Síntese Paolo Cugini
I
O Sonho da pureza
A pureza é um
ideal, uma visão da condição que ainda precisa ser criada, ou da que precisa
ser diligentemente protegida contra as disparidades genuínas ou
imaginadas. Sem essa visão, tampouco o conceito de pureza faz sentido, nem a
distinção entre pureza e impureza pode ser sensivelmente delineada. (pág.13 e
14)
A pureza é uma
visa das coisas colocadas em lugares diferentes dos que elas ocupariam, se não
fossem levadas a se mudar para outro, impulsionadas, arrastadas ou incitadas; e
é uma visão da ordem – isto é, de uma situação em que cada coisa se acha em seu
justo lugar e em nenhum outro. (pág.14)
Os modelos de
pureza, os padrões a serem conservados mudam de uma época para a outra, de uma
cultura para – mas cada época e cada cultura tem um certo modelo de pureza e um
certo padrão ideal a serem mantidos intactos e incólumes às disparidades. Da
mesma forma, todas as preocupações com a pureza e a limpeza que emergem dessa
análise são essencialmente semelhantes. (pág.16)
O estranho
despedaça a rocha sobre o qual repousa a segurança da vida diária. Ele vem de
longe; não partilha as suposições locais – e, desse modo, “torna-se
essencialmente o homem que deve colocar em questão quase tudo o que parece ser
inquestionável para os membros do grupo abordado”[1].
Ele “tem de” cometer esse ato perigoso e deplorável porque não tem nenhum
status dentro do grupo abordado que fizesse o padrão desse grupo parecer-lhe
“natural”, e porque, mesmo se tentasse dão o melhor de si, e fosse
bem-sucedido, para se comportar exteriormente da maneira exigida pelo padrão, o
grupo não lhe concederia o crédito da retribuição do seu ponto de vista.
Se a “sujeira” é
um elemento que desafia o propósito dos esforços de organização, e a sujeira
automática, autolocomotora e autoconduntora é um elemento que desafia a própria
possibilidade de esforços eficientes, então o estranho é a verdadeira síntese
desta última. Não é de surpreender que as pessoas do lugar, em toda a parte e
em todos os tempo, em seus frenéticos esforços de separar, confirmar, exilar ou
destruir os estranhos, comparassem os objetos da suas diligências aos animais
nocivos e as bactérias . Não é de surpreender, tampouco, que comparassem o
significado de sua ação a rotinas higiênicas; combateram os “estranhos”,
convencidos de que protegiam a saúde contra os portadores de doença.
(pág.19)
Cada ordem tem
suas próprias desordens; cada modelo de pureza tem sua própria sujeira que
precisa ser varrida. Mas, numa ordem durável e resistente, que se reserve o
futuro e envolva ainda, entre outros pré-requisitos, a proibição da mudança,
até a ocupação de limpeza e varredura são partes da ordem. Pertencem à rotina
diária e, como a rotina de tudo, tendem a repetir-se monotonamente, duma forma
completamente transformada em hábito e que torna a reflexão redundante. O que
alcança o nível da consciência e desperta a atenção a atenção não é tanto a
rotina de eliminar a sujeira quanto prevenir uma não-habitual e fortuita interrupção
da rotina. O cuidado com a pureza concentra-se não tanto no combate à “sujeira
primária” quanto na luta contra a “metassujeira” – contra afrouxar ou
negligenciar totalmente o esforço de manter as coisas como são. (pág.20)
Um número sempre
crescente de homens e mulheres pós-modernos, ao mesmo tempo que de modo algum
imunes ao medo de se perderem, e sempre ou tão freqüentemente empolgados pelas
repetidas ondas de “nostalgia”, acham a infixidez de sua situação suficientemente
atrativa para prevalecer sobre a aflição da incerteza. Deleitam-se na busca de
novas e ainda não apreciadas experiências, são de bom grado seduzidos pelas
propostas de aventura e, de um modo geral, a qualquer fixação de compromisso,
preferem ter opções abertas. Nessa mudança de disposição, são ajudados e
favorecidos por um mercado inteiramente organizado em torno da procura o
consumidor e vigorosamente interessado em manter essa procura permanentemente
insatisfeita, prevenindo, assim, a ossificação de quaisquer hábitos adquiridos,
e excitando o apetite dos consumidores para sensações cada vez mais intensas e
sempre novas experiências. (pág.22 e 23)
As diferenças se
amontoam umas sobre as outras, distinções anteriormente não consideradas
relevantes para o esquema global das coisas e portanto invisíveis agora se
impõem à tela do Lebenswelt. Diferenças outrora consagradas como
não-negociáveis são lançadas inesperadamente no melting-pot ou se tornam
objetos de disputa. Quadros de competição se sobrepõem ou colidem, excluindo
toda oportunidade de um mapa de levantamento topográfico “oficial” e
universalmente aglutinante. (pág.23)
II
A criação e anulação dos estranhos
Todas as
sociedades produzem estranhos. Mas cada espécie de sociedade produz sua própria
espécie de estranhos e os produz de sua própria maneira, inimitável. Se os
estranhos são as pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou
estético do mundo – num desses mapas, em dois ou em todos três; se eles,
portanto, por sua simples presença, deixam turvo o que deve ser transparente,
confuso o que deve ser uma coerente receita par a ação, e impedem a satisfação
de ser totalmente satisfatória; se eles poluem a alegria com a angústia, ao
mesmo tempo que fazem atraente o fruto proibido; se, em outras palavras, eles
obscurecem e tornam tênues as linhas de fronteira que devem ser claramente
vistas; se, tendo feito tudo isso, geram a incerteza que por sua vez dá origem
ao mal-estar de se sentir perdido – então cada sociedade produz esses
estranhos. Ao mesmo tempo que traça suas fronteiras e desenha seus mapas
cognitivos, estéticos e morais, ela não pode senão gerar pessoas que encobrem
limites julgados fundamentais para a sua vida ordeira e significativa, sendo
assim acusadas de causar a experiência do mal-estar como a mais dolorosa e menos
tolerável. (pág.27)
Nessa guerra
(para tomar emprestados os conceitos de Lévi-Strauss), duas estratégias
alternativas, mas também complementares, foram intermitentemente desenvolvidas.
Uma era antropofágica: aniquilar os estranhos devorando-os depois,
metabolicamente, transformando-os num tecido indistinguível do que já havia.
Era esta a estratégia da assimilação: tornar a diferença semelhante; abafar as
distinções culturais ou lingüísticas: proibir todas as tradições e lealdades,
exceto as destinadas a alimentar a conformidade com a ordem nova e que tudo
abarca; promover e reforçar uma medida, e só uma, para a conformidade. A outra
estratégia era antropoêmica: vomitar os estranhos, bani-los dos limites do
mundo ordeiro e impedi-los de toda comunicação com os do lado de dentro. Era
essa a estratégia da exclusão – confirmar os estranhos dentro das paredes
visíveis dos guetos, ou atrás das invisíveis, mas não menos tangíveis,
proibições da comensalidade, do conúbio e do comércio;* “purificar” – expulsar os
estranhos para além das fronteiras do território administrado ou administrável;
ou quando nenhum das duas medidas fosse factível, destruir fisicamente os
estranhos.
A expressão mais
comum das duas estratégias foi o notório entrechoque entre as versões liberal e
racista-nacionalista do projeto moderno. As pessoas são diferentes, dá a
entender o projeto liberal, mas são diferentes por causa da diversidade das
tradições locais e particularistas em que elas crescem e amadurecem. São
produtos da educação, criaturas da cultura e, por isso, flexíveis e dóceis de
serem reformadas. Com a universalização progressiva da condição humana, que
significa nada mais do que a erradicação de todo paroquialismo junto com os
poderes empenhados em preservá-lo, e que conseqüentemente deixa o
desenvolvimento humano livre do imbecilizante impacto do acidente de nascer,
essa diversidade predeterminada, mais forte do que a escolha humana, se
enfraquecerá. Não é assim – objetou a opinião racista-nacionalista. (pág.28 e
29)
Liberdade,
Incerteza, E Liberdade Da Incerteza
A viscosidade
dos estranhos, repitamos, é o reflexo de sua própria falta de poder. É essa sua
carência de poder que se cristaliza nos seus olhos como a terrível força dos
estranhos. O fraco encontra e enfrenta o fraco, mas ambos se sentem como Davi
combatendo Golias. Cada um é “viscoso” para o outro; mas cada um combate a
viscosidade do outro em nome da sua própria pureza. (pág. 42)
A Teoria Da Diferença, Ou O Sinuoso Caminho Para a
Humanidade Partilhada
Há, porém, uma
genuína oportunidade emancipadora na pós-modernidade, a oportunidade de depor
as armas, suspender as escaramuças de fronteira empreendidas para manter o
estranho afastado, desmontar o minimuro de Berlim erigido diariamente e
destinado a manter distância, separar. Essa oportunidade não se acha na
celebração da etnicidade nascida de novo e na genuína ou inventada tradição
tribal, mas em levar à conclusão a obra do “desencaixe” da modernidade,
mediante a concentração no direito de escolher a identidade de alguém como a
única universalidade do cidadão e ser humano, na suprema e inalienável
responsabilidade individual pela escolha – e mediante o desnudamento dos
complexos mecanismos administrados por estado ou tribo e que têm em mira
despojar o individuo dessa liberdade de escolha e dessa responsabilidade. A
unicidade humana depende dos direitos do estranho, não do problema sobre o que
– o estranho ou a tribo – está habilitando a decidir quem são os estranhos.
(pág.46 e 47)
Observamos que o
cenário pós-moderno não amplia tanto a dimensão total da liberdade do
individuo, quanto a redistribui duma forma crescentemente polarizada:
intensifica-se entre os alegre e solicitamente seduzidos, enquanto aguça quase
para além da existência entre os despojados e panopticamente dirigidos. Com
essa polarização desenfreada, pode-se esperar que a atual dualidade do status
socialmente produzido dos estranhos continue inalterada. Num pólo, a estranheza
(e a diferença, em geral) continuará sendo edificada como a fonte da experiência
agradável e da satisfação estética; no outro, como a aterradora corporificação
da viscosidade desabridamente ascensional da condição humana e como a efígie
para toda a futura calcinação ritual de seus horrores. E o poder político
oferecerá sua habitual partilha de oportunidades para o curto-circuito dos
pólos: para proteger sua própria emancipação através da sedução, os próximos do
primeiro pólo procurarão o domínio pelo medo sobre os do segundo pólo ajudando
e favorecendo, assim, sua indústria suburbana de horrores. (pág.47 e 48)
V
Arrivistas e parias: os heróis e as vítimas da
modernidade
Socialmente, a
modernidade trata de padrões, esperança e culpa. Padrões – que acenam, fascinam
ou incitam, mas sempre se estendendo, sempre um ou dois passos à frente dos
perseguidores, sempre avançando adiante apenas um pouquinho mais rápido do que
os que lhes vão no encalço. E sempre prometendo que o dia seguinte será melhor
do que o momento atual. E sempre mantendo a promessa viva e imaculada, já que o
dia seguinte será eternamente um dia depois. E sempre mesclando a esperança de
alcançar a terra prometida com a culpa de não caminhar suficientemente
depressa. A culpa protege a esperança da frustração; a esperança cuida para que
a culpa nunca estanque. “L’homme est coupable”, observe Camus, esse
inigualavelmente perspicaz correspondente da terra da modernidade, “mais il
I’est de n’avoir su tirer de lui-même”.[2]
Psiquicamente, a
modernidade trata da identidade: da verdade de a existência ainda não se dar
aqui, ser uma tarefa, uma missão, uma responsabilidade. Como o restante dos
padrões, a identidade permanece obstinadamente à frente: é preciso correr,
puxado pela esperança e impelido pela culpa, embora a corrida, por mais rápida
que seja, pareça estranhamente arrastada. Precipitar-se para a frente, em
direção à identidade perpetuamente tentadora e perpetuamente inconsumada,
assemelha-se a recuar da defeituosa e ilegítima realidade do presente.
Tanto social quanto psiquicamente, a
modernidade é irremediavelmente autocrítica: um exercício infindável e, no fim,
sem perspectivas, de autocancelamento e auto-invalidação. Verdadeiramente
moderna não é a presteza em retardar o contentamento, mas a impossibilidade de
ficar contente. Toda realização é meramente uma pálida cópia do seu modelo.
“Hoje” é meramente uma incipiente premonição de amanhã; ou, antes, seu reflexo
inferior e desfigurado. O que é é cancelado de antemão por o que virá. Mas
extrai o seu alcance e o seu sentido – seu único sentido – desse cancelamento.
Em outras palavras
a modernidade é a impossibilidade de permanecer fixo. Ser moderno significa
estar em movimento. (pág.91 e 92)
Os moradores
mais antigos odeiam os arrivistas, por despertarem as lembranças e premonições
que se esforçam, com empenho, para fazer dormir. Mas eles dificilmente podem
passar sem arrivistas, sem que alguns deles sejam estigmatizados como
arrivista, excluídos, acusados de trazer em seus corpos o bacilo da
inquietação: é graças a essa parte estigmatizada, e somente a ela, que o todo
pode achar que os sonhos ruins e as premonições mórbidas são maledicências de
outras pessoas e não se lhes aplicam inteiramente. O arrivista necessita de um
arrivista afim de não se sentir um arrivista. E, assim, os nômades disputam com
outros nômades o direito de fornecer permissões de residência uns aos outros. É
a única maneira de fazerem com que a sua própria residência pareça segura. A
única maneira por que podem fixar o tempo que se recusa a permanecer imóvel é
marcar o espaço e proteger as marcas para que não sejam apagadas ou deslocadas.
Pelo menos, tal é a sua desesperada esperança. (pág.93)
Ter aprendido as
regras do jogo não significa, entretanto, ser mais sagaz. Significa ainda menos
ser bem-sucedido. Pouco podem fazer os arrivistas para alterar sua difícil
situação, por mais ardorosamente que desejam fazê-lo. “Não se pode modificar a
própria imagem: nem o pensamento, nem a liberdade, mentira, náusea ou
repugnância podem ajudar alguém a sair da sua pele peculiar”.[3]
No entanto, sair da sua pele peculiar é o que se espera que a pessoa faça.
Pede-se aos arrivistas, orientados, controlados e avaliados por critérios
exteriores, que provem a legalidade da sua presença sendo orientados,
controlados e avaliados por si próprios e sendo vistos assim. (pág.95)
Para os arrivistas,
o jogo não pode ser vencido, pelo menos enquanto continuar a ser disputado
segundo as regras estabelecidas, ao passo que a saída do jogo significa
rebelião contra as regras; na verdade, uma inversão das regras. (pág.96)
Talvez nós
vivamos em uma era pós-moderna, talvez não. Mas de fato vivemos em uma era de
tribos e tribalismo. É o tribalismo, miraculosamente renascido, que injeta
espírito e vitalidade no louvor da comunidade, na aclamação de fazer parte, na
apaixonada busca da tradição. Neste sentido, pelo menos, o longo desvio da
modernidade levou-nos aonde nossos antepassados outrora principiaram. Ou assim
talvez pareça.
O fim da
modernidade? Não necessariamente. Sob outro aspectos, afinal, a modernidade
está muito conosco. Está conosco na forma do mais definidor dos seus traços
definidores: o da esperança, a esperança de tornar as coisas melhores do que
são – já que elas, até então, não são suficientemente boas. De igual maneira
pregadores vulgares de tribalismo desadornado e elegantes filósofos das formas
de vida comunalmente baseadas ensinam-nos o que fazem, em nome de mudar as
coisas para melhor. “Qualquer benefício que as idéias de ‘objetividade’ e
‘transcendência’ tenham feito à nossa cultura poderia ser obtido igualmente bem
pela idéia de comunidade”, afirma Rorty – e é precisamente isso que torna a
última idéia atraente para os que procuravam ontem os caminhos universais para
um mundo adequado à habitação humana. Projetos racionais de perfeição
artificial, e as revoluções destinadas a imprimi-los na configuração do mundo,
fracassaram abominavelmente em cumprir sua promessa. Talvez as comunidades, cordiais e hospitaleiras, cumpram
o que elas, as frias abstrações, não puderam cumprir. Ainda queremos que o
trabalho seja feitos. Apenas deixamos cair as ferramentas que se revelam
inúteis e procuramos obter outras- que, quem sabe, ainda possam realizar a
tarefa. Pode-se dizer que ainda concordamos em que a felicidade conjugal é uma
coisa boa; somente já não apoiamos a opinião de Tolstoi de que todos os
casamentos felizes são felizes da mesma forma.
Sabemos
perfeitamente bem por que não gostamos das ferramentas que abandonamos. Durante
mais ou menos dois séculos, pessoas que mereciam ou reclamavam ser ouvidas com
atenção e respeito contaram a história de um hábitat humano que curiosamente
coincidia com o do estado político e do domínio de seus poderes legislativos e
ambições. O mundo era, na memorável expressão de Parsons, o espaço
“principalmente coordenado” – o domínio sustentado, ou prestes a ser
sustentado, por princípios uniformes, mantidos
pelos esforços conjuntos dos legisladores e dos executantes, armados ou
desarmados, da sua vontade. Era esse espaço artificial que era descrito como um
hábitat que “supre naturalmente” as necessidades humanas e – de forma mais
importante – supre a necessidade de satisfazer as necessidades. A
sociedade “principalmente coordenada”,
talvez racionalmente projetada e controlada, devia ser essa boa sociedade que a
modernidade se pôs a construir. (pág.101 e 102)
VI
Turistas e vagabundos: os heróis e as vítimas da
pós-modernidade
A projeção do
espacial, distinção contemporânea sobre o contínuo do tempo, reapresentação da
heterogeneidade como série ascendente de períodos de tempo, talvez tenha sido o
mais notável e também possivelmente o mais fecundo aspecto da mentalidade
moderna. Mas as metáforas transformam ambos os lados que entram na relação
metafórica. A projeção do espaço sobre o tempo forneceu ao tempo traços que só
o espaço possui “naturalmente”: a época moderna teve direção, exatamente como
qualquer itinerário no espaço. O tempo progrediu do obsoleto para o atualizado,
e o atualizado foi desde o início a obsolescência futura. O tempo tinha sua
“frente” e seu “atrás”: uma pessoa era incitada e empurrada a andar “para a
frente com o tempo”. Os turbulentos e auto-homenageados anciões da cidade que
construíram a prefeitura de Leeds na metade do século XIX, como o monumento a
sua própria e milagrosa ascensão no tempo, gravaram seus princípios morais por
todos os lados das paredes da sua sala de reunião. Perto de outros mandamentos,
havia um mais notável pela sua confiante brevidade “Avante!” Aqueles que
projetaram a prefeitura não tinham dúvidas onde era “avante”.
E, assim, os
homens e as mulheres modernos viveram num tempo-espaço com estrutura, um
tempo-espaço rijo, sólido, durável – exatamente a correta referência de nível
para traçar e controlar o caráter caprichoso e volátil da vontade humana – mas
também um duro recipiente em que os atos humanos podiam achar-se sensíveis e
seguros. Nesse mundo estruturado, uma pessoa podia perder-se, mas também podia
achar seu caminho e chegar exatamente aonde pretendia estar. A diferença entre
se perder e chegar era feita de conhecimento e determinação: o conhecimento da
estrutura do tempo-espaço e a determinação de seguir, fosse qual fosse, o
itinerário escolhido. Sob tais circunstância, a liberdade era de fato a
necessidade conhecida – mais a decisão de agir com esse conhecimento.
A estrutura
estava em seu lugar antes de qualquer proeza humana começar, e durava o tempo
suficiente, inabalável e inalterada, para levar a cabo a proeza. Ela antecedeu
toda realização humana, mas também fez a realização possível: transformou a
luta pela vida de cada um, antes uma disputa despropositada, numa realização
coerente. A cada feito se podia acrescer outro, seguir a estrada passo a passo,
cada um destes levando a outro, graças à estrada; podia-se construir a
realização de uma pessoa da base para cima, desde os alicerces ao telhado. Era
esse o mundo da peregrinação por toda a vida, da vocação, ou – como a Coruja de
Minerva devia proclamar mais tarde pela boca de Jean-Paul Sartre – do “projeto
de vida”. (pág.110 e 111)
O mundo
construído de objetos duráveis foi substituído pelo de produtos disponíveis
projetados para imediata obsolescência. Num mundo como esse, as identidades
podem ser adotadas e descartadas Omo uma troca de roupa. O horror da nova
situação é que todo diligente trabalha de construção pode mostrar-se inútil; e
o fascínio da nova situação, por outro lado, se acha no fato de não estar
comprometida por experiências passadas, de nunca ser irrevogavelmente anulada,
sempre “mantendo as opções abertas”. Mas o horror e o fascínio, de igual modo,
fazem a vida como peregrinação dificilmente factível como uma estratégia e
improvável de ser escolhida como tal. Não por muitos, afinal de contas. E não
com grande probabilidade de sucesso.
No jogo da vida
dos homens e mulheres pós-modernos, as regras do jogo não param de mudar no
curo da disputa. A estratégia sensível, portanto, é manter curto cada jogo – de
modo que um jogo da vida sensatamente disputado requer a desintegração de um
jogo que tudo abarca, com prêmios enormes e dispendiosos e não demasiadamente
preciosos. Para novamente citar Chistopher Lasch, a determinação de viver um
dia de cada vez, e de retratar a vida diária como uma sucessão de emergências
menores, se tornaram os princípios normativos de toda estratégia de vida
racional.
Manter o jogo
curto significa tomar cuidado com os compromissos a longo prazo. Recusar-se a
“se fixar” de uma forma ou de outra. Não se prender a um lugar, por mais
agradável que a escala presente possa parecer. Não se ligar a vida a uma
vocação apenas. Não jurar coerência e lealdade a nada ou a ninguém. Não controlar
o futuro, mas se recusar a empenhá-lo: tomar cuidado para que as conseqüências
do jogo não sobrevivam ao próprio jogo e para renunciar à responsabilidade pelo
que produzem tais conseqüências. Proibir o passado de se relacionar com o
presente. Em suma, cortar o presente nas duas extremidades, separar o presente
da história. Abolir o tempo em qualquer outra forma que não a de um ajuntamento
solto, ou uma seqüência arbitrária, de momentos presentes: aplanar o fluxo do
tempo num presente contínuo. (pág.112 e 113)
Adequação – a
capacidade de se mover rapidamente onde a ação se acha e estar pronto a
assimilar experiências quando elas chegam – tem precedência sobre saúde, essa
idéia do padrão de normalidade e de conservar tal padrão estável, incólume.
Toda demora, também a “demora da satisfação”, perde seu significado: não há
nenhum tempo como seta legado para medi-la.
E desse modo a
dificuldade já não e descobrir, inventar, construir, convocar (ou mesmo
comprar) uma identidade, mas como impedi-la de ser demasiadamente firme e de
aderir depressa demais ao corpo. (pág.113 e 114)
A figura do
turista é a epítome dessa evitação. De fato, os turistas que valem o que comem
são os mestres supremos da arte de misturar os sólidos e desprender o fixo.
Antes e acima de tudo, eles realizam a façanha de não pertencer ao lugar que
podem estar visitando: é deles o milagre de estar dentro e fora do lugar ao
mesmo tempo. O turista guarda sua distância, e veda a distância de se reduzir à
proximidade. (pág.114)
Viajando despreocupadamente,
com apenas uns poucos pertences necessários à garantia contra a inclemência dos
lugares estrangeiros, os turistas podem sair de novo a caminho, de uma hora
para a outra, logo que as coisas ameaçam escapar de controle, ou quando seu
potencial de diversão parece ter-se exaurido, ou quando aventuras ainda mais
excitantes acenam de longe. O nome do é mobilidade: a pessoa deve poder mudar
quando as necessidades impelem, ou os sonhos o solicitam. A essa aptidão os
turistas dão o nome de liberdade, autonomia ou independência, e prezam isso
mais do que qualquer outra coisa, uma vez que é a conditio sine qua non de tudo
o mais que seus corações desejam. Este é também o significado de sua exigência
mais freqüentemente ouvida: “Preciso de
mais espaço”. Ou seja, a ninguém será permitido discutir o meu direito de sair
do espaço em que atualmente estou trancado. (pág.114)
Por mais longo
que cada intervalo da viagem possa mostrar-se no fim, é vivido, em cada
momento, como uma estada de pernoite. Só as mais superficiais das raízes, se
tanto, são lançadas. Só relações epidérmicas, se tanto, são iniciadas com as
pessoas dos lugares. Acima de tudo, não há nenhum comprometimento do futuro,
nenhuma incursão em obrigações de longo prazo, nenhuma admissão de alguma coisa
que aconteça hoje para se ligar ao amanhã. As pessoas do lugar, afinal, não são
as zeladoras de estalagens do meio do caminho, que os peregrinos tinham de
visitar outra vez e outra vez, a cada um efeito peregrinação: as pessoas do
lugar, com que os turistas deparam, eles literalmente “tropeçam com” elas
acidentalmente, como um efeito colateral do empurrão de ontem, que antes de
ontem ainda não era imaginado ou antecipado, e que podia facilmente ser
diferente do que era, e levar o turista
para algum outro lugar. (pág.115)
Tudo isso
oferece ao turista a sensação recompensadora de “estar sob controle”. Não é
este, para estar seguro, um controle no sentido agora antiquado, fora de moda,
e heróico, de quem grava a sua forma no mundo, refazendo o mundo em sua própria
imagem, ou querendo-o e conservando-o como tal. Este não é senão o que se pode
chamar o “controle situacional” – a aptidão para escolher onde e com que partes
do mundo “interfacear”, e quando desligar a conexão. Ligar e desligar não
deixam no mundo qualquer marca duradoura: na verdade, graças à facilidade com
que as chaves funcionam, o mundo (como o turista o conhece) parece
infinitamente flexível, dócil e esboroável. É improvável manter-se qualquer
configuração por muito tempo. (pág.115)
Um evento que,
em princípio, não tem quaisquer conseqüências que sobrevivam à sua própria
duração é chamado um episódio. Como os próprios turistas, o episódio – assim
diz Milan Kundera – passa rapidamente na história, sem ser parte dela. O
episódio é um evento fechado em torno de si mesmo. Cada novo episódio é, por
assim dizer, um começo absoluto, mas seu fim é igualmente absoluto: “não ser
levada adiante” é a ultima frase da história (mesmo se, para tomar a situação
do incauto ainda mais amarga, for escrita com tinta invisível). (pág.116)
Suprimir os
episódios, cortar pela raiz as plantas novas das conseqüências futuras,
portanto, supõe um esforço constante, e um esforço constantemente inclusivo com
isso. É esta uma mosca imunda no ungüento, sob outros aspectos saboroso, de uma
vida em todos os momentos vivida com um episódio. Ou talvez seja um buraco,
através do qual o mundo exterior repetidamente força o espaço firmemente
controlado – anunciado, desse modo, o logro do controle do turista. É por isso
que a vida do turista não é um mar de rosas. Há um preço a ser pago pelos
prazeres que ela traz. A maneira como o turista põe de lado certas incertezas
ocasiona suas próprias incertezas.
Os turistas
iniciam suas viagens por escolha – ou, pelo menos, assim eles pensam. Eles
partem porque acham o lar maçante ou não suficientemente atrativo,
demasiadamente familiar e contendo demasiadamente poucas surpresas, ou porque
esperam encontrar em outro lugar uma aventura mais excitante e sensações mais
intensas do que a rotina doméstica jamais é capaz de transmitir. (pág.116)
Os turistas se
tornam viajantes e colocam os sonhos da nostalgia acima das realidades da casa
– porque eles exigem isso porque eles o consideram a mais razoável estratégia
de vida “sob as circunstâncias”, ou porque foram seduzidos pelos prazeres
verdadeiros ou imaginários de uma vida de quem acumula sensações. Mas nem todos
os viajantes estão em movimento por preferirem estar em movimento a ficar em
seu lugar. Muitos talvez se recusassem a se aventurar numa vida de perambulação
se fossem solicitados a isso, mas eles não foram inicialmente solicitados. Se
estão em movimento, é porque foram impelidos por trás – tendo sido,
primeiramente, desenraizados por uma força demasiadamente poderosa, e muitas
vezes demasiadamente misteriosa, para que se lhe resista. Vêem sua situação
como qualquer coisa que não a manifestação da liberdade. Liberdade, autonomia,
independência – se elas de algum modo aparecem no seu vocabulário –
invariavelmente vêm no tempo futuro. Para eles, estar livre significa não ter
de viajar de um lado para o outro. Ter um lar e ser permitido ficar dentro
dele. São esses os vagabundos, luas escuras que refletem o brilho de sóis
brilhantes, os mutantes da evolução pós-moderna, os refugos inaptos da brava espécie
nova. Os vagabundos são os restos do mundo que se dedicaram aos serviços dos
turistas.
Os turistas se
demoram ou se movem segundo o desejo de seus corações. Abandonam o local quando
novas oportunidades não experimentadas acenam em outra parte. Os vagabundos,
porém, sabem que não ficarão por muito tempo, por mais intensamente que o
desejem, uma vez que em lugar nenhum em que parem são bem-vindos: se os
turistas se movem porque acham o mundo irresistivelmente atrativo, os
vagabundos se movem porque acham o mundo insuportavelmente inóspito. Eles vão
para as estradas não quando arrancaram a última gota de diversão que as pessoas
do lugar podia oferecer, mas quando estas perdem a paciência e se recusam a
tolerar sua presença estranha. Os turistas viajam porque querem; os vagabundos,
porque não têm nenhuma outra escolha. Os vagabundos, pode-se dizer, são
turistas involuntários. Mas a noção de “turista involuntário” é uma contradição
em termos. Ainda que muito da estratégia do turista possa ser uma necessidade
num mundo marcado por paredes movediças e por estradas instáveis, a liberdade
de escolha é o corpo vivo do turista. Subtraia-se isso e a atração, a poesia e,
na verdade, a afabilidade da vida do turista estão quase liquidadas.
Uma palavra de
advertência: turistas e vagabundos são as metáforas da vida contemporânea.
(pág.117 e 118)
A oposição entre
os turistas e os vagabundos é a maior, a principal divisão da sociedade
pós-moderna. Estamos todos traçados num contínuo estendido entre os pólos do “turista
perfeito” e o “vagabundo incurável” – e os nossos respectivos lugares entre os
pólos são traçados segundo o grau de liberdade que possuímos para escolher
nossos itinerários de vida. A liberdade de escolha, eu lhes digo, é de longe,
na sociedade pós-moderna, o mais essencial entre os fatores de estratificação.
Quanto mais liberdade de escolha se tem, mais lata a posição alcançada na
hierarquia social pós-moderna. As diferenças sociais pós-modernas são feitas
com a amplitude e estreiteza da extensão de opções realistas.
Mas o vagabundo
é o alter ego do turista – exatamente como o miserável é o alter ego do rico, o
selvagem o alter ego do civilizado, ou o estrangeiro o alter ego do nativo. Ser
um alter ego significa servir como um depósito de entulho dentro do qual todas
as premonições inefáveis, os medos inexpressos, as culpas e autocensuras
secretas, demasiadamente terríveis para serem lembrados, se despejam; ser um
alter ego significa servir como pública exposição do mais íntimo privado, como
um demônio interior a ser publicamente exorcizado, uma efígie em que tudo o que
não pode ser suprimido pode ser queimado. O alter ego é o escuro e sinistro
fundo contra o qual o eu purificado pode brilhar.
Não admira que a metade turística da sociedade
pós-moderna vacile na medida em que se interesse pela outra metade, a do
vagabundo. Este zomba do estilo turístico, e zombar significa ridículo.)
(pág.118 e 119)
VIII
O significado da arte e arte do significado
É a aceitação
social de conexões necessárias entre os signos e certos significados que faz
uma linguagem. Mas a arte contemporânea parece preocupar-se, mais do que
qualquer outra coisa, em desafiar, reptar e derrubar tudo o que a aceitação
social, o aprendizado e a formação solidificaram em esquemas de “necessária”
conexão; é como se todo artista, e toda obra de arte, lutasse para construir
uma nova obra de arte primitiva, esperando e desesperando convertê-la numa
linguagem consensual e genuína, isto é, dentro de um veículo de comunicação –
mas retrocedesse em pânico num novo deserto, ainda não domesticado pela
compreensão, no momento em que o sonho chega perto de sua realização... Como
François Lyotard o exprimiu, se desde o começo da modernidade as artes
procurassem os caminhos da representação do “sublime”, o que por sua natureza
desafia a representação, a procura do sublime pelos artistas moderno moldaria
uma “estética nostálgica”: eles postulariam o não-representável apenas como um
“conteúdo ausente”. Os artistas pós-modernos, por outro lado, lutam por
incorporar o não-representável na própria apresentação. (pág.132 e 133)
As normas pelas
quais a obra foi construída podem ser encontradas, caso possível, só ex post
facto: no fim do ato da criação, mas também no fim da leitura ou exame – uma
vez que cada ato de criação é único e sem precedentes, não se referindo a
quaisquer antecedentes, a não ser citando-os, isto é, arrancando as citações de
sua situação original e, assim, arruinando, em vez de reafirmar, seu
significado original. As regras estão perpetuamente se fazendo, sendo buscadas
e encontradas, cada vez de uma forma analogamente única e como um evento
analogamente único, em cada sucessivo encontro com os olhos, os ouvidos e a
mente do leitor, espectador, ouvinte. Nada da forma em que acontece tais regras
serem encontradas foi de antemão determinado pelas normas ou hábitos
existentes, autorizadamente sancionadas ou aprendidas a se reconhecerem como
sendo corretas. Nem tais regras, uma vez encontradas ou compostas add hoc, se
tornarão obrigatórias para leituras subseqüentes. A criação e a recepção, do
mesmo modo, são os processos da descoberta permanente e nunca será provável uma
descoberta descobrir tudo o que há para ser descoberto, ou descobri-lo de uma
forma que frustre a possibilidade de uma descoberta inteiramente diversa... A
obra do artista pós-moderno é um esforço heróico de dar voz ao inefável, e uma
conformação tangível ao invisível, mas também (obliquamente, através da recusa
a reafirmar os cânones socialmente legitimizados dos significados e suas
expressões) uma demonstração de que é possível mais do que uma voz ou forma e,
desse modo, um constante convite a se unir no incessante processo de
interpretação, que também é o processo de criação do significado. (pág.133 e
134)
O significado da
arte pós-moderna, pode-se dizer, é estimular o processo de elaboração do
significado e defendê-lo contra o perigo de, algum dia, se desgastar até uma
parada; alertar para a inerente polifonia do significado e para a complexidade
de toda interpretação; agir como uma espécie de anticongelante intelectual e
emocional, que previna a solidificação de qualquer invenção a meio caminho para
um cânone gelado que detenha o fluxo de possibilidades. Em vez de reafirmar a
realidade como um cemitério de possibilidades não provadas, a arte pós-moderna
traz para o espaço aberto o perene inacabamento dos significados e, assim, a
essencial inexauribilidade do reino do possível. Pode-se mesmo dar um passo
adiante e sugerir que o significado da arte pós-moderna é a desconstrução do
significado; mais exatamente, revelando o segredo do significado, o segredo a
moderna prática teórica tentou firmemente esconder ou deturpar. Esse
significado só “existe” no processo da interpretação e da crítica, e morre
completamente com ele. (pág.136)
Uma vez que a liberdade
toma o lugar da ordem e do consenso como critério da qualidade de vida, a arte
pós-moderna de fato ganha muitos pontos. Ela acentua a liberdade por manter a
imaginação desperta e, assim, manter as possibilidades vivas e jovens. Também
acentua a liberdade ao manter os princípios fluidos, de modo que não se
petrificassem na morte e nas certezas enceguecedoras. (pág.136)
Os artistas
pós-modernos são, como os seus predecessores, uma “vanguarda”, mas num sentido
inteiramente diverso de como os modernistas pensavam sobre seu papel e de como
desejavam que este fosse considerado. Em poucas palavras, pode-se dizer que, se
a vanguarda modernista se ocupava de marcar as trilhas que levavam a um
consenso “novo e aperfeiçoado”, o vagabundo pós-moderno consiste não exatamente
em desafiar e debilitar a forma existente e reconhecidamente transitória de
consenso, mas em solapar a própria possibilidade de qualquer acordo futuro,
universal e, desse modo, sufocante. (pág.138 e 139)
IX
Sobre a verdade, a ficção e a incerteza
Como expressou
William James em 1912,[4]
o verdadeiro é “somente um expediente na nossa maneira de pensar”. Na
interpretação de Richard Rorty, o papel que James atribuiu a esse “expediente”
consistia em elogiar – e, por meio de elogio, endossar – as crenças aceitas.
Segundo esse ponto de vista, que compartilho, a palavra “verdade” simboliza nos
nossos usos uma determinada atitude que adotamos, mas acima de tudo desejamos
ou esperamos que outros adotem, para com o que é dito ou acreditado – em vez de
uma relação entre o que é dito e determinada realidade não-verbal (como Locke
primeiro sugeriu – entre idéias e os objetos que elas correta ou
insatisfatoriamente representam). É necessário salientar, contudo, que a forma
específica de endosso efetuada pelo “expediente da verdade” consiste
precisamente em asseverar que, em determinadas crenças, existe mais do que a
nossa aprovação – sendo esse “mais”, na maioria dos casos, a suposta identidade
entre o que as crenças asseveram e esse algo sobre que nos informam, ou uma
coesão exemplar entre a crença em questão e outras crenças comumente
incontroversas; que existem, em outras palavras, razões para aprovação mais
sólidas e fidedignas do que o caprichoso e instável acordo entre os crentes –
de modo que as crenças em questão possam não ser simplesmente aprovadas, mas
aprovadas com confiança e segurança, e adotadas com firmeza suficiente para
rejeitar outros pontos de vistas alternativos ou francamente contrários sobre o
assunto. (pág.142)
A noção de
verdade pertence à retórica do poder. Ela não tem sentido a não ser no contexto
da oposição. E quando, por determinadas razões, é importante para alguns ou
todos os adversários demonstrar ou insinuar para alguns ou todos os adversários
demonstrar ou insinuar que é o outro lado que está errado. Sempre que a
veracidade de uma crença é asseverada é porque a aceitação dessa crença é
contestada, ou se prevê que seja contestável. A disputa acerca da veracidade ou
falsidade de determinadas crenças é sempre simultaneamente o debate acerca do
direito de alguns de falar com a autoridade que alguns outros deveriam
obedecer; a disputa é acerca do estabelecimento ou reafirmação das relações de
superioridade e inferioridade, de dominação e submissão, entre os detentores de
crenças.
A teoria da
verdade, segundo essa avaliação, trata de estabelecer superioridade sistemática
e, portanto, constante e segura de determinadas espécies de crenças, sob o
pretexto de que a elas se chegou graças a um determinado procedimento
confiável, ou que é assegurado pela espécie de pessoas em que se pode confiar
que o sigam. Necessita-se de uma teoria
da verdade em uma ou duas situações: ou as posições de diversos participantes
ativos, supostos ou potenciais do debate são desiguais e sua desigualdade tem
de ser justificada a fim de ser defendida e preservada, ou a dominação deve
ainda ser estabelecida e a competência de determinados agentes que no momento
afirmam falar com autoridade tem de ser, para esse objetivo, contestada e
desacreditada. (pág.143)
Toda teoria da
verdade segue o modelo de Platão, em ser uma teoria sobre por que e como os
poucos escolhidos conseguem emergir da caverna e enxergar as coisas como elas
verdadeiramente são, mas também e, talvez acima de tudo, uma teoria sobre por
que todos os outros não conseguem fazer o mesmo sem serem guiados e por que
tendem a resistir à direção e permanecer dentro da caverna, em vez de explorar
o que é visível somente à luz do sol, no lado de fora. (pág.144)
Uma vez que o
tipo de erro previamente apresentado como o alvo da barragem filosófica, sob o
codinome de senso comum, é considerado além do alcance do debate filosófico e
além dos limites do âmbito legítimo da ascendência filosófica, são cada vez
mais as teorias da verdade de outros filósofos que fornecem a causa para afiar
as próprias lâminas e refinar o próprio arsenal retórico. Essa outra linha de
frente não é necessariamente nova. (pág.147)
Pode-se dizer
que os filósofos hoje lutam – paradoxalmente, se pensa a respeito – não tanto
acerca da única e verdadeira (única porque verdadeira) teoria da verdade, mas
acerca da verdadeira, e por conseguinte única, teoria das verdades (no plural);
e porque a pluralidade das verdades deixou de ser considerada um irritante
temporário, logo destinado a ser deixado para trás, e porque a possibilidade de
que diferentes opiniões podem ser não apenas simultaneamente julgadas
verdadeiras, mas ser de fato simultaneamente verdadeiras – a teoria das
verdades atualmente no centro da atenção dos filósofos parece ser privada de
muito da sua função de disputa no tocante ao status de conhecimento
não-filosófico.
A tarefa da
razão filosófica parece estar se deslocando de legislar acerca do modo correto
de separar a verdade da inverdade para legislar acerca do modo correto de
traduzir entre línguas distintas, cada uma gerando e sustentando suas próprias
verdades. (pág.147e 148)
A auto-infligida
redução de visão da filosofia ocidental originou-se do ascetismo sacerdotal dos
filósofos que buscavam o manto de cientistas, como a mais requintada recompensa
por seu auto-sacrifício, e consideravam a auto-imolação o meio mais garantido
de consegui-la. Eles retratavam a realidade que descreviam – a realidade da sua
descrição – por arremedo. Declararam guerra à irreverência e espontaneidade,
negaram direitos domiciliares a qualquer coisa que não pudesse comprovar, ou não
comprovasse, as bases convenientemente atestadas para sua presença, e tapavam
firmemente os ouvidos ao som de riso que ecoava nos obscenos, suspeitos ou
indecorosos grupos artísticos. Eram representantes legais da meia-verdade que
se esforçavam para provar seu título de propriedade à total e única verdade que
existe. A outra metade, contudo, sobreviveu ao julgamento e conservou o vigor
muito depois de o litígio perder a força e esgotar o prazo. (pág.150)
Num mundo
dominado pelo medo mortal de tudo o que é contingente, opaco e inexplicável, a
ficção artística é uma contínua sessão de treinamento para viver com o
ambivalente e o misterioso. Ela ensaia a tolerância e equanimidade para com o
inconstante, o não inteiramente previsível. Incentiva a reconciliação com a
contingência da vida e a polifonia de verdades. (pág.150 e 151)
Os homens e
mulheres pré-modernos foram preparados para encarar a diferença com
equanimidade e aceitar a predeterminada pluralidade dos seres como parte
integral da criação de Deus. Examinados da nossa atual perspectivas, eles
parecem ter sido tolerantes com a diferença – mas essa era a espécie de
tolerância que se expressava, na maioria das vezes, em desejar e incitar a
todos para “se ater à própria classe”, se manter a distância, reduzir o
encontro entre as classes a padrões estritamente institucionalizados ou
ritualizados e, quanto ao mais, suprimir toda curiosidade mórbida acerca de
outras formas de humanidade, por mais fortemente distintas que viessem a ser.
Mas observemos que tal atitude só podia ser preservada enquanto subsistissem
classes mais ou menos claramente definidas a que uma pessoa pudesse “ater-se”.
Com o advento do tumulto moderno, a fragmentação das tradições e comunidades,
colocando à deriva as categorias outrora rígidas e “desencaixando” as
identidades individuais, a solução pré-moderna para o problema da pluralidade
logo se revelou inadequada para prevenir ou mitigar a resultante ansiedade
nascida da confusão.
Para o homem ou
mulher pré-modernos, verdade e realidade, combinadas numa só, eram o produto da
intenção de Deus, encarnada de uma vez para sempre na forma da Criação de Deus.
Fora concedida desde o momento da criação e, portanto, não requeria nada além
de respeitosa contemplação, quando muito um estudo cuidadoso. A determinação, a
obviedade, a natureza atribuída e imutável do lugar de cada homem ou mulher na
cadeia do ser, tudo sugeria tal entendimento do mundo – como a consumação de
uma intenção supra-humana, divina. Não ocorre assim no mundo moderno, de
“criação permanente”. (pág.153 e 154)
O aspecto novo,
caracteristicamente pós-moderno e possivelmente inaudito, da diversidade dos
nossos dias é a fraca, lenta e ineficiente institucionalização das diferenças e
sua resultante intangibilidade, maleabilidade e curto período de vida. Se desde
a época do “desencaixe” e ao longo da era moderna, dos “projetos de vida”, o
“problema da identidade” era a questão de como dotá-la de uma forma universalmente
reconhecível – atualmente, o problema da identidade resulta principalmente da
dificuldade de se manter fiel a qualquer identidade por muito tempo, da virtual
impossibilidade de achar uma forma de expressão da identidade que tenha boa
probabi-lidade de reconhecimento vitalício, e a resultante necessidade de não
adotar nenhuma identidade com excessiva firmeza, a fim de poder abandoná-la de
uma hora para outra, se for preciso. Não é tanto a co-presença de muitas classes que é a fonte
de confusão, mas sua fluidez, a notória dificuldade em apontá-las com precisão
e defini-las – tudo isso revertendo à central e mais dolorosa das ansiedades: a
que se relaciona com a instabilidade da identidade da própria pessoa e a
ausência de pontos de referência duradouras, fidedignos e sólidos que
contribuiriam para tomar a identidade mais estável e segura.
Observemos,
porém, que a evidente natureza “inventada” das personagens, sua
condicionalidade e status convencional, sua contingência inerente, são
características definidoras da obra de arte em geral e da ficção artística em
particular. Pode-se, por conseguinte dizer que, sob a condição
pós-moderna, o “mundo lá fora”, o “mundo
real”, adquire em grau cada vez maior os traços tradicionalmente reservados ao
mundo ficcional da arte. O mundo “lá fora” afigura-se indivíduo como um jogo,
ou antes uma série de jogos finitos e episódicos, sem nenhuma seqüência
definida e com conseqüências que não vinculam necessariamente os jogos que se
seguem; e um jogo em que o próprio mundo é um dos jogadores, em vez de o
supremo legislador ou árbitro, e um jogador que, exatamente como os demais
jogadores, mantém suas cartas junto ao peito e adora jogadas de surpresa.
(pág.155 e 156)
Os mal-estares
pós-modernos nascem da liberdade, em vez da opressão. (pág.156)
No mundo
moderno, a ficção do romance desnudava a absurda contingência oculta sob a
aparência de realidade ordenada. No mundo pós-moderno, ela enfileira unidas
cadeias coesas e coerentes, “sensatas”, a partir do informe acúmulo de
acontecimentos dispersos. Os status da ficção e do “mundo real” foram, no
universo pós-moderno, invertidos. Quanto mais o “mundo real” adquire os
atributos relegados pela modernidade ao âmbito da arte, mais a ficção artística
se converte no refúgio – ou será, antes, na fábrica? – da verdade. Mas – que
seja enfatizado com toda a veemência possível – a verdade admitida de seu
exílio tem, além do nome, pouca semelhança com aquela que se obrigou a emigrar.
Essa verdade não tem função de endosso e pouca utilidade para o debate – e,
além do mais, está ciente de suas limitações e nem um pouco preocupada. As
verdades da arte nascem num grupo de outras verdades e, desde o princípio,
acostumam-se a apreciar tal grupo. Não encaram a presença de outros
sentidos/interpretações como uma afronta, um desafio, uma ameaça ao próprio
sentido. Alegram-se em contribuir para a sua profusão. (pág.157)
Pode-se dizer,
utilizando a linguagem heideggeriana, que a forma especificamente pós-moderna
de “ocultamento” consiste não tanto em esconder a verdade do Ser por trás da
falsidade dos seres, mas em obscurecer ou apagar inteiramente a distinção entre
verdade e falsidade dentro dos próprios seres e, desse modo, tornar os temas do
“cerne da questão”, de sentido e de significado absurdos e inexpressivos. É a
própria realidade que agora necessita da “suspensão da descrença”, outrora a
prerrogativa da arte, a fim de ser apreendida, encarada e vivida como
realidade. A própria realidade é agora “arremedo”, embora – exatamente como o
mal psicossomático – faça o máximo para encobrir os sinais. (pág.158)
X
A cultura como consumidor cooperativo
É assim que
tendemos a pensar na cultura até hoje: como num dispositivo de
antialeatoriedade, um esforço para estabelecer e manter uma ordem; como numa
guerra contínua contra a aleatoriedade e esse caos que a aleatoriedade
ocasiona. Na luta eterna entre ordem e caos, o lugar da cultura é
inequivocamente no lado da ordem. Ao defrontar com a incoerência das normas, o
estado de ambivalência comportamental, a profusão de produtos culturais sem uso
óbvio “para o sistema”, pensamos em um conflito entre culturas, ou em uma crise
cultural. Em qualquer dos caos, consideramos a situação anormal ou nociva.
Ficamos alarmados e esperamos uma alteração mórbida dos acontecimentos.
É cada vez mais
difícil, porém, pensar na cultura dessa maneira. Enquanto nos apegamos às
noções herdadas, a crise parece ser uma condição cotidiana, a anormalidade
transforma-se em uma norma, a doença torna-se crônica. (pág.164 e 165)
Não é
inequivocamente nítido de onde surgiu essa “crise dos paradigmas”. Os fenômenos
culturais mudaram tão drasticamente, desde a época em que foi cunhado o
conceito de cultura, que a antiga noção não se aplica mais a eles? Ou a culpa
deveria ser antes atribuída às mudanças na nossa maneira de encarar o mundo, na
torre de observação construída com nossos novos interesses e experiências, no
ponto de apoio da vida cotidiana, de onde iniciamos nossas viagens
exploratórias? Ou talvez o colapso do poder ordenador cognitivo das nações
ortodoxas tenha seguido na esteira da queda de sua potência ordenadora e
prática, uma vez que as sugestões sobre como ordenar o conhecimento do mundo
não possuem autoridade se não são secundadas pelos poderes para ordenar o
próprio mundo? Pode-se imaginar que todas as três causas desempenharam certo
papel na atual paradigmática. Mas igualmente pode ser que os três fatores sejam
separados um do outro, cada um sendo dotado da própria lógica. (pág.165 e 166)
Estive
procurando uma metáfora que desembaraçasse o caminho que conduz a um novo
paradigma, uma metáfora que captasse precisamente a inquietação,
adaptabilidade, subdeterminação endêmica e imprevisibilidade das atividades
culturais. Após apreciar e rejeitar diversas possibilidades, escolhi o modelo
da cooperativa de consumidores.
Para afastar
inevitáveis vozes de protesto, desejo esclarecer desde o inicio que, ao falar
em cooperativa de consumidores, não me refiro à Cooperativa da atualidade, a
organização completamente burocratizada e estreitamente hierárquica muito
semelhante a outras instituições comerciais, somente (em seu próprio
detrimento) em maior grau. (pág.168)
XI
Sobre a redistribuição pós-moderna do sexo: a
História da sexualidade, de Foucault, revistada
Segundo Ariès e
outros estudiosos dos hábitos populares[5],
a mudança no tratamento das crianças veio juntamente com a “descoberta” da
criança como uma criatura por si mesma e de um tipo um tanto diferente, dotado
de atributos peculiares. Esta descoberta estava intimamente ligada à nova – e moderna
– percepção da realidade social, que apresentava a carreira dos indivíduos
humanos como o processo de “amadurecimento”, algo que não aconteceria por si
mesmo, sem ajuda e não-supervisionado, não podendo ser deixado à mercê da
sabedoria da natureza. Para assistir ao processo e assegurar-lhe o fluxo
regular, é preciso um ambiente especial e orientado para a criança, isolando dos rombos
acidentais do mundo dos crescidos. Quanto mais tempo durasse o fechamento das
crianças nesse ambiente especial, melhor: juntamente com a idéia positiva do
amadurecimento, uma idéia negativa da “criança precoce” apareceu, trazendo um
aroma decididamente patológico. A criança era considerada em ser frágil, que
requer estreita e constante vigilância e interferência; um ser inocente mas
que, pela própria razão de sua inocência, vivia sob uma constante ameaça de ser
“estragada”, incapaz de evitar e combater os perigos por sua conta. O que para
os adultos era um desafio a combater ou arrostar, para a frágil criança era um
engodo a que ela não podia resistir ou uma armadilha em que ela só podia cais.
A criança precisava da orientação e do controle do adulto: uma supervisão
refletida e cuidadosamente planejada, calculada para desenvolver a razão da
criança como uma espécie de fortificação deixada pelo mundo do adulto dentro da
personalidade da criança. As necessidades de orientação e controle convergiram
para a idéia de um ambiente especialmente projetado em que o processo de
crescimento devia acontecer. Idealmente, cada etapa do desenvolvimento da
criança devia ter seu ambiente próprio e feito sob medida. (págs.178 e 179)
XII
Imortalidade, na versão pós-moderna
Um
homem livre pensa em tudo menos na morte, e sua sabedoria é uma meditação não
sobre a morte, mas sobre a vida.
Baruch
Spinoza, Ética
Morte, Moderna
E Pós-Moderna
A nossa sociedade
“moderna tardia” (Giddens), “moderna reflexiva” (Beck), “surmoderne”
(Balandier), ou – como prefiro denominá-la – pós-moderna é marcada pelo descrédito,
escárnio ou justa desistência de muitas ambições (atualmente denegridas como utópicas ou condenadas como totalitárias)
características da era moderna. Dentro tais sonhos modernos abandonados e
desesperançados, está a perspectiva de suprir as desigualdades socialmente
geradas, de garantir a todo individuo humano uma possibilidade igual de acesso
a tudo de bom e desejável que a sociedade possa oferecer. Mais uma vez, tal
como nas etapas iniciais da revolução moderna, vivemos numa sociedade cada vez
mais polarizada.
Ao longo do
período moderno, tendeu-se a definir a exclusão social como um soluço
temporário no progresso uniforme e implacável, sob outros aspectos, em direção
à igualdade. Ela era minimizada pelo mau funcionamento ainda não corrigido, mas
em principio corrigível, do sistema social não suficiente racionalizado. (pág.195)
Seria insensato
– talvez ingênuo, mas certamente arriscado – excluir a possibilidade de uma
ligação estreita entre a premonição de redundância orgânica e os atuais sinais
de reavaliação da nova vida e longa vida. Vivemos na época do temor
demográfico. Se, durante a era da modernidade do Sturm und Drang, um elevado
índice de natalidade era considerado um sinal de “saúde da nação” e “mais
pessoas” significava mais riqueza e poder, atualmente ambos são receados como
uma ameaça à bem-aventurança dos consumidores e como um imposto exasperante
sobre “recursos limitados”. Cada vez mais, as pessoas são registradas na coluna
de débito, não na de crédito, do cálculo econômico. Seria realmente estranho se
não houvesse vínculo entre a desvalorização econômica dos totais humanos, com a
redundância inerente da população, e a tendência cultural, cada vez mais
acentuada, de recusar a vontade do direito de viver àqueles que são demasiado
fracos ou insignificantes para exigir e assegurar esse direito. (pág.196 e 197)
Um exame mais
atento da cena cultural pós-moderna sugere fortemente tal reviravolta nos
acontecimentos. Para o consumo de massa, a nossa cultura tem uma mensagem que,
se tanto, desvaloriza ou dilui o sonho da vida eterna, e isso mediante o
exorcismo do horror da morte. Esse efeito é alcançado por meio de duas
estratégias aparentemente opostas, porém de fato suplementares e convergentes.
Uma é a estratégia de esconder de vista a morte daqueles próximos à própria
pessoa e expulsá-la da memória; colocar os doentes terminais aos cuidados de
profissionais; confiar os velhos em guetos geriátricos muito antes de eles
serem confiados ao cemitério, esse protótipo de todos os guetos; transferir
funerais para longe de locais públicos; moderar a demonstração pública de luto
e pesar; explicar psicologicamente os sofrimentos da perda como casos de
terapia e problemas de personalidade. De outro lado, porém, como recentemente
nos lembrou Georges Balandier, a morte se banalisa para la prolifération de
images. (pág.198)
A morte próxima
de casa é dissimulada, enquanto a morte como um transe humano universal, a
morte dos anônimos e “generalizados” outros, é exibida espalhafatosamente,
convertida num espetáculo de rua nunca findo que, não mais evento sagrado ou de
carnaval, é apenas um dentre muitos dos acessórios da vida diária. Assim
banalizada, a morte torna-se demasiado habitual para ser notada e
excessivamente habitual para despertar emoções intensas. É a coisa “usual”,
excessivamente comum para ser dramática e certamente demasiado comum para se
ser dramático a respeito. Seu horror é exorcizado pela sua onipresença,
tornando ausente pelo excesso de visibilidade, tornando ínfimo por ser ubíquo,
silenciado pelo barulho ensurdecedor. E, enquanto a morte se desvanece e
posteriormente desaparece pela banalização, assim também o investimento
emocional e volitivo no anseio por sua derrota... (pág.199)
Imortalidade, Moderna E Pós-Moderna
Se a modernidade
se esforçou para desconstruir a morte, em nossa época pós-moderna é a vez de a
imortalidade ser desconstruída. Mas o efeito global é a obliteração da oposição
entre morte e imortalidade, entre o transitório e o duradouro. A imortalidade
não é mais a transcendência da mortalidade. É tão instável e extinguível quanto
a própria vida, tão irreal quanto se tornou a morte transformada no ato do
desaparecimento: ambas são receptivas à interminável ressurreição mas nenhuma à
finalidade. (pág. 203)
XIII
Religião pós-moderna?
Deus, Ou A Insuficiência De Auto-Suficiência
Em sua clássica
e, na minha opinião, insuperada análise da maneira pela qual a religiosidade é
gerada pela condição existencial humana, Leszek Kolakowski sugere que a
religião não é uma “uma coletânea de afirmações sobre Deus, a Providência, o
céu e o inferno”:
A religião, na
verdade, é a consciência da insuficiência humana, é vivida na admissão da
fraqueza...
A mensagem
invariável do oculto religioso é: “do finito ao infinito, a distância é sempre
infinita...” (pág.209)
Nós chegamos a
acreditar nas igrejas de toda parte que, sempre que pressionados, insistem em que
proporcionam o serviço de que necessita o irresistível impulso humano de obter
respostas para as “questões fundamentais” da finalidade da vida e de aplacar os
medos que se originam da ausência de uma boa resposta. Admiramo-nos, contudo:
há pouco, na rotina diária, que incite essa investigação escatológica. O gado
deve ser alimentado, a safra colhida, os impostos pagos, os jantares preparados,
os telhados reparados; ou as instruções devem ser escritas ou estudadas, as
cartas postas no correio, os requerimentos registrados, os compromissos
cumpridos, as televisões consertadas, compradas as passagens... Antes de se ter
tempo de pensar na eternidade, a hora de dormir está chegando e, depois, um
outro dia transbordante de coisas a serem feitas ou desfeitas. Admiramo-nos:
bem pode ser que as igrejas, como outros produtores de bem e serviços, tivessem
de se ocupar, primeiro, da produção de seus próprios consumidores: tinham, se
não de criar, então pelo menos de ampliar e aguçar as necessidades destinadas a
serem satisfeitas pelos seus serviços e, desse modo, tornar seu trabalho
indispensável.
Sobre o poder
pastoral, cujas técnicas o cristianismo elaborou e levou à perfeição, Michel
Foucault escreveu que
(...) todas
essas técnicas cristãs de inquirição, orientação da confissão, obediência, têm
um fim: levar os indivíduos a trabalhar em sua própria “mortificação” neste
mundo. A mortificação, evidentemente, não é a morte, mas uma renúncia deste
mundo e de si mesmo: uma espécie de morte cotidiana. Uma morte que se supõe
proporcionar a vida num outro mundo.[6]
É lógico que só
uma vez que tal mortificação tenha sido implantada como o dever do individuo,
uma vez que uma “morte cotidiana” venha a ser aceita como o preço do bom
“negócio” da prometida “vida num outro mundo”, o papel do pastor, de “garantir
a salvação do seu rebanho”,[7]
pode ser reconhecido, respeitado e dotado da capacidade de gerar poder.
Primeiro as pessoas têm de se preocupar com a salvação pessoal, desejar a
recompensa póstuma e temer a punição póstuma, precisar do pastor – e precisar
dele nesta vida, dotada agora de um valor acrescido do contínuo ensaio para a
vida vindoura. (pág.210)
A inquietação a
respeito da eternidade não “aparece naturalmente”. (pág.211)
Grande esforço é
necessário para essa inquietação prevalecer sobre a gravidade das preocupações
diárias voltadas para as tarefas a serem executadas e os resultados a serem
consumidos nessa única vida que os homens e as mulheres conhecem diretamente,
visto que a ganham com o seu próprio trabalho cotidiano.
A esperança da
vida eterna, o sonho do céu e o horror do ínfero não são a questão da
partenogênese, embora seja disso que os filósofos da religião quase conseguiram
convencer-nos. Esse martirizante terror da insuficiência que, como sugere
Kolakowski, nos deixa suscetíveis a uma mensagem religiosa, só se podia seguir
à designação de tarefas que estivessem além do alcance dos instrumentos desenvolvidos
para atacar as tarefas da vida diária e criassem, por isso, a insuficiência
humana. Longe de sepultar a inquietação a respeito do “definitivo”, traduzia
agora para a questão da salvação, as igrejas tratarem de fazer com que a
inquietação saturasse todo recesso e greta da mente e consciência humanas,
assim como presidisse a totalidade das atividades da vida. (pág.211)
A Modernidade, Ou A Ação Sem Deus
Proponho que nem
todas as estratégias do estar no mundo dos seres humanos devem ser
fundamentalmente religiosas (isto é, fundadas numa intuição da insuperável
insuficiência e fraqueza dos poderes humanos), e nem todas o foram. De maneira
mais notável, a moderna fórmula da vida humana na terra foi articulada em
função de uma estratégia agudamente alternativa: intencionalmente ou por
omissão, os seres humanos estão sozinhos para tratar das coisas humanas e, por
isso, as únicas coisas que importam aos
seres humanos são as coisas de que os seres humanos podem tratar. (pág.212)
Nesse processo
de adaptação racional, havia pouca utilidade para a religião. Como Alain
Touraine ressaltou, as “utilidades” da religião são de três tipos.[8]
Primeiramente, a religião pode servir à dependência e à subordinação da rotina
a um ritmo de vida interpretado como natural ou sobrenatural, mas em ambos os
casos experimentado como invariável e invulnerável. Tal ritmo, permitam-nos
observar contudo, foi muito patentemente interrompido, e o nome “modernidade”
representa o seu colapso: não restou muita coisa a que a religião, com a sua
mensagem de mundo pré-ordenado e criado de uma só vez, pudesse servir. Em
segundo lugar, a filiação a uma igreja ou seita pode desempenhar um importante
papel no manter sólidos e impenetráveis os muros das divisões sociais, servindo
bem, assim, a uma estrutura social marcada pela baixa mobilidade e permanência
dos fatores de estratificação. Permitam-me, porém, observar de novo que tal
estrutura tão rígida foi gradualmente erodida nos processos cada vez mais
vigorosos, flexíveis, difusos e descentrados da estruturação, e novamente a
religião, com sua mensagem da “cadeia do ser divino” estava mal preparada para
compreender a nova situação e os novos desafios. Pelos motivos acima expostos,
pode-se concordar com a opinião de Touraine de que a “importância dos primeiros
dois aspectos da vida religiosa” foi grandemente reduzida. Mas, em oposição a
Touraine, ressaltar-se-ia que a redução em causa não foi conseqüência de
“descristianização”, mas daquelas profundas transformações nas condições de
vida e estratégias de vida viáveis das quais a própria e alegada
“descristianização” foi um dos efeitos.
A terceira
utilidade da religião é descrita por Touraine como “a apreensão do destino, da
existência e da morte humana”. No caso dessa última função, Touraine observou seu
incessante “isolamento”: “como a dança e a pintura, a religião se torna uma
atividade de lazer, isto é, comportamento deliberado, não-regulamentado,
pessoal e secreto”. Esta afirmação pode ser aceita com uma condição de que é o
próprio “interesse pela existência e pela morte” que foi relegado a passatempos
de lazer, aqueles que apresentam apenas um impacto marginal no modo como são
organizados as atividades da vida séria e cotidiana. Se as “igrejas e seitas”
existentes, particularmente aquelas que se gabam de um número maior, e de
crescimento mais rápido, dos seguidores podem ser similarmente marginalizados
como utilidades de lazer, é discutível. O ponto importante é que, com o fim de
resistir a tal marginalização, as igrejas e seitas que conseguiram fazer
exatamente isso tenham precisado assenhorear-se de outras funções que não a de
abastecer a preocupação com os mistérios da existência e da morte. (págs.214 e 215)
A Revolução Antiescatológica
A morte,
disposta outrora pela religião como uma espécie de acontecimento extraordinário
que, não obstante, confere significação a todos os acontecimentos ordinário,
tornou-se ela própria um acontecimento ordinário – mesmo se é, supostamente, o
último numa cadeia de acontecimentos ordinários, o último episódio numa série
de episódios. Não mais uma ocorrência momentosa, que conduz à existência de
outra, de mais longa duração e mais grave significado, mas raramente o “fim de
uma história” – e as histórias só mantêm o interesse enquanto se desenvolvem e
mantêm abertas as possibilidades de surpresa e aventura. Nada ocorre depois que
a história acaba – e, assim, aqueles que se fazem encarregados desse nada, os
especialistas religiosos, não têm muito a oferecer àqueles que estão absortos
em viver a história...
E as histórias
vividas pelos homens e mulheres modernos são de fato absorventes. (pág.219)
A Incerteza, Não-Ontológica
Com uma boa dose
de simplificação, podemos dizer que as vidas dos homens e das mulheres
pré-modernos continham pouca incerteza. Num mundo virtualmente inalterável
dentro do horizonte da vida individual, seus habitantes, desde o berço
designados para itinerários de vida claramente catalogados, esperavam pouca
surpresa enquanto viviam. A época da morte, impossível de se prever, provindo
de parte alguma e não-anunciada, era a única janela através da qual eles podiam
achar um vislumbre de incerteza; e a incerteza que podiam ter vislumbrado, se
houvessem sido conduzidos a essa janela e levados a olhar por ela, era a
incerteza da existência como tal, a incerteza ontológica, apropriada unicamente
a ser entendida e contada na história escatológica.
Com o progresso
da medicina moderna, que forneceu virtualmente a toda situação de morte sua
causa específica, “lógica” e “racional”, a morte já não é um capricho do
destino cego, nem tão completamente casual quanto costumava ser. Havendo-se
tornado uma ocorrência natural, absolutamente não-misteriosa e até parcialmente
administrável, ela oferece pouco terreno a ruminações escatológicas. Por outro
lado, é a vida antes da morte que oferece percepções cercadas de incerteza. Só
que o que é vislumbrado através de muitas janelas, oferecidas pelas
extravagâncias da vida moderna, pela insegurança das realizações e pela
fragilidade dos laços humanos, não é a variante ontológica da incerteza e,
desse modo, a história escatológica fica pouco apropriada para desvendar os
mistérios e exprimir as ansiedades que tais mistérios fomentam. (pág.219 e 220)
São as
incertezas concentradas na identidade individual, em sua construção nunca
completa e em seu sempre tentado desmantelamento com o fim de reconstruir-se,
que assombram os homens e mulheres modernas, deixando pouco espaço e tempo para
as inquietações que procedem da insegurança ontológica. É nesta vida, neste
lado do ser (se é que absolutamente há outro lado), que a insegurança
existencial está entrincheirada, fere mais e precisa ser tratada. Ao contrário
da insegurança ontológica, a incerteza concentrada na identidade não precisa
nem das benesses do paraíso, nem da vara do inferno para causar insônia. Está
tudo ao redor, saliente e tangível, tudo sobressaindo demais nas habilidades
rapidamente envelhecedoras e abruptamente desvalorizadas, em laços humanos
assumidos até segunda ordem, em empregos novos atrativos da festa do consumidor,
cada um prometendo tipos de felicidade não experimentados, enquanto apagam o
brilho dos já experimentados.
Os homens e
mulheres pós-modernos realmente precisam do alquimista que possa, ou sustente
que possa, transformar a incerteza de base em preciosa auto-segurança, e a autoridade da aprovação
(em nome do conhecimento superior ou do acesso à sabedoria fechado aos outros)
é a pedra filosofal que os alquimistas se gabam de possuir. A pós-modernidade é
a era dos especialistas em “identificar problemas”, dos restauradores da
personalidade, dos guias de casamento, dos autores dos livros de
“auto-afirmação”: é a era do “surto de aconselhamento”. Os homens e mulheres
pós-modernos, quer por preferência, quer por necessidade, são selecionadores. E
a arte de selecionar é principalmente em torno de evitar um perigo: o de perder
uma oportunidade – por não vê-la bastante claramente, ou por não persegui-la
bastante incisivamente, ou por ser um agente de demasiada inexperiência para
capturá-la. Para evitar esse perigo, os homens e mulheres pós-moderno precisam
de aconselhamentos. A incerteza de estilo pós-moderno não gera a procura da
religião: ela concebe, em vez disso, a procura sempre crescente de
especialistas na identidade. Homens e mulheres assombrados pela incerteza de
estilo pós-moderno não carecem de pregadores para lhes dizer da fraqueza do
homem e da insuficiência dos recursos humanos. Eles precisam da reafirmação de
que podem fazê-lo – e de um resumo a respeito de como fazê-lo. (págs.221 e 222)
Transcendência Deste Mundo
Sugiro que as
pressões culturais pós-moderna, enquanto intensificam a busca de “experiências
máximas”, ao mesmo tempo as desligaram dos interesses e preocupações propensos
à religião, privatizaram-nas e cofiaram principalmente a instituições não- religiosas
o papel de aprovisionadoras dos serviços relevantes. A “experiência completa”
da revelação, do êxtase, rompendo as fronteiras do ego e da transcendência
total, outrora privilégio da seleta “aristocracia da cultura” – santos, eremitas,
místicos, monges ascetas, tzadikim ou dervixes – e surgindo seja como um
milagre não-solicitado, de maneira nada óbvia relacionando com o que o receptor
da graça fez para merecê-lo, seja como um ato de graça que recompensa a vida de
auto-imolação e abstinência, foi posta pela cultura pós-moderna ao alcance de
todo indivíduo, refundida como um alvo realístico e uma perspectiva de
auto-aprendizado para cada indivíduo, e recolocada no produto da vida devotado
à arte do comodismo do consumidor. O que distingue a estratégia pós-moderna da
experiência máxima de uma promovida pelas religiões é que, longe de celebrar a
insuficiência e fraqueza humana assumidas, ela invoca o completo
desenvolvimento dos recursos internos, psicológicos e fisiológicos do ser
humano, e pressupõe infinita a potência humana. (págs.223 e 224)
De Volta Para O Futuro
Há, porém, uma
forma especificamente moderna de religião, nascida das contradições internas da
vida pós-moderna, da forma especificamente pós-moderna em que se revelam a
insuficiência do homem e a futilidade dos sonhos de ter o destino humano sob
controle do homem. Essa forma veio a ser conhecida sob o nome inglês de
fundamentalism [fundamentalismo] ou sob o nome francês de intégrisme, exibindo
sua presença cada vez mais influente em toda a parte do mundo outrora dominada
pelas religiões cristã, islâmica e judaica.
Sugiro que a
ascensão de uma forma religiosamente vestida de fundamentalismo não é um soluço
de anseios místicos há muito ostensivamente afugentados mas não plenamente
reprimidos, nem uma manifestação da eterna irracionalidade humana, imune a
todos os esforços de cura e domesticação, nem uma forma de fuga de volta ao
passado pré-moderno. O fundamentalismo é um fenômeno inteiramente contemporâneo
e pós-moderno, que adota totalmente as “reformas racionalizadoras” e os
desenvolvimentos tecnológicos da modernidade, tentando não tanto “fazer recuar”
os desvios modernos quanto “os ter e devorar ao mesmo tempo” – tornar possível
um pleno aproveitamento das atrações modernas, sem pagar o preço que elas
exigem. O preço em questão é a agonia do individuo condenado à
auto-suficiência, à autoconfiança e à vida de uma escolha nunca plenamente
fidedigna e satisfatória. (pág.226)
O fascínio do
fundamentalismo provém de sua promessa de emancipar os convertidos das agonias
da escolha. Aí a pessoa encontra, finalmente, a autoridade indubitavelmente
suprema, uma autoridade para acabar com todas as outras autoridades. A pessoa
sabe para onde olhar quando as decisões da vida devem ser tomadas, nas questões
grandes e pequenas, e sabe que, olhando para ali, ela faz a coisa certa, sendo
evitado, desse modo, o pavor de correr o risco. O fundamentalismo é um remédio
radical contra esse veneno da sociedade de consumo conduzida pelo mercado e
pós-moderna – a liberdade contaminada pelo risco (um remédio que cura a
infecção amputando o órgão infeccionado – abolindo a liberdade como tal, na
medida em que não há nenhuma liberdade livre de riscos). O fundamentalismo
promete desenvolver todos os infinitos poderes do grupo que – quando plenamente
dispostos – compensaria a incurável insuficiência de seus membros individuais,
e justificaria, dessa maneira, a indiscutível subordinação das escolhas
individuais a normas proclamadas em nome do grupo.(pág.228)
Longe de ser uma
explosão de irracionalidade pré-moderna, o fundamentalismo religioso, muito
parecido com os autoproclamados reavivamentos étnicos, é uma oferta de
racionalidade alternativa, feita sob medida para os genuínos problemas que
assediam os membros da sociedade pós-moderna. Como todas as racionalidades, ele
seleciona e divide; e o que seleciona difere da seleção efetuada pelas forças
desregulamentadas do mercado – o que não o torna menos racional (ou mais
irracional) do que a lógica da ação orientada pelo mercado. Se a racionalidade
típica do mercado se subordina à promoção da liberdade de escolha e prospera
sobre a incerteza das situações de execução da escolha, a racionalidade
fundamentalista coloca a segurança e a certeza em primeiro lugar e condena tudo
o que solapa essa certeza – antes e acima de tudo, as extravagâncias da
liberdade individual. Em sua interpretação fundamentalista, a religião não e
uma “questão pessoal”, privatizada como todas as outras escolhas individuais e
praticada em particular, mas a coisa mais próxima de uma completa mappa vitae:
ela legisla em termos nada incertos sobre cada aspecto da vida, desembaraçando
desse modo a carga de responsabilidade que se acha pesadamente sobre os ombros
do individuo – esses ombros que a cultura pós-moderna proclama onipotentes, e o
mercado promove como tais, mas que muitas pessoas acham frágeis demais para
essa carga. (págs.229)
XIV
Sobre o comunitarismo e a liberdade humana, ou como
enquadrar o círculo
A teoria
comunitária (exatamente como o liberalismo, no que diz respeito a isso) é uma
ideologia moderna, elaborada e preconizada segundo condições modernas – ou
seja, sob as circunstâncias em que a escolha é não só uma possibilidade, como
uma realidade a que é difícil escapar. Os indivíduos modernos estão
“sentenciados” a uma existência de escolha. E, assim, as alusões comunitárias
acerca da natureza irrecuperavelmente “embaraçada” da identidade individual não
chegam a desenvolver uma teoria madura do determinismo imputado. O determinismo
em estilo comunitário não é automático. Paradoxalmente, sua ação não pode
completar-se sem o papel ativo desempenhado pela vontade e escolha humanas. O
destino só completa a sua trajetória quando espontaneamente (e alegremente!)
aceito pelo indivíduo fadado. Mas, ao admitir isso, a filosofia comunitária
coloca, por bem ou por mal, as comunidades de tradição e história que ela
estimula em pé de igualdade com todos os outros “grupos de membros” (inclusive
aqueles em competição direta ou oblíqua com grupos de referência “enraizados”).
Todos esses grupos “mantém” os membros somente na medida em que os membros lhes
“são fiéis”. A perpetuação desses grupos depende da intensidade e elasticidade
da lealdade ativa de seus membros. É, por conseguinte, arriscado deixar o destino
dos favorecidos grupos de referência “enraizados” (“comunidades de tradição”)
sob os caprichos da competição aberta. Preferir-se-ia ter o resultado favorável
da competição garantindo de antemão – mas isso significa privilegiar uma
escolha acima de todas as outras, tornar esmagadora a vantagem sobre as outras
escolhas e aumentar as apostas exigidas para tornar a escolha “correta”. Nesse
ponto, porém, o comunitarismo abandona a discussão ostensivamente filosófica do
transe existencial humano para entrar no âmbito da política prática. (pág.234 e
235)
A idéia que
guiava todos esses esforços do estudo-nação era sobrepor um tipo de adesão ao
mosaico de “particularismo” comunitários, em nome do interesse da nação, que
atropela e deixa em suspenso todos os outros interesses, inclusive o que estou
ou aquele indivíduo possa julgar ser o seu “próprio” interesse individual. Sob
o aspecto da política prática, isso significa o desmantelamento ou
desabilitação legal de todos os pouvoirs intermédiaires, da autonomia de
qualquer unidade menor que o estado-nação, que reivindicasse mais do que o
poder delegado.(pág.236)
A impressionante
semelhança entre as esperanças e os paradoxos nacionalistas e os comunitários
não é de forma alguma fortuita. Ambas as visões de “futuro perfeito” são,
afinal, as reações dos filósofos à experiência muito difundida de aguda e
abrupta “desencaixe”, provocada pelo acelerado colapso das estruturas em que as
identidades eram habitualmente inscritas. O nacionalismo foi a resposta à destruição
indiscriminada da “manufatura doméstica de identidades” e a decorrente desvalorização
dos padrões da vida produzidos e sancionados localmente (e prosaicamente). A
visão nacionalista originou-se da desesperada esperança de que a clareza e
segurança da existência possam ser reconstruídas num nível mais elevado e
supralocal da organização social, em torno da associação nacional e da
cidadania estatal fundidas numa só. O estado-nação revelou-se a incubadora de
uma sociedade moderna regida não tanto pela unidade de sentimentos como pela
diversidade de frios interesses de mercado. Seu meticuloso trabalho de
desarraigar fidelidades locais parece, em retrospecto, não tanto uma produção
de identidades de nível mais elevado, mas uma operação de limpeza de terreno
para a vigarice, conduzida pelo mercado, dos modos de autodescrição rapidamente
montadas e ainda mais depressa desmanteladas. (págs.237 a 238)
Posfácio: a última palavra – e ela pertence à
liberdade
A experiência
dos que se empenham no jogo chamado liberdade é tão incerta, contingente e
inconclusiva como seu destino. Traz alegria e tristeza, alimenta a
solidariedade e o egoísmo, promove o amor à mudança e seu ódio. (pág.246)
É apenas na luta
contra tal uno-unicidade que o indivíduo humano, e o indivíduo humano como
sujeito moral, um sujeito responsável e um sujeito que assume a
responsabilidade por sua responsabilidade, pode nascer.(pág.248 e 249)
Se o monoteísmo
significa falta de liberdade, a liberdade nascida da realidade politeísta não
implica, em oposição a seus detratores, niilismo. Ser livre não significa não
acreditar em nada: significa é acreditar em muitas coisas – demasiadas para a
comodidade espiritual de obediência cega; significa estar consciente de que há
demasiadas crenças igualmente importantes e convincentes para a adoção de uma
atitude descuidada ou niilista ante a tarefa da escolha responsável entre elas;
e saber que nenhuma escolha deixaria o escolhedor livre da responsabilidade
pelas suas conseqüências – e que, assim, ter escolhido não significa ter
determinado a matéria de escolha de uma vez por todas, nem o direito de botar
sua consciência para descansar.
A voz da
consciência – a voz da responsabilidade – é audível, por assim dizer, só no
tumulto de melodias não-coordenadas. O consenso e a unanimidade prenunciam a
tranqüilidade do cemitério (a “perfeita comunicação”, de Habermas, que mede a
sua própria perfeição pelo consenso e exclusão do desacordo, é outro sonho de
morte que cura radicalmente os males da vida de liberdade); é no cemitério do
consenso universal que a responsabilidade, a liberdade e o individuo exaltam
seu último suspiro.
A voz da
responsabilidade é o grito de recém-nascido do individuo humano. Não
necessariamente, porém, é sinal de uma vida feliz – se a felicidade significa
ausência de inquietações (por certo, uma definição altamente discutível, embora
largamente difundida, de felicidade). A aceitação da responsabilidade não
aparece facilmente – não exatamente porque ela leva aos suplícios da escolha
(que sempre impõe a privação de alguma coisa, assim como o ganho de outra), mas
também porque ela anuncia a permanente ansiedade de estar quem sabe? – errando.
E, desse modo, a
liberdade do livre, a individualidade do individuo são ameaçadas não apenas
pelos detentores do poder. Estes últimos sustentam a liberdade individual como
o laço sustente o homem esforçado – o homem ou mulher que assume a
responsabilidade com suas próprias mãos vive o pesadelo de todo poder. Os
detentores do poder, contemporâneos e em perspectiva, não reconhecem senão uma
forma da responsabilidade dos seus súditos: ser responsável, na linguagem do
poder, é seguir o comando, enquanto “ter poder” significa, essencialmente,
tirar o direito de alguém mais a qualquer outra responsabilidade, que é a sua
liberdade. A dificuldade, contudo, não acaba aqui. As forças ávidas de tirar
liberdade nem sempre precisam da coerção para alcançar seu fim. Como demonstrou
a experiência do nosso tempo de totalitarismo para além da dúvida razoável, com
uma demasiada freqüência o desejo de tirar a liberdade se encontra com o desejo
de concedê-la. Com uma demasiada freqüência, a liberdade é usada para fugir da
liberdade: para fugir de ter consciência na consciência do ser, e da
necessidade de defender a posição de alguém, na crença de que todas as posições
dignas de considerações já foram consideradas.
Mas a tarefa
supliciante de resistir aos atrativos da fuga também não é o fim da história.
Há ainda outra armadilha, outra tentação, e uma tentação a que é mais difícil
resistir, a que todos nos rendemos repetidamente: uma tentação de ter e devorar
ao mesmo tempo, provar em cheio a alegria de escolher sem medo de pagar a multa
por escolha errada, procurar e obter uma receita infalível, patenteada e
garantida de escolha certa – para a liberdade sem ansiedade... (pág.249
e 250)
Vivemos num
mundo diversificado e polifônico, onde toda tentativa de inserir o consenso se
mostra somente uma continuação do desacordo por outros meios. (pág.251)
Um efeito
colateral universalmente admitido do progressivo desligamento da liberdade
individual da escolha é a divisão cada vez mais profunda entre os que têm e os
que não têm. Tanto na escala inter-como na intra-societária, ela alcança agora
proporções inauditas durante quase um século e até pouco tempo atrás
“culturalmente esquecidas” (ver capítulos III e IV). A pobreza relativa dos
excluídos da festa do consumidor está crescendo, como a esperança de seu alívio
na próxima volta de uma “seqüência” de prosperidade; daí o desespero dos
excluídos, que se aprofunda, e os veementes esforços de todos os outros,
preservados até agora de sua sorte, para “anular culturalmente” o significado
moral do retorno dos pobres e desamparados – por meio da sub-repticiamente
induzida brutalização do pobre e da subseqüente “criminalização” e
“medicalização” da pobreza de acordo com o modelo amplamente praticado no
século XIX, porém mais tarde, durante o episódio do estado de bem-estar,
condenado e abandonado. O desmantelamento pós-moderno das instituições modernas
remove as últimas barreiras à iniciativa daqueles que podem causar isso. Mas
também revela uma vez mais a face inaceitável da desumanidade e falta de
compaixão do início da modernidade.(pág.251 e 252)
A redução nas
liberdades dos excluídos nada acrescenta à liberdade dos livres: ela diminui
uma boa parte da sua sensação de estar livre e da sua capacidade de se deleitar
com as suas liberdades. A estrada dos certos do bem-estar pode levar a toda
parte, menos a uma sociedade de indivíduos livres. No que se refere às
necessidades dos livres, esta é, em geral, um beco sem saída. Ela distorce o
equilíbrio entre os dois lados da liberdade: em algum lugar ao longo dessa
estrada, a alegria da escolha livre se estiola, enquanto o medo e a ansiedade
ganham força. A liberdade do livre requer, por assim dizer, a liberdade de
todos.(pág.252)
[1] Ver Alfred Schütz, “The stranger: na essay in social psychology”, in
Studies in Social Theory, v.2, p.95 seg
[2] Albert Camus. Carnets, janvier 1942
– mars 1951 (Paris, Gallimard, 1964, p.111).
[3] Arendt. Rahel Varnhagen, p.31
[4] Ver Pragmatism, de Wulliam James (Indianápolis, Hachett, 1981,
p.100).
[5] Ver obras de Eduard Shorter, David
Hunt, Jack Goody, ou a Critical Theory of the Family, de Mark Pôster (Londres,
Pluto Press, 1978)
[6] Politics, Philosophy, Culture, p.70
[7] Politics, Philosophy, Culture, p.70, 62.
[8] Ver Alain Touraine, The
Post-Industrial Society: Tomorrow’s Social History: Classes, Conflicts and
Culture in the Programmed Society, trad. Leonard F.H. Mayhew (Londres, Wildwood
House, 1974, p.213-4).
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