terça-feira, 26 de setembro de 2023

Zygmunt Bauman - O Mal-Estar Da Pós-Modernidade

 




 

Síntese Paolo Cugini

 

I

O Sonho da pureza

 

A pureza é um ideal, uma visão da condição que ainda precisa ser criada, ou da que precisa ser diligentemente protegida contra as disparidades genuínas ou imaginadas. Sem essa visão, tampouco o conceito de pureza faz sentido, nem a distinção entre pureza e impureza pode ser sensivelmente delineada. (pág.13 e 14)

A pureza é uma visa das coisas colocadas em lugares diferentes dos que elas ocupariam, se não fossem levadas a se mudar para outro, impulsionadas, arrastadas ou incitadas; e é uma visão da ordem – isto é, de uma situação em que cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum outro.  (pág.14)

Os modelos de pureza, os padrões a serem conservados mudam de uma época para a outra, de uma cultura para – mas cada época e cada cultura tem um certo modelo de pureza e um certo padrão ideal a serem mantidos intactos e incólumes às disparidades. Da mesma forma, todas as preocupações com a pureza e a limpeza que emergem dessa análise são essencialmente semelhantes.  (pág.16)

O estranho despedaça a rocha sobre o qual repousa a segurança da vida diária. Ele vem de longe; não partilha as suposições locais – e, desse modo, “torna-se essencialmente o homem que deve colocar em questão quase tudo o que parece ser inquestionável para os membros do grupo abordado”[1]. Ele “tem de” cometer esse ato perigoso e deplorável porque não tem nenhum status dentro do grupo abordado que fizesse o padrão desse grupo parecer-lhe “natural”, e porque, mesmo se tentasse dão o melhor de si, e fosse bem-sucedido, para se comportar exteriormente da maneira exigida pelo padrão, o grupo não lhe concederia o crédito da retribuição do seu ponto de vista.

Se a “sujeira” é um elemento que desafia o propósito dos esforços de organização, e a sujeira automática, autolocomotora e autoconduntora é um elemento que desafia a própria possibilidade de esforços eficientes, então o estranho é a verdadeira síntese desta última. Não é de surpreender que as pessoas do lugar, em toda a parte e em todos os tempo, em seus frenéticos esforços de separar, confirmar, exilar ou destruir os estranhos, comparassem os objetos da suas diligências aos animais nocivos e as bactérias . Não é de surpreender, tampouco, que comparassem o significado de sua ação a rotinas higiênicas; combateram os “estranhos”, convencidos de que protegiam a saúde contra os portadores de doença.

 (pág.19)

Cada ordem tem suas próprias desordens; cada modelo de pureza tem sua própria sujeira que precisa ser varrida. Mas, numa ordem durável e resistente, que se reserve o futuro e envolva ainda, entre outros pré-requisitos, a proibição da mudança, até a ocupação de limpeza e varredura são partes da ordem. Pertencem à rotina diária e, como a rotina de tudo, tendem a repetir-se monotonamente, duma forma completamente transformada em hábito e que torna a reflexão redundante. O que alcança o nível da consciência e desperta a atenção a atenção não é tanto a rotina de eliminar a sujeira quanto prevenir uma não-habitual e fortuita interrupção da rotina. O cuidado com a pureza concentra-se não tanto no combate à “sujeira primária” quanto na luta contra a “metassujeira” – contra afrouxar ou negligenciar totalmente o esforço de manter as coisas como são. (pág.20)

Um número sempre crescente de homens e mulheres pós-modernos, ao mesmo tempo que de modo algum imunes ao medo de se perderem, e sempre ou tão freqüentemente empolgados pelas repetidas ondas de “nostalgia”, acham a infixidez de sua situação suficientemente atrativa para prevalecer sobre a aflição da incerteza. Deleitam-se na busca de novas e ainda não apreciadas experiências, são de bom grado seduzidos pelas propostas de aventura e, de um modo geral, a qualquer fixação de compromisso, preferem ter opções abertas. Nessa mudança de disposição, são ajudados e favorecidos por um mercado inteiramente organizado em torno da procura o consumidor e vigorosamente interessado em manter essa procura permanentemente insatisfeita, prevenindo, assim, a ossificação de quaisquer hábitos adquiridos, e excitando o apetite dos consumidores para sensações cada vez mais intensas e sempre novas experiências. (pág.22 e 23)

As diferenças se amontoam umas sobre as outras, distinções anteriormente não consideradas relevantes para o esquema global das coisas e portanto invisíveis agora se impõem à tela do Lebenswelt. Diferenças outrora consagradas como não-negociáveis são lançadas inesperadamente no melting-pot ou se tornam objetos de disputa. Quadros de competição se sobrepõem ou colidem, excluindo toda oportunidade de um mapa de levantamento topográfico “oficial” e universalmente aglutinante. (pág.23)

 

II

A criação e anulação dos estranhos

 

Todas as sociedades produzem estranhos. Mas cada espécie de sociedade produz sua própria espécie de estranhos e os produz de sua própria maneira, inimitável. Se os estranhos são as pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo – num desses mapas, em dois ou em todos três; se eles, portanto, por sua simples presença, deixam turvo o que deve ser transparente, confuso o que deve ser uma coerente receita par a ação, e impedem a satisfação de ser totalmente satisfatória; se eles poluem a alegria com a angústia, ao mesmo tempo que fazem atraente o fruto proibido; se, em outras palavras, eles obscurecem e tornam tênues as linhas de fronteira que devem ser claramente vistas; se, tendo feito tudo isso, geram a incerteza que por sua vez dá origem ao mal-estar de se sentir perdido – então cada sociedade produz esses estranhos. Ao mesmo tempo que traça suas fronteiras e desenha seus mapas cognitivos, estéticos e morais, ela não pode senão gerar pessoas que encobrem limites julgados fundamentais para a sua vida ordeira e significativa, sendo assim acusadas de causar a experiência do mal-estar como a mais dolorosa e menos tolerável. (pág.27)

Nessa guerra (para tomar emprestados os conceitos de Lévi-Strauss), duas estratégias alternativas, mas também complementares, foram intermitentemente desenvolvidas. Uma era antropofágica: aniquilar os estranhos devorando-os depois, metabolicamente, transformando-os num tecido indistinguível do que já havia. Era esta a estratégia da assimilação: tornar a diferença semelhante; abafar as distinções culturais ou lingüísticas: proibir todas as tradições e lealdades, exceto as destinadas a alimentar a conformidade com a ordem nova e que tudo abarca; promover e reforçar uma medida, e só uma, para a conformidade. A outra estratégia era antropoêmica: vomitar os estranhos, bani-los dos limites do mundo ordeiro e impedi-los de toda comunicação com os do lado de dentro. Era essa a estratégia da exclusão – confirmar os estranhos dentro das paredes visíveis dos guetos, ou atrás das invisíveis, mas não menos tangíveis, proibições da comensalidade, do conúbio e do comércio;* “purificar” – expulsar os estranhos para além das fronteiras do território administrado ou administrável; ou quando nenhum das duas medidas fosse factível, destruir fisicamente os estranhos.

A expressão mais comum das duas estratégias foi o notório entrechoque entre as versões liberal e racista-nacionalista do projeto moderno. As pessoas são diferentes, dá a entender o projeto liberal, mas são diferentes por causa da diversidade das tradições locais e particularistas em que elas crescem e amadurecem. São produtos da educação, criaturas da cultura e, por isso, flexíveis e dóceis de serem reformadas. Com a universalização progressiva da condição humana, que significa nada mais do que a erradicação de todo paroquialismo junto com os poderes empenhados em preservá-lo, e que conseqüentemente deixa o desenvolvimento humano livre do imbecilizante impacto do acidente de nascer, essa diversidade predeterminada, mais forte do que a escolha humana, se enfraquecerá. Não é assim – objetou a opinião racista-nacionalista. (pág.28 e 29)

 

Liberdade, Incerteza, E Liberdade Da Incerteza

 

A viscosidade dos estranhos, repitamos, é o reflexo de sua própria falta de poder. É essa sua carência de poder que se cristaliza nos seus olhos como a terrível força dos estranhos. O fraco encontra e enfrenta o fraco, mas ambos se sentem como Davi combatendo Golias. Cada um é “viscoso” para o outro; mas cada um combate a viscosidade do outro em nome da sua própria pureza. (pág. 42)

 

A Teoria Da Diferença, Ou O Sinuoso Caminho Para a Humanidade Partilhada

 

Há, porém, uma genuína oportunidade emancipadora na pós-modernidade, a oportunidade de depor as armas, suspender as escaramuças de fronteira empreendidas para manter o estranho afastado, desmontar o minimuro de Berlim erigido diariamente e destinado a manter distância, separar. Essa oportunidade não se acha na celebração da etnicidade nascida de novo e na genuína ou inventada tradição tribal, mas em levar à conclusão a obra do “desencaixe” da modernidade, mediante a concentração no direito de escolher a identidade de alguém como a única universalidade do cidadão e ser humano, na suprema e inalienável responsabilidade individual pela escolha – e mediante o desnudamento dos complexos mecanismos administrados por estado ou tribo e que têm em mira despojar o individuo dessa liberdade de escolha e dessa responsabilidade. A unicidade humana depende dos direitos do estranho, não do problema sobre o que – o estranho ou a tribo – está habilitando a decidir quem são os estranhos. (pág.46 e 47)

Observamos que o cenário pós-moderno não amplia tanto a dimensão total da liberdade do individuo, quanto a redistribui duma forma crescentemente polarizada: intensifica-se entre os alegre e solicitamente seduzidos, enquanto aguça quase para além da existência entre os despojados e panopticamente dirigidos. Com essa polarização desenfreada, pode-se esperar que a atual dualidade do status socialmente produzido dos estranhos continue inalterada. Num pólo, a estranheza (e a diferença, em geral) continuará sendo edificada como a fonte da experiência agradável e da satisfação estética; no outro, como a aterradora corporificação da viscosidade desabridamente ascensional da condição humana e como a efígie para toda a futura calcinação ritual de seus horrores. E o poder político oferecerá sua habitual partilha de oportunidades para o curto-circuito dos pólos: para proteger sua própria emancipação através da sedução, os próximos do primeiro pólo procurarão o domínio pelo medo sobre os do segundo pólo ajudando e favorecendo, assim, sua indústria suburbana de horrores. (pág.47 e 48)

 

V

Arrivistas e parias: os heróis e as vítimas da modernidade

 

Socialmente, a modernidade trata de padrões, esperança e culpa. Padrões – que acenam, fascinam ou incitam, mas sempre se estendendo, sempre um ou dois passos à frente dos perseguidores, sempre avançando adiante apenas um pouquinho mais rápido do que os que lhes vão no encalço. E sempre prometendo que o dia seguinte será melhor do que o momento atual. E sempre mantendo a promessa viva e imaculada, já que o dia seguinte será eternamente um dia depois. E sempre mesclando a esperança de alcançar a terra prometida com a culpa de não caminhar suficientemente depressa. A culpa protege a esperança da frustração; a esperança cuida para que a culpa nunca estanque. “L’homme est coupable”, observe Camus, esse inigualavelmente perspicaz correspondente da terra da modernidade, “mais il I’est de n’avoir su tirer de lui-même”.[2]

Psiquicamente, a modernidade trata da identidade: da verdade de a existência ainda não se dar aqui, ser uma tarefa, uma missão, uma responsabilidade. Como o restante dos padrões, a identidade permanece obstinadamente à frente: é preciso correr, puxado pela esperança e impelido pela culpa, embora a corrida, por mais rápida que seja, pareça estranhamente arrastada. Precipitar-se para a frente, em direção à identidade perpetuamente tentadora e perpetuamente inconsumada, assemelha-se a recuar da defeituosa e ilegítima realidade do presente.

 Tanto social quanto psiquicamente, a modernidade é irremediavelmente autocrítica: um exercício infindável e, no fim, sem perspectivas, de autocancelamento e auto-invalidação. Verdadeiramente moderna não é a presteza em retardar o contentamento, mas a impossibilidade de ficar contente. Toda realização é meramente uma pálida cópia do seu modelo. “Hoje” é meramente uma incipiente premonição de amanhã; ou, antes, seu reflexo inferior e desfigurado. O que é é cancelado de antemão por o que virá. Mas extrai o seu alcance e o seu sentido – seu único sentido – desse cancelamento.

Em outras palavras a modernidade é a impossibilidade de permanecer fixo. Ser moderno significa estar em movimento. (pág.91 e 92)

Os moradores mais antigos odeiam os arrivistas, por despertarem as lembranças e premonições que se esforçam, com empenho, para fazer dormir. Mas eles dificilmente podem passar sem arrivistas, sem que alguns deles sejam estigmatizados como arrivista, excluídos, acusados de trazer em seus corpos o bacilo da inquietação: é graças a essa parte estigmatizada, e somente a ela, que o todo pode achar que os sonhos ruins e as premonições mórbidas são maledicências de outras pessoas e não se lhes aplicam inteiramente. O arrivista necessita de um arrivista afim de não se sentir um arrivista. E, assim, os nômades disputam com outros nômades o direito de fornecer permissões de residência uns aos outros. É a única maneira de fazerem com que a sua própria residência pareça segura. A única maneira por que podem fixar o tempo que se recusa a permanecer imóvel é marcar o espaço e proteger as marcas para que não sejam apagadas ou deslocadas. Pelo menos, tal é a sua desesperada esperança. (pág.93)

Ter aprendido as regras do jogo não significa, entretanto, ser mais sagaz. Significa ainda menos ser bem-sucedido. Pouco podem fazer os arrivistas para alterar sua difícil situação, por mais ardorosamente que desejam fazê-lo. “Não se pode modificar a própria imagem: nem o pensamento, nem a liberdade, mentira, náusea ou repugnância podem ajudar alguém a sair da sua pele peculiar”.[3] No entanto, sair da sua pele peculiar é o que se espera que a pessoa faça. Pede-se aos arrivistas, orientados, controlados e avaliados por critérios exteriores, que provem a legalidade da sua presença sendo orientados, controlados e avaliados por si próprios e sendo vistos assim. (pág.95)

Para os arrivistas, o jogo não pode ser vencido, pelo menos enquanto continuar a ser disputado segundo as regras estabelecidas, ao passo que a saída do jogo significa rebelião contra as regras; na verdade, uma inversão das regras. (pág.96)

Talvez nós vivamos em uma era pós-moderna, talvez não. Mas de fato vivemos em uma era de tribos e tribalismo. É o tribalismo, miraculosamente renascido, que injeta espírito e vitalidade no louvor da comunidade, na aclamação de fazer parte, na apaixonada busca da tradição. Neste sentido, pelo menos, o longo desvio da modernidade levou-nos aonde nossos antepassados outrora principiaram. Ou assim talvez pareça.

O fim da modernidade? Não necessariamente. Sob outro aspectos, afinal, a modernidade está muito conosco. Está conosco na forma do mais definidor dos seus traços definidores: o da esperança, a esperança de tornar as coisas melhores do que são – já que elas, até então, não são suficientemente boas. De igual maneira pregadores vulgares de tribalismo desadornado e elegantes filósofos das formas de vida comunalmente baseadas ensinam-nos o que fazem, em nome de mudar as coisas para melhor. “Qualquer benefício que as idéias de ‘objetividade’ e ‘transcendência’ tenham feito à nossa cultura poderia ser obtido igualmente bem pela idéia de comunidade”, afirma Rorty – e é precisamente isso que torna a última idéia atraente para os que procuravam ontem os caminhos universais para um mundo adequado à habitação humana. Projetos racionais de perfeição artificial, e as revoluções destinadas a imprimi-los na configuração do mundo, fracassaram abominavelmente em cumprir sua promessa. Talvez as  comunidades, cordiais e hospitaleiras, cumpram o que elas, as frias abstrações, não puderam cumprir. Ainda queremos que o trabalho seja feitos. Apenas deixamos cair as ferramentas que se revelam inúteis e procuramos obter outras- que, quem sabe, ainda possam realizar a tarefa. Pode-se dizer que ainda concordamos em que a felicidade conjugal é uma coisa boa; somente já não apoiamos a opinião de Tolstoi de que todos os casamentos felizes são felizes da mesma forma.

Sabemos perfeitamente bem por que não gostamos das ferramentas que abandonamos. Durante mais ou menos dois séculos, pessoas que mereciam ou reclamavam ser ouvidas com atenção e respeito contaram a história de um hábitat humano que curiosamente coincidia com o do estado político e do domínio de seus poderes legislativos e ambições. O mundo era, na memorável expressão de Parsons, o espaço “principalmente coordenado” – o domínio sustentado, ou prestes a ser sustentado, por princípios uniformes, mantidos  pelos esforços conjuntos dos legisladores e dos executantes, armados ou desarmados, da sua vontade. Era esse espaço artificial que era descrito como um hábitat que “supre naturalmente” as necessidades humanas e – de forma mais importante – supre a necessidade de satisfazer as necessidades. A sociedade  “principalmente coordenada”, talvez racionalmente projetada e controlada, devia ser essa boa sociedade que a modernidade se pôs a construir. (pág.101 e 102)

 

VI

Turistas e vagabundos: os heróis e as vítimas da pós-modernidade

 

A projeção do espacial, distinção contemporânea sobre o contínuo do tempo, reapresentação da heterogeneidade como série ascendente de períodos de tempo, talvez tenha sido o mais notável e também possivelmente o mais fecundo aspecto da mentalidade moderna. Mas as metáforas transformam ambos os lados que entram na relação metafórica. A projeção do espaço sobre o tempo forneceu ao tempo traços que só o espaço possui “naturalmente”: a época moderna teve direção, exatamente como qualquer itinerário no espaço. O tempo progrediu do obsoleto para o atualizado, e o atualizado foi desde o início a obsolescência futura. O tempo tinha sua “frente” e seu “atrás”: uma pessoa era incitada e empurrada a andar “para a frente com o tempo”. Os turbulentos e auto-homenageados anciões da cidade que construíram a prefeitura de Leeds na metade do século XIX, como o monumento a sua própria e milagrosa ascensão no tempo, gravaram seus princípios morais por todos os lados das paredes da sua sala de reunião. Perto de outros mandamentos, havia um mais notável pela sua confiante brevidade “Avante!” Aqueles que projetaram a prefeitura não tinham dúvidas onde era “avante”.

E, assim, os homens e as mulheres modernos viveram num tempo-espaço com estrutura, um tempo-espaço rijo, sólido, durável – exatamente a correta referência de nível para traçar e controlar o caráter caprichoso e volátil da vontade humana – mas também um duro recipiente em que os atos humanos podiam achar-se sensíveis e seguros. Nesse mundo estruturado, uma pessoa podia perder-se, mas também podia achar seu caminho e chegar exatamente aonde pretendia estar. A diferença entre se perder e chegar era feita de conhecimento e determinação: o conhecimento da estrutura do tempo-espaço e a determinação de seguir, fosse qual fosse, o itinerário escolhido. Sob tais circunstância, a liberdade era de fato a necessidade conhecida – mais a decisão de agir com esse conhecimento.

A estrutura estava em seu lugar antes de qualquer proeza humana começar, e durava o tempo suficiente, inabalável e inalterada, para levar a cabo a proeza. Ela antecedeu toda realização humana, mas também fez a realização possível: transformou a luta pela vida de cada um, antes uma disputa despropositada, numa realização coerente. A cada feito se podia acrescer outro, seguir a estrada passo a passo, cada um destes levando a outro, graças à estrada; podia-se construir a realização de uma pessoa da base para cima, desde os alicerces ao telhado. Era esse o mundo da peregrinação por toda a vida, da vocação, ou – como a Coruja de Minerva devia proclamar mais tarde pela boca de Jean-Paul Sartre – do “projeto de vida”. (pág.110 e 111)

O mundo construído de objetos duráveis foi substituído pelo de produtos disponíveis projetados para imediata obsolescência. Num mundo como esse, as identidades podem ser adotadas e descartadas Omo uma troca de roupa. O horror da nova situação é que todo diligente trabalha de construção pode mostrar-se inútil; e o fascínio da nova situação, por outro lado, se acha no fato de não estar comprometida por experiências passadas, de nunca ser irrevogavelmente anulada, sempre “mantendo as opções abertas”. Mas o horror e o fascínio, de igual modo, fazem a vida como peregrinação dificilmente factível como uma estratégia e improvável de ser escolhida como tal. Não por muitos, afinal de contas. E não com grande probabilidade de sucesso.

No jogo da vida dos homens e mulheres pós-modernos, as regras do jogo não param de mudar no curo da disputa. A estratégia sensível, portanto, é manter curto cada jogo – de modo que um jogo da vida sensatamente disputado requer a desintegração de um jogo que tudo abarca, com prêmios enormes e dispendiosos e não demasiadamente preciosos. Para novamente citar Chistopher Lasch, a determinação de viver um dia de cada vez, e de retratar a vida diária como uma sucessão de emergências menores, se tornaram os princípios normativos de toda estratégia de vida racional.

Manter o jogo curto significa tomar cuidado com os compromissos a longo prazo. Recusar-se a “se fixar” de uma forma ou de outra. Não se prender a um lugar, por mais agradável que a escala presente possa parecer. Não se ligar a vida a uma vocação apenas. Não jurar coerência e lealdade a nada ou a ninguém. Não controlar o futuro, mas se recusar a empenhá-lo: tomar cuidado para que as conseqüências do jogo não sobrevivam ao próprio jogo e para renunciar à responsabilidade pelo que produzem tais conseqüências. Proibir o passado de se relacionar com o presente. Em suma, cortar o presente nas duas extremidades, separar o presente da história. Abolir o tempo em qualquer outra forma que não a de um ajuntamento solto, ou uma seqüência arbitrária, de momentos presentes: aplanar o fluxo do tempo num presente contínuo. (pág.112 e 113)

Adequação – a capacidade de se mover rapidamente onde a ação se acha e estar pronto a assimilar experiências quando elas chegam – tem precedência sobre saúde, essa idéia do padrão de normalidade e de conservar tal padrão estável, incólume. Toda demora, também a “demora da satisfação”, perde seu significado: não há nenhum tempo como seta legado para medi-la.

E desse modo a dificuldade já não e descobrir, inventar, construir, convocar (ou mesmo comprar) uma identidade, mas como impedi-la de ser demasiadamente firme e de aderir depressa demais ao corpo. (pág.113 e 114)

A figura do turista é a epítome dessa evitação. De fato, os turistas que valem o que comem são os mestres supremos da arte de misturar os sólidos e desprender o fixo. Antes e acima de tudo, eles realizam a façanha de não pertencer ao lugar que podem estar visitando: é deles o milagre de estar dentro e fora do lugar ao mesmo tempo. O turista guarda sua distância, e veda a distância de se reduzir à proximidade. (pág.114)

Viajando despreocupadamente, com apenas uns poucos pertences necessários à garantia contra a inclemência dos lugares estrangeiros, os turistas podem sair de novo a caminho, de uma hora para a outra, logo que as coisas ameaçam escapar de controle, ou quando seu potencial de diversão parece ter-se exaurido, ou quando aventuras ainda mais excitantes acenam de longe. O nome do é mobilidade: a pessoa deve poder mudar quando as necessidades impelem, ou os sonhos o solicitam. A essa aptidão os turistas dão o nome de liberdade, autonomia ou independência, e prezam isso mais do que qualquer outra coisa, uma vez que é a conditio sine qua non de tudo o mais que seus corações desejam. Este é também o significado de sua exigência mais  freqüentemente ouvida: “Preciso de mais espaço”. Ou seja, a ninguém será permitido discutir o meu direito de sair do espaço em que atualmente estou trancado. (pág.114)

Por mais longo que cada intervalo da viagem possa mostrar-se no fim, é vivido, em cada momento, como uma estada de pernoite. Só as mais superficiais das raízes, se tanto, são lançadas. Só relações epidérmicas, se tanto, são iniciadas com as pessoas dos lugares. Acima de tudo, não há nenhum comprometimento do futuro, nenhuma incursão em obrigações de longo prazo, nenhuma admissão de alguma coisa que aconteça hoje para se ligar ao amanhã. As pessoas do lugar, afinal, não são as zeladoras de estalagens do meio do caminho, que os peregrinos tinham de visitar outra vez e outra vez, a cada um efeito peregrinação: as pessoas do lugar, com que os turistas deparam, eles literalmente “tropeçam com” elas acidentalmente, como um efeito colateral do empurrão de ontem, que antes de ontem ainda não era imaginado ou antecipado, e que podia facilmente ser diferente do que era, e levar o turista  para algum outro lugar. (pág.115)

Tudo isso oferece ao turista a sensação recompensadora de “estar sob controle”. Não é este, para estar seguro, um controle no sentido agora antiquado, fora de moda, e heróico, de quem grava a sua forma no mundo, refazendo o mundo em sua própria imagem, ou querendo-o e conservando-o como tal. Este não é senão o que se pode chamar o “controle situacional” – a aptidão para escolher onde e com que partes do mundo “interfacear”, e quando desligar a conexão. Ligar e desligar não deixam no mundo qualquer marca duradoura: na verdade, graças à facilidade com que as chaves funcionam, o mundo (como o turista o conhece) parece infinitamente flexível, dócil e esboroável. É improvável manter-se qualquer configuração por muito tempo. (pág.115)

Um evento que, em princípio, não tem quaisquer conseqüências que sobrevivam à sua própria duração é chamado um episódio. Como os próprios turistas, o episódio – assim diz Milan Kundera – passa rapidamente na história, sem ser parte dela. O episódio é um evento fechado em torno de si mesmo. Cada novo episódio é, por assim dizer, um começo absoluto, mas seu fim é igualmente absoluto: “não ser levada adiante” é a ultima frase da história (mesmo se, para tomar a situação do incauto ainda mais amarga, for escrita com tinta invisível). (pág.116)

Suprimir os episódios, cortar pela raiz as plantas novas das conseqüências futuras, portanto, supõe um esforço constante, e um esforço constantemente inclusivo com isso. É esta uma mosca imunda no ungüento, sob outros aspectos saboroso, de uma vida em todos os momentos vivida com um episódio. Ou talvez seja um buraco, através do qual o mundo exterior repetidamente força o espaço firmemente controlado – anunciado, desse modo, o logro do controle do turista. É por isso que a vida do turista não é um mar de rosas. Há um preço a ser pago pelos prazeres que ela traz. A maneira como o turista põe de lado certas incertezas ocasiona suas próprias incertezas.

Os turistas iniciam suas viagens por escolha – ou, pelo menos, assim eles pensam. Eles partem porque acham o lar maçante ou não suficientemente atrativo, demasiadamente familiar e contendo demasiadamente poucas surpresas, ou porque esperam encontrar em outro lugar uma aventura mais excitante e sensações mais intensas do que a rotina doméstica jamais é capaz de transmitir. (pág.116)

Os turistas se tornam viajantes e colocam os sonhos da nostalgia acima das realidades da casa – porque eles exigem isso porque eles o consideram a mais razoável estratégia de vida “sob as circunstâncias”, ou porque foram seduzidos pelos prazeres verdadeiros ou imaginários de uma vida de quem acumula sensações. Mas nem todos os viajantes estão em movimento por preferirem estar em movimento a ficar em seu lugar. Muitos talvez se recusassem a se aventurar numa vida de perambulação se fossem solicitados a isso, mas eles não foram inicialmente solicitados. Se estão em movimento, é porque foram impelidos por trás – tendo sido, primeiramente, desenraizados por uma força demasiadamente poderosa, e muitas vezes demasiadamente misteriosa, para que se lhe resista. Vêem sua situação como qualquer coisa que não a manifestação da liberdade. Liberdade, autonomia, independência – se elas de algum modo aparecem no seu vocabulário – invariavelmente vêm no tempo futuro. Para eles, estar livre significa não ter de viajar de um lado para o outro. Ter um lar e ser permitido ficar dentro dele. São esses os vagabundos, luas escuras que refletem o brilho de sóis brilhantes, os mutantes da evolução pós-moderna, os refugos inaptos da brava espécie nova. Os vagabundos são os restos do mundo que se dedicaram aos serviços dos turistas.

Os turistas se demoram ou se movem segundo o desejo de seus corações. Abandonam o local quando novas oportunidades não experimentadas acenam em outra parte. Os vagabundos, porém, sabem que não ficarão por muito tempo, por mais intensamente que o desejem, uma vez que em lugar nenhum em que parem são bem-vindos: se os turistas se movem porque acham o mundo irresistivelmente atrativo, os vagabundos se movem porque acham o mundo insuportavelmente inóspito. Eles vão para as estradas não quando arrancaram a última gota de diversão que as pessoas do lugar podia oferecer, mas quando estas perdem a paciência e se recusam a tolerar sua presença estranha. Os turistas viajam porque querem; os vagabundos, porque não têm nenhuma outra escolha. Os vagabundos, pode-se dizer, são turistas involuntários. Mas a noção de “turista involuntário” é uma contradição em termos. Ainda que muito da estratégia do turista possa ser uma necessidade num mundo marcado por paredes movediças e por estradas instáveis, a liberdade de escolha é o corpo vivo do turista. Subtraia-se isso e a atração, a poesia e, na verdade, a afabilidade da vida do turista estão quase liquidadas.

Uma palavra de advertência: turistas e vagabundos são as metáforas da vida contemporânea. (pág.117 e 118)

A oposição entre os turistas e os vagabundos é a maior, a principal divisão da sociedade pós-moderna. Estamos todos traçados num contínuo estendido entre os pólos do “turista perfeito” e o “vagabundo incurável” – e os nossos respectivos lugares entre os pólos são traçados segundo o grau de liberdade que possuímos para escolher nossos itinerários de vida. A liberdade de escolha, eu lhes digo, é de longe, na sociedade pós-moderna, o mais essencial entre os fatores de estratificação. Quanto mais liberdade de escolha se tem, mais lata a posição alcançada na hierarquia social pós-moderna. As diferenças sociais pós-modernas são feitas com a amplitude e estreiteza da extensão de opções realistas.

Mas o vagabundo é o alter ego do turista – exatamente como o miserável é o alter ego do rico, o selvagem o alter ego do civilizado, ou o estrangeiro o alter ego do nativo. Ser um alter ego significa servir como um depósito de entulho dentro do qual todas as premonições inefáveis, os medos inexpressos, as culpas e autocensuras secretas, demasiadamente terríveis para serem lembrados, se despejam; ser um alter ego significa servir como pública exposição do mais íntimo privado, como um demônio interior a ser publicamente exorcizado, uma efígie em que tudo o que não pode ser suprimido pode ser queimado. O alter ego é o escuro e sinistro fundo contra o qual o eu purificado pode brilhar.

 Não admira que a metade turística da sociedade pós-moderna vacile na medida em que se interesse pela outra metade, a do vagabundo. Este zomba do estilo turístico, e zombar significa ridículo.) (pág.118 e 119)

 

VIII

O significado da arte e arte do significado

 

É a aceitação social de conexões necessárias entre os signos e certos significados que faz uma linguagem. Mas a arte contemporânea parece preocupar-se, mais do que qualquer outra coisa, em desafiar, reptar e derrubar tudo o que a aceitação social, o aprendizado e a formação solidificaram em esquemas de “necessária” conexão; é como se todo artista, e toda obra de arte, lutasse para construir uma nova obra de arte primitiva, esperando e desesperando convertê-la numa linguagem consensual e genuína, isto é, dentro de um veículo de comunicação – mas retrocedesse em pânico num novo deserto, ainda não domesticado pela compreensão, no momento em que o sonho chega perto de sua realização... Como François Lyotard o exprimiu, se desde o começo da modernidade as artes procurassem os caminhos da representação do “sublime”, o que por sua natureza desafia a representação, a procura do sublime pelos artistas moderno moldaria uma “estética nostálgica”: eles postulariam o não-representável apenas como um “conteúdo ausente”. Os artistas pós-modernos, por outro lado, lutam por incorporar o não-representável na própria apresentação. (pág.132 e 133)

As normas pelas quais a obra foi construída podem ser encontradas, caso possível, só ex post facto: no fim do ato da criação, mas também no fim da leitura ou exame – uma vez que cada ato de criação é único e sem precedentes, não se referindo a quaisquer antecedentes, a não ser citando-os, isto é, arrancando as citações de sua situação original e, assim, arruinando, em vez de reafirmar, seu significado original. As regras estão perpetuamente se fazendo, sendo buscadas e encontradas, cada vez de uma forma analogamente única e como um evento analogamente único, em cada sucessivo encontro com os olhos, os ouvidos e a mente do leitor, espectador, ouvinte. Nada da forma em que acontece tais regras serem encontradas foi de antemão determinado pelas normas ou hábitos existentes, autorizadamente sancionadas ou aprendidas a se reconhecerem como sendo corretas. Nem tais regras, uma vez encontradas ou compostas add hoc, se tornarão obrigatórias para leituras subseqüentes. A criação e a recepção, do mesmo modo, são os processos da descoberta permanente e nunca será provável uma descoberta descobrir tudo o que há para ser descoberto, ou descobri-lo de uma forma que frustre a possibilidade de uma descoberta inteiramente diversa... A obra do artista pós-moderno é um esforço heróico de dar voz ao inefável, e uma conformação tangível ao invisível, mas também (obliquamente, através da recusa a reafirmar os cânones socialmente legitimizados dos significados e suas expressões) uma demonstração de que é possível mais do que uma voz ou forma e, desse modo, um constante convite a se unir no incessante processo de interpretação, que também é o processo de criação do significado. (pág.133 e 134)

O significado da arte pós-moderna, pode-se dizer, é estimular o processo de elaboração do significado e defendê-lo contra o perigo de, algum dia, se desgastar até uma parada; alertar para a inerente polifonia do significado e para a complexidade de toda interpretação; agir como uma espécie de anticongelante intelectual e emocional, que previna a solidificação de qualquer invenção a meio caminho para um cânone gelado que detenha o fluxo de possibilidades. Em vez de reafirmar a realidade como um cemitério de possibilidades não provadas, a arte pós-moderna traz para o espaço aberto o perene inacabamento dos significados e, assim, a essencial inexauribilidade do reino do possível. Pode-se mesmo dar um passo adiante e sugerir que o significado da arte pós-moderna é a desconstrução do significado; mais exatamente, revelando o segredo do significado, o segredo a moderna prática teórica tentou firmemente esconder ou deturpar. Esse significado só “existe” no processo da interpretação e da crítica, e morre completamente com ele. (pág.136)

Uma vez que a liberdade toma o lugar da ordem e do consenso como critério da qualidade de vida, a arte pós-moderna de fato ganha muitos pontos. Ela acentua a liberdade por manter a imaginação desperta e, assim, manter as possibilidades vivas e jovens. Também acentua a liberdade ao manter os princípios fluidos, de modo que não se petrificassem na morte e nas certezas enceguecedoras. (pág.136)

Os artistas pós-modernos são, como os seus predecessores, uma “vanguarda”, mas num sentido inteiramente diverso de como os modernistas pensavam sobre seu papel e de como desejavam que este fosse considerado. Em poucas palavras, pode-se dizer que, se a vanguarda modernista se ocupava de marcar as trilhas que levavam a um consenso “novo e aperfeiçoado”, o vagabundo pós-moderno consiste não exatamente em desafiar e debilitar a forma existente e reconhecidamente transitória de consenso, mas em solapar a própria possibilidade de qualquer acordo futuro, universal e, desse modo, sufocante. (pág.138 e 139)

 

IX

Sobre a verdade, a ficção e a incerteza

 

Como expressou William James em 1912,[4] o verdadeiro é “somente um expediente na nossa maneira de pensar”. Na interpretação de Richard Rorty, o papel que James atribuiu a esse “expediente” consistia em elogiar – e, por meio de elogio, endossar – as crenças aceitas. Segundo esse ponto de vista, que compartilho, a palavra “verdade” simboliza nos nossos usos uma determinada atitude que adotamos, mas acima de tudo desejamos ou esperamos que outros adotem, para com o que é dito ou acreditado – em vez de uma relação entre o que é dito e determinada realidade não-verbal (como Locke primeiro sugeriu – entre idéias e os objetos que elas correta ou insatisfatoriamente representam). É necessário salientar, contudo, que a forma específica de endosso efetuada pelo “expediente da verdade” consiste precisamente em asseverar que, em determinadas crenças, existe mais do que a nossa aprovação – sendo esse “mais”, na maioria dos casos, a suposta identidade entre o que as crenças asseveram e esse algo sobre que nos informam, ou uma coesão exemplar entre a crença em questão e outras crenças comumente incontroversas; que existem, em outras palavras, razões para aprovação mais sólidas e fidedignas do que o caprichoso e instável acordo entre os crentes – de modo que as crenças em questão possam não ser simplesmente aprovadas, mas aprovadas com confiança e segurança, e adotadas com firmeza suficiente para rejeitar outros pontos de vistas alternativos ou francamente contrários sobre o assunto. (pág.142)

A noção de verdade pertence à retórica do poder. Ela não tem sentido a não ser no contexto da oposição. E quando, por determinadas razões, é importante para alguns ou todos os adversários demonstrar ou insinuar para alguns ou todos os adversários demonstrar ou insinuar que é o outro lado que está errado. Sempre que a veracidade de uma crença é asseverada é porque a aceitação dessa crença é contestada, ou se prevê que seja contestável. A disputa acerca da veracidade ou falsidade de determinadas crenças é sempre simultaneamente o debate acerca do direito de alguns de falar com a autoridade que alguns outros deveriam obedecer; a disputa é acerca do estabelecimento ou reafirmação das relações de superioridade e inferioridade, de dominação e submissão, entre os detentores de crenças.

A teoria da verdade, segundo essa avaliação, trata de estabelecer superioridade sistemática e, portanto, constante e segura de determinadas espécies de crenças, sob o pretexto de que a elas se chegou graças a um determinado procedimento confiável, ou que é assegurado pela espécie de pessoas em que se pode confiar que o sigam. Necessita-se  de uma teoria da verdade em uma ou duas situações: ou as posições de diversos participantes ativos, supostos ou potenciais do debate são desiguais e sua desigualdade tem de ser justificada a fim de ser defendida e preservada, ou a dominação deve ainda ser estabelecida e a competência de determinados agentes que no momento afirmam falar com autoridade tem de ser, para esse objetivo, contestada e desacreditada. (pág.143)

Toda teoria da verdade segue o modelo de Platão, em ser uma teoria sobre por que e como os poucos escolhidos conseguem emergir da caverna e enxergar as coisas como elas verdadeiramente são, mas também e, talvez acima de tudo, uma teoria sobre por que todos os outros não conseguem fazer o mesmo sem serem guiados e por que tendem a resistir à direção e permanecer dentro da caverna, em vez de explorar o que é visível somente à luz do sol, no lado de fora. (pág.144)

Uma vez que o tipo de erro previamente apresentado como o alvo da barragem filosófica, sob o codinome de senso comum, é considerado além do alcance do debate filosófico e além dos limites do âmbito legítimo da ascendência filosófica, são cada vez mais as teorias da verdade de outros filósofos que fornecem a causa para afiar as próprias lâminas e refinar o próprio arsenal retórico. Essa outra linha de frente não é necessariamente nova. (pág.147)

Pode-se dizer que os filósofos hoje lutam – paradoxalmente, se pensa a respeito – não tanto acerca da única e verdadeira (única porque verdadeira) teoria da verdade, mas acerca da verdadeira, e por conseguinte única, teoria das verdades (no plural); e porque a pluralidade das verdades deixou de ser considerada um irritante temporário, logo destinado a ser deixado para trás, e porque a possibilidade de que diferentes opiniões podem ser não apenas simultaneamente julgadas verdadeiras, mas ser de fato simultaneamente verdadeiras – a teoria das verdades atualmente no centro da atenção dos filósofos parece ser privada de muito da sua função de disputa no tocante ao status de conhecimento não-filosófico.

A tarefa da razão filosófica parece estar se deslocando de legislar acerca do modo correto de separar a verdade da inverdade para legislar acerca do modo correto de traduzir entre línguas distintas, cada uma gerando e sustentando suas próprias verdades. (pág.147e 148)

A auto-infligida redução de visão da filosofia ocidental originou-se do ascetismo sacerdotal dos filósofos que buscavam o manto de cientistas, como a mais requintada recompensa por seu auto-sacrifício, e consideravam a auto-imolação o meio mais garantido de consegui-la. Eles retratavam a realidade que descreviam – a realidade da sua descrição – por arremedo. Declararam guerra à irreverência e espontaneidade, negaram direitos domiciliares a qualquer coisa que não pudesse comprovar, ou não comprovasse, as bases convenientemente atestadas para sua presença, e tapavam firmemente os ouvidos ao som de riso que ecoava nos obscenos, suspeitos ou indecorosos grupos artísticos. Eram representantes legais da meia-verdade que se esforçavam para provar seu título de propriedade à total e única verdade que existe. A outra metade, contudo, sobreviveu ao julgamento e conservou o vigor muito depois de o litígio perder a força e esgotar o prazo. (pág.150)

Num mundo dominado pelo medo mortal de tudo o que é contingente, opaco e inexplicável, a ficção artística é uma contínua sessão de treinamento para viver com o ambivalente e o misterioso. Ela ensaia a tolerância e equanimidade para com o inconstante, o não inteiramente previsível. Incentiva a reconciliação com a contingência da vida e a polifonia de verdades. (pág.150 e 151)

Os homens e mulheres pré-modernos foram preparados para encarar a diferença com equanimidade e aceitar a predeterminada pluralidade dos seres como parte integral da criação de Deus. Examinados da nossa atual perspectivas, eles parecem ter sido tolerantes com a diferença – mas essa era a espécie de tolerância que se expressava, na maioria das vezes, em desejar e incitar a todos para “se ater à própria classe”, se manter a distância, reduzir o encontro entre as classes a padrões estritamente institucionalizados ou ritualizados e, quanto ao mais, suprimir toda curiosidade mórbida acerca de outras formas de humanidade, por mais fortemente distintas que viessem a ser. Mas observemos que tal atitude só podia ser preservada enquanto subsistissem classes mais ou menos claramente definidas a que uma pessoa pudesse “ater-se”. Com o advento do tumulto moderno, a fragmentação das tradições e comunidades, colocando à deriva as categorias outrora rígidas e “desencaixando” as identidades individuais, a solução pré-moderna para o problema da pluralidade logo se revelou inadequada para prevenir ou mitigar a resultante ansiedade nascida da confusão.

Para o homem ou mulher pré-modernos, verdade e realidade, combinadas numa só, eram o produto da intenção de Deus, encarnada de uma vez para sempre na forma da Criação de Deus. Fora concedida desde o momento da criação e, portanto, não requeria nada além de respeitosa contemplação, quando muito um estudo cuidadoso. A determinação, a obviedade, a natureza atribuída e imutável do lugar de cada homem ou mulher na cadeia do ser, tudo sugeria tal entendimento do mundo – como a consumação de uma intenção supra-humana, divina. Não ocorre assim no mundo moderno, de “criação permanente”. (pág.153 e 154)

O aspecto novo, caracteristicamente pós-moderno e possivelmente inaudito, da diversidade dos nossos dias é a fraca, lenta e ineficiente institucionalização das diferenças e sua resultante intangibilidade, maleabilidade e curto período de vida. Se desde a época do “desencaixe” e ao longo da era moderna, dos “projetos de vida”, o “problema da identidade” era a questão de como dotá-la de uma forma universalmente reconhecível – atualmente, o problema da identidade resulta principalmente da dificuldade de se manter fiel a qualquer identidade por muito tempo, da virtual impossibilidade de achar uma forma de expressão da identidade que tenha boa probabi-lidade de reconhecimento vitalício, e a resultante necessidade de não adotar nenhuma identidade com excessiva firmeza, a fim de poder abandoná-la de uma hora para outra, se for preciso. Não é tanto  a co-presença de muitas classes que é a fonte de confusão, mas sua fluidez, a notória dificuldade em apontá-las com precisão e defini-las – tudo isso revertendo à central e mais dolorosa das ansiedades: a que se relaciona com a instabilidade da identidade da própria pessoa e a ausência de pontos de referência duradouras, fidedignos e sólidos que contribuiriam para tomar a identidade mais estável e segura.

Observemos, porém, que a evidente natureza “inventada” das personagens, sua condicionalidade e status convencional, sua contingência inerente, são características definidoras da obra de arte em geral e da ficção artística em particular. Pode-se, por conseguinte dizer que, sob a condição pós-moderna,  o “mundo lá fora”, o “mundo real”, adquire em grau cada vez maior os traços tradicionalmente reservados ao mundo ficcional da arte. O mundo “lá fora” afigura-se indivíduo como um jogo, ou antes uma série de jogos finitos e episódicos, sem nenhuma seqüência definida e com conseqüências que não vinculam necessariamente os jogos que se seguem; e um jogo em que o próprio mundo é um dos jogadores, em vez de o supremo legislador ou árbitro, e um jogador que, exatamente como os demais jogadores, mantém suas cartas junto ao peito e adora jogadas de surpresa. (pág.155 e 156)

Os mal-estares pós-modernos nascem da liberdade, em vez da opressão. (pág.156)

No mundo moderno, a ficção do romance desnudava a absurda contingência oculta sob a aparência de realidade ordenada. No mundo pós-moderno, ela enfileira unidas cadeias coesas e coerentes, “sensatas”, a partir do informe acúmulo de acontecimentos dispersos. Os status da ficção e do “mundo real” foram, no universo pós-moderno, invertidos. Quanto mais o “mundo real” adquire os atributos relegados pela modernidade ao âmbito da arte, mais a ficção artística se converte no refúgio – ou será, antes, na fábrica? – da verdade. Mas – que seja enfatizado com toda a veemência possível – a verdade admitida de seu exílio tem, além do nome, pouca semelhança com aquela que se obrigou a emigrar. Essa verdade não tem função de endosso e pouca utilidade para o debate – e, além do mais, está ciente de suas limitações e nem um pouco preocupada. As verdades da arte nascem num grupo de outras verdades e, desde o princípio, acostumam-se a apreciar tal grupo. Não encaram a presença de outros sentidos/interpretações como uma afronta, um desafio, uma ameaça ao próprio sentido. Alegram-se em contribuir para a sua profusão. (pág.157)

Pode-se dizer, utilizando a linguagem heideggeriana, que a forma especificamente pós-moderna de “ocultamento” consiste não tanto em esconder a verdade do Ser por trás da falsidade dos seres, mas em obscurecer ou apagar inteiramente a distinção entre verdade e falsidade dentro dos próprios seres e, desse modo, tornar os temas do “cerne da questão”, de sentido e de significado absurdos e inexpressivos. É a própria realidade que agora necessita da “suspensão da descrença”, outrora a prerrogativa da arte, a fim de ser apreendida, encarada e vivida como realidade. A própria realidade é agora “arremedo”, embora – exatamente como o mal psicossomático – faça o máximo para encobrir os sinais. (pág.158)

 

 

X

A cultura como consumidor cooperativo

 

É assim que tendemos a pensar na cultura até hoje: como num dispositivo de antialeatoriedade, um esforço para estabelecer e manter uma ordem; como numa guerra contínua contra a aleatoriedade e esse caos que a aleatoriedade ocasiona. Na luta eterna entre ordem e caos, o lugar da cultura é inequivocamente no lado da ordem. Ao defrontar com a incoerência das normas, o estado de ambivalência comportamental, a profusão de produtos culturais sem uso óbvio “para o sistema”, pensamos em um conflito entre culturas, ou em uma crise cultural. Em qualquer dos caos, consideramos a situação anormal ou nociva. Ficamos alarmados e esperamos uma alteração mórbida dos acontecimentos.

É cada vez mais difícil, porém, pensar na cultura dessa maneira. Enquanto nos apegamos às noções herdadas, a crise parece ser uma condição cotidiana, a anormalidade transforma-se em uma norma, a doença torna-se crônica. (pág.164  e 165)

Não é inequivocamente nítido de onde surgiu essa “crise dos paradigmas”. Os fenômenos culturais mudaram tão drasticamente, desde a época em que foi cunhado o conceito de cultura, que a antiga noção não se aplica mais a eles? Ou a culpa deveria ser antes atribuída às mudanças na nossa maneira de encarar o mundo, na torre de observação construída com nossos novos interesses e experiências, no ponto de apoio da vida cotidiana, de onde iniciamos nossas viagens exploratórias? Ou talvez o colapso do poder ordenador cognitivo das nações ortodoxas tenha seguido na esteira da queda de sua potência ordenadora e prática, uma vez que as sugestões sobre como ordenar o conhecimento do mundo não possuem autoridade se não são secundadas pelos poderes para ordenar o próprio mundo? Pode-se imaginar que todas as três causas desempenharam certo papel na atual paradigmática. Mas igualmente pode ser que os três fatores sejam separados um do outro, cada um sendo dotado da própria lógica. (pág.165 e 166)

Estive procurando uma metáfora que desembaraçasse o caminho que conduz a um novo paradigma, uma metáfora que captasse precisamente a inquietação, adaptabilidade, subdeterminação endêmica e imprevisibilidade das atividades culturais. Após apreciar e rejeitar diversas possibilidades, escolhi o modelo da cooperativa de consumidores.

Para afastar inevitáveis vozes de protesto, desejo esclarecer desde o inicio que, ao falar em cooperativa de consumidores, não me refiro à Cooperativa da atualidade, a organização completamente burocratizada e estreitamente hierárquica muito semelhante a outras instituições comerciais, somente (em seu próprio detrimento) em maior grau. (pág.168)

 

XI

Sobre a redistribuição pós-moderna do sexo: a História da sexualidade, de Foucault, revistada

 

Segundo Ariès e outros estudiosos dos hábitos populares[5], a mudança no tratamento das crianças veio juntamente com a “descoberta” da criança como uma criatura por si mesma e de um tipo um tanto diferente, dotado de atributos peculiares. Esta descoberta estava intimamente ligada à nova – e moderna – percepção da realidade social, que apresentava a carreira dos indivíduos humanos como o processo de “amadurecimento”, algo que não aconteceria por si mesmo, sem ajuda e não-supervisionado, não podendo ser deixado à mercê da sabedoria da natureza. Para assistir ao processo e assegurar-lhe o fluxo regular, é preciso um ambiente especial e orientado  para a criança, isolando dos rombos acidentais do mundo dos crescidos. Quanto mais tempo durasse o fechamento das crianças nesse ambiente especial, melhor: juntamente com a idéia positiva do amadurecimento, uma idéia negativa da “criança precoce” apareceu, trazendo um aroma decididamente patológico. A criança era considerada em ser frágil, que requer estreita e constante vigilância e interferência; um ser inocente mas que, pela própria razão de sua inocência, vivia sob uma constante ameaça de ser “estragada”, incapaz de evitar e combater os perigos por sua conta. O que para os adultos era um desafio a combater ou arrostar, para a frágil criança era um engodo a que ela não podia resistir ou uma armadilha em que ela só podia cais. A criança precisava da orientação e do controle do adulto: uma supervisão refletida e cuidadosamente planejada, calculada para desenvolver a razão da criança como uma espécie de fortificação deixada pelo mundo do adulto dentro da personalidade da criança. As necessidades de orientação e controle convergiram para a idéia de um ambiente especialmente projetado em que o processo de crescimento devia acontecer. Idealmente, cada etapa do desenvolvimento da criança devia ter seu ambiente próprio e feito sob medida. (págs.178 e 179)

 

 

 

 

 

 

 

XII

Imortalidade, na versão pós-moderna

 

                                         Um homem livre pensa em tudo menos na morte, e sua sabedoria é uma meditação não sobre a morte, mas sobre a vida.

Baruch Spinoza, Ética

 

Morte,  Moderna E Pós-Moderna

 

A nossa sociedade “moderna tardia” (Giddens), “moderna reflexiva” (Beck), “surmoderne” (Balandier), ou – como prefiro denominá-la – pós-moderna é marcada pelo descrédito, escárnio ou justa desistência de muitas ambições (atualmente denegridas  como utópicas ou condenadas como totalitárias) características da era moderna. Dentro tais sonhos modernos abandonados e desesperançados, está a perspectiva de suprir as desigualdades socialmente geradas, de garantir a todo individuo humano uma possibilidade igual de acesso a tudo de bom e desejável que a sociedade possa oferecer. Mais uma vez, tal como nas etapas iniciais da revolução moderna, vivemos numa sociedade cada vez mais polarizada.

Ao longo do período moderno, tendeu-se a definir a exclusão social como um soluço temporário no progresso uniforme e implacável, sob outros aspectos, em direção à igualdade. Ela era minimizada pelo mau funcionamento ainda não corrigido, mas em principio corrigível, do sistema social não suficiente racionalizado. (pág.195)

Seria insensato – talvez ingênuo, mas certamente arriscado – excluir a possibilidade de uma ligação estreita entre a premonição de redundância orgânica e os atuais sinais de reavaliação da nova vida e longa vida. Vivemos na época do temor demográfico. Se, durante a era da modernidade do Sturm und Drang, um elevado índice de natalidade era considerado um sinal de “saúde da nação” e “mais pessoas” significava mais riqueza e poder, atualmente ambos são receados como uma ameaça à bem-aventurança dos consumidores e como um imposto exasperante sobre “recursos limitados”. Cada vez mais, as pessoas são registradas na coluna de débito, não na de crédito, do cálculo econômico. Seria realmente estranho se não houvesse vínculo entre a desvalorização econômica dos totais humanos, com a redundância inerente da população, e a tendência cultural, cada vez mais acentuada, de recusar a vontade do direito de viver àqueles que são demasiado fracos ou insignificantes para exigir e assegurar esse direito. (pág.196 e 197)

Um exame mais atento da cena cultural pós-moderna sugere fortemente tal reviravolta nos acontecimentos. Para o consumo de massa, a nossa cultura tem uma mensagem que, se tanto, desvaloriza ou dilui o sonho da vida eterna, e isso mediante o exorcismo do horror da morte. Esse efeito é alcançado por meio de duas estratégias aparentemente opostas, porém de fato suplementares e convergentes. Uma é a estratégia de esconder de vista a morte daqueles próximos à própria pessoa e expulsá-la da memória; colocar os doentes terminais aos cuidados de profissionais; confiar os velhos em guetos geriátricos muito antes de eles serem confiados ao cemitério, esse protótipo de todos os guetos; transferir funerais para longe de locais públicos; moderar a demonstração pública de luto e pesar; explicar psicologicamente os sofrimentos da perda como casos de terapia e problemas de personalidade. De outro lado, porém, como recentemente nos lembrou Georges Balandier, a morte se banalisa para la prolifération de images. (pág.198)

A morte próxima de casa é dissimulada, enquanto a morte como um transe humano universal, a morte dos anônimos e “generalizados” outros, é exibida espalhafatosamente, convertida num espetáculo de rua nunca findo que, não mais evento sagrado ou de carnaval, é apenas um dentre muitos dos acessórios da vida diária. Assim banalizada, a morte torna-se demasiado habitual para ser notada e excessivamente habitual para despertar emoções intensas. É a coisa “usual”, excessivamente comum para ser dramática e certamente demasiado comum para se ser dramático a respeito. Seu horror é exorcizado pela sua onipresença, tornando ausente pelo excesso de visibilidade, tornando ínfimo por ser ubíquo, silenciado pelo barulho ensurdecedor. E, enquanto a morte se desvanece e posteriormente desaparece pela banalização, assim também o investimento emocional e volitivo no anseio por sua derrota...  (pág.199)

 

 

Imortalidade, Moderna E Pós-Moderna

 

Se a modernidade se esforçou para desconstruir a morte, em nossa época pós-moderna é a vez de a imortalidade ser desconstruída. Mas o efeito global é a obliteração da oposição entre morte e imortalidade, entre o transitório e o duradouro. A imortalidade não é mais a transcendência da mortalidade. É tão instável e extinguível quanto a própria vida, tão irreal quanto se tornou a morte transformada no ato do desaparecimento: ambas são receptivas à interminável ressurreição mas nenhuma à finalidade. (pág. 203)

 

XIII

Religião pós-moderna?

 

Deus, Ou A Insuficiência De Auto-Suficiência

 

Em sua clássica e, na minha opinião, insuperada análise da maneira pela qual a religiosidade é gerada pela condição existencial humana, Leszek Kolakowski sugere que a religião não é uma “uma coletânea de afirmações sobre Deus, a Providência, o céu e o inferno”:

A religião, na verdade, é a consciência da insuficiência humana, é vivida na admissão da fraqueza...

A mensagem invariável do oculto religioso é: “do finito ao infinito, a distância é sempre infinita...” (pág.209)

Nós chegamos a acreditar nas igrejas de toda parte que, sempre que pressionados, insistem em que proporcionam o serviço de que necessita o irresistível impulso humano de obter respostas para as “questões fundamentais” da finalidade da vida e de aplacar os medos que se originam da ausência de uma boa resposta. Admiramo-nos, contudo: há pouco, na rotina diária, que incite essa investigação escatológica. O gado deve ser alimentado, a safra colhida, os impostos pagos, os jantares preparados, os telhados reparados; ou as instruções devem ser escritas ou estudadas, as cartas postas no correio, os requerimentos registrados, os compromissos cumpridos, as televisões consertadas, compradas as passagens... Antes de se ter tempo de pensar na eternidade, a hora de dormir está chegando e, depois, um outro dia transbordante de coisas a serem feitas ou desfeitas. Admiramo-nos: bem pode ser que as igrejas, como outros produtores de bem e serviços, tivessem de se ocupar, primeiro, da produção de seus próprios consumidores: tinham, se não de criar, então pelo menos de ampliar e aguçar as necessidades destinadas a serem satisfeitas pelos seus serviços e, desse modo, tornar seu trabalho indispensável.

Sobre o poder pastoral, cujas técnicas o cristianismo elaborou e levou à perfeição, Michel Foucault escreveu que

(...) todas essas técnicas cristãs de inquirição, orientação da confissão, obediência, têm um fim: levar os indivíduos a trabalhar em sua própria “mortificação” neste mundo. A mortificação, evidentemente, não é a morte, mas uma renúncia deste mundo e de si mesmo: uma espécie de morte cotidiana. Uma morte que se supõe proporcionar a vida num outro mundo.[6]

É lógico que só uma vez que tal mortificação tenha sido implantada como o dever do individuo, uma vez que uma “morte cotidiana” venha a ser aceita como o preço do bom “negócio” da prometida “vida num outro mundo”, o papel do pastor, de “garantir a salvação do seu rebanho”,[7] pode ser reconhecido, respeitado e dotado da capacidade de gerar poder. Primeiro as pessoas têm de se preocupar com a salvação pessoal, desejar a recompensa póstuma e temer a punição póstuma, precisar do pastor – e precisar dele nesta vida, dotada agora de um valor acrescido do contínuo ensaio para a vida vindoura. (pág.210)

A inquietação a respeito da eternidade não “aparece naturalmente”. (pág.211)

Grande esforço é necessário para essa inquietação prevalecer sobre a gravidade das preocupações diárias voltadas para as tarefas a serem executadas e os resultados a serem consumidos nessa única vida que os homens e as mulheres conhecem diretamente, visto que a ganham com o seu próprio trabalho cotidiano.

A esperança da vida eterna, o sonho do céu e o horror do ínfero não são a questão da partenogênese, embora seja disso que os filósofos da religião quase conseguiram convencer-nos. Esse martirizante terror da insuficiência que, como sugere Kolakowski, nos deixa suscetíveis a uma mensagem religiosa, só se podia seguir à designação de tarefas que estivessem além do alcance dos instrumentos desenvolvidos para atacar as tarefas da vida diária e criassem, por isso, a insuficiência humana. Longe de sepultar a inquietação a respeito do “definitivo”, traduzia agora para a questão da salvação, as igrejas tratarem de fazer com que a inquietação saturasse todo recesso e greta da mente e consciência humanas, assim como presidisse a totalidade das atividades da vida. (pág.211)

 

A Modernidade, Ou A Ação Sem Deus

 

Proponho que nem todas as estratégias do estar no mundo dos seres humanos devem ser fundamentalmente religiosas (isto é, fundadas numa intuição da insuperável insuficiência e fraqueza dos poderes humanos), e nem todas o foram. De maneira mais notável, a moderna fórmula da vida humana na terra foi articulada em função de uma estratégia agudamente alternativa: intencionalmente ou por omissão, os seres humanos estão sozinhos para tratar das coisas humanas e, por isso, as únicas coisas que importam aos seres humanos são as coisas de que os seres humanos podem tratar.  (pág.212)

Nesse processo de adaptação racional, havia pouca utilidade para a religião. Como Alain Touraine ressaltou, as “utilidades” da religião são de três tipos.[8] Primeiramente, a religião pode servir à dependência e à subordinação da rotina a um ritmo de vida interpretado como natural ou sobrenatural, mas em ambos os casos experimentado como invariável e invulnerável. Tal ritmo, permitam-nos observar contudo, foi muito patentemente interrompido, e o nome “modernidade” representa o seu colapso: não restou muita coisa a que a religião, com a sua mensagem de mundo pré-ordenado e criado de uma só vez, pudesse servir. Em segundo lugar, a filiação a uma igreja ou seita pode desempenhar um importante papel no manter sólidos e impenetráveis os muros das divisões sociais, servindo bem, assim, a uma estrutura social marcada pela baixa mobilidade e permanência dos fatores de estratificação. Permitam-me, porém, observar de novo que tal estrutura tão rígida foi gradualmente erodida nos processos cada vez mais vigorosos, flexíveis, difusos e descentrados da estruturação, e novamente a religião, com sua mensagem da “cadeia do ser divino” estava mal preparada para compreender a nova situação e os novos desafios. Pelos motivos acima expostos, pode-se concordar com a opinião de Touraine de que a “importância dos primeiros dois aspectos da vida religiosa” foi grandemente reduzida. Mas, em oposição a Touraine, ressaltar-se-ia que a redução em causa não foi conseqüência de “descristianização”, mas daquelas profundas transformações nas condições de vida e estratégias de vida viáveis das quais a própria e alegada “descristianização” foi um dos efeitos.

A terceira utilidade da religião é descrita por Touraine como “a apreensão do destino, da existência e da morte humana”. No caso dessa última função, Touraine observou seu incessante “isolamento”: “como a dança e a pintura, a religião se torna uma atividade de lazer, isto é, comportamento deliberado, não-regulamentado, pessoal e secreto”. Esta afirmação pode ser aceita com uma condição de que é o próprio “interesse pela existência e pela morte” que foi relegado a passatempos de lazer, aqueles que apresentam apenas um impacto marginal no modo como são organizados as atividades da vida séria e cotidiana. Se as “igrejas e seitas” existentes, particularmente aquelas que se gabam de um número maior, e de crescimento mais rápido, dos seguidores podem ser similarmente marginalizados como utilidades de lazer, é discutível. O ponto importante é que, com o fim de resistir a tal marginalização, as igrejas e seitas que conseguiram fazer exatamente isso tenham precisado assenhorear-se de outras funções que não a de abastecer a preocupação com os mistérios da existência e da morte. (págs.214 e  215) 

 

A Revolução Antiescatológica

 

A morte, disposta outrora pela religião como uma espécie de acontecimento extraordinário que, não obstante, confere significação a todos os acontecimentos ordinário, tornou-se ela própria um acontecimento ordinário – mesmo se é, supostamente, o último numa cadeia de acontecimentos ordinários, o último episódio numa série de episódios. Não mais uma ocorrência momentosa, que conduz à existência de outra, de mais longa duração e mais grave significado, mas raramente o “fim de uma história” – e as histórias só mantêm o interesse enquanto se desenvolvem e mantêm abertas as possibilidades de surpresa e aventura. Nada ocorre depois que a história acaba – e, assim, aqueles que se fazem encarregados desse nada, os especialistas religiosos, não têm muito a oferecer àqueles que estão absortos em viver a história...

E as histórias vividas pelos homens e mulheres modernos são de fato absorventes. (pág.219)

 

A Incerteza, Não-Ontológica

 

Com uma boa dose de simplificação, podemos dizer que as vidas dos homens e das mulheres pré-modernos continham pouca incerteza. Num mundo virtualmente inalterável dentro do horizonte da vida individual, seus habitantes, desde o berço designados para itinerários de vida claramente catalogados, esperavam pouca surpresa enquanto viviam. A época da morte, impossível de se prever, provindo de parte alguma e não-anunciada, era a única janela através da qual eles podiam achar um vislumbre de incerteza; e a incerteza que podiam ter vislumbrado, se houvessem sido conduzidos a essa janela e levados a olhar por ela, era a incerteza da existência como tal, a incerteza ontológica, apropriada unicamente a ser entendida e contada na história escatológica.

Com o progresso da medicina moderna, que forneceu virtualmente a toda situação de morte sua causa específica, “lógica” e “racional”, a morte já não é um capricho do destino cego, nem tão completamente casual quanto costumava ser. Havendo-se tornado uma ocorrência natural, absolutamente não-misteriosa e até parcialmente administrável, ela oferece pouco terreno a ruminações escatológicas. Por outro lado, é a vida antes da morte que oferece percepções cercadas de incerteza. Só que o que é vislumbrado através de muitas janelas, oferecidas pelas extravagâncias da vida moderna, pela insegurança das realizações e pela fragilidade dos laços humanos, não é a variante ontológica da incerteza e, desse modo, a história escatológica fica pouco apropriada para desvendar os mistérios e exprimir as ansiedades que tais mistérios fomentam. (pág.219 e 220)

São as incertezas concentradas na identidade individual, em sua construção nunca completa e em seu sempre tentado desmantelamento com o fim de reconstruir-se, que assombram os homens e mulheres modernas, deixando pouco espaço e tempo para as inquietações que procedem da insegurança ontológica. É nesta vida, neste lado do ser (se é que absolutamente há outro lado), que a insegurança existencial está entrincheirada, fere mais e precisa ser tratada. Ao contrário da insegurança ontológica, a incerteza concentrada na identidade não precisa nem das benesses do paraíso, nem da vara do inferno para causar insônia. Está tudo ao redor, saliente e tangível, tudo sobressaindo demais nas habilidades rapidamente envelhecedoras e abruptamente desvalorizadas, em laços humanos assumidos até segunda ordem, em empregos novos atrativos da festa do consumidor, cada um prometendo tipos de felicidade não experimentados, enquanto apagam o brilho dos já experimentados.

Os homens e mulheres pós-modernos realmente precisam do alquimista que possa, ou sustente que possa, transformar a incerteza de base em preciosa  auto-segurança, e a autoridade da aprovação (em nome do conhecimento superior ou do acesso à sabedoria fechado aos outros) é a pedra filosofal que os alquimistas se gabam de possuir. A pós-modernidade é a era dos especialistas em “identificar problemas”, dos restauradores da personalidade, dos guias de casamento, dos autores dos livros de “auto-afirmação”: é a era do “surto de aconselhamento”. Os homens e mulheres pós-modernos, quer por preferência, quer por necessidade, são selecionadores. E a arte de selecionar é principalmente em torno de evitar um perigo: o de perder uma oportunidade – por não vê-la bastante claramente, ou por não persegui-la bastante incisivamente, ou por ser um agente de demasiada inexperiência para capturá-la. Para evitar esse perigo, os homens e mulheres pós-moderno precisam de aconselhamentos. A incerteza de estilo pós-moderno não gera a procura da religião: ela concebe, em vez disso, a procura sempre crescente de especialistas na identidade. Homens e mulheres assombrados pela incerteza de estilo pós-moderno não carecem de pregadores para lhes dizer da fraqueza do homem e da insuficiência dos recursos humanos. Eles precisam da reafirmação de que podem fazê-lo – e de um resumo a respeito de como fazê-lo. (págs.221 e  222)

 

Transcendência Deste Mundo

 

Sugiro que as pressões culturais pós-moderna, enquanto intensificam a busca de “experiências máximas”, ao mesmo tempo as desligaram dos interesses e preocupações propensos à religião, privatizaram-nas e cofiaram principalmente a instituições não- religiosas o papel de aprovisionadoras dos serviços relevantes. A “experiência completa” da revelação, do êxtase, rompendo as fronteiras do ego e da transcendência total, outrora privilégio da seleta “aristocracia da cultura” – santos, eremitas, místicos, monges ascetas, tzadikim ou dervixes – e surgindo seja como um milagre não-solicitado, de maneira nada óbvia relacionando com o que o receptor da graça fez para merecê-lo, seja como um ato de graça que recompensa a vida de auto-imolação e abstinência, foi posta pela cultura pós-moderna ao alcance de todo indivíduo, refundida como um alvo realístico e uma perspectiva de auto-aprendizado para cada indivíduo, e recolocada no produto da vida devotado à arte do comodismo do consumidor. O que distingue a estratégia pós-moderna da experiência máxima de uma promovida pelas religiões é que, longe de celebrar a insuficiência e fraqueza humana assumidas, ela invoca o completo desenvolvimento dos recursos internos, psicológicos e fisiológicos do ser humano, e pressupõe infinita a potência humana. (págs.223 e 224)

 

De Volta Para O Futuro

 

Há, porém, uma forma especificamente moderna de religião, nascida das contradições internas da vida pós-moderna, da forma especificamente pós-moderna em que se revelam a insuficiência do homem e a futilidade dos sonhos de ter o destino humano sob controle do homem. Essa forma veio a ser conhecida sob o nome inglês de fundamentalism [fundamentalismo] ou sob o nome francês de intégrisme, exibindo sua presença cada vez mais influente em toda a parte do mundo outrora dominada pelas religiões cristã, islâmica e judaica.

Sugiro que a ascensão de uma forma religiosamente vestida de fundamentalismo não é um soluço de anseios místicos há muito ostensivamente afugentados mas não plenamente reprimidos, nem uma manifestação da eterna irracionalidade humana, imune a todos os esforços de cura e domesticação, nem uma forma de fuga de volta ao passado pré-moderno. O fundamentalismo é um fenômeno inteiramente contemporâneo e pós-moderno, que adota totalmente as “reformas racionalizadoras” e os desenvolvimentos tecnológicos da modernidade, tentando não tanto “fazer recuar” os desvios modernos quanto “os ter e devorar ao mesmo tempo” – tornar possível um pleno aproveitamento das atrações modernas, sem pagar o preço que elas exigem. O preço em questão é a agonia do individuo condenado à auto-suficiência, à autoconfiança e à vida de uma escolha nunca plenamente fidedigna e satisfatória. (pág.226)

O fascínio do fundamentalismo provém de sua promessa de emancipar os convertidos das agonias da escolha. Aí a pessoa encontra, finalmente, a autoridade indubitavelmente suprema, uma autoridade para acabar com todas as outras autoridades. A pessoa sabe para onde olhar quando as decisões da vida devem ser tomadas, nas questões grandes e pequenas, e sabe que, olhando para ali, ela faz a coisa certa, sendo evitado, desse modo, o pavor de correr o risco. O fundamentalismo é um remédio radical contra esse veneno da sociedade de consumo conduzida pelo mercado e pós-moderna – a liberdade contaminada pelo risco (um remédio que cura a infecção amputando o órgão infeccionado – abolindo a liberdade como tal, na medida em que não há nenhuma liberdade livre de riscos). O fundamentalismo promete desenvolver todos os infinitos poderes do grupo que – quando plenamente dispostos – compensaria a incurável insuficiência de seus membros individuais, e justificaria, dessa maneira, a indiscutível subordinação das escolhas individuais a normas proclamadas em nome do grupo.(pág.228)

Longe de ser uma explosão de irracionalidade pré-moderna, o fundamentalismo religioso, muito parecido com os autoproclamados reavivamentos étnicos, é uma oferta de racionalidade alternativa, feita sob medida para os genuínos problemas que assediam os membros da sociedade pós-moderna. Como todas as racionalidades, ele seleciona e divide; e o que seleciona difere da seleção efetuada pelas forças desregulamentadas do mercado – o que não o torna menos racional (ou mais irracional) do que a lógica da ação orientada pelo mercado. Se a racionalidade típica do mercado se subordina à promoção da liberdade de escolha e prospera sobre a incerteza das situações de execução da escolha, a racionalidade fundamentalista coloca a segurança e a certeza em primeiro lugar e condena tudo o que solapa essa certeza – antes e acima de tudo, as extravagâncias da liberdade individual. Em sua interpretação fundamentalista, a religião não e uma “questão pessoal”, privatizada como todas as outras escolhas individuais e praticada em particular, mas a coisa mais próxima de uma completa mappa vitae: ela legisla em termos nada incertos sobre cada aspecto da vida, desembaraçando desse modo a carga de responsabilidade que se acha pesadamente sobre os ombros do individuo – esses ombros que a cultura pós-moderna proclama onipotentes, e o mercado promove como tais, mas que muitas pessoas acham frágeis demais para essa carga. (págs.229)

 

XIV

Sobre o comunitarismo e a liberdade humana, ou como enquadrar o círculo

 

A teoria comunitária (exatamente como o liberalismo, no que diz respeito a isso) é uma ideologia moderna, elaborada e preconizada segundo condições modernas – ou seja, sob as circunstâncias em que a escolha é não só uma possibilidade, como uma realidade a que é difícil escapar. Os indivíduos modernos estão “sentenciados” a uma existência de escolha. E, assim, as alusões comunitárias acerca da natureza irrecuperavelmente “embaraçada” da identidade individual não chegam a desenvolver uma teoria madura do determinismo imputado. O determinismo em estilo comunitário não é automático. Paradoxalmente, sua ação não pode completar-se sem o papel ativo desempenhado pela vontade e escolha humanas. O destino só completa a sua trajetória quando espontaneamente (e alegremente!) aceito pelo indivíduo fadado. Mas, ao admitir isso, a filosofia comunitária coloca, por bem ou por mal, as comunidades de tradição e história que ela estimula em pé de igualdade com todos os outros “grupos de membros” (inclusive aqueles em competição direta ou oblíqua com grupos de referência “enraizados”). Todos esses grupos “mantém” os membros somente na medida em que os membros lhes “são fiéis”. A perpetuação desses grupos depende da intensidade e elasticidade da lealdade ativa de seus membros. É, por conseguinte, arriscado deixar o destino dos favorecidos grupos de referência “enraizados” (“comunidades de tradição”) sob os caprichos da competição aberta. Preferir-se-ia ter o resultado favorável da competição garantindo de antemão – mas isso significa privilegiar uma escolha acima de todas as outras, tornar esmagadora a vantagem sobre as outras escolhas e aumentar as apostas exigidas para tornar a escolha “correta”. Nesse ponto, porém, o comunitarismo abandona a discussão ostensivamente filosófica do transe existencial humano para entrar no âmbito da política prática. (pág.234 e 235)                

A idéia que guiava todos esses esforços do estudo-nação era sobrepor um tipo de adesão ao mosaico de “particularismo” comunitários, em nome do interesse da nação, que atropela e deixa em suspenso todos os outros interesses, inclusive o que estou ou aquele indivíduo possa julgar ser o seu “próprio” interesse individual. Sob o aspecto da política prática, isso significa o desmantelamento ou desabilitação legal de todos os pouvoirs intermédiaires, da autonomia de qualquer unidade menor que o estado-nação, que reivindicasse mais do que o poder delegado.(pág.236)

A impressionante semelhança entre as esperanças e os paradoxos nacionalistas e os comunitários não é de forma alguma fortuita. Ambas as visões de “futuro perfeito” são, afinal, as reações dos filósofos à experiência muito difundida de aguda e abrupta “desencaixe”, provocada pelo acelerado colapso das estruturas em que as identidades eram habitualmente inscritas. O nacionalismo foi a resposta à destruição indiscriminada da “manufatura doméstica de identidades” e a decorrente desvalorização dos padrões da vida produzidos e sancionados localmente (e prosaicamente). A visão nacionalista originou-se da desesperada esperança de que a clareza e segurança da existência possam ser reconstruídas num nível mais elevado e supralocal da organização social, em torno da associação nacional e da cidadania estatal fundidas numa só. O estado-nação revelou-se a incubadora de uma sociedade moderna regida não tanto pela unidade de sentimentos como pela diversidade de frios interesses de mercado. Seu meticuloso trabalho de desarraigar fidelidades locais parece, em retrospecto, não tanto uma produção de identidades de nível mais elevado, mas uma operação de limpeza de terreno para a vigarice, conduzida pelo mercado, dos modos de autodescrição rapidamente montadas e ainda mais depressa desmanteladas. (págs.237 a 238)

 

Posfácio: a última palavra – e ela pertence à liberdade

 

A experiência dos que se empenham no jogo chamado liberdade é tão incerta, contingente e inconclusiva como seu destino. Traz alegria e tristeza, alimenta a solidariedade e o egoísmo, promove o amor à mudança e seu ódio. (pág.246)

É apenas na luta contra tal uno-unicidade que o indivíduo humano, e o indivíduo humano como sujeito moral, um sujeito responsável e um sujeito que assume a responsabilidade por sua responsabilidade, pode nascer.(pág.248 e 249)

Se o monoteísmo significa falta de liberdade, a liberdade nascida da realidade politeísta não implica, em oposição a seus detratores, niilismo. Ser livre não significa não acreditar em nada: significa é acreditar em muitas coisas – demasiadas para a comodidade espiritual de obediência cega; significa estar consciente de que há demasiadas crenças igualmente importantes e convincentes para a adoção de uma atitude descuidada ou niilista ante a tarefa da escolha responsável entre elas; e saber que nenhuma escolha deixaria o escolhedor livre da responsabilidade pelas suas conseqüências – e que, assim, ter escolhido não significa ter determinado a matéria de escolha de uma vez por todas, nem o direito de botar sua consciência para descansar.

A voz da consciência – a voz da responsabilidade – é audível, por assim dizer, só no tumulto de melodias não-coordenadas. O consenso e a unanimidade prenunciam a tranqüilidade do cemitério (a “perfeita comunicação”, de Habermas, que mede a sua própria perfeição pelo consenso e exclusão do desacordo, é outro sonho de morte que cura radicalmente os males da vida de liberdade); é no cemitério do consenso universal que a responsabilidade, a liberdade e o individuo exaltam seu último suspiro.

A voz da responsabilidade é o grito de recém-nascido do individuo humano. Não necessariamente, porém, é sinal de uma vida feliz – se a felicidade significa ausência de inquietações (por certo, uma definição altamente discutível, embora largamente difundida, de felicidade). A aceitação da responsabilidade não aparece facilmente – não exatamente porque ela leva aos suplícios da escolha (que sempre impõe a privação de alguma coisa, assim como o ganho de outra), mas também porque ela anuncia a permanente ansiedade de estar quem sabe? – errando.

E, desse modo, a liberdade do livre, a individualidade do individuo são ameaçadas não apenas pelos detentores do poder. Estes últimos sustentam a liberdade individual como o laço sustente o homem esforçado – o homem ou mulher que assume a responsabilidade com suas próprias mãos vive o pesadelo de todo poder. Os detentores do poder, contemporâneos e em perspectiva, não reconhecem senão uma forma da responsabilidade dos seus súditos: ser responsável, na linguagem do poder, é seguir o comando, enquanto “ter poder” significa, essencialmente, tirar o direito de alguém mais a qualquer outra responsabilidade, que é a sua liberdade. A dificuldade, contudo, não acaba aqui. As forças ávidas de tirar liberdade nem sempre precisam da coerção para alcançar seu fim. Como demonstrou a experiência do nosso tempo de totalitarismo para além da dúvida razoável, com uma demasiada freqüência o desejo de tirar a liberdade se encontra com o desejo de concedê-la. Com uma demasiada freqüência, a liberdade é usada para fugir da liberdade: para fugir de ter consciência na consciência do ser, e da necessidade de defender a posição de alguém, na crença de que todas as posições dignas de considerações já foram consideradas.

Mas a tarefa supliciante de resistir aos atrativos da fuga também não é o fim da história. Há ainda outra armadilha, outra tentação, e uma tentação a que é mais difícil resistir, a que todos nos rendemos repetidamente: uma tentação de ter e devorar ao mesmo tempo, provar em cheio a alegria de escolher sem medo de pagar a multa por escolha errada, procurar e obter uma receita infalível, patenteada e garantida de escolha certa – para a liberdade sem ansiedade...   (pág.249 e 250)

Vivemos num mundo diversificado e polifônico, onde toda tentativa de inserir o consenso se mostra somente uma continuação do desacordo por outros meios. (pág.251)

Um efeito colateral universalmente admitido do progressivo desligamento da liberdade individual da escolha é a divisão cada vez mais profunda entre os que têm e os que não têm. Tanto na escala inter-como na intra-societária, ela alcança agora proporções inauditas durante quase um século e até pouco tempo atrás “culturalmente esquecidas” (ver capítulos III e IV). A pobreza relativa dos excluídos da festa do consumidor está crescendo, como a esperança de seu alívio na próxima volta de uma “seqüência” de prosperidade; daí o desespero dos excluídos, que se aprofunda, e os veementes esforços de todos os outros, preservados até agora de sua sorte, para “anular culturalmente” o significado moral do retorno dos pobres e desamparados – por meio da sub-repticiamente induzida brutalização do pobre e da subseqüente “criminalização” e “medicalização” da pobreza de acordo com o modelo amplamente praticado no século XIX, porém mais tarde, durante o episódio do estado de bem-estar, condenado e abandonado. O desmantelamento pós-moderno das instituições modernas remove as últimas barreiras à iniciativa daqueles que podem causar isso. Mas também revela uma vez mais a face inaceitável da desumanidade e falta de compaixão do início da modernidade.(pág.251 e 252)

A redução nas liberdades dos excluídos nada acrescenta à liberdade dos livres: ela diminui uma boa parte da sua sensação de estar livre e da sua capacidade de se deleitar com as suas liberdades. A estrada dos certos do bem-estar pode levar a toda parte, menos a uma sociedade de indivíduos livres. No que se refere às necessidades dos livres, esta é, em geral, um beco sem saída. Ela distorce o equilíbrio entre os dois lados da liberdade: em algum lugar ao longo dessa estrada, a alegria da escolha livre se estiola, enquanto o medo e a ansiedade ganham força. A liberdade do livre requer, por assim dizer, a liberdade de todos.(pág.252)

 

 

   

 

 

 



[1] Ver Alfred Schütz, “The  stranger: na essay in social psychology”, in Studies in Social Theory, v.2, p.95 seg

[2] Albert Camus. Carnets, janvier 1942 – mars 1951 (Paris, Gallimard, 1964, p.111).

[3] Arendt. Rahel Varnhagen, p.31

[4] Ver Pragmatism, de Wulliam James (Indianápolis, Hachett, 1981, p.100).

[5] Ver obras de Eduard Shorter, David Hunt, Jack Goody, ou a Critical Theory of the Family, de Mark Pôster (Londres, Pluto Press, 1978)      

[6] Politics, Philosophy, Culture, p.70

[7] Politics, Philosophy, Culture, p.70, 62.

[8] Ver Alain Touraine, The Post-Industrial Society: Tomorrow’s Social History: Classes, Conflicts and Culture in the Programmed Society, trad. Leonard F.H. Mayhew (Londres, Wildwood House, 1974, p.213-4). 

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