sexta-feira, 21 de julho de 2023

PIRRO E O CETICISMO - ANTOLOGIA

 




 

Síntese: Paolo Cugini

 

O encontro com o Oriente e o influxo dos ginosofistas.

 

[Pirro] teve a possibilidade de estabelecer relações com os ginosofistas na Índia e com os magros. Dali tirou maior estímulo para as suas convicções filosóficas, e parece que abriu para si a via nobre na filosofia, enquanto introduziu e adotou os princípios da akatalexía (isto é, da irrepresentabilidade ou incompreensão das coisas) e da apoché (isto é, da suspensão do juízo): esse primado foi-lhe atribuído por Ascânio de Abdera[1].

 

Retirava-se do mundo e buscava a solidão tranqüila, de modo que raramente mostrava-se aos de casa. Comportava-se assim porque ouviu um hindu reprovar a Anaxarco, dizendo-lhe que jamais poderia instruir alguém a ser melhor, enquanto ele mesmo freqüentasse as cortes reais e obsequiasse os reis[2].

 

Calano, que por um breve período foi atormentado por dores no ventre, pediu que lhe erigissem uma fogueira. Depois, dirigiu-se ao lugar a cavalo, rezou e derramou as libações fúnebres sobre si mesmo, cortou uma mecha dos próprios cabelos e ofereceu-a aos deuses, como se usa nos sacrifícios, e subiu à fogueira, saudando os macedônios presentes e exortando-os a transcorrer prezerosamente aquele dia e a banquetear-se junto ao rei, o qual logo, disse ele, deveria rever Babilônia. Dito isso, deitou-se e cobriu a cabeça. O fogo aproximou-se, mas ele não se moveu: como se tinha deitado, assim permaneceu, imolado-se segundo o uso dos sábios do seu país[3].

 

 

 

O influxo dos megáricos e dos atomistas.

 

Anaxarco nasceu em Abdera. Foi aluno de Diógenes de Esmirna, o qual, por sua vez, foi aluno de Metrodoro de Quios, que costumava dizer que não sabia nada, nem sequer que nada sabia. Dizem que Metrodoro foi aluno de Nexa de Quios, mas corre também a versão de que foi aluno de Demócrito[4].

De resto, sabemos também que

Pirro, muito amiúde, citava Demócrito[5].

 

E não poucos eram [...] os que diziam que também Metrodoro e Anaxarco [...] negaram a existência do critério do juízo; principalmente Metrodoro, porque diz: “Nada sabemos, e não sabemos nem mesmo isto, que nada sabemos”[6].

 

Demócrito às vezes refuta as aparências sensíveis e diz que nada nelas nos aparece segundo a verdade, mas só conforme à opinião, e que o verdadeiro nos objetos consiste em que esses são átomos e vazio. De fato, ele diz: “Opinião é o doce, opinião o amargo, opinião o quente, opinião o frio, opinião a cor; verdade os átomos e o vazio”; vale dizer: considera-se e opina-se que existam qualidades sensíveis, porém, na verdade elas não existam, mas somente os átomos e o vazio. Nos seus Livros probatórios, embora tivesse prometido atribuir valor de credibilidade às sensações, entretanto encontra-se que ele as condena: “Na realidade nós não conhecemos nada que seja invariável, mas só aspectos mutáveis segundo a disposição do nosso corpo e do que nele penetra ou lhe resiste[7].

 

“Que, portanto, nós não conheçamos segundo a verdade o modo como é ou como se constitui cada objeto, foi demonstrado em vários lugares[8].

De modo particular, agradou aos céticos a afirmação democritiana:

Na realidade nós nada conhecemos, porque a verdade jaz no abismo[9].

 

A reviravolta radical da ontologia.

Ó velho, ó Pirro, como e onde encontraste saída para a servidão às vãs opiniões dos sofistas, e quebraste as cadeias de todos os enganos e o encanto das suas tagarelices? Nem te preocupaste com investigar que ventos correm na Hélade, nem de que se formam todas as coisas e em que se dissolvem[10].

 

As coisas não possuem qualquer diferença, nem medida, nem discriminação[11].

 

Nada é mais isso que aquilo[12].

 

O fenômeno domina sempre, onde quer que apareça[13].

 

Na verdade, o que desde os tempos antigos, como agora e sempre, constitui o eterno objeto de pesquisa e o eterno problema: que é o ser, equivale a isso: que é a substância [...]: por isso também nós, principalmente, por assim dizer, devemos examinar que é o ser nesse sentido[14].

 

 

 

O pirronismo como sistema prático de sabedoria e as suas três regras fundamentais.

 

Filo, o ateniense, seu íntimo amigo, dizia que Pirro mencionava muito amiúde a Demócrito, mas também a Homero, a quem admirava e do qual costumava citar o verso:

Qual a estirpe das folhas, a mesma também a dos homens.

E louvava-o ainda porque costumava comparar os homens às vespas, às moscas e aos pássaros. E citava de bom grado os seguintes versos:

Portanto, amigo, Pátroclo, que era muito mais valoroso que tu.

e todas as passagens alusivas à instabilidade da condição humana, à inutilidade dos propósitos e à pueril loucura do homem[15].

 

[Pirro] não deixou nada escrito, mas o seu discípulo Tímon diz que quem deseja ser feliz deve considerar essas três coisas: 1) em primeiro lugar, qual é a natureza das coisas; 2) em segundo lugar, de que modo devemos nos dispor diante delas; 3) em terceiro lugar, o que resultará aos que se encontram nessa disposição. 1)Ora, ele diz que Pirro mostra que as coisas são igualmente indiferentes, imensuráveis e indiscrimináveis e, por isso, nem as nossas sensações nem as nossas opiniões podem ser verdadeiras ou falsas. 2) Por conseqüência, não se lhes deve dar confiança, mas é preciso ser sem opinião, sem inclinação, sem agitação, afirmando de cada coisa que é não mais do que não é, ou que é e que não é, ou ainda que nem é nem não é. 3) Os que se põem nessa disposição conseguirão, diz Tímon, em primeiro lugar, a afasia, e depois a ataraxia[16].

 

A natureza das coisas como aparência indiferenciada e a natureza do divino e do bem.

 

Pirro dizia que nada é belo nem feio, nada é justo nem injusto, e aplicava igualmente a todas as coisas o princípio segundo o qual nada existe na verdade, e sustentava que tudo o que os homens fazem acontece por convenção e por hábito, e que nada é mais isso que aquilo[17].

 

Dir-te-ei na verdade como me parece que seja, tomando como reto cânon essa palavra de verdade: uma natureza do divino e do bem vive eternamente, da qual deriva para o homem a vida igualíssima (ίσóτατος βίος)[18].

 

Dado que Aristo e Pirro consideram isso sem qualquer importância, a ponto de dizer que não há absolutamente qualquer diferença entre gozar de ótima saúde e ter a mais grave das enfermidades, com razão já há muito tempo cessou toda disputa contra eles. Com efeito, quiseram considerar tudo na virtude, de modo a privá-la de toda faculdade de escolha sem, ademais, conceder-lhe um ponto de origem ou de apoio; isto fazendo, aboliram a própria virtude, à qual atribuíam tão grande valor[19].

Portanto – parece-me – todos os que consideraram o viver honestamente como fim último do bem, enganaram-se, porém, alguns mais e outros menos: mais do que todos, naturalmente, Pirro, que, uma vez estabelecia a virtude, não deixa absolutamente nada a que se tenha inclinação; depois Aristo, que não ousou não deixar nada e introduziu impulsos pelos quais o sábio se inclinasse a alguma coisa, qualquer uma que lhe passasse pela mente e, por assim dizer, se lhe apresentasse diante. Este, melhor do que Pirro, porque concedeu alguma espécie de inclinação natural; pior do que os outros, porque afastou-se profundamente da natureza[20].

 

A atitude que o homem deve assumir diante das coisas: a abstenção do juízo e a indiferença.

 

É evidente que a discussão com tal adversário não pode dar em nada, porque ele não diz nada: de fato, ele não diz nem que a coisa é assim, nem que não é assim, mas diz que é assim e não é assim, e em seguida, de novo, nega uma e outra afirmação, e diz que a coisa não é assim nem não assim[21].

 

É preciso não ter opinião [...] afirmando de cada coisa que é, não mais do que não é, ou que é e que não é, ou ainda que nem é nem não é. Os que se põe nessa disposição em primeiro lugar a afasia [...][22].

 

Viveu piamente com a irmã, que era parteira, segundo o testemunho de Erastóstenes, na sua obra Riqueza e pobreza, onde também se narra que às vezes Pirro levava para vender no mercado, segundo os casos, pássaros e leitões e fazia a limpeza da casa com perfeita indiferença. Diz-se também que dava outra prova de indiferença ao lavar um leitãozinho[23].

 

Com efeito, por que razão aquele que raciocina desse modo [ou seja, negando o princípio de não-contradição] vai verdadeiramente a Megara e não fica em casa tranqüilo, contentando-se simplesmente com pensar em ir? E por que, ocasião, quando ocorre, não despenca um poço ou num precipício, mas cuidar-se bem, como se estivesse convencido de que o cair ali não seria absolutamente coisa boa e não boa? É claro, que ele considera a primeira coisa melhor e a outra pior[24].

 

A sua vida foi coerente com a sua doutrina. Deixava todas as coisas seguirem o seu curso natural e não tomava qualquer precaução, mas mostrava-se indiferente diante de qualquer perigo que lhe ocorresse, fossem carros ou precipícios ou cães, e absolutamente nada concedia ao arbítrio dos sentidos. Mas, segundo o testemunho de Antígono de Caristo, eram os seus amigos, que sempre o acompanhavam, a salvá-lo dos perigos[25].

 

Nunca perdia a compostura, de modo que se alguém se intrometia no seu discurso, ele o concluía tranqüilamente, embora na juventude tivesse sido facilmente irascível [...]. Quando, certa feita, Anxarco caiu pântano, Pirro continuou o seu caminho sem ajuda-lo. Alguém reprovou-o por tal comportamento, mas o próprio Anaxarco louvou a sua indiferença e a sua impassibilidade[26].

 

A conquista da afasia, da ataraxia e da apatia.

 

Sobre a afasia digamos o seguinte [...]. Em sentido genérico, “fasi” é uma palavra que significa afirmação ou negação, como “é dia”, “não é dia” [...]. Portanto, afasia equivale a renunciar à fasi, no seu significado comum, no qual dizemos que estão contidas a afirmação e a negação; de modo que afasia é uma afecção interna a nós, pela qual nem afirmamos nem negamos[27].

 

Enquanto os seus companheiros de viagem no navio apavoravam-se por causa de uma tempestade, ele permanecia tranqüilo e retomava ânimo, apontando um leitãozinho que continuava a comer, e acrescentando que tal imperturbabilidade (άταραξία) era exemplar para o comportamento do sábio[28].

 

Narra-se, ademais, que, quando por alguma ferida foram-lhe aplicados medicamentos corrosivos e teve de submeter-se a cortes ou cauterizações, não contraiu sequer pálpebras[29].

 

Segundo Aristo, o bem consiste em não ser, nessas coisas [intermédias entre a virtude e o vício], movido nem a uma parte nem a outra e isso é chamado por ele de adiaforia. Mas Pirro diz que o sábio nem sequer o sente e chama a isso de apatia[30].

 

Mas certa feita perdeu a calma por uma injúria dirigida a sua irmã – que se chamava Filista – e, a quem o repreendeu, disse que uma mulher não é um bom ponto de comparação para a indiferença. Outra vez foi agitado pelo ataque de um cão e replicou, a quem o reprovou por isso, dizendo que era difícil espoliar completamente o homem (óλοσҳερώς έκδϋναι τόν άνθρωπον), acrescentando que contra as coisas é preciso, em primeiro lugar, se possível, lutar com fatos, do contrário, com a razão[31].

 



[1] Diógenes Laércio, IX, 61 (= Decleva Caizzi, test. 1 A).

[2] Diógenes Laércio, IX, 63 (= Decleva Caizzi, test. 10)

[3] Plutarco, Vida de Alexandre, 69.

[4] Diógenes Laércio, IX, 58 (Diels-kranz, 72 A 1).

[5] Diógenes Laércio, IX, 67 (= Decleva Caizzi, teste. 20).

[6] Sexto Empírico, Contra os matem., VII, 87s. (Diels-kranz, 70 A 25; cf. também 70 B 1).

[7] Sexto Empírico, Contra os matem., VII, 135 (Diels-kranz, 68 B 9).

[8] Idem, ibidem (= Diels-kranz, 68 B 10)

[9] Diels-kranz, 69 B 117.

[10] Tímon, fr. 48 Diels = Decleva Caizzi, test. 60.

[11] Aristécles, fr. 6 Heiland (= Decleva Caizzi, test. 53).

[12] Diógenes Laércio, IX, 61 (= Declava Caizzi, test. 1).

[13] Tímon, fr. 69 Diels (=Decleva Caizzi, test. 63 A e 63 B). Cf. as observações que sobre isso faz Conche, Pyrrhon..., pp. 21 ss.

[14] Aristóteles, Metafísica, Z 1, 1028 b 1-7.

[15] Diógenes Laércio, IX, 67 (=Decleva Caizzi, test. 20). Os dois versos de Homero citados são tirados da Ilíada, VI, 146 e XXI, 106s.

[16] Aristóteles, fr. 6 Heiland (=Decleva Caizzi, test. 53).

[17] Diógenes Laércio, IX, 61 (= decleva Caizzi, test. 1 A).

[18] Sexto Empírico, Adv. Math., XI, 20 (Tímon, fr. 68 Diels = Decleva Caizzi, test. 62)

[19] Cícero, De fin., II, 13, 43 (=Decleva Caizzi, test. 69 B). Sobre Aríston cf. A. M. loppolo, Aristone di chio e lo stoicismo ântico, Bibliopolis, Nápoles 1890.

[20] Cícero, De fin., IV, 16, 43 (=Decleva Caizzi, test. 69 C). Eis ainda uma  passagem da mesma obra (V, 8, 23 – Decleva Caizzi, test. 69 I): “Não sentimos a necessidade de citar as teorias, atualmente desaprovadas e descartadas, de Pirro, Aristo e Hérilo, pois não podem entrar no círculo traçado por nós. Todo esse problema do termo extremo e, por assim dizer, dos limites do bem e do mal, parte do que definimos como conexo a apropriado à natureza, e constitui o primeiro objeto para o qual se exercita a natural inclinação: portanto, os dois primeiros a abolem completamente, afirmando qu para as coisas nas quais não intervém a noção de honesto ou desonesto não há razão para estabelecer preferências e que entre eles não existe diferença alguma, e também Hérilo, se pensou que nada é bom fora do saber, aboliu todo motivo para tomar uma deliberação, bem como a faculdade de encontrar o dever”.

[21] Aristóteles, Metafísica, I 4, 1008 a 30-33.

[22] Aristóteles, apud Eusébio, Praep. Evang., XVI, 18, 3s. (=Decleva Caizzi, test. 53).

[23] Diógenes Laércio, IX, 66 (=Decleva Caizzi, test. 14)

[24] Aristóteles, Metafísica, I, 4, 1008 b 14-19.

[25] Diógenes Laércio, IX, 62 (=Decleva Caizzi, test. 6).

[26] Diógenes Laércio, IX, 63 (=Decleva Caizzi, test. 10)

[27] Sexto Empírico, esboços pirronianos, I, 192.

[28] Possidônio, apud Diógenes Laércio, IX, 68 (= Edelstein-kidd, fr. 287 = Theiler, fr. 453 Db = Decleva Caizzi, test. 17 A).

[29] Diógenes Laércio, IX, 67 (= Decleva Caizzi, test. 17 A).

[30] Cícero, Acad. pr., II, 42, 130 (= Decleva Caizzi, test. 69 A).

[31] Diógenes Laércio, IX, 66 (= Decleva Caizzi, test. 15 A).

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