Síntese: Paolo Cugini
O
significado da hermenêutica para a filosofia
Capítulo Primeiro
A vocação Niilística Da Hermenêutica
A hermenêutica
não é apenas uma teoria da historicidade (dos horizontes) da verdade; é ela
mesma uma verdade radicalmente histórica. Não pode pensar-se metafisicamente
como descrição de uma estrutura objetiva qualquer do existir, mas só como
exposição a em envio, aquele que Heidegger chama Ge-Schick. As razões para
preferir uma concepção hermenêutica a uma concepção metafísica estão na herança
histórica para a qual arriscamos uma interpretação e à qual damos uma resposta.
O exemplo que me parece mais claro para este modo de argumentar é o anuncio
nietzschiano da morte de Deus. (pág.19)
Não parece
possível “experimentar” a verdade da hermenêutica a não ser apresentando-a como
resposta a uma história do ser interpretada como acontecer do niilismo.
(pág.20)
As origens da
hermenêutica, como mostrou Dilthey, estão profundamente ligadas aos problemas
religiosos, sociais e políticos da Reforma protestante. (pág.23)
A hermenêutica,
se quer ser coerente com a própria recusa da metafísica, só pode apresentar-se
como a interpretação filosófica mais persuasiva de uma situação, de uma
“época”, e logo, necessariamente de uma proveniência. Não havendo evidências
estruturais a oferecer como justificativa racional, pode-se argumentar a
própria validade só na base de um processo que, na sua prospectiva, prepara
“logicamente” uma certa solução. Neste sentido, a hermenêutica apresenta-se
como filosofia da modernidade (no sentido subjetivo e objetivo do genitivo) e
reivindica também ser a filosofia da modernidade: a sua verdade resume-se na
pretensão de ser interpretação filosófica mais persuasiva do que o curso de
eventos dos quais se sente como um resultado). Historicismo, portanto? Sim,
caso entendamos que a única possibilidade argumentativa a favor da verdade da
hermenêutica é uma interpretação do acontecimento da modernidade – cuja
responsabilidade se trata de assumir, seja contra outras interpretações
concorrentes, seja contra o objetivismo historiográfico que desconfia de toda
categoria epocal deste gênero, mas assume como implicitamente válida uma
concepção ingenuamente objetivista da historiografia (os fatos acontecidos na
modernidade são em si tão vários e múltiplos a ponto de se excluir que se possa
falar deles em termos muito genéricos...) e remete tudo aos especialismo, a
começar do próprio, aceitas como indiscutíveis. Não um historicismo
determinístico, porém: os argumentos que a hermenêutica oferece para sustentar
a própria interpretação da modernidade são conhecidos por serem “apenas”
interpretações; não porque acreditam em deixar fora de si uma realidade
verdadeira, que poderia ser lida de modo diferente; mas sim porque admitem não
se poder apelar, pela própria validade, a nenhuma evidência objetiva imediata.
Isto porque o seu valor está na capacidade de dar lugar a um quadro coerente e
compartilhado, na expectativa de que outros proponham um quadro alternativo
mais aceitável. (pág.23 e 24)
O não falar mais
do ser, ou se justifica como postura mais correspondente a uma “realidade” que
o exclui, na qual o ser não existe, ou se justifica como refém da consumação do
ser na história da nossa cultura. Mas, se então esta história deve ser contada,
é justamente a história do niilismo como proveniente da hermenêutica e como seu
íntimo fio condutor para a “solução” dos problemas tradicionais da filosofia.
Na falta dessa narrativa, o inconsciente pressuposto metafísico continuaria a
atuar.
E é este
inconsciente, implícito, não-intencional, do pressuposto metafísico que explica
a aparência do irracionalismo relativístico que alguns críticos destacam no
desconstrucionismo de Derrida. Se não é a narrativa da história (da dissolução)
do ser, a desconstrução parece um conjunto de “performances” conceituais
confiadas à pura genialidade artística do desconstrutor.
A hermenêutica,
se vale a nossa hipótese, legitima-se como uma narrativa da modernidade, isto
é, da própria proveniência, que fala também, antes de tudo, do sentido do ser.
(pág.25)
A importância
que tem em Heidegger a noção, mesmo a expressão, da “metafísica como história
do ser” indica, ao contrário, o sentido de uma concepção do ser na qual a
diferença ontológica atua exatamente no dar-se do ser como suspensão e
subtrai-se. Não por nada o esquecimento do ser é aquele que o pensa como
presença. Não se trata, pois, de recordar o ser refazendo o presente, ou
esperando que se refaça o presente, mas de recordar o esquecimento: em nossos
termos, de reconhecer o nexo entre essência interpretativa da verdade e
niilismo. Nem que o niilismo, naturalmente, deva vir entendido metafisicamente
como seria se se pensasse que ele é uma história em que, no fim, em uma enésima
versão da presença como presença do nada, o ser “não existe mais”. E enfim, o
niilismo é interpretação e não descrição de um estado de fato. (pág.26)
Se admitimos que
a verdade é interpretação, isto é, que toda verificação ou falsificação de
proposições pode acontecer apenas no horizonte de uma abertura prévia, não
transcendental, mas herdada, devemos, portanto, prosseguir “logicamente” até o
niilismo? Esta perspectiva encontra-se em toda a obra de Heidegger – mas que
também não está claramente negada na koiné hermenêutica vaga de que partimos,
freqüentemente não tematizada e elaborada até o fundo. (pág.26 e 27)
Capítulo Segundo
Ciência
Ver na
hermenêutica uma filosofia, que cor-responde (positivamente, não como
contratempo polêmico, mas como êxito “lógico”) ao vir a ser do niilismo, i, é,
da modernidade, significa, sobretudo, distanciar-se da atitude que, até agora,
os pensadores hermenêuticos assumiram em fase das ciências positivas, as
Naturwissenschaften. Ou melhor, a escolha de começar, reconhecendo as
conseqüências da hermenêutica, uma vez admitida sua vocação niilista,
justamente pela questão do modo em que ela concebe as ciências da natureza, é o
início desta mudança; não se trata, de forma alguma, de uma decisão neutra,
ditada apenas pelo programa de levar em consideração, do ponto de vista da
hermenêutica e de modo panorâmico, as questões tradicionais da filosofia.
(pág.31)
A ciência não
pensa, segundo Heidegger e Gadamer (mas seria difícil encontrar uma posição
explicitamente diversa em outros hermenêuticos, como Ricoeur ou Pareyson),
porque a ciência não é um lugar originário de acontecer da verdade. A verdade,
como abertura dos horizontes em que pode ocorrer e dar-se tudo que é verdadeiro
ou falso no sentido proposicional, sempre já aconteceu, visto que todo nosso
agir e pensar consciente se tornam possíveis por ela; mas, não sendo uma
estrutura transcendental (pelas razões já ditas: não é estável e dada uma vez
por todas, como os objetos que torna acessíveis), nem a história, a verdade é
algo que acontece, embora não seja por força de um ato deliberadamente decidido
por alguém. O modelo deste acontecer é a criação da obra de arte, cuja novidade
radical a tradição, ao menos a moderna, concorda em reconhecer, ao falar de
gênio e inspiração da parte da “natureza”. (pág.33)
É provável que a
Koiné hermenêutica só se tenha podido estabelecer porque, em grande parte das
correntes filosóficas dos últimos decênios, voltaram a fazer-se sentir as
motivações do existencialismo, da fenomenologia, em geral da Kulturkritik do início
dos anos novecentos, que adquiram nova atualidade justamente pela
intensificação dos problemas impostos pela relação, para dizê-lo sumariamente,
entre ciência e sociedade. (pág.35)
Ao reconhecer-se
como correspondente a uma situação histórica, determinada essencialmente pelas
ciências experimentais da natureza, é que a hermenêutica reencontra sua própria
vocação niilista. Este significado determinante das ciências é, de início, o
significado em função do qual surge a reflexão existencial, não só de Heidegger,
mas também a filosofia da Lebenswelt de Husserl e da fenomenologia seguinte. É
o mundo da organização total incipiente, forjado pela ciência e pela técnica,
gerada pela ciência, a que responde o existencialismo do início do século XX,
mas também a cultura de vanguarda histórica em geral, em que se exprime o que
Bloch, numa de suas primeiras obras, chamou de “espírito de utopia”.[1]
(pág.39)
Uma vez
realizada a passagem do mundo, como estrutura da pré-sença, para os mundos,
como aberturas históricas do ser, põem-se também as premissas de uma atitude
diversa diante da ciência: não apenas defesa da Lebenswelt contra a colonização
da parte dos saberes especializados e das aplicações da técnica, como fatores
determinantes da modernidade, “trazem” para o sentido do Ser. O que disse acima
(no primeiro capítulo) da hermenêutica, que só se pode “provar” enquanto
correspondido à modernidade, vale integralmente para o pensamento
ultrametafísico de Heidegger. É, sobretudo para ele, que a legitimação da
verdade de uma teoria não pode ser procurada evidência de um fundamento, de uma
estrutura estável. Se é possível um pensamento pós-metafísico, ele só pode
provir, para Heidegger, de um acontecer diferente do próprio Ser; e a história
do Ser, na modernidade, é, antes de tudo, história da ciência e da técnica.
(pág.40 e 41)
O que é senão
niilismo e dissolução do “princípio da realidade”, o fato de a ciência
prosseguir na direção de situações em que já não se pode pensar a prova de uma
“hipótese científica”, como constatação de um fato apreensível pelos sentidos.
(pág.43)
Capítulo Terceiro
Ética
É muito
verossímil que o niilismo tenha como efeito a dissolução das razões com as
quais se justifica e se alimenta a violência. (pág.50)
Capítulo Quarto
Religião
A modernidade é
filha da tradição religiosa do Ocidente: sobretudo como secularização desta
tradição. A hermenêutica parece ter sido, não somente uma conseqüência da
secularização moderna (na condição de filosofia que nasce da dissolução da
metafísica da objetividade), mas, sobretudo, um agente determinante: no
rompimento da unidade católica da Europa teve um peso decisivo o novo modo de
ler a Bíblia, pelo princípio luterano “Sola Scriptura”, mas,. principalmente
pela exegese racionalista inaugurada por Spinoza. (pág.69)
A hermenêutica
moderna se desenvolve sobre um robusto fundo racionalista, ainda que nem sempre
tão extremado e explícito como em Spinoza, e parece, pois, bem natural
considerá-lo, com Dilthey, como um aspecto do movimento geral de secularização,
característica da modernidade. O que parece tornar dificilmente explicável o
“reencontro” da tradição religiosa cristã, que acreditamos anunciar-se uma
conclusão do discurso sobre a ética hermenêutica e sobre o ‘princípio da
caridade’. (pág.70)
A hermenêutica se
apresenta como um pensamento fundamentalmente amigo da religião, visto que, com
a crítica da idéia da verdade, como conformidade verificável entre proposição e
coisa, retira o fundamento para se negar, de modo racionalista, empirista,
positivista, até mesmo idealista e marxista, a possibilidade da experiência
religiosa. Talvez não ofereça nenhum argumento positivo para se recomendar uma
visão religiosa da vida, já que não contém nada que se assemelhe aos preambula
fidei da tradição escolástica; mas certamente liquida o fundamento dos
argumentos principais propostos pela filosofia em favor do ateísmo. (pág.71 e
72)
Só, de novo,
será que esta libertação é, por sua vez, o reconhecimento (metafísico) de que a
realidade é plural e que há muitos modos irredutíveis de dizer a verdade, sem
nenhuma instância suprema que os legitime e hierarquize? Sentimos ressoar aqui
duas expressões arquetípicas da tradição filosófica e religiosa do Ocidente: o
to on legetai pollachôs (o ser se diz de muito modos), de Aristóteles e o
“multifarie multisque modis olim loquens Deus patribus in prophetis”, de São
Paulo[2]
- deslocadas (ou precisamente metaforizadas) de seu contexto: que, no primeiro
caso, é a idéia aristotélica de substância, no segundo, a idéia de um
acontecimento -chave (a encarnação do filho de Deus), que dá sentido aos muitos
eventos precedentes e seguidores. De qualquer modo, é entre estes dois extremos
que se desprende o problema não apenas da relação da hermenêutica com a
tradição religiosa, mas também de todo seu significado filosófico. Como parece
acontecer hoje na Koiné hermenêutica, será possível retomar a noção
aristotélica da plurivocidade do ser sem o calcanhar da substância – portanto,
sem hierarquia, sem um “primeiro analogado”, (mais um significado ‘próprio’),
sem uma instância metafísica suprema. O sentido de uma ontologia niilista, que
aqui nos esforçamos por reconhecer à hermenêutica, resulta, antes de uma
‘contaminação’ do pluralismo aristotélico com o ‘historicismo’ Paulino. (pág.73
e 74)
A hermenêutica
filosófica moderna nasce na Europa, não apenas porque aqui existe uma religião
do livro que concentra toda a atenção sobre o fenômeno da interpretação; mas
porque esta religião tem como seu fundamento a idéia da encarnação de Deus, que
concebe, como Kenosis, como abaixamento, e, traduzimos nós, como
enfraquecimento.
O acento posto –
embora não arbitrariamente – sobre a encarnação como Kenosis resolve também o
problema que se abre, se se substitui a plurivocidade aristotélica inseparável
da referência a uma instância-base, a da substância (da qual não foge, se se
enuncia, sempre metafisicamente, a plurivocidade fundada na multiplicidade
estrutural do ser), pela plurivocidade profética enunciada por São Paulo. (pág.75)
Note-se que este
esquema age de modo mais ou menos secreto, até e sobretudo sob o perfil
disciplinar na história da Igreja (penso aqui, principalmente, mas não
exclusivamente, na Igreja católica): a revelação está, de certo modo, concluída
com a vinda de Jesus, o cânone da Escritura está completo, a interpretação dos
livros sagrados, em última instância, diz respeito exclusivamente ao papa e aos
bispos. Mas, ao lado desta visão genético-disciplinar do evento da revelação, que
nos aparece definitivamente iniciada por uma profunda sujeição à metafísica
objetivista, corre na história do cristianismo um filão de pensamentos
totalmente diverso, que se pode chamar, a justo título, de joaquinista: foi
Joaquim da Fiore que falou de uma terceira idéia da história da humanidade e na
história da salvação, o reino do Espírito (depois do reino do Pai, o Antigo
Testamento e do reino do Filho) em que aparece sempre mais o sentido
‘espiritual’ da Escritura e em que a caridade toma o lugar da disciplina. Mais
do que seguir Joaquim, entretanto,[3]
trata-se aqui de levar a sério a Kenosis. A esta tradição joaquinista, em
sentido muito amplo, pode-se juntar as páginas de Schleiermacher em que se
exprime o sonho de uma religião em cada um possa ser o autor da própria Bíblia,[4]
ou as páginas de Novalis, em que o mesmo sonho de um cristianismo já não
dogmático e disciplinar[5]
acompanha uma reavaliação dos aspectos ‘estéticos’ da religiosidade (as
imagens, nossa Senhora, os ritos). (pág.76)
Jesus é morto,
não por ser uma vítima perfeita, como sempre se entendeu, mas por ser portador
de uma mensagem por demais radicalmente contrária às convicções profundas (de
vítima sagrada) de todas as religiões ‘naturais’. O caráter extraordinário de
sua revelação (o sagrado não é violência sacrifical, Deus é amor) demonstra,
entre outras coisas, que ele não podia ser apenas homem. (pág.78)
A hipótese a que
somos levados é que a própria hermenêutica, como filosofia que traz consigo
certas teses ontológicas, seja fruto da secularização, como retomada,
prosseguimento, ‘aplicação’, interpretação dos conteúdos da revelação cristã da
encarnação de Deus. Se deste modo se compreende como e por que a hermenêutica
não possa ser uma filosofia amigável para com a religião somente no sentido do
to on legetai pollachôs aristotélico, não é tão claro como e por que sua
relação com a religião não se identifique com uma posição de tipo hegeliano:
para o qual a herança religiosa cristã é interpretada, isto é, aufgehoben,
suprimida em sua forma, mas conservada em seu conteúdo pela racionalidade do
discurso filosófico, que lhe diz a verdade definitiva. Duas, ao menos, são as
razões pelas quais não vale para a hermenêutica esta relação hegeliana da
aufhebung: de um lado, supõe sempre o ideal da objetividade, que, ao coincidir
no fim com o sujeito, torna possível falar de uma verdade objetivamente. De
outro lado, ou somente segundo um ponto de vista diverso, que a Aufhebung
poderia ser a que se verifica como a continuação de uma tendência ‘Kenótica’,
que, desde o início, pertence ao próprio conteúdo da revelação? Não parece, em
resumo, que se possa pensar na superação hegeliana se não mesmo na perspectiva
de aumento, elevação (é justamente um dos sentidos de Aufgebung), apropriação:
que são totalmente contrários à Kenosis, de que fala o Evangelho.
Em última
análise, a apropriação filosófica da verdade da religião se dá sempre por uma
lei da filosofia, da razão que se reconcilia consigo mesma; a Kenosis acontece
como encarnação de Deus e, por último, como secularização e enfraquecimento do
ser e de suas estruturas fortes (até à dissolução do ideal de verdade, como
objetividade) acontece, ao contrário, por uma ‘lei’ da religião, ao menos no
sentido de que não é o sujeito que decide empenhar-se num processo de
espoliação e de interminável aniquilamento, mas a esse empenho se sente chamado
pela ‘própria coisa’. A idéia, que rege a hermenêutica, de o intérprete
pertencer à ‘coisa’ a ser interpretada ou, de modo mais geral, ao jogo da
interpretação, reflete, repete, interpreta esta experiência da transcendência.
(pág.80 e 81)
Não conseguimos
ir muito além deste ponto: a liberação da pluralidade dos mitos e, portanto, a
relegitimação da religião que a hermenêutica traz comigo, se dá apenas em
virtude de um processo de secularização inaugurado pela narrativa da Kenosis de
Deus na encarnação. Se esta pluralidade só fosse legitimada pela luz de uma
multivocidade estrutural do próprio ser, não poderíamos, na realidade,
mantê-la, de fato, como tal: em Aristóteles não se pode dispensar a substância:
e mesmo a afirmação pura e simples da multivocidade irredutível do ser seria
sempre objeto de uma afirmação metafísica ‘unitária’. Traduzindo para o âmbito,
que aqui nos interessa: quando a filosofia e, em particular, a hermenêutica,
como acontece muitas vezes, declara que há muitos modelos de se fazer a
experiência da verdade, portanto, por exemplo, que o mito é ‘outra’ via ao lado
do logos, este, como logos, diz sempre que implicitamente se afirma assim, como
instância superior; deve ainda nascer um mito ou uma religião que teorize a
possibilidade da filosofia a seu lado e com iguais direitos. (pág.81 e 82)
A hermenêutica
só pode ser o que é – uma filosofia não metafísica do caráter essencialmente
interpretativo de verdade, e, portanto, uma ontologia niilista – enquanto
herdeira do mito cristã da encarnação de Deus. Talvez o único filósofo
hermeneuta que ofereceu os instrumentos para pensar radicalmente esta condição
foi Luiz Pareyson, que concebeu a filosofia como hermenêutica da experiência
religiosa,[6]
para a qual utilizava, sem nenhuma intenção pejorativa, o termo mito. Para ele,
a filosofia não pode senão refletir sobre a experiência de uma transcendência
que se dá do divino no visível. (pág.82)
Não se trata
tanto de reavaliar as mitologias antigas, usando paradoxalmente o Evangelho
como instrumento de legitimação. Mas trata-se de se repensar, mais
concretamente, a secularização do cristianismo na forma de uma liberação da
pluralidade dos mitos, não só os antigos, mas também e, sobretudo, os das
religiões, com que o comunismo cristã se encontra no dever de fazer as contas
hoje em dia; uma liberação possibilitada pela encarnação de Jesus, isto é pela
Kenosis de Deus. (pág.83)
Apêndices
A verdade da hermenêutica
Como fala a
ontologia hermenêutica da verdade? Esta pergunta visa a avaliar a suspeita,
levantada por várias partes, de que a hermenêutica seja uma posição filosófica
relativista, antiintectualista, irracionalista; no melhor dos casos,
tradicionalista. Porque nela falta aquela instância da verdade que a tradição
metafísica (usamos aqui a palavra no sentido de Heidegger) sempre pensou nos
termos da evidência (o dar-se incontroverso, favorecido pela aplicação de
estratégias oportunas, da coisa) e da conformidade da proposição à (evidência
da) coisa e ao estado de coisas. A crítica heideggeriana da noção da verdade
como adequação parece privar a hermenêutica desta instância, e também colocá-la
na impossibilidade de “salvar os fenômenos”, de dar conta da experiência da
verdade que todos de uma fazemos, seja quando reivindicamos a validade em face
de todos de uma afirmação, seja quando propomos uma crítica racional do
existente (uma tradição mítica, um idolum fori, uma estrutura social injusta),
seja quando, principalmente, corrigimos uma opinião falsa, passando da
aparência à verdade. (pág.113)
Em geral,
Heidegger nos ensinou a recusar a tranqüila identificação das estruturas do ser
com as estruturas da nossa gramática histórica e da linguagem efetivamente
dada; logo, também a identificação imediata do ser com que o que é dizível sem
contradições performativas no âmbito da linguagem que acontecemos falar.
Dizer que o ser
é acontecimento significa de qualquer modo pronunciar, ainda na linguagem da
metafísica, conscientemente aceita e verwunden, a última proposição da
metafísica (ela, de resto, se cumpre e conclui, acaba, no niilismo – o qual é
essa mesma proposição); é, apenas demonstrado em outros termos, o mesmo
processo de abertura por meio da extremização da lógica da fundação, que
Nietzsche “descreve” com a proposição “Deus está morto”. (pág.115)
Queremos
recordar aqui este conjunto de problemas apenas para ter presente que, na
tentativa de construir em termos positivos uma concepção hermenêutica da
verdade, além da pura e simples destruição da verdade-conformidade, se tratará
de deixar-se guiar pelas exigências autênticas que movem Heidegger nessa
destruição. Estas não se reduzem à tentativa de encontrar uma descrição mais
verdadeira enquanto mais adequada e têm a ver, ao invés, com a impossibilidade
de ainda pensar o ser como Grund, como princípio primeiro que pode dar-se
apenas na contemplação pontual, panorâmica mas muda, do noûs. (pág. 115 e 116)
Hermenêutica é,
ao contrário, a atividade que se realiza no encontro com horizontes
paradigmáticos diversos, que não se deixam avaliar na base de uma conformidade
qualquer (a regras ou, por último, à coisa), e sem nos vêm como propostas
“poéticas” de mundos outros, de instituição de regras novas – dentro das quais
vige uma “outra epistemologia”, obviamente. (pág.117)
Da verdade como
abertura (que chamo de verdade porque é, como o são as regras a respeito das
proposições singulares, a condição primeira de todo singular verdadeiro),
falarei então em termos de habitar. Habitar a verdade é certamente muito
diferente de mostrar e explicitar simplesmente o que sempre já se é. Nisto tem
razão Gadamer, [7]
quando observa que pertencer a uma tradição, ou também, para dizê-lo em termos
wittgensteinianos, a uma forma de vida, não significa suportar passivamente a
imposição de um sistema de preconceitos; que
equivaleria depois, em certas outras versões contemporâneas da lição de
Nietzsche, à total (mais ou menos explícita) redução da verdade a jogo de
forças.[8]
O habitar
implica de preferência um pertencimento interpretativo, que comporta seja o
consenso, seja a possibilidade de articulação crítica: não por nada, se poderia
aduzir (também em sentido crítico a respeito do otimismo dessa concepção), as
ditaduras modernas dão cada vez mais lugar às técnicas de organização do
consenso. O domínio mediante o consenso é mais seguro e estável. (pág.120 e
121)
Habitar, podemos
dizer, enquanto metáfora para falar da verdade hermenêutica, deveria ser
entendido como morar em uma biblioteca: enquanto a idéia de verdade como
conformidade representa o conhecimento do verdadeiro como a posse certa de um
“objetivo” mediante uma representação adequada, a verdade do habitar é mais a
competência do bibliotecário, que não possui inteiramente, num pontual ato de
compreensão transparente, a totalidade dos livros entre os quais vive, e nem
sequer os princípios primeiros de que dependem tais conteúdos; não se pode
comparar a um tal conhecimento-posse mediante o domínio dos princípios primeiros a competência biblioteconômica, que
sabe onde deve procurar porque conhece as colocações dos volumes e tem, também,
uma certa idéia do “catálogo de assuntos”. (pág.121)
A crítica da
idéia de verdade como conformidade conduz, pois, a hermenêutica a conceber a
verdade no modelo do habitat e da experiência estética. Mas essa experiência
tende a apresentar-se ainda segundo uma imagem classicista de integração,
harmonia, redondeza, que corresponde ao dar-se da arte na época da metafísica
(e logo também na época da verdade-conformidade): se ceda a esta tendência, a
hermenêutica acabará por opor à verdade-conformidade apenas uma idealização da
bela eticidade, na qual, porém em vez de fugir à peremptoriedade do Grund (e à
sua esquecedora identificação de ser e ente), se repropõe um fundacionalismo
cada vez mais pesado, que pode exprimir-se também na pura e simples
identificação da abertura com a factualidade bruta de uma certa forma de vida,
que não se deixa discutir, mas que só se “mostra” na sua vigência como
horizonte de todo possível juízo. Uma recognição mais acurada da experiência
estética que aqui serve de modelo[9]
e uma radical fidelidade aos intentos
que inspiram a crítica (heideggeriana) da verdade-conformidade, levam
entretanto a um resultado diferente; antes de tudo, a um distanciamento da
ênfase que o pensamento metafísico sempre deu à sensação subjetiva de certeza,
entendida como signo da verdade. (pág.126)
Trata-se, no
entanto, para a hermenêutica, de reconhecer até fundo o vínculo da mesma
evidência de consciência com a metafísica, a cuja história pertence também o
modo de dar-se da verdade como idéia clara e distinta e certeza indiscutível.
Também neste caso, como geralmente nos confrontos de todos os elementos da
história da metafísica, o pensamento não pode iludir-se em operar um verdadeiro
e próprio ultrapasse, deverá exercitar-se ao contrário em uma Verwindung, em
uma retomada e distorção,[10]
que aqui significará a manutenção do modelo da conformidade como momento
secundário da experiência da verdade. Depois de Nietzsche, mas, no fundo, já
simplesmente depois de Kant (cuja fundação transcendental é já uma colocação em
segundo plano dos singulares verdadeiros, das proposições conformes), não
pensaremos mais que a verdade seja a evidência e a conformidade da proposição
ao estado de coisas. (pág.127)
A concepção da
verdade como habitar na biblioteca de Babel não é uma descrição verdadeira da
experiência da verdade que finalmente substituiria aquela falsa da metafísica,
que a pensava como conformidade; é, ao invés, o resultado do desenvolver-se da
metafísica como redução do ser à presença, do seu culminar na ciência-técnica e
do conseqüente dissolver-se da própria idéia de realidade na multiplicidade das
interpretações.
Colocar os
verdadeiros, os enunciados “conformes”, dentro da verdade como abertura não
significa apenas suspender a sua coerção última dentro de uma multiplicidade de
perspectivas que os possibilita (torna-os possíveis e também mostra-os como só
possíveis). (pág.131)
[1] Veja-se E. Block, Espírito da Utopia, trad. It. De V. Bertolino e
F. Coppellotti, La Nuova Itália, Florença 1980 [ed. Or. 1923].
[2] A expressão de Aristóteles se encontra na Metaph. IV, 2, 1003 a 33;
a frase de São Paulo (“multifariam, multisque modis dim loquens Deus patribus
in prophetis; novissime diebrio istis locutus est nobis in Filio”) está na
Epístula aos Hebreus, 1, 1-2.
[3] A sua doutrina mística não tem um sentido nada unívoco; e que,
talvez justamente por isso, deixou traços em quase toda história do pensamento
europeu dos séculos seguintes: veja-se H. De Lubac, La posterità spirituale di
Gioacchino da Fiore, 2 vol., trad. It. de E. Guerriero, Joça Book, Milão,
1981-84 [ed. Or. 19790-81]. E a recente edição, com tradução italiana, do
Enchiridion super Apocalypsim: Sull’apocalisse, aos cuidados de A.
Tagliapietro, Feltrinelli, Milão 1994.
[4] Cf. F. D. E. Schleiermacher,
Discorsi sulla religione, trad. It. de G. Duarte,
Sansoni, Florença, 1947 [ed. or. 1799], p 79 (segundo discurso) (em Werke, ed.
aos cuidados de O. Braün e J. Bauer, 4 vol., Meiner, Leipzing, 1910-13;
reimpressão fotostática, Scientia, Aalen, 1967, II, p 283).
[5] Cfr. Novalis, la cristianità ossia Europa, trad. It. de E. Pocar,
com um Posfácio de G. Cusatelli, SE, Milão, 1991 [1799, editado, porém, em
1825].
[6] Refiro-me aqui e no que se segue aos escritos de Pareyson do último
período, a começar pelo grande ensaio sobre “Filosofia ed esperienza
religiosa”, publicado no Annuario fiosófico de 1985 (Mursia, Milão, 1986), pp.
7-52, que se acha em vias de reedição junto com outros textos dos últimos anos,
no volume Ontologia della liberta, em curso de impressão por Einaudi, Turim.
Relendo-o hoje, dou-me conta de que, no ensaio citado, Pareyson não confere a
Jesus Cristo centralidade – na ‘fundação’ do mito e do símbolo – que me parece
poder-se concluir coerentemente de suas premissas. Mas talvez esteja,
justamente aqui a raiz do fato de que ele, depois, não se lança tão adiante na
via da secularização, como creio que poderia e deveria fazê-lo. Do ponto de
vista das teses aqui propostas, tudo isto indicaria ainda em Pareyson uma
prevalença do Deus do Antigo Testamento. Pareyson fala mais explicitamente do
cristianismo, no ensaio “La filosofia e il problema del male”, publicado, no
ano seguinte, no mesmo Annuario, mas em termos que não parecem relevantes para
o problema específico da relação de Jesus Cristo com os ‘outros’ mitos. Cf.,
sobre tudo isto, a análise mais específica que propus no cap. “Ermeneutica e
secolarizzazione”, incluído no ensaio Ética dell’
[7] Cf., por exemplo, Verdade e Método, pp. 325 e ss. (e especialmente
328).
[8] É esta, por exemplo, a posição de Focault, pelo menos segundo a
interpretação radical, que considero exemplar, de Paul Veyne, de quem se deve
ver sobretudo o texto “É possível uma moral para Foucault?, no volume Efeito
Foucault, organizado por P. A. Rovatti, Feltrinelli, Milano, 1986, pp. 30-38.
[9] Para uma ampla ilustração deste ponto de vista, veja-se a minha
contribuição para o Colóquio da Royaumont de 1987, “L’Impossible oubli”, agora
no volume Usages de I’ oubli (conjunto de escritores de Y. H. Yerushalmi, N.
Lourax. H. Mommsen, J. C. Milner, Seuil, Paris, 1988.
[10] Cf. ainda os escritos recordados na nota 1.
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