio do Evangelho. Mesmo a mulher pode nem ter consciência do nível mais profundo da sua sede, mas esta é precisamente a capacidade de Jesus: é no diálogo que Jesus é capaz de fazer brotar essa sede, que a mulher ainda percebe apenas anúncios

um nível material, na verdade transmite algo mais profundo. É Jesus quem é capaz de fazer surgir a percepção deste nível mais profundo. Aqui a razão da sede da mulher emerge explicitamente da boca de Jesus e é mais aprofundada: aqui já existe um uso simbólico da imagem da sede, da experiência de ter sede.

«Se conhecesses o dom de Deus e quem é que te diz: «Dá-me de beber»»: Jesus não nega: continua com sede!

“Tu mesmo lhe terias pedido e ele te teria dado água viva”: aqui os estudiosos comprometem-se a explicar o que significam “dom de Deus” e “água viva”. Na minha opinião, o “dom de Deus” e a “água viva” coincidem, são duas formas de dizer a mesma coisa: o “dom de Deus” é então retomado na expressão “água viva”. O de “água viva” é um dos clássicos mal-entendidos joaninos, porque, superficialmente, significa “água corrente”. Na verdade, é um lençol freático (não uma cisterna), que portanto fornece água não estagnada. É claro apenas para um leitor joanino que “renasce do alto” (cf. João 3,3) que “água viva” contém um acréscimo de significado: é a água que tem uma ligação com a vida (zoé). Este é o nível mais profundo, de momento não acessível às mulheres; mas talvez acessível a um leitor um tanto atento. A mulher percebe apenas o nível material de significado; para decodificar o nível profundo que é dado à conexão com a vida. Na discussão deste episódio, uma das questões é: qual é o símbolo da “água viva”? Na verdade, a água é claramente usada como símbolo, está sobrecarregada de significado. O que Jesus quer dizer quando fala sobre a água ter uma ligação com a vida divina? Os estudiosos concordam que existem essencialmente duas linhas para decodificar o valor simbólico da “água viva”.

·         É imagem da Torá, da revelação, da Lei, portanto da palavra. Há todo um tema segundo o qual os patriarcas que cavam os poços são uma imagem do estudo da Torá. Portanto água é sabedoria, é a palavra de Deus, é revelação, é a Torá.

 

·         Há também um uso abundante do simbolismo da água para indicar o Espírito. Tanto é que o franciscano Frédéric Manns (1942) escreveu um volume no qual reuniu, antologicamente, uma série inumerável de passagens (bíblicas e extrabíblicas) nas quais a água é imagem do Espírito.

Então a “água viva” é a palavra ou é o Espírito? É revelação ou é o Espírito de Deus? Devemos lembrar também que João escreve que a “água viva” é o Espírito. «7,37 Jesus, ficando de pé, gritou: «Se alguém tem sede, venha a mim e beba 38 quem crê em mim. Como diz a Escritura: Do seu ventre fluirão rios de água viva”. 39Isto ele disse sobre o Espírito que aqueles que nele cressem receberiam: na verdade, ainda não havia o Espírito, porque Jesus ainda não havia sido glorificado" (7,37-39, CEI2008): nesta passagem, a intrusão do evangelista indica que a “água viva” é o Espírito; portanto, pareceria que mesmo na QV a “água viva” é o Espírito.

O problema é que, neste momento, o Espírito ainda não está presente; é a mesma coisa 39, o que levanta (e não resolve) o problema. Na verdade, v. 39 diz: «O Espírito que teriam recebido»; portanto a questão de João 4 não pode ser resolvida através de João 7.39, dizer que seria no sentido de indicar que a “água viva” é o Espírito. O v. 11-12 estão repletos da típica ironia joanina. Aqui a mulher reage, acreditando que está sendo sarcástica, mas conta muitas verdades inconscientemente. Ela usa uma ironia um tanto feroz; mas há também outro nível de ironia: a verdade de que ela não percebe.

Pretendo dizer: «11A mulher lhe diz: «Senhor, o senhor nem tem balde e o poço é fundo; De onde você tira água viva?". Ela é muito sarcástica, mas também involuntariamente perspicaz, porque pergunta: “De onde?”. Esta é uma das questões cruciais para o evangelista: a origem dos dons de Jesus, para o QE, é a questão. Na verdade, quando perguntamos de onde vêm os dons de Jesus?, ele já fez a pergunta: de onde vem aquele que é capaz de dar tais dons? No QE a questão da origem é decisiva, pois é a pergunta: “Mas este homem não é de Nazaré?”; é a questão da origem, que para Giovanni é decisiva. Para João, o mal-entendido sobre Jesus é o mal-entendido sobre a sua origem, porque os homens acreditam conhecer a sua origem (e, em certo sentido, conhecem). Este tema surge pela primeira vez com Natanael: «De onde me conheces? De onde vem o conhecimento que você tem sobre mim?” (cf. João 1:48); e mesmo o arquitriclíneo “não sabia de onde vinha a água que se transformara em vinho” (cf. João 2,9). É claro que a pergunta que a mulher faz “De onde você vem?” é involuntário e essa é a ironia. A mulher centra-se numa questão crucial, nomeadamente a questão da origem: a origem dos dons é inseparável da origem do doador. O outro nível de ironia é mais fácil de reconhecer: “12 Serás tu talvez maior do que o nosso pai Jacó, que nos deu o poço e dele bebeu ele, os seus filhos e os seus rebanhos?”. A resposta do leitor é: certamente! É óbvio que Jesus é maior que Jacó! Para as mulheres a resposta à pergunta é obviamente: “Não”; mas para o leitor é obviamente: «Sim, Jesus é maior que Jacó». Jesus responde e continua: «13«Quem beber desta água terá sede novamente; 14mas quem beber da água que eu lhe der nunca terá sede, mas a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água que jorra (“que salta”) para a vida eterna”. Nós nos concentramos no v. 14.

a.       A primeira parte da perícope é composta pelos vv. 13-14a; o V. 14b introduz um novo elemento, porque descreve um processo em duas etapas. A primeira etapa é: tenho sede, bebo, saciando assim a minha sede.

b.       A segunda etapa é: quem bebeu vira fonte, porque dele jorra a água.

Pergunta: O que é água? Dizer que o crente se torna a fonte do Espírito parece arriscado. Em vez disso, na minha opinião (como o resto da história mostrará), é muito joanino dizer: «Aquele que bebeu a água da revelação torna-se, por sua vez, uma testemunha desta revelação para outras pessoas»; na verdade esta é a história da mulher. Portanto o v. 14 já fotografa toda a história. O leitor descobre apenas no final que o v. 14 é o resumo da história desta mulher; mas é exatamente assim.

Precisamos chegar ao v. 16 para que ela finalmente possa beber! Ela bebe a água da revelação: no final reconhece que Jesus é o Cristo, que ele é o messias que ela espera. Talvez ele não esperasse que ele fosse judeu (!), mas consegue reconhecê-lo. Na segunda parte da história, a mulher retornará à cidade para dizer que encontrou o messias: é a “água que jorra”. Na minha opinião, este aspecto favorece a “água viva” como palavra, como revelação. Ainda temos que resolver esse problema.

«15A mulher diz-lhe: «Senhor, dá-me desta água, para que não tenha sede e não venha aqui tirar»»: pela primeira vez a mulher faz um pedido. É verdade que ainda é um pedido banal, mas vai na direção certa; começar a fazer uma solicitação é um passo. primeiro ela fingiu surpresa ("Por que você é judeu...?") e esta foi uma forma de manter distância; então, desajeitadamente, tentou ser sarcástico: era isso sua segunda cirurgia. Agora, pela primeira vez, ele faz um pedido que, por mais superficial que seja, ainda é um caminho para alcançar o espiritual. Na verdade a gente chega ao espiritual através do que é superficial, não tem outro jeito. Com o pedido “Dá-me esta água” pela primeira vez a mulher entra verdadeiramente no diálogo.

3.3. A infidelidade samaritana (4,16-18)

«16Ele lhe diz: «Vá chamar o seu marido e venha aqui». 17A mulher respondeu e disse-lhe: “Não tenho marido”. Jesus diz-lhe: «Disseste bem: «Não tenho marido». 18Pois você teve cinco maridos, e agora o que você tem não é seu marido; você disse isso certo"" (4,16-18).

Neste ponto parece que Jesus muda de direção: «16Ele lhe diz: «Vá, chame o seu marido e venha aqui»». Na verdade, dramaticamente, se imaginarmos a cena, é como se Jesus recomeçasse a história. Na verdade, se na realidade a mulher não vai ligar para o marido neste momento, porém, mais tarde irá à cidade chamar alguns samaritanos. Agora a história parece ter chegado ao ponto de partida, pois tudo começou quando a mulher saiu da cidade e chegou ao poço; Foram necessários alguns versículos para Jesus conseguir “tocá-la”, isto é, para fazê-la realmente começar a falar. Neste ponto Jesus recomeça do início: ela deve voltar para casa e repetir o mesmo movimento: “Vá, chame o seu marido e venha aqui”. É a reprodução do movimento a partir do qual toda a história começou. Também desta forma Giovanni sublinha que aqui há uma viragem na história.

Primeiro há o diálogo sobre a água, que efetivamente esgota sua função quando a mulher, pela primeira vez, faz um pedido que lhe convém. Segue-se uma parte do diálogo em que Jesus a convida a recomeçar: “Vai, chama o teu marido e depois recomeçaremos”. Aqui começa o desenvolvimento subsequente, sobre a questão do culto e do casamento. Como já mencionado, o tema está bem unificado aqui. Compreende-se verdadeiramente, já nesta segunda parte do diálogo, que a pergunta é feita pelos samaritanos, e não simplesmente pela mulher. É a história global daquele povo e da sua relação com Deus, que se expressa precisamente com as categorias esponsais. A reação da mulher ao convite de Jesus confirma que o diálogo entrou numa condição nova em relação às etapas iniciais. O tom da resposta da mulher é diferente das respostas anteriores. Desta vez ela responde de uma forma que corresponde à pergunta, não tenta ser irônica, não entende mal, não rebate com perguntas.

A reacção de Jesus a esta nova forma de reagir da mulher é: “Disseste bem: 'Não tenho marido'”. Esta frase enquadra a resposta de Jesus, que no final comenta: “Disseste bem”. Portanto, o ponto crucial é o que existe entre essas duas afirmações semelhantes: "Na verdade, você teve cinco maridos e agora o que você tem não é seu marido." Para compreender o significado desta parte do diálogo, é bom lembrar que o adultério como metáfora da idolatria é uma imagem recorrente no AT. Este uso da imagem conjugal começa com Oséias e depois se espalha. Portanto, se a aliança pode ser descrita como um pacto conjugal, então qualquer infidelidade à aliança pode ser automaticamente descrita com a imagem de infidelidade conjugal, de comportamento incorreto, ilícito, falso, moralmente errado. Esta é a estrutura dentro da qual a história se move.

Alguns autores sugerem a leitura alegórica, ou seja, deve-se encontrar um ponto correspondente para cada ponto da imagem; neste caso não tenho vontade de excluí-lo. Isto significa que, nestes versículos, cada elemento tem um significado específico: a mulher, o atual não-marido, os cinco maridos anteriores. Cada um desses elementos deve ser decodificado em relação a um ponto específico da realidade: a mulher representa o povo samaritano infiel; seus cinco maridos representam as cinco divindades adoradas pelos samaritanos; por fim, o atual não-marido representa Adonai, a quem os samaritanos adoram de forma pouco ortodoxa (na opinião dos judeus, em cuja perspectiva Jesus se coloca). Portanto haveria uma correspondência precisa.

Não tenho objeções a isso. Acrescentaria, contudo, que o valor tipológico (num sentido geral) da mulher pode ser suficiente; não há grandes discussões sobre isso. Na verdade, é difícil contestar o fato de que a mulher, que é uma personagem individual, é ao mesmo tempo uma personagem representativa, uma figura (portanto que a mulher encarna o seu povo). Os demais elementos apenas detalhariam esse fato fundamental. Então a discussão toca em um tema que está carregado de “mais”. A discussão sobre a condição conjugal das mulheres é, em transparência, a discussão sobre a condição religiosa dos samaritanos; isso é o que vem à tona agora.

3.4. O lugar de adoração (4.19-20)

«19A mulher lhe disse: «Senhor, vejo que és profeta! 20Nossos pais adoraram neste monte, enquanto vocês dizem que o lugar onde devemos adorar é em Jerusalém”. O que a mulher diz não pode nem deve ser interpretado como uma digressão, como insinuam alguns comentadores. Pelo contrário, estamos perante um aprofundamento decisivo da conversa: a disponibilidade da mulher cresce gradualmente e agora ela está disposta a abordar um tema diretamente religioso. Do misterioso conhecimento que o estranho demonstrou dela e de sua vida privada, ela deduz que ele é um profeta; o que lhe passa pela cabeça é que com um profeta você pode conversar sobre coisas muito sérias, que dizem respeito ao relacionamento com Deus. Ele não está se escondendo; pelo contrário, aproveite a presença de Jesus. Com efeito, ela aproveita a oportunidade para abordar com ele uma questão que, na tradição bíblica, está firmemente ligada à figura profética. A ligação entre um profeta e o culto é conhecida, desde a questão do verdadeiro e do falso culto a Adonai, que é um tema fundamental da literatura profética, até a história do livro dos Macabeus, que narra que as pedras do altar ficam de lado, esperando que um profeta se levante e diga o que deve ser feito com eles (1Mc 4,44-46). Estamos neste horizonte: você pode fazer perguntas a um profeta sobre este tema. «Vejo que você é um profeta. Então diga-me...": a mulher coloca uma questão crucial, isto é, a questão do culto autêntico, da adoração autêntica de Deus. O fato de que no v. 20 faltar o objeto direto do verbo «eles adoravam» é importante. A mulher usa o verbo «adorar» (que agora se torna o verbo chave) sem o objeto; então ele usa isso de forma absoluta. Ela especifica o lugar de adoração, mas não o objeto de adoração. É interessante que, na sua resposta, Jesus introduza o objeto que falta e faça uma transição decisiva ao nível do lugar de adoração. A mulher refere-se a dois locais de culto; o texto grego permite um paralelismo perfeito, pois pode usar a mesma preposição em ambos os casos. Nas duas opções possíveis o grego pode dizer: «Nossos pais adoraram nesta montanha (en to òrei); vocês, judeus, dizem que o lugar onde se deve adorar é em Jerusalém (en Hierosolẏmois)"; o paralelismo é perfeito.

Note-se também que a abordagem de ver Jesus como judeu, presente desde o início, continua: “Como é que tu, que és judeu...”.

«O lugar» é uma forma de se referir ao templo, como dirá também Caifás: «Para que não venham os romanos e destruam o nosso lugar» (cf. Jo 11,48).

 

3.5. Adoração contínua (4.21-24)

Segue-se a resposta mais longa de todo este diálogo; certamente é um destaque. A resposta de Jesus à questão levantada pela mulher ocupa o vv. 21-24:

«21 Jesus diz-lhe: «Escuta-me, mulher, vem a hora em que nem neste monte nem em Jerusalém adorarás o Pai. 22Vocês adoram o que não conhecem, nós adoramos o que conhecemos bem, porque a salvação vem dos judeus. 23Mas está chegando a hora – e já é – em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade: de fato, o Pai procura aqueles que o adoram. 24O Espírito é Deus, e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e em verdade"" (4,21-24).

Traduzo com «Escuta-me» o verbo pisteué moi; há acordo suficiente sobre isso. Os estudiosos do QE dizem que, quando o verbo pistéuo é usado no dativo (como aqui), ele tem o significado de «ouvir, dar fé (a um testemunho)»; não indica fé em sentido estrito. A fé em sentido estrito corresponderia ao uso absoluto de pistéuo ou ao uso de pistéuo + eis + acusativo. Portanto normalmente com o dativo significa: “Ouça-me, dê-me fé”. Esta passagem é comumente reconhecida como um dos vértices do QV. Nas discussões contemporâneas insinua-se que esta seria a apoteose da abordagem substitucionista que o QV possui: é aqui que se fundaria o caráter substitutivo, ou seja: tudo o que existia antes seria retirado e algo novo seria colocado. Portanto, haveria a ideia de que a adoração “em espírito e em verdade” substituiria a adoração de Jerusalém, fazendo uma varredura completa nela. Estas são as discussões contemporâneas sobre a controversa relação de João com o Judaísmo, onde, por um lado, se reconhece que João é o mais judeu dos quatro evangelhos e, por outro lado, se diz que é o mais polémico. antijudaico de todos os evangelhos. Este é precisamente um dos pontos de controvérsia. A resposta de Jesus pode ser dividida em duas partes: 1. vv. 21-22; 2. v. 23-24.

3.5.1. Jesus salvador do mundo (vv. 21-22)

A primeira operação que Jesus realiza é especificar o objeto do culto, da adoração; e não diz: «Adorai a Deus», mas fala de: «Adorai o Pai». É evidente que “Pai” é um termo relacional: existe apenas em função de um Filho. O ponto joanino é que Deus é chamado de “Pai” por Jesus, não num sentido geral em relação ao povo-filho: este não é mais o caso; ou ainda está nesse sentido, mas se tornou uma coisa muito mais específica. Deus é Pai em relação a um Filho, que é Jesus, que é Filho em virtude de um vínculo com o Pai que não tem analogias em nenhuma outra relação que um homem possa estabelecer com Deus. Este é o ponto da revelação joanina: l O uso da imagem Pai-Filho, que já tem uma história própria, adquire uma consistência única. A forma como Jesus usa a imagem não tem análogos, supera todos os usos mais fracos e analógicos que foram feitos anteriormente desta imagem.

Em que sentido ele os supera, vê-se claramente no Prólogo: «Tudo foi feito por meio dele e sem ele nada foi feito de tudo isso…» (1,3); «Ninguém jamais viu a Deus» (1,18). O Prólogo mostra que certas passagens do Evangelho querem indicar precisamente o que foi dito desde o início; significam precisamente o que o Prólogo revela antecipadamente como chave para a compreensão de certas afirmações que Jesus fará durante a história. Jesus formula a sua resposta explicando, antes de tudo, o objeto da adoração. Então no v. 22 (o que é muito importante) Jesus ainda brinca com o contraste “você/nós” com esta afirmação: “22Vocês adoram o que não conhecem, nós adoramos o que conhecemos bem, porque a salvação vem dos judeus”. O contraste é aquele que foi introduzido desde o v. 9; de v. 9 até v. 22 pronomes são tocados assim: "você/nós" ou "você/nós". A mulher começou com «você/eu».  Portanto os dois grupos são o grupo dos samaritanos e o grupo dos judeus. Jesus coloca-se no seio do povo judeu (“nós”) e faz seu o julgamento actual dos judeus de Jerusalém em relação aos samaritanos: o seu culto e adoração não são apoiados por um conhecimento adequado de Deus. a história da salvação e o seu papel primordial nela são vigorosamente afirmados aqui. Ao colocar-se no seio do povo judeu e assumir a sua perspectiva de leitura da realidade, o Jesus joanino coloca o povo eleito no supremo lugar de honra. A declaração de Jesus apresenta uma motivação: “Adoramos o que conhecemos bem”; depois segue uma motivação para este posicionamento especial do povo: “Porque a salvação vem dos judeus”. Na minha opinião, aqui “salvação” significa “salvador”, ou seja, o abstrato é usado em vez do concreto. O facto de utilizar um abstrato para evitar a utilização de um concreto, ou em qualquer caso como alternativa ao concreto, é um procedimento normal. Por outro lado, os samaritanos entenderam bem, porque dirão: “o salvador” (v. 42), que é a mesma coisa. É exatamente isso que Jesus quer dizer: quando afirma que “a salvação vem dos judeus” está falando de si mesmo; e, de fato, os samaritanos intuem isso, porque dirão: “O salvador vem dos judeus”, fazendo exatamente a equivalência entre o abstrato e o concreto. Portanto a “salvação” é “o salvador”, é o portador concreto da salvação. Portanto, Jesus liga o papel especial e único do povo judeu ao facto de que o messias vem deles, que é o povo de onde vem o messias. Sem ainda identificá-lo consigo mesmo (o faz apenas indiretamente), por enquanto Jesus limita-se a declarar à mulher que o salvador provém do povo judeu, o mesmo povo ao qual - segundo as palavras da mulher - ele também pertence. No momento estamos aqui: Jesus ainda não diz que é o salvador; diz que o salvador vem do povo judeu, aquele povo ao qual também ele, Jesus, pertence concretamente, como a mulher reconheceu desde o início. A história só terminará quando os samaritanos, como povo, abraçarem a perspectiva segundo a qual o portador da salvação vem dos judeus. Na verdade, reconhecerão neste judeu concreto, chamado Jesus, “o salvador do mundo” (4,42).

3.5.2. Adoração em Espírito e em verdade (vv. 23-24)

A segunda parte da resposta de Jesus diz respeito à adoração “em espírito e em verdade”.

«23Mas está chegando a hora – e já é – em que os adoradores autênticos adorarão o Pai em espírito e em verdade: de fato, o Pai procura aqueles que o adoram. 24Deus é espírito, e aqueles que o adoram devem adorá-lo em espírito e em verdade»»

Comecemos com: “Deus é espírito”. O texto não diz: “Deus é o Espírito”, assim como o Prólogo não diz: “O Logos é o Deus”. «Deus é espírito», «o Logos é divino»: numa terminologia completamente posterior, evidentemente não há identificação das “pessoas”; não diz que “Deus é Espírito”, mas que “Deus é espírito”: pneuma não tem o artigo, mas é a parte nominal do predicado.

A frase “Deus é espírito” costuma ter dois tipos de leitura:

1.       como escreve Schnackenburg, a frase “Deus é espírito” nada mais é do que uma reformulação do antigo ditado: “Deus é o Santo”; portanto esta frase seria uma afirmação da transcendência de Deus;

2.       por outro lado, o Padre de la Potterie sustentou que “Deus é espírito” é uma forma de indicar como Deus se relaciona com o mundo. Na leitura do Padre de la Potterie «Deus é espírito» significa que é somente através do pneuma (de forma “pneumática”) que Deus se relaciona com o mundo.

3.       Na minha opinião, o facto de esta afirmação estabelecer o culto é decisivo: é necessário um culto conforme a forma como Deus é.Este é o elemento indiscutível. Do facto de Deus ser pneuma surge o facto de que Ele deve ser adorado em «pneuma» e «alétheia». Portanto esta é a afirmação fundadora: “Deus é pneuma” e os adoradores, aqueles que o adoram, então o adoram em “pneuma e verdade”.

«Em espírito e em verdade» O tema da verdade joanina foi o grande tema do Padre de la Potterie. A primeira consideração sobre a expressão «Em Espírito e em verdade» é que Jesus retoma exatamente a construção usada pela mulher «Deus deve ser adorado en to òrei», «neste monte» ou deve ser adorado «em Jerusalém», « en Hierosolẏmois» ? Jesus responde que Deus deve ser adorado «en pneumati kai alethéia»; então a construção começa novamente. Jesus leva a questão a sério, mas também a transforma: na resposta de Jesus, o lugar de adoração não é mais um lugar geográfico, um lugar geograficamente circunscrito; é antes uma esfera relacional. É dentro de um certo tipo de relacionamento que Deus pode ser adorado como Ele deseja ser adorado. O que significa a expressão: “em Espírito e em verdade”? Existem muitas interpretações exegéticas diferentes. Sigo o Padre de la Potterie: acredito que o pneuma tem letra maiúscula, ou seja, indica o “Espírito de Deus”, portanto não é o espírito do homem. Não é nem mesmo uma forma adverbial, ou “espiritualmente”; nem «en pneumati» seria platonicamente oposto à matéria (uma coisa espiritual oposta ao que é material); «en pneumati» nem sequer está no espírito do homem (não é adoração segundo o espírito do homem). Repito: defendo a leitura de que é o Espírito Santo, o Espírito de Deus; então aqui “pneus” tem uma conotação muito específica, que me parece corresponder mais ao contexto.

O que significa adorar “em verdade”?

Também aqui há muitas posições. Na minha opinião, não é um advérbio (não significa: “adorar verdadeira e autenticamente”); nem sequer é a “verdade” contrastada com as figuras do AT. Aqui, “verdade” tem o significado joanino habitual, que tem consistentemente ao longo do livro: indica a revelação divina; “verdade” é o termo principal da revelação, do que se entende quando o termo “revelação” é usado.

Então, o que é essa “verdade”, que deve ser entendida como “revelação divina”?

Precisamos pegar duas frases joaninas, que são duas frases norteadoras e que ajudam a orientar-se. No QE Jesus pode dizer, enquanto ora ao Pai: «A tua palavra é a verdade» (17,17) como disse antes: «Eu sou o caminho, a verdade e a vida» (14,6). É a possibilidade de compor estas duas expressões que revela o que João quer dizer quando usa o termo “verdade”: “Toda palavra que sai da boca de Deus é verdade”. Aqui está todo o Antigo Testamento, toda a revelação antiga: “A tua palavra é a verdade”; aí está o que Deus disse através de Moisés e através dos profetas. É nesta perspectiva que Jesus pode dizer: “Eu sou a verdade”, porque Ele é o Logos que se fez carne; isto é, Jesus é um modo de presença da palavra que atinge o seu apogeu. Há uma evidente linha de continuidade: a “verdade” é a revelação que Deus faz através da sua palavra, nesta leitura unificada das palavras pronunciadas por Moisés e pelos profetas até à palavra que ele diz de si mesmo no Verbo feito carne. Depois li a fórmula: “em Espírito e em verdade” em referência àquelas que os concílios de Nicéia (em 325) e de Calcedônia (em 451) definirão como “pessoas divinas”. A passagem é incipientemente trinitária: é adoração ao Pai, no Espírito e na “verdade”, que tem uma conotação cristológica essencial.

Pergunta: O Espírito e a verdade são dois princípios distintos? Falando em adorar “em Espírito e em verdade”, Jesus oferece duas possibilidades? Parece que não. A construção sintática já sugere a compreensão de forma unificada, pois existe uma única preposição en para os dois substantivos. Não só isso, há também toda a teologia joanina. Além disso, devemos sempre ter cuidado, pois no QE as expressões duplas são quase sempre hendíades: no entendimento joanino “o Espírito e a verdade” não estão separados. Na verdade, o título joanino por excelência do Espírito Santo é “o Espírito da verdade”. Em 1 João até lemos: “O Espírito é a verdade” (1 João 5.6). João quer dizer que a verdade sem o Espírito e o Espírito sem a verdade não existem, não podem subsistir. O Espírito não é outro senão aquele que tem uma função em relação à verdade. De la Potterie disse: «A função do Espírito é internalizar e atualizar a verdade». Aquela verdade que Deus diz sobre si mesmo (assim como a palavra de Jesus, como o próprio Jesus) seria mero interesse dos estudiosos da antiguidade, se não houvesse a ação do Espírito. Só no Espírito é que a verdade que é Jesus (e também toda a verdade que Deus disse comunicando a sua palavra através dos profetas) é uma verdade atual e íntima do homem. Caso contrário, teria o mesmo destino de qualquer outra palavra: seria uma palavra interessante, mas do passado, que tem valor arqueológico. Na visão joanina “Espírito e verdade” estão firmemente ligados. Portanto não é um princípio duplo, mas um princípio unificado. Neste ponto Jesus respondeu à pergunta da mulher formulada no v. 20; ele a formulou implicitamente, falando de “nós nesta montanha / vocês em Jerusalém”. Na sua resposta Jesus indica qual é o lugar do culto autêntico nos tempos messiânicos; e indica isso em relação ao Espírito e à sua pessoa. Neste sentido Jesus não propõe um terceiro lugar. Por esta razão uma visão substitucionista parece incompreensível. Aqui há uma mudança: Jesus não propõe um terceiro lugar no mesmo nível dos dois anteriores (se assim não fosse, então Jesus seria certamente “substituto”). Ali estava o monte Gerizim e o templo de Jerusalém; e argumentamos, porque são dois lugares físicos, portanto é óbvio que um está em antagonismo com o outro. Em vez disso, Jesus proclama que o lugar de culto já não é um lugar geográfico, mas é um lugar relacional: o culto que Deus pede é aquele culto que lhe é prestado em relação à Palavra que Jesus é, isto é, uma palavra vivificado pelo Espírito. Este é o “lugar”, que não é um lugar, mas é uma relação, é um vínculo, é uma relação de comunhão. Neste sentido, o que Jesus diz não está em conflito, pois já não estamos em dois lugares comparáveis: a “adoração em espírito e em verdade” é colocada num outro nível em relação à alternativa colocada pela mulher.

Na minha opinião, este é um dos textos em que aparece o grande tema joanino do lugar de culto. É um fio que percorre todo o QE desde 1.14 (“Ele armou a sua tenda entre nós”): a carne do Logos é o tabernáculo da presença de Deus; depois em João 2 (“Destruí este templo e em três dias o ressuscitarei (...) Falou do templo do seu corpo”, João 2,19.21). É evidente que as palavras que Jesus diz agora à mulher samaritana estão em perfeita continuidade com estes textos anteriores. É algo que Jesus já deixou escapar por ocasião da chamada “purificação do templo” (Jo 2,13-22), isto é, que o templo de Deus é o seu corpo, que a casa do Pai é a pessoa dele. Aqui, em João 4, o lugar onde devemos agora procurar a presença de Deus e adorar o Pai é circunscrito pela revelação cristológica, que é a «verdade», tornada interior e actual pelo Espírito.

 

3.6. Jesus é o messias (4.25-26)

Agora o diálogo chega ao fim. O v. 25-26 feche esta primeira parte.

«25A mulher lhe diz: «Sei bem que o messias chamado Cristo (estas duas palavras são uma intrusão do evangelista) deve vir: quando ele vier, nos anunciará tudo». 26Jesus diz-lhe: «Sou eu quem te fala»» (4,25-26).

Esses versículos não são uma conclusão banal. Na fase decisiva do diálogo a mulher identificou Jesus como profeta. Dele, deste homem que ela identificou como profeta, ela ouviu palavras decisivas sobre onde e como se deveria adorar, como ela havia pedido. Ele reage a estas palavras dizendo que, de acordo com as expectativas do seu povo, o messias terá a tarefa de revelar tudo. Podemos ver a profunda continuidade do texto: ela diz: «Eu sei que o messias deve vir; quando ele vier, ele nos contará tudo." Esta frase deve ser tomada num sentido forte: é o messias que, vindo, trará a plenitude da revelação; é isso que a mulher está dizendo. Para os samaritanos o messias tem uma conotação profética eminente: é um messias revelador, é um messias que deve informar, anunciar. Aqui se abre uma expansão: estudos sobre o messianismo samaritano indicam que ele – por razões óbvias – não é de natureza davídica e tem características próprias. Portanto, o messias samaritano é essencialmente um messias profético, é um messias revelador. No centro da espera samaritana está uma figura que é “o profeta igual a Moisés”. No livro do Deuteronômio lemos: “Deus vos suscitará um profeta como eu” (cf. Dt 18,15); esta frase tornou-se crucial na espera samaritana. No Pentateuco Samaritano esta frase está duplicada, aparece duas vezes: em Dt 18,15 (vindo do Pentateuco judaico) e está duplicada em Êx 19 (não por acaso na aliança no Monte Sinai). Esta frase tornou-se crucial para os samaritanos: o tipo de messias que esperam ele é um messias profético. O texto de João é muito coerente: é o messias quem deve revelar tudo. Neste ponto Jesus retoma a inspiração que lhe foi proporcionada pela intervenção da mulher; Jesus a pressiona, revelando-lhe finalmente sua identidade. Ele só faz isso agora; primeiro disse que «o Salvador vem dos judeus» e agora encerra o raciocínio dizendo: «É verdade que cabe ao messias anunciar tudo, especialmente o que diz respeito ao culto autêntico. Pois bem, o messias está aqui e o meu falar com vocês é exatamente aquela revelação escatológica da qual vocês esperam o conhecimento de tudo”.

Na frase “Sou eu quem falo com você”, as palavras “eu falo” têm toda a densidade da revelação: “Sou eu quem estou trazendo essa revelação que você espera”. Não é por acaso que, ao chegarmos à segunda parte do texto, o evangelista assinala duas vezes que o que chama a atenção é que Jesus “fala” com ela (laléin), que foi a expressão que utilizou: “Estou falando para você"; depois deste laléin, este “falar” (que é o falar da revelação) é fortemente colocado sob os holofotes, com a anotação: “Os discípulos ficaram maravilhados por ele estar falando com uma mulher” (v. 27a); imediatamente a seguir segue: «Os discípulos perguntaram: «O que procurais? (…) Por que você está falando com ela?»» (v. 27b). Esta palavra densa, esta palavra de revelação, é precisamente a questão: Jesus apresenta-se como o messias que traz a plenitude da revelação.

4. A profunda unidade de todo o diálogo

Agora mostramos como o diálogo é profundamente unificado. A leitura cuidadosa do texto confirmou que a irregularidade da posição conjugal da mulher (ou seja, a situação de adultério que é imagem de infidelidade religiosa), o seu reconhecimento gradual de Jesus em termos messiânicos e a reflexão sobre o culto são aspectos de um único discurso. Portanto, a questão do casamento, o diálogo sobre a adoração e a identificação de Jesus como profeta-messias combinam-se perfeitamente.

A questão da água e a segunda parte permanecem.

Que ligação existe entre o diálogo sobre a água e o consumo de água e o diálogo sobre o culto (neste ponto podemos dizer que a questão do culto autêntico é o verdadeiro tema da segunda parte)? Agora podemos constatar que o possível duplo valor da água viva corresponde exactamente ao princípio dual (que no entanto é um só) que regula o novo culto; na verdade, o Espírito e a verdade são os dois valores possíveis da água.

A água viva pode ser explicada em duas linhas:

a.       é a Torá, a revelação, a palavra;

b.       ou é o Espírito.

Não pode ser por acaso que, no culminar da revelação sobre o culto autêntico, Jesus afirme que o culto autêntico se realiza “no Espírito e na verdade”, onde “verdade” é a palavra: estes são exactamente os dois valores possíveis. de "água Viva". Portanto, na visão joanina, as duas decodificações possíveis do simbolismo da água correspondem ao contexto em que se presta ao Pai o culto que Ele deseja. Neste ponto é possível dizer uma palavra definitiva, no que me diz respeito, sobre a imagem da “água viva” na primeira parte. Nós realmente temos que escolher? Na minha opinião, você não precisa escolher; por que um ou outro deveria ser descartado? Por que “água viva” deveria ser apenas a palavra? Ou por que deveria ser apenas o Espírito? Parece que João não quer que tal distinção seja feita: em seu evangelho como um todo, ele antes incentiva o leitor a manter o Espírito e a palavra juntos.

O Padre de la Potterie ensinou que existem duas fases no evento salvífico:

1.       a fase de Jesus na carne

2.       e a fase do glorificado.

No primeiro nível, enquanto o Logos está em sua carne neste mundo, a água viva é a palavra; quando ele é glorificado, a água viva é antes o Espírito. Assim, de la Potterie jogou com os dois significados possíveis em relação a essas duas fases da história da salvação. Sugiro isto: João sempre une profundamente Espírito e palavra; então não estou muito convencido com a ideia de dividi-lo em duas fases cronológicas. Pelo contrário, vejo desta forma: enquanto Jesus está nesta terra, enquanto o Logos está na carne, ele é palavra e fala palavras. A cristologia joanina dá extrema ênfase à conexão entre Jesus e o Espírito (muito mais do que os sinóticos). A partir do momento em que João Batista dá testemunho de Jesus, o leitor sabe que Jesus é a morada permanente do Espírito. Isto significa que, enquanto Jesus está em sua carne nesta terra, já é possível ter uma experiência – mediada – do Espírito na relação com Jesus: na realidade, os discípulos já têm uma experiência mediada do Espírito de Deus; isto é, ao encontrar Jesus, que é a morada do Espírito, os discípulos também fazem uma experiência do Espírito de Deus. E as palavras de Jesus são palavras cheias de pneuma: «As palavras que vos falei são pneuma e eles são zoé» (João 6.63). Portanto, João avança nesta direção: quer que o leitor compreenda que existe uma mistura, uma ligação profunda, entre palavra e Espírito. Isto não só no sentido de que, quando Jesus já não está, o Espírito torna viva a sua palavra (embora isto seja verdade!), mas também no sentido de que, quando Jesus está na terra, a sua palavra está cheia do Espírito e quem a escuta e quem a encontra já tem uma experiência do Espírito. Portanto, eles não podem ser separados. Neste sentido encontro uma profunda unificação no diálogo. Não vejo duas fases sucessivas, em que primeiro a palavra domina e depois o Espírito assume, mas tanto numa como na outra fase há uma ligação muito profunda entre o pneuma e a verdade, entre a palavra e o Espírito de Deus. ele é construído? Aqui vemos uma técnica joanina frequente, talvez nem muito original. Como o autor de um livro indica uma relação contemporânea entre os acontecimentos?

Em alguns casos, João age como aqui: começa, interrompe, retoma; e o que acontece no enquadramento, o que acontece no centro, são acontecimentos contemporâneos. Assim acontece aqui: enquanto Jesus está junto ao poço conversando com os seus discípulos que finalmente chegaram, acontece que a mulher entra na cidade e os samaritanos saem; portanto há contemporaneidade. Não só isso, a sugestão de contemporaneidade (neste caso como noutros) tem uma implicação ao nível do conteúdo: os episódios que João apresenta como contemporâneos são episódios homogéneos do ponto de vista do conteúdo. Ou seja, o diálogo com os discípulos no poço interpreta o que está acontecendo, não são duas coisas distintas, mas o tema é único. Nas duas cenas (a cena do quadro e a cena central) o tema é o mesmo, coincide. Isto também acontece por ocasião da negação de Pedro: de uma forma muito mais forte do que nos sinópticos (que também fazem a construção A, B, A1: começa com a negação de Pedro, depois há o interrogatório, finalmente termina a negação), João diz que o tema é o mesmo dentro e fora do palácio (embora isso não seja dito pelos sinópticos). A contemporaneidade serve para sublinhar a homogeneidade dos conteúdos. Aqui a homogeneidade de conteúdo é dada pela pergunta dos discípulos de Jesus: dentro do palácio Ana questiona Jesus sobre seus ensinamentos e seus discípulos, enquanto fora um discípulo de Jesus nega conhecê-lo. O tema é unificado: a técnica literária contemporânea quer mesmo sugerir que os dois episódios narrados devem ser lidos com uma homogeneidade muito forte. Assim também em João 4.

5. Diálogo com os discípulos (4,27-42)

5.1. A chegada dos discípulos e o retorno da mulher à cidade (4.27-30)

«27Naquele momento chegaram os seus discípulos e ficaram maravilhados por ele estar conversando com uma mulher. E ainda assim ninguém disse: “O que você está procurando?” ou “Por que você está falando com ela?” 28Então a mulher deixou o seu jarro e foi à cidade e disse ao povo: 29“Venham, vejam um homem que me contou tudo o que eu fiz. Poderia ser este o Cristo?”. 30Saíram da cidade e foram ter com ele” (4,27-30).

Notamos que no v. 28, com a menção da “ânfora”, há a única outra aparição do léxico da água fora dos primeiros 15 versos. Vamos pular para v. 39: «39Muitos daquela cidade acreditaram nele, por causa da palavra da mulher, que testemunhou: «Ele me contou tudo o que eu fiz». 40Quando chegaram até ele, os samaritanos imploraram-lhe que ficasse com eles”. Os discípulos chegam; o evangelista narra que são feitas duas perguntas, que no entanto permanecem não expressas: o evangelista não escreve que são feitas a Jesus, mas que “ninguém lhe disse”. Os discípulos guardam dentro de si as duas perguntas: “O que vocês procuram?” e: «Por que você está falando com ela?». Já sublinhámos a importância da segunda pergunta: «Porque estás a falar com ela?», com o uso do verbo «falar», laléin; então: «Por que você está falando com ela?».

A primeira pergunta também é importante: “O que você procura?”. O tema da pesquisa, o verbo zetéo, “procurar”, tem certa importância em João, pois a pergunta “O que você procura?” é a primeira frase que Jesus pronuncia no QE, quando se vira e vê os dois discípulos do Batista o seguindo (1,38). Só isso já basta para estabelecer que não se trata de um elemento irrelevante: “O que você procura?”. Dentro da nossa história a questão da “busca” é um dos temas unificadores, porque unifica a primeira e a segunda parte da história. É um elemento de ligação entre as duas partes da história, já que o tema da busca aparece no v. 23: «Porque o Pai procura tais que o adorem»; então o Pai “busca”? Os discípulos perguntam: “O que você procura?”; com a habitual ironia joanina, dizem uma verdade inconscientemente. É verdade: Jesus está olhando; aliás, mais: é verdade que Jesus procura e que, nessa procura, se concretiza a procura que Deus faz dos verdadeiros adoradores. Dizem isso involuntariamente, mas acertam o ponto: toda a história é a história de uma busca: “Estou com sede”. No início ele disse: «Dá-me de beber»; é a transcrição do mesmo motivo. Se a sede é a imagem do desejo, se é a imagem de uma necessidade real que deve ser satisfeita, então pode-se dizer que a pesquisa é a transcrição da sede em termos mais conceituais. Portanto a história tem uma homogeneidade e uma coerência profunda: “O que você procura?”. É uma figura que ajuda a ler toda a história, que é a história de como Deus procura verdadeiros adoradores.

Mas “ninguém nunca viu Deus”, Deus é invisível; a única maneira que Deus tem de se relacionar com o mundo é através do seu Logos. Portanto a busca de Deus não pode ser outra coisa senão a busca que se dá através do Logos; neste caso, o Logos se fez carne. Na busca que Jesus faz pela mulher (porque Jesus certamente procura esta mulher!), toma forma a busca de Deus pelos verdadeiros adoradores. Também é importante o que se diz da mulher, ou seja, o seu anúncio, com a reação dos samaritanos. Sobre o detalhe da ânfora abandonada: o facto da mulher sair da ânfora e ir para a cidade não é irrelevante. Li isso como uma alusão ao fato de a mulher ter encontrado "água da vida", encontrou água naquele nível profundo que inicialmente não tinha consciência. Esta “água da vida”, agora, ocupa o centro da sua atenção e, nesse sentido, a ânfora permanece; mas não numa perspectiva de desprezo: não se trata de opor o nível material ao nível espiritual. Em vez disso, é o facto de ela ter atingido o nível mais profundo da sua investigação.

Esta “água viva” é a verdade trazida por Jesus, se tudo o que dissemos for válido; e então a mulher bebeu esta “água viva”, isto é, acolheu a revelação trazida por Jesus, revelação que coincide com a sua pessoa. Esse é o significado da história. Não concordo com aqueles que sustentam que a sentença da mulher no v. 29 expressaria uma dúvida, quando diz: «Vamos, você vê um homem que me contou tudo o que eu fiz. Este é o Cristo?”; esta frase seria interpretada como uma expressão de dúvida. Não me parece que uma leitura desse tipo possa se sustentar dentro da história. Alguns trazem razões gramaticais, facilmente removíveis: não é verdade (e nem é verdade dentro do QE) que a construção comigo ou comigo exige sempre uma resposta negativa. Podem ser tomadas outras medidas em que as questões assim construídas não exijam uma resposta negativa. Portanto a sintaxe não é decisiva, mas apenas o contexto decide; não é possível confiar na construção sintática da frase para afirmar que a mulher hesita. Só o contexto pode trazer uma resposta e o carácter da mulher não faria sentido se esta sua afirmação não fosse uma proclamação. A mulher identificou e aceitou a revelação de Jesus, reconheceu-o como o messias e, como tal, apresenta-o aos seus concidadãos. Em apoio a tudo isto, notamos que o evangelista, no v. 39, não hesita em referir à mulher o léxico do testemunho, que é um léxico de certo peso no QE e que não creio que seja aqui utilizado de forma banal: «Muitos acreditaram nele, por causa da palavra da mulher que testificou”. O evangelista não escreve: “ele testemunhou”, mas sim “ele testemunhou”: “Ele me contou tudo o que eu fiz”. Na minha opinião deveria ser lido assim: a palavra da mulher é uma martyría, é um “testemunho”. Alguém poderia perguntar por que esse testemunho é tão indefinido. A história também tem uma lógica interna própria: é improvável que esta mulher, na sua real condição social (que é certamente simbolicamente significativa, mas que é, no entanto, também uma pessoa de um certo tipo), começasse a pregar do púlpito! Isto é, esta forma muito cautelosa simplesmente reflete a sua condição; é uma forma de dizer que «Jesus é o messias» que respeita a condição real do personagem. Esta é a leitura que, no geral, mais me convence. Portanto, a forma como a mulher se expressa pode parecer muito prudente, uma vez que não há uma declaração direta; ela não diz: “Encontrei o Messias”. No entanto, esta fórmula indirecta, com uma pergunta, parece-me simplesmente uma formulação prudentemente adequada ao carácter que anuncia e ao seu perfil global.O título “o messias” foi o que ele expressou; foi o culminar do diálogo anterior e é o que a mulher agora utiliza.

5.2. Diálogo com os discípulos (4.31-38)

Passemos ao diálogo central com os discípulos (vv. 31-38).

«31Entretanto, os discípulos oraram-lhe, dizendo: «Rabi, come». 32E ele lhes respondeu: “Tenho um alimento para comer que vocês não conhecem”. 33Os discípulos perguntaram uns aos outros: “Alguém lhe trouxe alguma coisa para comer?” 34Jesus diz-lhes: «O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e completar a sua obra. 35Vocês não dizem: “Falta um quarto, depois vem a colheita”? Eis que eu te digo: levanta os olhos e vê que os campos estão brancos para a colheita. 36Quem colhe já recebe salário e colhe frutos para a vida eterna, para que aquele que semeia e aquele que colhe se alegrem juntos. 37 Nisto é verdade o ditado: um homem semeia e outro colhe. 38Eu os enviei para colher aquilo pelo qual não trabalharam muito; outros trabalharam e você entrou no trabalho deles"" (4,31-38).

As palavras de Jesus dividem-se em duas partes: primeiro domina a questão da alimentação, depois o trabalho no campo. É claro que estes dois temas não estão distantes, porque é claro que a comida vem do campo. Portanto, as duas partes da conversa estão profundamente unificadas: é o trabalho nos campos que produz os alimentos que comemos. Esta já é uma chave para a compreensão do texto. Depois teremos que ver o que é “trabalho no campo”.

5.2.1. A comida de Jesus (vv. 31-34)

A primeira parte, a da comida, é construída como o clássico mal-entendido joanino: a situação inicial, as palavras de Jesus, uma interpretação banal, Jesus resolve o enigma. Passemos então diretamente à resolução do enigma, sobre o qual recai todo o peso desta primeira parte: é o v. 34, que, novamente, é um exemplo maravilhoso da expressão joanina: “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e levar a cabo a sua obra”. Aqui há um par, unido por um «e» (kai), que é composto por duas frases inteiras; é precisamente uma dupla expressão: o alimento de Jesus é: “O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou” e “levar a cabo a sua obra”.

Como você come essa comida?

Aquilo de que Jesus se alimenta, “meu alimento”, é “fazer a vontade daquele que o enviou”. A partir de uma investigação sobre o uso do substantivo télema, “vontade” e do verbo teleo, vemos que, na QV, eles estão presentes em outras passagens. A passagem que mais nos ajuda a compreender o que está implícito quando Jesus fala da “vontade do Pai” encontra-se em João 6, onde, com a maior clareza possível, Jesus diz:

 «38Desci do céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade de aquele que me enviou. 39E esta é a vontade daquele que me enviou: que eu não perca tudo o que ele me deu, mas o ressuscite no último dia. 40Porque esta é a vontade de meu Pai: que todo aquele que vê o Filho e nele crê tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia” (6.38-40).

Uma primeira aquisição parece elementar e fundamental: a vontade daquele que enviou Jesus é uma vontade salvífica; está muito claro. Jesus diz isso duas vezes; primeiro em termos negativos «A vontade daquele que me enviou» é «que eu não perca tudo o que ele me deu», portanto que não vão para a perdição; depois repete-o em termos positivos: que ele “tenha a vida eterna”. É uma expressão homogênea. A vontade daquele que o enviou é uma vontade salvadora e vivificante, para usar expressões joaninas. A vontade, o que o Pai quer ao enviar Jesus, é preservar da perdição, dar a vida eterna agora (porque a vida eterna começa aqui, nesta terra) e dar, num futuro escatológico, a ressurreição do corpo. Portanto, a vontade daquele que o enviou é uma vontade salvadora e vivificante. Como esta salvação e esta vida são alcançadas é expressa no v. 40: “Quem vê o Filho e nele crê”; também aqui há uma hendiadys: “Quem vê o Filho acreditando”, “quem olha para ele acreditando”. Então, onde as pessoas vão a Jesus, olham para ele e, olhando para ele, acreditam nele; aqui se realiza esta vontade salvífica e vivificante do Pai. Então: o que Jesus come? Jesus come um alimento que consiste em fazer a vontade salvífica e vivificante do Pai, que quer preservar os homens da perdição e dar-lhes vida e ressurreição; mas sabe que isto acontece no encontro com o Filho.

Agora vejamos a frase: “Para completar seu trabalho”. No QE o léxico da realização é um léxico direcionado. As palavras que derivam de tél- não são muitas (por exemplo: Eis télos, «Ele os amou até o telos»; Jo 13.1); o verbo teléo significa “completar”, “aperfeiçoar”. O léxico joanino da realização contém uma ligação essencial com a morte de Jesus.Há uma concentração de termos derivados de tél- em relação à morte. Não há dúvida de que, quando Jesus diz que “deve completar a sua obra”, implica a sua morte na cruz. A cruz é o telos: «Ele os amou até o telos», «até o cumprimento». Na verdade, quando João narra a morte de Jesus, ele usa o verbo teleióo duas vezes e teleo uma vez, que são os verbos de cumprimento.

O que Jesus come? O alimento que Jesus come é um alimento que consiste em realizar a vontade salvífica e vivificante do Pai; contudo, a realização desta vontade não pode ignorar a cruz. A cruz é o acontecimento em que esta vontade salvífica e vivificante, que é a marca de todo o ministério de Jesus, atinge o seu ápice. A importância da cruz, ou a conclusão da sua obra, não deve ser afirmada em detrimento do resto. Aqui Jesus não quer dizer que a vontade salvífica e vivificante do Pai se cumpre unicamente na cruz, mas antes quer indicar a cruz como cumprimento daquilo que é característico de todo o seu ministério. Portanto, trata-se de compreender que existe um vínculo inseparável entre o ministério terreno e a hora da cruz: os dois momentos estão intimamente unidos e também ordenados um ao outro, porque a cruz é o télos. Jesus “comerá” adequadamente sua comida na hora do cumprimento. É na hora do cumprimento que Jesus “comerá” a comida, pois é na hora da cruz, da ressurreição, que Jesus “comerá” a comida. Contudo, todo o seu ministério já está orientado para aquilo que culmina na cruz.

Para compreender plenamente, devemos recordar outro ditado joanino: “E eu, quando for elevado da terra, atrairei todos a mim” (Jo 12.32).  Isso é o que é a comida e é para isso que serve a cruz a conclusão da obra salvífica e vivificante: a cruz é o lugar de onde Jesus se dirige a si. Dito isto, o episódio de Samaria é bem compreendido; é neste contexto que compreendemos o significado que estas palavras atribuem ao episódio de Samaria.

5.2.2. Trabalhar nos campos (vv. 35-38)

«35Não dizeis: «Falta ainda um quarto, depois vem a colheita»? Eis que eu te digo: levanta os olhos e vê que os campos estão brancos para a colheita. 36Pois quem colhe recebe salário e colhe frutos para a vida eterna, para que aquele que semeia e aquele que colhe se alegrem juntos. 37Nisto é verdade o ditado: um é quem semeia e outro é quem colhe. 38Eu os enviei para colher aquilo pelo qual não trabalharam muito; outros trabalharam e você entrou no trabalho deles"" (4,35-38).

Aqui domina a imagem da colheita, que pressupõe a semeadura. Então há uma dialética: você colhe, mas colhe porque semeou primeiro. A imagem da colheita certamente vem à tona: “Você não diz: ‘Falta um quarto, depois vem a colheita’?”. João, que estrutura a memória com base nas Escrituras de Israel, sabe bem que a colheita é uma imagem frequentemente usada no AT para indicar a intervenção final de Adonai, tanto no sentido de julgamento como no sentido de salvação. A tradição joanina utiliza voluntariamente esta imagem, como se vê no Apocalipse (Ap 14,15-16), e também na parábola da semente que cresce sozinha, depois vem a foice e ceifa (12,24). É um léxico comum. Nesta parte parece-me que dois momentos podem ser reconhecidos.

O v. 35-36 podem ser intitulados: Um anúncio surpreendente; em vez disso, o vv. 37-38: Semeadores e ceifeiros. Em torno destas duas questões fazemos uma leitura da perícope.

Um anúncio surpreendente (4.35-36)

«35Não dizeis: «Falta ainda um quarto, depois vem a colheita»? Eis que eu te digo: levanta os olhos e vê que os campos estão brancos para a colheita. 36Pois quem colhe recebe salário e colhe fruto para a vida eterna, para que aquele que semeia e aquele que colhe se alegrem juntos” (4.35-36).

Esses versos são baseados na tensão e no efeito surpresa. A tensão está entre o que é esperado de acordo com o bom senso (mas também de acordo com a experiência repetidamente confirmada a cada ano que passa; tudo isso dá uma certa informação: experiência, bom senso) e o que, em vez disso, de uma forma completamente surpreendente, está acontecendo. A experiência ensina que passa um certo tempo entre a sementeira e a colheita; a experiência, que se repete todos os anos, indica que você semeia, passam os meses e depois colhe. Em vez disso, a surpresa é que Jesus afirma que a semeadura e a colheita ocorrem substancialmente simultaneamente. Também aqui é evidente o contexto do Antigo Testamento: há promessas escatológicas que dizem que «quem lavra encontrará aquele que ceifa» (cf. Sl 126,6). Portanto é algo contínuo: assim que você semeia, você já colhe. Portanto, estas imagens vivem, sem dúvida, deste pano de fundo; e são imagens que dizem o éskaton, que dizem que as promessas de salvação escatológica estão sendo cumpridas. Jesus sublinha inicialmente um facto óbvio, nomeadamente que existe uma distância temporal entre o momento da sementeira e o da colheita; mas então, com um efeito surpresa (“Eis que vos digo”), na segunda parte do v. 35 desmente a certeza óbvia que está na base do provérbio. Contra toda a experiência, o tempo da colheita já chegou. Enquanto os dados comuns nos lembram que deve passar sempre um certo tempo entre a semeadura e a colheita, Jesus anuncia que os campos já estão prontos para a colheita, colocando os discípulos diante do surpreendente cancelamento de toda lógica distância temporal. Isso pressupõe que a semeadura acabou de ser feita, caso contrário não resistirá. Isto também nos orienta a decifrar quem é o semeador. O texto afirma que algo incrível aconteceu, pois assim que você planta, você já colhe! Jesus convida-nos a levantar o olhar: «Levantai os olhos e vede que os campos estão brancos para a colheita». O facto dos campos serem “brancos” é o sinal inequívoco de que chegou o momento de colher. Mas o branco não é a cor das colheitas! Na minha opinião, o “branco” é explicado em relação às roupas dos samaritanos, que, em virtude do testemunho da mulher, estão saindo de Sicar e vindo ao encontro de Jesus no poço de Jacó. Talvez seja um exagero; porém, plasticamente, há uma homogeneidade perfeita com a frase de Jesus: «Quando eu ressuscitar da terra, atrairei todos a mim» (12,32), também do ponto de vista da representação dramática. Jesus nunca sai do poço: é a história de uma atração. Jesus permanece imóvel e a história descreve uma atração, que não pode ocorrer na ausência de uma testemunha. A presença de uma testemunha é importante, porque a atração pelo Exaltado só pode ocorrer em virtude de um testemunho, de uma testemunha. A história de Samaria é a antecipação da dinâmica do anúncio do Evangelho depois da Páscoa. Plasticamente vemos que Jesus nunca se move e que o testemunho da mulher produz um efeito centrípeto, pelo qual Jesus se torna capaz de “atrair para si”. Por estas razões, na minha opinião, a explicação deve ser procurada assumindo que o texto tem a sua própria coerência e não desintegrando-o. Parado junto ao poço, Jesus convida os discípulos a «erguer o olhar». Tornam-se assim espectadores de um fenómeno cromático singular: a cor das colheitas, que até então ainda eram verdes, muda rapidamente, devido à passagem dos samaritanos pelos campos cultivados. Para mim Julgamento, a observação de que os campos maduros devem ser amarelos e não brancos não capta como, nesta descrição, Jesus sobrepõe o plano figurativo e a realidade que tem em mente. O plano figurativo é a experiência de trabalho no campo; a realidade que ele tem em mente é a que está acontecendo com os samaritanos. Na natureza, os campos maduros são amarelos; mas se o nível simbólico e os dados reais se sobrepõem, Jesus pode dizer que são brancos, misturando o nível parabólico (ou seja, dos campos e do trabalho) com os dados reais, porque quer usar a imagem dos campos para falar sobre o samaritanos. Para além de qualquer imaginação razoável, o que parecia ser objecto de uma longa espera está, pelo contrário, ao nosso alcance: a colheita está pronta. Em que consiste e por quem foi semeado, do qual os samaritanos são a colheita surpreendente? Segundo a lógica da história (em particular do v. 36), a semeadura acaba de ser feita. Então quem o fez não pode ser outro senão Jesus, com quem a mulher samaritana deve estar associada. Com efeito, é em virtude da sua palavra que os samaritanos se dirigem ao encontro de Jesus.

Semeadores e ceifeiros (4.37-38)

«37Nisto é verdadeiro o ditado: um é quem semeia e outro é quem colhe. 38Eu os enviei para colher aquilo pelo qual não trabalharam muito; outros trabalharam e você entrou no trabalho deles"" (4,37-38).

Há muitas discussões aqui; muitos comentaristas pensam que a identidade do semeador e do ceifeiro não é constante, ou seja, que, dependendo dos versículos, devemos procurar uma identificação variável de quem se entende por semeador e ceifador. Pelo contrário, na minha opinião, a identificação permanece constante e, ao longo de todos estes versículos, tanto quem semeia como quem colhe devem ser identificados de forma coerente e estável. Minha explicação é que, nesses versículos, tanto o ceifador quanto o semeador permanecem constantes. Quem é ele sobre? Contudo, o texto pode e deve ser lido em dois níveis: 1. o momento em que nos encontramos na história (a cena descrita de Jesus em Samaria); 2. o texto já é significativo sobre o que acontecerá depois da Páscoa. Vejamos então como as duas figuras devem ser identificadas, levando em conta esse duplo nível. Os dois momentos cronológicos diferentes, em profunda ligação mútua, combinam-se nestas palavras de Jesus: o momento em que nos encontramos, segundo a cronologia do evangelho (neste momento os discípulos, no contexto do ministério de Jesus, recolhem fruto pelo qual não lutaram); porém, o episódio também quer falar sobre o que acontecerá depois da Páscoa, ou seja, torna-se um episódio significativo para a missão da Igreja, da comunidade depois da ressurreição. Como pano de fundo está o tempo seguinte à hora da glorificação plena, quando - novamente - os discípulos farão a experiência de colher um fruto que não plantaram. Os ceifeiros são sempre os discípulos, como Jesus diz no v. 38; e isso se aplica a todos os versículos: «Você não trabalhou; outros trabalharam e você entrou no trabalho deles”. Portanto, os ceifeiros devem identificar-se com os discípulos: colhem algo que não semearam, tanto agora (de facto foi Jesus que semeou, não eles) como no futuro depois da Páscoa. Ao nível do ministério de Jesus (que é o contexto em que nos encontramos), os discípulos colhem onde Jesus semeou, ainda que com colaboração: a sementeira de Jesus realizou-se com a ajuda da mulher samaritana; na verdade, o seu testemunho faz parte da sementeira. No tempo seguinte à Páscoa, os discípulos farão novamente a experiência de colher frutos missionários onde não eles, mas outros, semearam anteriormente. Significa que há uma ação que os precede na colheita: há uma semeadura que eles não fizeram.

5.3. A colheita missionária

A questão da alimentação e a ligação entre as duas partes do diálogo com os discípulos: qual é a comida de Jesus? Com uma terminologia não joanista, mas mais contemporânea, podemos dizer que o alimento de Jesus é a colheita missionária. «O alimento de Jesus é fazer a vontade daquele que o enviou», concluindo a sua obra na cruz. Contudo, a vontade e a obra do Pai contêm precisamente que os homens venham a Jesus para terem vida. O que o Pai quer é que os homens reconheçam o seu mensageiro e que, acreditando nele, tenham vida; e é exatamente isso que acontece em Samaria. Ao ver os habitantes de Sicar saírem da cidade, Jesus reconhece que se cumpre a vontade daquele que o enviou. Jesus reconhece que a obra que lhe foi confiada pelo Pai e destinada a ser realizada na cruz se realiza – ainda que de forma inicial – neste momento; no momento em que os samaritanos saem da cidade e vão ao encontro de Jesus, representam exactamente o cumprimento daquela vontade salvífica do Pai, que coincide com o alimento que Jesus procura. A história mantém o seu significado para o momento preciso em que nos encontramos no QV (é a memória de um episódio), mas é também, ao mesmo tempo, uma antecipação do que realmente acontecerá a partir da cruz. É uma antecipação daquela atração universal que, para o evangelista, é exatamente o efeito da Páscoa.

6. Jesus e os samaritanos (4.39-42)

Resumimos o cerne da explicação dada sobre o diálogo entre Jesus e os discípulos; então vemos o vv. 39-42.

6.1. O diálogo privado de Jesus com seus discípulos

Jesus está junto ao poço de Jacó, de onde nunca saiu. Parte da história é ocupada por diálogos privados com os discípulos.  Esta é uma cena rara no QE, pois, até o momento da Ceia (João 13), os momentos em que Jesus está em intimidade com seu povo são apenas três. Nisto João tem sua peculiaridade, ao contrário de Marcos que, por exemplo, de c. 4 em diante narra que diversas vezes Jesus se afasta com seus discípulos; entretanto no QV isso é muito raro. De facto, se deixarmos de fora o momento da chamada (onde obviamente Jesus está com os discípulos!), apenas são narradas três circunstâncias em que Jesus dialoga em privado com os seus discípulos. Caso contrário, Jesus sempre dialoga com outros que não são os discípulos. Por exemplo, o diálogo com Nicodemos (João 3) não é um diálogo privado como o entendemos aqui, ou seja, não é um diálogo ad intra, não é um diálogo com o grupo daqueles que ele chamou; na realidade, aqueles que Jesus faz na primeira parte do evangelho são todos discursos públicos, ad extra. Encontram-se as três conversas privadas com os discípulos: 1. aqui (4,31-38); 2. depois do discurso sobre o “pão da vida”, quando surgem dificuldades no grupo de discípulos (6,67-71); 3. finalmente, antes do sinal realizado em Lázaro, quando Jesus pára dois dias em Betânia, além do rio Jordão (11,7-16). Isto confere um carácter particular a estes versículos: João apresenta-os como uma antecipação daquela situação que, para ele, é a situação da Ceia; na verdade, é uma passagem muito semelhante aos discursos de despedida de Jesus. Sublinhamos que o diálogo entre Jesus e os discípulos no poço de Jacó (4,31-38) é um pedaço do evangelho que está definitivamente muito próximo dos discursos de despedida em termos de cenário (Jesus fala apenas com os seus) e como temas (na verdade os temas aqui discutidos são os grandes temas da despedida e do que a comunidade fará no mundo depois que Jesus for para o Pai). O diálogo de Jesus com os discípulos junto ao poço de Jacó é um diálogo que, se se baseia na circunstância concreta, é no entanto uma reflexão sobre a dimensão missionária da comunidade de Jesus; é uma reflexão sobre como as pessoas chegam a Jesus para viver; é uma reflexão sobre a colheita missionária. Então, é um pedaço de evangelho que tem um tensão muito forte em relação ao tempo seguinte à glorificação de Jesus. Jesus disse que o seu alimento é fazer a vontade daquele que o enviou, completando a sua obra na cruz. Contudo, a vontade e a obra do Pai contêm precisamente que os homens venham a Jesus para terem vida. Assim, as duas partes do diálogo estão profundamente ligadas: na primeira parte Jesus fala do seu alimento (“O meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou, completando a sua obra”); na segunda parte fala da colheita que já está pronta para ser feita. As duas coisas vão na mesma direção, porque o alimento, que faz esta vontade, contém a vinda dos homens, dos quais os samaritanos são uma imagem muito expressiva. No momento em que os homens são atraídos pelo mensageiro de Deus e vão até ele, então, nesse momento, Jesus encontra o alimento que o nutre, aquele alimento que ele procura.

Os samaritanos que vêm até ele e que são fruto do seu trabalho (como lemos no início da história: «Jesus sentou-se cansado junto ao poço»; além disso, depois de Jesus dizer: «Vocês não trabalharam, outros trabalharam») representam a comida da qual Jesus se alimenta.

6.2. A reação dos samaritanos (4.39-42)

Nos v. 39-42 é descrita a reação dos samaritanos.

«39Muitos samaritanos daquela cidade acreditaram nele por causa da palavra da mulher, que testemunhou: «Ele me contou tudo o que eu fiz». 40Então, quando os samaritanos foram ter com ele, rogaram-lhe que ficasse com eles, e ele ficou ali dois dias. 41E muitos mais acreditaram por causa da sua palavra, 42e disseram à mulher: “Já não acreditamos por causa das tuas palavras; porque nós mesmos ouvimos e sabemos que este homem é verdadeiramente o salvador do mundo”” (4,39-42).

A observação do vv. 39-40 está diretamente ligado ao que o evangelista escreveu no v. 30. É assim que João constrói este quadro que abrange o diálogo central, sugerindo um contemporaneidade. Na verdade, no v. 30 lemos: «Saíram da cidade e foram ter com ele»; em 4,39-40°, o evangelista não se limita a retomar a expressão anterior, mas explica-a sobre dois pontos cruciais. No v. 30 ele havia escrito: «Saíram da cidade e foram ter com ele»; para v. 39 acrescenta dois aspectos cruciais:

1.       a palavra da mulher é uma martyría, um “testemunho”. Primeiro ele não usou esse termo, mas sim expressões mais genéricas; ele narrou que a mulher, tendo ido para a cidade, “diz”. Ora, esse “dizer” é claramente caracterizado como um “testemunho”; este é um elemento muito importante;

 

2.       João não se limita a narrar que os samaritanos saem, como já tinha feito; agora dá a razão: a saída dos samaritanos explica-se pela fé, não é uma saída por mera curiosidade. A motivação é muito profunda: «Quando os samaritanos se aproximaram dele (…) muitos acreditaram nele»; é esta fé que motiva a sua saída da cidade.

Isto também se torna um elemento de discordância com aqueles que sustentam que a mulher não teria prestado depoimento; porque senão não ficaria claro com base no que eles acreditavam! Essa informação também reforça a interpretação que vê na personagem da mulher uma figura testemunhal. Uma freira feminista (uma estudiosa bíblica americana) afirma que a mulher samaritana é a verdadeira autora do QE. Esta proposta, embora improvável, capta um ponto: na verdade, o papel da mulher samaritana é exatamente o papel que o evangelista desempenha com o seu evangelho; e isso é absolutamente verdade. Então o biblista levanta a hipótese de que, por trás da figura do evangelista, não há apenas um personagem, mas muitos, entre os quais o mais relevante seria – precisamente – a mulher samaritana; isso é definitivamente mais questionável. Em vez disso, é verdade que ela é uma figura extremamente positiva e muito importante na galeria de personagens do QE.

6.3. A fé dos samaritanos

«40Então, quando os samaritanos vieram até ele, imploraram-lhe que ficasse com eles, e ele permaneceu lá dois dias. 41E muitos mais acreditaram por causa da sua palavra, 42e disseram à mulher: “Já não acreditamos por causa das tuas palavras; porque nós mesmos ouvimos e sabemos que este homem é verdadeiramente o salvador do mundo”” (4,40-42).

O evangelista fala duas vezes da fé dos samaritanos; e eles próprios expressam dois passos da sua fé.

O primeiro passo é evidente: «Muitos samaritanos daquela cidade acreditaram nele por causa da palavra da mulher»; os próprios samaritanos dizem: “Já não acreditamos por causa das tuas palavras”, ou inicialmente acreditaram por causa disso.

Depois há uma segunda expressão de fé, que o evangelista assim exprime: «41E muitos mais creram por causa da sua palavra»; é a segunda declaração de fé dos samaritanos, que eles próprios admitem: “Nós mesmos ouvimos e sabemos que este homem é verdadeiramente o salvador do mundo”. Aqui não há léxico de crença; entretanto no QV os verbos «saber» e «acreditar» muitas vezes se aproximam e são quase intercambiáveis. Na verdade, João também está muito interessado na dimensão do conteúdo da fé; certamente há também um interesse pelo que está contido na fé.

Como esses dois momentos diferem?

Não está tanto na intensidade; na minha opinião, não é correto sustentar que a primeira fé é uma fé ainda fraca, que se fortalece posteriormente. Não se trata do ato de fé, da intensidade do ato de fé; é mais uma questão do conteúdo acreditado, porque é daí que vem a passagem. A transição passa da crença de que Jesus é o messias indicado pela mulher samaritana para a definição da sua identidade na forma resumida no v. 42: ele é o messias, mas no sentido de que é “salvador do mundo”; Isto é bom. Não se trata de intensidade de fé; trata-se de esclarecer o que se acredita, do conteúdo essencial da fé. Giovanni está interessado neste aspecto. João está certamente interessado na fé como ato, no ato de crer; adora verbos e usa de bom grado o verbo «acreditar» (mas não usa o substantivo «fé»). Mas também é verdade que ele tem, de forma muito lúcida e precisa, um interesse pelos conteúdos fundamentais da fé. Ele não articula uma série de elementos; existe um conteúdo fundamental da fé, que coincide com a identidade última de Jesus: é quando se chega a acreditar nele, apreendendo a sua identidade última, que a fé atinge então a sua maturidade. João indica de várias maneiras qual é esta identidade última: aqui ele diz que é bom acreditar em Jesus, mas a realização da fé é acreditar que Jesus é o messias “salvador do mundo”; em João 20.31 ele diz que é bom acreditar que Jesus é o Cristo, mas acreditar que Jesus é o Cristo no sentido do Filho de Deus. Vemos que é sempre o mesmo tipo de interesse: João está interessado em especificando o conteúdo fundamental da fé, que tem essencialmente a ver com a identidade última de Jesus.

7. Os três temas que unem a história

Recolhemos três fios desta história, para apresentá-los de forma sintética, de forma conclusiva.

7.1 O messias entre judeus e samaritanos

Este é o primeiro fio que percorre toda a história. O fio condutor deste grande tema de João 4 (ou seja, o tema do messias que vem dos judeus, mas que atrai para si o povo dos samaritanos) se desdobra em 4 passagens: há 4 pontos da história em que este tópico cria etapas cruciais.

1.       "Como é que você, judeu, me pede uma bebida, mulher samaritana?" (v. 9): este é o ponto de partida, em que há o reconhecimento da identidade judaica de Jesus e também

2.       uma dialética que estabelece uma certa distância: «você/eu», «você/nós».

3.       “Vocês adoram o que não conhecem, nós adoramos o que conhecemos bem, porque a salvação vem dos judeus” (v. 22): nesta passagem Jesus não nega aquela distinção que a mulher afirmava, porque é um dado feito, mas sim o assume e também se expressa com “você/nós”. Neste versículo ele defende o papel peculiar do povo judeu na história da salvação: “O salvador vem dos judeus”.

4.       A terceira passagem se encontra nos vv. 25-26, quando termina o diálogo com a mulher samaritana, que diz: «Eu sei que o messias deve vir: quando ele vier, nos anunciará tudo»; e Jesus responde: «Sou eu quem vos traz a revelação». Aqui Jesus, o messias que vem do povo judeu, apresenta-se à mulher samaritana como aquele que cumpre as expectativas do seu povo: «Eu sei que o messias deve vir: quando ele vier, nos anunciará tudo (. ..) Sou eu que estou com você trazendo aquela revelação que você espera."

5.       O último nível é: “Nós mesmos ouvimos e sabemos que este homem é verdadeiramente o salvador do mundo” (v. 42). Os samaritanos reconhecem em Jesus o messias judeu, “o salvador do mundo inteiro”, portanto também do seu povo e não apenas dos judeus.

Esta é uma passagem muito bonita, porque é um dos textos em que aparece um dos elementos cruciais do QE e de todo o cristianismo: a relação – não sem tensão – entre o particular e o universal. Afirma, de forma essencial, a origem judaica do messias, que vem do povo de Israel: ele é o messias de Israel! Contudo, esse messias de Israel não é apenas para Israel, mas é um portador da salvação para o mundo inteiro.

Por trás da profissão de fé: “Tu és verdadeiramente o salvador do mundo”, João quer também contrastar polemicamente o culto imperial; na verdade este foi um dos títulos utilizados no culto ao imperador.

Hoje vários estudos destacam um aspecto não particularmente destacado no QE até agora (mas sim no Apocalipse): o papel que a política imperial romana pode ter tido na redação final do QE. Destaca-se como o QV conseguiu de fato registrar e expressar uma reação do evangelista frente à política e ao culto imperial; aqui seria um desses pontos. Este é um primeiro grande tópico que unifica toda a história. Se é verdade que a história tem duas grandes partes, é igualmente verdade que a história é profundamente unitária.

7.2. Não os discípulos, mas a mulher samaritana fornece a Jesus o alimento que ele procura

É o tema missionário. Na realidade, o termo “missão”, para indicar o que significa hoje, é utilizado desde o século XVI. Isto não significa que a ideia não existisse antes, mas foi expressa de forma diferente, por exemplo com “evangelização” ou “testemunho”. Vemos o significado estrutural do tema missionário: é um elemento que mantém toda a história unida. O título proposto é: “Não os discípulos, mas a mulher samaritana dá a Jesus o alimento que ele procura”. Obviamente não é uma questão de competição (!); questiona-se que, na história, a mulher samaritana é a figura da discípula por excelência. Ela é discípula e testemunha; é ela quem faz o que Jesus esperaria dos seus discípulos, mas que, neste contexto, eles não fazem. Pelo contrário, o que ela faz torna-se a imagem daquilo que os discípulos são chamados a fazer depois da Páscoa.   A mulher samaritana é verdadeiramente uma daquelas personagens joaninas de grande profundidade; ele é um personagem que realmente tem muita consistência. Sublinhemos agora a relação que o texto sugere, ainda que discretamente, entre ela e o grupo de discípulos de Jesus: ao longo da história joanina, o mesmo verbo apérkomai, “ir”, “sair”, refere-se primeiro aos discípulos e depois à mulher: «Os seus discípulos tinham ido embora» (v. 8); “A mulher foi embora” (v. 28). O mesmo movimento é referido ambos em direção à mesma cidade, até com a mesma expressão: «Rumo à cidade» (eis ten pólin). Há o mesmo movimento, a mesma expressão se encontra para os dois personagens: «Seus discípulos tinham ido à cidade comprar mantimentos» (cf. v. 8). O V. 8 é uma intrusão do narrador que, no início, não parece ter um grande peso, mas que o assume no final, pois nos leva a reentender a história de forma unificada.

Portanto, no v. 8 lemos: «Os discípulos tinham ido para a cidade» e no v. 28 lemos sobre a mulher samaritana: “Ela vai para a cidade”. Eles “foram comprar comida”; a mulher “vai contar o que aconteceu com ela”. Este simples paralelismo entre v. 8 e v. 28 é apenas o elemento mais evidente, porque, na realidade, o paralelismo é estrutural e profundo. O paralelo entre a mulher e os discípulos está precisamente no contexto da história. Na verdade, na história como um todo, a tarefa que os discípulos assumiram no v. 8 parece cheio de significado profundo. Quando no v. 8 conta-se que foram à cidade comprar comida, a princípio o leitor também leva a notícia no sentido material. Porém, ao lermos que Jesus tem problemas em relação à alimentação, o leitor entende que, no conjunto da história, o ato de ir buscar comida adquire uma notável densidade simbólica e teológica. Eles foram à cidade (para Sichar, a cidade de onde os samaritanos realmente sairão para ir até Jesus) para buscar comida para Jesus; mas o que eles trouxeram para Jesus acabou sendo, na realidade, apenas alimento material e não o que Jesus desejava coma corretamente. Eles exortam “Rabi, coma”, mas Jesus responde: “Tenho um alimento para comer que você não conhece”; e se perguntam: “Alguém trouxe alguma coisa para ele comer?”. Em vez disso, foi a mulher samaritana quem realizou o que Jesus esperava. Na verdade, é só ela quem, ao fazer com que os samaritanos saiam da cidade em direção a Jesus, garante que ele tenha o alimento que procura. O alimento para a realização da vontade salvífica e universal do Pai consiste em atrair a si os homens: este alimento lhe é fornecido pela mulher samaritana. O alimento material que os discípulos compraram para Jesus e o alimento que Jesus realmente procura vêm da mesma cidade. E, na história, é a mulher samaritana quem realmente faz o que estaria simbolicamente implícito no gesto dos discípulos. Simbolicamente, o leitor sabe que Jesus espera que os seus discípulos lhe tragam comida da cidade; mas que comida? No final fica claro; e entende-se que os discípulos, neste momento, ainda não estão no nível de compreensão adequada do que Jesus quer e espera deles. Para isso teremos que esperar pela Páscoa; antes, na verdade, eles nunca estavam à altura da tarefa.

Por que, em vez disso, a mulher samaritana está à altura da tarefa? Estes episódios já são uma apresentação antecipada da dinâmica do anúncio do Evangelho tal como ocorrerá depois da Páscoa. Neste episódio queremos antecipar as grandes dinâmicas de testemunho que serão implementadas após a glorificação de Jesus.

7.3. Água e comida, sede e fome

Na primeira parte encontra-se uma imagem (água, sede); a outra imagem (comida, fome) na segunda parte. Isso também ajuda a unificar todo o capítulo. Evidentemente são duas imagens complementares: sede e fome. É claro que a sua complementaridade faz parte da experiência humana fundamental. Talvez se possa dizer que o facto de aqui passarmos do beber para o comer não tem grande importância, pois é fácil que isso aconteça; então por que dar tanta importância a isso? No entanto, na minha opinião, a história como um todo mostra que a justaposição da sede e da fome é mais do que uma justaposição livre de duas imagens próximas. Se o alimento de Jesus, que sacia a sua fome, tem necessariamente a ver com a vinda dos samaritanos a ele, o mesmo se deve dizer da sua sede. Só é apaziguado pela fé do interlocutor. As duas imagens funcionam da mesma maneira.

A sede e a fome sublinham que a mesma atitude fundamental é assumida e mantida por Jesus ao longo de toda a história: estende a mão para os homens, para a humanidade; ele deseja conhecê-los. Na sede e na fome de Jesus (tema que caracteriza toda a história) o evangelista descreve, de forma plástica, a primazia da iniciativa de Deus na história da salvação. Com efeito, a sede e a fome são então retomadas pelo tema da busca: Jesus tem sede, Jesus tem fome, Jesus é quem procura. Contudo, a procura de Jesus nada mais é do que a concretização da procura de Deus: «Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu unigénito» (Jo 3,16). Na origem de tudo está a sede de Deus, há um desejo de Deus, que se concretiza em Jesus. A carne do Logos é necessária para que este desejo se torne visível.

Mas você também não pode parar na carne, porque senão você se torna materialista. Na carne deste Jesus que busca, os homens são convidados a ver a busca que Deus faz. E Deus não tem outra forma de realizar a sua busca senão através do seu Logos, pois “todas as coisas são feitas por meio dele” (1.3).

 

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