Síntese: Paolo Cugini
O encontro com o Oriente e o influxo dos
ginosofistas.
[Pirro] teve a
possibilidade de estabelecer relações com os ginosofistas na Índia e com os
magros. Dali tirou maior estímulo para as suas convicções filosóficas, e parece
que abriu para si a via nobre na filosofia, enquanto introduziu e adotou os
princípios da akatalexía (isto é, da irrepresentabilidade ou incompreensão das
coisas) e da apoché (isto é, da suspensão do juízo): esse primado foi-lhe
atribuído por Ascânio de Abdera[1].
Retirava-se do
mundo e buscava a solidão tranqüila, de modo que raramente mostrava-se aos de
casa. Comportava-se assim porque ouviu um hindu reprovar a Anaxarco,
dizendo-lhe que jamais poderia instruir alguém a ser melhor, enquanto ele mesmo
freqüentasse as cortes reais e obsequiasse os reis[2].
Calano, que por
um breve período foi atormentado por dores no ventre, pediu que lhe erigissem
uma fogueira. Depois, dirigiu-se ao lugar a cavalo, rezou e derramou as
libações fúnebres sobre si mesmo, cortou uma mecha dos próprios cabelos e
ofereceu-a aos deuses, como se usa nos sacrifícios, e subiu à fogueira,
saudando os macedônios presentes e exortando-os a transcorrer prezerosamente
aquele dia e a banquetear-se junto ao rei, o qual logo, disse ele, deveria rever
Babilônia. Dito isso, deitou-se e cobriu a cabeça. O fogo aproximou-se, mas ele
não se moveu: como se tinha deitado, assim permaneceu, imolado-se segundo o uso
dos sábios do seu país[3].
O influxo dos megáricos e dos atomistas.
Anaxarco nasceu
De resto,
sabemos também que
Pirro, muito
amiúde, citava Demócrito[5].
E não poucos
eram [...] os que diziam que também Metrodoro e Anaxarco [...] negaram a
existência do critério do juízo; principalmente Metrodoro, porque diz: “Nada
sabemos, e não sabemos nem mesmo isto, que nada sabemos”[6].
Demócrito às
vezes refuta as aparências sensíveis e diz que nada nelas nos aparece segundo a
verdade, mas só conforme à opinião, e que o verdadeiro nos objetos consiste em
que esses são átomos e vazio. De fato, ele diz: “Opinião é o doce, opinião o
amargo, opinião o quente, opinião o frio, opinião a cor; verdade os átomos e o
vazio”; vale dizer: considera-se e opina-se que existam qualidades sensíveis,
porém, na verdade elas não existam, mas somente os átomos e o vazio. Nos seus
Livros probatórios, embora tivesse prometido atribuir valor de credibilidade às
sensações, entretanto encontra-se que ele as condena: “Na realidade nós não
conhecemos nada que seja invariável, mas só aspectos mutáveis segundo a
disposição do nosso corpo e do que nele penetra ou lhe resiste[7].
“Que, portanto,
nós não conheçamos segundo a verdade o modo como é ou como se constitui cada
objeto, foi demonstrado em vários lugares[8].
De modo
particular, agradou aos céticos a afirmação democritiana:
Na realidade nós
nada conhecemos, porque a verdade jaz no abismo[9].
A reviravolta radical da ontologia.
Ó velho, ó
Pirro, como e onde encontraste saída para a servidão às vãs opiniões dos
sofistas, e quebraste as cadeias de todos os enganos e o encanto das suas
tagarelices? Nem te preocupaste com investigar que ventos correm na Hélade, nem
de que se formam todas as coisas e em que se dissolvem[10].
As coisas não
possuem qualquer diferença, nem medida, nem discriminação[11].
Nada é mais isso
que aquilo[12].
O fenômeno
domina sempre, onde quer que apareça[13].
Na verdade, o
que desde os tempos antigos, como agora e sempre, constitui o eterno objeto de
pesquisa e o eterno problema: que é o ser, equivale a isso: que é a substância
[...]: por isso também nós, principalmente, por assim dizer, devemos examinar
que é o ser nesse sentido[14].
O pirronismo como sistema prático de
sabedoria e as suas três regras fundamentais.
Filo, o
ateniense, seu íntimo amigo, dizia que Pirro mencionava muito amiúde a
Demócrito, mas também a Homero, a quem admirava e do qual costumava citar o
verso:
Qual a estirpe
das folhas, a mesma também a dos homens.
E louvava-o
ainda porque costumava comparar os homens às vespas, às moscas e aos pássaros.
E citava de bom grado os seguintes versos:
Portanto, amigo,
Pátroclo, que era muito mais valoroso que tu.
e todas as
passagens alusivas à instabilidade da condição humana, à inutilidade dos
propósitos e à pueril loucura do homem[15].
[Pirro] não
deixou nada escrito, mas o seu discípulo Tímon diz que quem deseja ser feliz
deve considerar essas três coisas: 1) em primeiro lugar, qual é a natureza das
coisas; 2) em segundo lugar, de que modo devemos nos dispor diante delas; 3) em
terceiro lugar, o que resultará aos que se encontram nessa disposição. 1)Ora, ele
diz que Pirro mostra que as coisas são igualmente indiferentes, imensuráveis e
indiscrimináveis e, por isso, nem as nossas sensações nem as nossas opiniões
podem ser verdadeiras ou falsas. 2) Por conseqüência, não se lhes deve dar
confiança, mas é preciso ser sem opinião, sem inclinação, sem agitação,
afirmando de cada coisa que é não mais do que não é, ou que é e que não é, ou
ainda que nem é nem não é. 3) Os que se põem nessa disposição conseguirão, diz
Tímon, em primeiro lugar, a afasia, e depois a ataraxia[16].
A natureza das coisas como aparência
indiferenciada e a natureza do divino e do bem.
Pirro dizia que
nada é belo nem feio, nada é justo nem injusto, e aplicava igualmente a todas
as coisas o princípio segundo o qual nada existe na verdade, e sustentava que
tudo o que os homens fazem acontece por convenção e por hábito, e que nada é
mais isso que aquilo[17].
Dir-te-ei na
verdade como me parece que seja, tomando como reto cânon essa palavra de
verdade: uma natureza do divino e do bem vive eternamente, da qual deriva para
o homem a vida igualíssima (ίσóτατος βίος)[18].
Dado que Aristo
e Pirro consideram isso sem qualquer importância, a ponto de dizer que não há
absolutamente qualquer diferença entre gozar de ótima saúde e ter a mais grave
das enfermidades, com razão já há muito tempo cessou toda disputa contra eles.
Com efeito, quiseram considerar tudo na virtude, de modo a privá-la de toda
faculdade de escolha sem, ademais, conceder-lhe um ponto de origem ou de apoio;
isto fazendo, aboliram a própria virtude, à qual atribuíam tão grande valor[19].
Portanto –
parece-me – todos os que consideraram o viver honestamente como fim último do
bem, enganaram-se, porém, alguns mais e outros menos: mais do que todos,
naturalmente, Pirro, que, uma vez estabelecia a virtude, não deixa
absolutamente nada a que se tenha inclinação; depois Aristo, que não ousou não
deixar nada e introduziu impulsos pelos quais o sábio se inclinasse a alguma
coisa, qualquer uma que lhe passasse pela mente e, por assim dizer, se lhe
apresentasse diante. Este, melhor do que Pirro, porque concedeu alguma espécie
de inclinação natural; pior do que os outros, porque afastou-se profundamente
da natureza[20].
A atitude que o homem deve assumir diante
das coisas: a abstenção do juízo e a indiferença.
É evidente que a
discussão com tal adversário não pode dar em nada, porque ele não diz nada: de
fato, ele não diz nem que a coisa é assim, nem que não é assim, mas diz que é
assim e não é assim, e em seguida, de novo, nega uma e outra afirmação, e diz
que a coisa não é assim nem não assim[21].
É preciso não
ter opinião [...] afirmando de cada coisa que é, não mais do que não é, ou que
é e que não é, ou ainda que nem é nem não é. Os que se põe nessa disposição em
primeiro lugar a afasia [...][22].
Viveu piamente
com a irmã, que era parteira, segundo o testemunho de Erastóstenes, na sua obra
Riqueza e pobreza, onde também se narra que às vezes Pirro levava para vender
no mercado, segundo os casos, pássaros e leitões e fazia a limpeza da casa com
perfeita indiferença. Diz-se também que dava outra prova de indiferença ao
lavar um leitãozinho[23].
Com efeito, por
que razão aquele que raciocina desse modo [ou seja, negando o princípio de
não-contradição] vai verdadeiramente a Megara e não fica em casa tranqüilo,
contentando-se simplesmente com pensar em ir? E por que, ocasião, quando
ocorre, não despenca um poço ou num precipício, mas cuidar-se bem, como se
estivesse convencido de que o cair ali não seria absolutamente coisa boa e não
boa? É claro, que ele considera a primeira coisa melhor e a outra pior[24].
A sua vida foi
coerente com a sua doutrina. Deixava todas as coisas seguirem o seu curso
natural e não tomava qualquer precaução, mas mostrava-se indiferente diante de
qualquer perigo que lhe ocorresse, fossem carros ou precipícios ou cães, e
absolutamente nada concedia ao arbítrio dos sentidos. Mas, segundo o testemunho
de Antígono de Caristo, eram os seus amigos, que sempre o acompanhavam, a
salvá-lo dos perigos[25].
Nunca perdia a
compostura, de modo que se alguém se intrometia no seu discurso, ele o concluía
tranqüilamente, embora na juventude tivesse sido facilmente irascível [...].
Quando, certa feita, Anxarco caiu pântano, Pirro continuou o seu caminho sem
ajuda-lo. Alguém reprovou-o por tal comportamento, mas o próprio Anaxarco
louvou a sua indiferença e a sua impassibilidade[26].
A conquista da afasia, da ataraxia e da
apatia.
Sobre a afasia
digamos o seguinte [...]. Em sentido genérico, “fasi” é uma palavra que
significa afirmação ou negação, como “é dia”, “não é dia” [...]. Portanto,
afasia equivale a renunciar à fasi, no seu significado comum, no qual dizemos
que estão contidas a afirmação e a negação; de modo que afasia é uma afecção
interna a nós, pela qual nem afirmamos nem negamos[27].
Enquanto os seus
companheiros de viagem no navio apavoravam-se por causa de uma tempestade, ele
permanecia tranqüilo e retomava ânimo, apontando um leitãozinho que continuava
a comer, e acrescentando que tal imperturbabilidade (άταραξία) era exemplar
para o comportamento do sábio[28].
Narra-se,
ademais, que, quando por alguma ferida foram-lhe aplicados medicamentos
corrosivos e teve de submeter-se a cortes ou cauterizações, não contraiu sequer
pálpebras[29].
Segundo Aristo,
o bem consiste em não ser, nessas coisas [intermédias entre a virtude e o
vício], movido nem a uma parte nem a outra e isso é chamado por ele de
adiaforia. Mas Pirro diz que o sábio nem sequer o sente e chama a isso de
apatia[30].
Mas certa feita
perdeu a calma por uma injúria dirigida a sua irmã – que se chamava Filista –
e, a quem o repreendeu, disse que uma mulher não é um bom ponto de comparação
para a indiferença. Outra vez foi agitado pelo ataque de um cão e replicou, a
quem o reprovou por isso, dizendo que era difícil espoliar completamente o
homem (óλοσҳερώς έκδϋναι τόν άνθρωπον), acrescentando que contra as coisas é
preciso, em primeiro lugar, se possível, lutar com fatos, do contrário, com a
razão[31].
[1] Diógenes
Laércio, IX, 61 (= Decleva Caizzi, test.
[2] Diógenes
Laércio, IX, 63 (= Decleva Caizzi, test. 10)
[3]
Plutarco, Vida de Alexandre, 69.
[4] Diógenes
Laércio, IX, 58 (Diels-kranz,
[5] Diógenes
Laércio, IX, 67 (= Decleva Caizzi, teste. 20).
[6] Sexto
Empírico, Contra os matem., VII, 87s. (Diels-kranz,
[7] Sexto
Empírico, Contra os matem., VII, 135 (Diels-kranz, 68 B 9).
[8] Idem,
ibidem (= Diels-kranz, 68 B 10)
[9]
Diels-kranz, 69 B 117.
[10] Tímon,
fr. 48 Diels = Decleva Caizzi, test. 60.
[11] Aristécles, fr. 6 Heiland (=
Decleva Caizzi, test. 53).
[12]
Diógenes Laércio, IX, 61 (= Declava Caizzi, test. 1).
[13] Tímon,
fr. 69 Diels (=Decleva Caizzi, test.
[14]
Aristóteles, Metafísica, Z 1, 1028 b 1-7.
[15]
Diógenes Laércio, IX, 67 (=Decleva Caizzi, test. 20). Os dois versos de Homero
citados são tirados da Ilíada, VI, 146 e XXI, 106s.
[16] Aristóteles, fr. 6 Heiland
(=Decleva Caizzi, test. 53).
[17] Diógenes Laércio, IX, 61 (= decleva
Caizzi, test.
[18] Sexto Empírico, Adv. Math., XI, 20
(Tímon, fr. 68 Diels = Decleva Caizzi, test. 62)
[19] Cícero, De fin., II, 13, 43 (=Decleva
Caizzi, test. 69 B). Sobre Aríston cf. A. M. loppolo, Aristone di chio e lo
stoicismo ântico, Bibliopolis, Nápoles 1890.
[20]
Cícero, De fin., IV, 16, 43 (=Decleva Caizzi, test.
[21]
Aristóteles, Metafísica, I 4,
[22]
Aristóteles, apud Eusébio, Praep. Evang., XVI, 18, 3s. (=Decleva Caizzi, test.
53).
[23]
Diógenes Laércio, IX, 66 (=Decleva Caizzi, test. 14)
[24]
Aristóteles, Metafísica, I, 4, 1008 b 14-19.
[25]
Diógenes Laércio, IX, 62 (=Decleva Caizzi, test. 6).
[26]
Diógenes Laércio, IX, 63 (=Decleva Caizzi, test. 10)
[27] Sexto
Empírico, esboços pirronianos, I, 192.
[28]
Possidônio, apud Diógenes Laércio, IX, 68 (= Edelstein-kidd, fr. 287 = Theiler,
fr. 453 Db = Decleva Caizzi, test.
[29]
Diógenes Laércio, IX, 67 (= Decleva Caizzi, test.
[30] Cícero,
Acad. pr., II, 42, 130 (= Decleva Caizzi, test.
[31]
Diógenes Laércio, IX, 66 (= Decleva Caizzi, test.
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