O MÉDIO-PLATONISMO E A REDESCOBERTA DA
METAFÍSICA PLATÔNICA.
I. GÊNESE, CARACTERISTICAS E EXPOENTES DO
MÉDIO-PLATONISMO.
As últimas vicissitudes da Academia e as
origens do médio-platonismo.
Fui – como de
costume – ó Bruto, ouvir Antíoco junto com Parco Pisão no ginásio chamado
Ptolomeu, e estavam conosco o meu irmão Quinto, Tito Pompônio e Lúcio Cícero,
que por parentesco é meu sobrinho por parte de pai, mas por afeto me é caro
como um irmão. Combinamos fazer um passeio vespertino pela Academia, sobretudo
porque tal lugar naquela hora tinha pouca gente. Portanto, encontramos-nos
todos na casa de Pisão na hora marcada. Dali percorremos conversando os seis
estádios que existem partindo da porta Dípilo. Quando chegamos à região da
Academia com toda justiça celebrada, havia justamente a solidão que nós
desejávamos. Então Pisão disse: “Devo atribuir a um fenômeno natural ou a um
erro o fato de que, quando chagamos aos lugares que sabemos terem sido
freqüentados por homens dignos de memória, sentimos uma impressão maior do que
quando ouvimos falar das suas ações ou lemos alguns dos seus escritos? Por
exemplo, agora estou emocionado. Vem-me à mente Platão que, segundo se nos diz,
foi o primeiro que costumava discutir aqui, e aqueles pequenos jardins perto
daqui não só me fazem recordá-lo, mas parece que o põem diante dos meus olhos.
Aqui estiveram Espêusipo, Xenócrates, aqui esteve o escolarca Pólemon, que se
sentava justamente naquele lugar que ali vemos [...][1].
II. A METAFÍSICA DO MÉDIO-PLATONISMO.
O ser incorpóreo, Deus e a sua
transcendência.
[...] Vai-se
divagando de emanações de Deus e de transformações tais que Deus se dissolveria
em fogo com todo o universo e depois, novamente, se contrairia, aqui embaixo, e
se distenderia pouco a pouco em terra, mar, vento, animais, e entraria nas
formas pavorosas dos viventes e das plantas: tudo isso, até mesmo ouvi-lo, é
impiedade![2]
E ainda:
Não é verossímil
nem conveniente, como afirmam alguns filósofos, que Deus se encontre misturado
com alguma matéria sujeita a todas as afecções e com coisas que sofrem
inumeráveis formas de necessidade, causalidade e mudança[3].
Deus, reafirma
Plutarco, é transcendente no sentido
Mas Deus, em si
mesmo, está muito longe da terra, incontaminado, incorruptível, puro de toda
matéria que sofre destruição e morte[4].
[...]
Trata-se, ao
contrário, de um modo, antes, do modo mais completo, em si e para si, de
volver-se a deus e saudá-lo: pronunciar esta sílaba já significa instalar-se na
inteligência do ser divino. Explico-me: deus, como para acolher cada um de nós
no ato de nos aproximar daquele lugar, dirige-nos aquela sua advertência:
“Conhece-te a ti mesmo”, que é muito mais do que o costumeiro “Salve”. E nós,
em troca, confessamos a deus: “Tu és – EI”, e assim pronunciamos o apelativo
preciso, verídico e único que somente a ele se adapta. Na verdade, a nós homens
não compete, rigorosamente falando, o ser. Toda mortal é, na verdade, a
natureza, introduzida como é, entre o nascer e o morrer; ela oferece apenas um
fantasma e uma aparência, frágil e lânguida, de si. Quando fixas a tua mente
com a intenção de captá-la, é como se apertasses a água com a mão. Quanto mais
a constranges e tentas recolhê-la, tanto mais os próprios dedos que a encerram
fazem-na escorrer e perder-se. Do mesmo modo, também a razão insegura, por sua
vez, sujeita a plena clareza de todas as coisas às várias influências e à
mudança: ela fica desiludida, quer se volte para o seu nascer, quer para o seu
perecer, pois nunca conseguirá captar nada de estável, nada que exista
realmente. “Certo, não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”, como diz
Heráclito, nem, portanto, se pode entrar duas vezes, na mesma situação, uma
substância mortal. Ao contrário, súbitas e rápidas mudanças “distendem-na e de
novo a contraem” ou, melhor, não “de novo”, não “mais tarde”, mas “ao mesmo
tempo” ela se constitui e perece, “entra e sai”. De onde se segue que tal
substância mortal não leva a termo na via da existência tudo o que nela entra
no devir, pelo simples fato de que justamente esse devir não conhece nunca
trégua ou repouso. Assim, do germe, numa transformação incessante, ela produz o
embrião, depois o fato e depois a criança, em seguida, o adolescente, o jovem,
e depois o homem, o ancião, o velho, destruindo pouco a pouco os estágios
precedentes do desenvolvimento e das diferentes idades, para dar lugar às que
se seguem. Entretanto nós – ó, que coisa mais ridícula! – não tememos senão uma
só morte, enquanto, na realidade, sofremos e sofreremos infinitas mortes!
Porque, não só “a morte do fogo – no dizer de Heráclito – nasce do ar, e a
morte do ar nasce pela água”, mas isso é muito mais claro no nosso caso: o
homem maduro morre quando nasce o velho; e o jovem morreu para dar lugar ao
homem maduro; e assim a criança para dar lugar ao jovem; e o feto para a
criança. O homem de ontem é morto pelo homem de hoje; e o homem de hoje morre
pelo homem de amanhã. Ninguém persevera, ninguém é uno; mas nós nos tornamos
uma multidão: em torno a não sei que fantasma, em torno a um substrato comum de
argila a matéria circula e se esvai. De resto, como é que, supondo perseverar
numa identidade, alegramo-nos agora com coisas diferentes das que antes nos
alegravam? Como é que objetos contrários suscitam ora amor, ora ódio, ora
admiração, ora lástima? Por que usamos palavras sempre diferentes e estamos
sujeitos a diferentes sentimentos? Por que não são nunca iguais em nós nem o
aspecto, nem a figura, nem o pensamento? Sem mudanca, com efeito, não se
explicam esses estados constantemente diferentes; e quem muda, portanto, não é
mais o mesmo. Mas se alguém não é o mesmo, simplesmente não é, mas se torna
sempre novo e diferente do diferente de antes, justamente pelo fato de mudar.
Erram os nossos sentidos, por ignorância do ser real, ao dar ser ao que apenas
aparece. Mas, então, que é o ser real? O eterno, Aquele que não nasce. Aquele
que não morre. Aquele no qual nem sequer um instante de tempo pode introduzir
mudança. Algo que se move e que aparece simultâneo com a matéria em movimento;
algo que flui perpétua e irresistivelmente, como um vaso de nascimento e de
morte: eis o tempo! Até mesmo as palavras habituais, o “depois”, o “antes”, o
“será”, o “acontece” são a espontânea confissão do nosso não-ser. De fato, é
ingênuo e absurdo dizer “é” de alguma coisa que ainda não entrou no ser, ou de
alguma coisa que já cessou de ser. As nossas expressões habituais, sobre as
quais se fundam, ademais, a nossa noção do tempo, isto é, “existe”, “é
presente”, “agora”, diluem-se todas quando o raciocínio se aprofunda nelas. O
presente, de fato, distanciado como é, necessariamente, do futuro e do passado,
dissipa-se como um raio para os que querem captá-lo. Mas se a natureza medida
encontra-se na mesma relação com o tempo que a mede, nada existe nela que seja
estável, nada que seja existente; antes, tudo está sujeito às vicissitudes do
nascimento e da morte, sob o comum ritmo do tempo. De modo que, dizer do Ser
verdadeiro, “ele foi” ou “ele será” é quase um sacrilégio. Tais determinações,
na verdade, são flexões e alterações do que não nasceu para permanecer no ser.
Mas deus (seria preciso dize-lo?) “e”; é, digo, não já segundo do o ritmo do
tempo, mas no eterno, que é imóvel, atemporal, sem vicissitudes; e não admite
nem antes, nem depois, nem futuro, nem passado, nem idade de velhice ou de
juventude. Não, Ele é uno e na unidade do presente preenche o “sempre”: o que
nesse sentido existe realmente, o “é” unicamente: não advém, não será, não
começou, não acabará[5].
Além das causas
eficientes, não podem existir senão as incorpóreas; de fato, os corpos são
passivos e mutáveis e não se encontram sempre nas mesmas e idênticas condições,
nem são fixos e imutáveis, e logo se descobre que são passivos também quando
parece que neles existe uma atividade; assim, pois, como existe algo de
puramente passivo, assim também é preciso que exista algo de absolutamente
ativo; e isso não poderia ser outra coisa senão o incorpóreo[6].
Deus não tem
partes porque não existe nada antes dele; de fato, a parte e aquilo do que as
coisas são feitas existem antes daquilo de que são partes; com efeito, a
superfície existe antes do sólido e a linha antes da superfície; não tendo,
pois, partes, é imóvel seja no que diz respeito ao movimento espacial, seja no
que diz respeito ao qualitativo. Se, de fato, mudasse, isso aconteceria ou por
si mesmo ou por outro: se fosse por outro, mudaria ou para pior ou para melhor:
ambas as possibilidades são, contudo, absurdas. Daí resulta também que ele é
incorpóreo. Isso também se demonstra com os seguintes argumentos: se Deus
tivesse corpo, seria constituído de matéria e de forma; todo corpo é, com
efeito, um composto de matéria e da forma que lhe é imanente; esse composto é
semelhante às Idéias e participa delas de um modo difícil de explicar; é
absurdo, então que Deus seja feito de matéria e de forma: não seria, com
efeito, simples e originário. Conseqüentemente é incorpóreo. E ainda: se fosse
corpo, seria feito de matéria, portanto, seria ou fogo, ou água, ou terra, ou ar
ou qualquer coisa derivada desses elementos; mas nenhum desses tem caráter de
princípio. Ademais, seria posterior à matéria, se de mataria fosse feito: dado
o absurdo dessas conclusões, é necessário concebê-lo como incorpóreo: de fato,
se é corpo, é corruptível e gerado e mutável: mas cada um desses atributos é
absurdo com relação a ele[7].
Segundo Platão
existem duas realidades – que nós chamamos essências [= substâncias] – das
quais todas as coisas e o próprio mundo derivam: a primeira é captada apenas com
o pensamento, a segunda pode cair sob os sentidos. Mas a primeira, que é
captada com os olhos da mente, encontra-se sempre na mesma condição, igual e
semelhante a si própria, como a que verdadeiramente é: a segunda, ao invés,
como afirma Platão, nasce e morre, e é captada pela opinião sensível e
não-racional. E como a primeira é considerada o verdadeiro ser, a segunda não é
verdadeiro ser. A primeira substância ou essência é o primeiro Deus e a mente e
a forma das coisas, e também a alma
delas, a segunda substância é tudo o que recebe uma forma e que se gera e tem
origem do modelo da substância superior, que pode mudar e transformar-se
confluindo e escorrendo com a água dos rios[8].
É inefável e
captável apenas com o intelecto, como se disse, pois não é nem gênero, nem
espécie, nem diferença específica e nem mesmo, por outro lado, lhe compete
qualquer especificação, nem má (porque não é lícito dizer isso), nem boa (pois
ele seria bom por participação em alguma coisa, e especificamente na bondade);
nem é indiferente (porque isso não corresponde à sua noção). Nem se lhe atribui
qualidade (porque não tem nada a ver com qualidades e é perfeito
independentemente da qualidade), nem é sem qualidade (porque não é privado de
qualidades que com ele possam competir). Não é parte de alguma coisa, nem tem
partes como um todo, nem por conseqüência, é igual a qualquer coisa, nem
diferente; nada, com efeito, se lhe acrescenta por força da qual possa ser
separado das outras coisas; nem move, nem é movido[9].
As Idéias como pensamento de Deus e a
distinção entre inteligíveis primeiros ou Idéias transcendentes e inteligíveis
segundos ou formas imanentes às coisas.
Dado que [...] o
primeiro Intelecto é excelsamente belo, é necessário que também o seu
inteligível seja excelsamente belo, mas em nada mais belo que Ele; portanto,
pensa a si mesmo, e os pensamentos de si mesmo e esta sua atividade é,
justamente, a Idéia[10].
Que as Idéias
existam é provado com os seguintes argumentos: se Deus é um intelecto ou
qualquer coisa pensante, então tem pensamentos e esses pensamentos são eternos
e imutáveis; mas se isso é assim, existem Idéias. E se a matéria é, por sua
própria natureza, sem medida, é necessário que encontre medida em algum outro,
melhor e imaterial; mas a antecedente é verdadeira, portanto, também a
conseqüente o é. Mas se é assim, então as Idéias existem como medidas
imateriais[11].
A hierarquia do divino: rumo à da doutrina
das hipóstases.
Dado que o
Intelecto é melhor que a alma e, do intelecto em potência, é melhor o que em ato
pensa todas as coisas juntas e sempre, e mais excelente do que esta é a causa
dele e o que pode estar acima dele, tal é o primeiro Deus, que é a causa da
eterna atividade do intelecto de todo o céu. Ele o faz mover-se, permanecendo
ele mesmo imóvel, como faz o sol com relação à vista, quando esta o olha, e
como o objeto do desejo move o desejo, permanecendo imóvel; assim, justamente,
também esse intelecto moverá o intelecto de todo o céu. Porque o primeiro
intelecto é excelsamente belo, mas em nada mais belo que ele: portanto, pensa a
si mesmo e os seus pensamentos, e esta sua atividade é, justamente, a Idéia.
Ademais o primeiro Deus é eterno, inefável, perfeito em si, isto é, sem
qualquer necessidade, eternamente realizado, isto é, eternamente perfeito, inteiramente
realizado, isto é, inteiramente perfeito: é divindade, substancialidade,
verdade, proporção, bem. Digo isso não pretendendo separar essas coisas, mas
pretendendo pensar, mediante elas, uma unidade. É bem porque beneficia toda
coisa enquanto é possível a ela, sendo causa de todo bem; é belo porque por sua
natureza é perfeito e proporcionado; é verdade porque é princípio de toda
verdade, como o sol é princípio de toda luz; é pai porque é causa de toda e
ordena o intelecto do céu e a alma do mundo em relação a si mesmo e às suas
intelecções. Segundo a sua vontade, de fato, preencheu todas as coisas de si
mesmo e, tendo despertado a alma do mundo e tendo-a voltado para si mesmo, é
causa do seu intelecto. Esse intelecto, ordenado pelo pai, ordena toda a
natureza nesse mundo[12].
A cosmologia médio-platônica: a matéria e a
origem do cosmo.
Ela é, pois,
chamada por Platão de matriz impressionável, receptáculo, nutriz, mãe, espaço,
substrato não-perceptível pela sensação e captável apenas por meio de um raciocínio
bastardo. Ela tem a propriedade de receber tudo o que nasce, tendo a função de
uma nutriz ao carregar e receber todas as figuras, mas é por si sem forma, sem
qualidade e sem figura; embora sendo modelada e marcada por essas figuras como
uma matriz impressionável que assume essas figuras, ela não possui em si
nenhuma figura nem qualidade. De fato, não seria algo apto a receber marcas e
formas variadas, se não fosse privada de qualidade e daquelas figuras que ela
acolhe; vemos, com efeito, que também os que preparam com óleo ungüentos
perfumados, usam o óleo inodor e os que querem plasmar formas com cera e
argila, lixam e tornam esses materiais o quanto possível privados de qualquer
figura. Portanto, é necessário que também a matéria, que tudo acolhe, se deve
receber as formas em toda a sua extensão, não tenha em si qualquer natureza
delas, mas seja sem qualidade e sem forma, para poder acolher, justamente, as
formas; sendo tal, não é nem corpo, nem incorpóreo, mas é corpo em potência,
como dizemos que o bronze é estátua em potência, enquanto se tornará estátua
quando tiver recebido a forma[13].
Platão observa
que a matéria deve ser ingênua e incorruptível, que não é nem fogo, nem água,
nem qualquer outro dos princípios ou elementos originários, mas entre todos é
primeira, capaz de receber forma e de receber figura e, ademais, bruta e
privada de qualificações formais: é o Deus artífice que a conforma na sua
totalidade. Platão a considera infinita: de fato, o que é infinito não tem um
limite determinado para a sua grandeza e, portanto, dado que a matéria é
privada de termo, pode-se, justamente, considerá-la ilimitada. Mas Platão não
admite nem que seja corpórea nem incorpórea, não a considera, com efeito, um
corpo, porque nenhum corpo pode ser privado de forma; ademais, não se pode
dizer que é sem corpo, porque nada do que é incorpóreo pode apresentar um
corpo, enquanto potencialmente e racionalmente lhe parece ser corpo, e é por
isso que ela não é captável nem só com o tato, nem só com a conjetura racional.
De fato, os corpos se conhecem em virtude de sua evidência com um raciocínio
que é congênere, enquanto o que é privado de matéria corpórea é captado com os
raciocínios. Portanto, a característica dessa matéria se capta com uma
conjetura espúria e como que ambígua[14].
Quando Platão
diz que o mundo é gerado, não se deve entendê-lo no sentido em que houve um
tempo no qual o mundo não existia, mas que o mundo está sempre em devir e
manifesta um princípio mais originário do que o seu ser. E também a alma do mundo,
que é eterna, nem mesmo a esta deus cria, mas a ordena; e diz-se que a cria no
seguinte sentido: despertando e voltando para si intelecto dela e a ela mesma como de uma
letargia e de um sono profundo, para que, olhando para os inteligíveis de Deus,
acolha as Idéias e as formas, olhando para os pensamentos dele[15].
A demonologia médio-platônica.
Platão,
Pitágoras, Xenócrates, Crísipo, seguidores dos primitivos escritores de coisas
sagradas, afirmam que os Demônios são dotados de força sobre-humana, antes,
superam de muito, por extensão de potência, a nossa natureza, mas não possuem o
elemento divino puro e incontaminado, mas participam, ao mesmo tempo, de uma
dupla sorte, enquanto reúnem natureza espiritual e sensação corpórea, na qual
acolhem prazer e trabalho; e tal elemento misto é, justamente, a fonte da
perturbação[16].
III. A ANTROPOLOGIA E A ÉTICA DO
MÉDIO-PLATONISMO
O fim supremo do homem e a assimilação a
Deus.
Platão, em
conseqüência de todas essas coisas, põe como fim o assimilar-se a Deus enquanto
possível; esta doutrina é tratada de vários modos. Às vezes, de fato, diz que o
assimilar-se a Deus é ser sábios, justos e santos, como no Teeteto; por isso é
preciso também tentar fugir daqui para o alto, o quanto antes possível; a fuga
é, com efeito, o assimilar-se a Deus enquanto possível. O assimilar-se é o
tornar-se justo e santo com o pensamento, às vezes apenas o ser justo, como no
último livro da República: não está nunca ignorado pelos deuses aquele que
deseje ser justo e, ocupando-se da virtude, enquanto possível ao homem, queira
assimilar-se a Deus. No Fédon, depois, diz que o assimilar-se a Deus é
tornar-se ao mesmo tempo temperantes e justos, mais ou menos como se segue:
“Portanto, serão os mais felizes e afortunados e irão para os melhores lugares,
os que praticam a virtude comum e a própria do bom cidadão, a que chamamos
temperanças e justiça”. Às vezes diz que o fim é assimilar-se a Deus, às vezes
que é segui-lo, como quando afirma: “Deus, segundo a antiga tradição, princípio
e fim etc.”. Às vezes diz as duas coisas, como quando afirma: “A alma que segue
a Deus e que se assimila a ele etc.”. O bem é o principio do que convém fazer e
também disso afirma-se que vem de Deus; portanto o fim que se segue ao
princípio é assimilar-se a Deus, ao Deus celeste, evidentemente, e não, por
Zeus, ao supraceleste, o qual não tem virtude, mas é melhor do que esta; por
isso pode-se dizer que a infelicidade é uma má disposição da divindade
interior, a felicidade, uma boa disposição. Podemos chegar a ser semelhantes a
Deus, se tivermos uma natureza adaptada, costumes, uma educação e uma vida
segundo as leis e, sobretudo, se usarmos a razão, o ensinamento e a tradição
das doutrinas, de modo a manter-nos afastados da maioria das coisas humanas e
de modo a estar sempre voltados às coisas inteligíveis. Se queremos ser
iniciados nos conhecimentos mais elevados, a preparação e a purificação do
demônio que existe em nós deverão acontecer através da música, da aritmética,
da astronomia e da geometria, e deveremos nos ocupar também do corpo com a
ginástica, a qual adestra e bem dispõe os corpos à guerra e à paz[17].
Procedendo
ordenadamente, é preciso falar agora, sumariamente, das coisas ditas por Platão
relativas à ética. Ele considerava que o bem mais valoroso e maio não fosse
fácil de encontrar e, tendo-o encontrado, não seria prudente oferecê-lo a
todos. Certamente pouquíssimos e seletos discípulos tornou participantes da sua
lição sobre o Bem. Ademais, examinando acuradamente as suas obras, pode-se ver
que Platão pôs o nosso bem na ciência e na contemplação do primeiro bem, que
pode ser chamado Deus primeiro intelecto[18].
A natureza espiritual do homem e a
concepção dualista de alma e corpo.
A parte imersa e
presa nos movimentos do corpo é chamada alma; quanto à parte incorruptível, a
maioria a chama intelecto e a crêem interior a si mesmos, como os reflexos num
espelho; mas os que julgam melhor a chamam Demônio, como a parte que lhes é
exterior[19].
Sobre o fato,
Platão pensa, aproximadamente, essas coisas. Diz que tudo está submetido ao
fato, mas que nem tudo é predestinado. Com efeito, o fato é como uma lei e não
estabelece, por exemplo, que uma pessoa fará determinada coisa, que outra
sofrerá outra coisa: isso, com efeito, iria ao infinito, pois infinito é o
número dos seres vivos e infinito o número das coisas que lhes acontecem;
ademais, o que está em nosso poder não estaria mais e não existiriam louvores,
lástimas e qualquer outra coisa do gênero; o fato estabelece, ao invés, que se
uma alma escolhe uma vida faz certas
coisas, se lhes seguirão outras. A alma é, pois, sem senhor e dela dependem o
fazer e o não fazer e isso não está submetido ao vínculo; as conseqüências das
suas ações, ao invés, se cumprirão segundo o destino. Por exemplo: ao fato de
Paris raptar Helena, fato que depende dele, seguir-se-á que os gregos farão
guerra por Helena. Assim, com efeito, também Apolo predisse a Laio: “Se gerares
um filho, este te matará”. Na lei divina estão contidos Laio e o fato de que
ele gere um filho, mas só o que se segue a isso é predestinado[20].
A tábua dos valores e a virtude.
Ele pensava que
todas as coisas chamadas boas pelos homens tinham esse nome pela sua
participação, de certo modo, no primeiro e mais valoroso bem, do mesmo modo que
as coisas doces e quentes têm esse nome pela sua participação no primeiro doce
e no primeiro quente. Só o nosso intelecto e a nossa razão podem chegar a
assimilar-se ao bem; por isso também o nosso bem é belo, nobre, divino, amável,
proporcionando e chamado com nomes dignos do divino. Dentre os que a maioria
chama bens, por exemplo, a saúde, a beleza, a força, a riqueza e as outras
coisas afins, nenhum em si é um bem, se não é usado virtuosamente; de fato,
separados da virtude, estão apenas no nível da matéria e tornam-se males para os
que os usam sem consideração; algumas vezes Platão os chama também de bens
mortais [= bens por participação][21].
A ética médio-platônica e a ética estóica.
O que possui a
ciência da qual falamos é o mais afortunado e feliz, contudo não pelas honras
que, sendo tal, receberá, nem pelas recompensas, mas mesmo que devesse
permanecer desconhecido a todos os homens e lhe acontecessem os que são
chamados males, por exemplo, a perda de todos os homens os direitos, o exílio,
a morte. Ao invés, quem, sem ter essa ciência, possui todos os que são chamados
bens, como a riqueza, o poder real, a saúde do corpo, o vigor, a beleza, em
nada é mais feliz[22].
[1] Cícero,
De finibus, V, 1, 1-2.
[2]
Plutarco, De E ap. Delph., 393 e.
[3] Plutarco, Ad. Princ. iner., 781 e.
[4]
Plutarco, De Is. et Osir.,
[5]
Plutarco, De E ap. delph., 392 a-393 b.
[6] Albino,
Didascálico.
[7] Albino,
Didascálico, X, 7-8.
[8] Apuleio,
De Platone, I, 193. Deve-se notar que, embora de passagem, Apuleio, pouco antes
(190), define Deus como “incorporeus, unus” e “απεριμετρος”, ou seja infinito,
usando um termo grego inusitado, que tem um paralelo semelhante (embora não
idêntico), por exemplo, em Filo de Alexandria (cf., por exemplo, Sacrif., 59,
onde é usado o termo aperigrajoV).
[9] Albino,
Didascálico, X, 4.
[10] Albino,
Didascálico, X, 3.
[11] Albino,
Didascálico, IX, 3.
[12] Albino,
Didascálico, X, 2-3; ver também a passagem reportada mais adiante, p. 305.
[13] Albino,
Didascálico, VIII, 2-3.
[14]
Apuleio, De Platone, II, 191s.
[15] Albino,
Didascálico, XIV, 3.
[16]
Plutarco, De Is. et Osir., 360 d-e. Cf. Apuleio, De deo Socratis, 147s.
[17] Albino,
Didascálico, XXVIII, 1-4.
[18] Albino,
Didascálico, XIII, 1.
[19]
Plutarco, De gênio Socratis, 391 e; cf. também De facie,
[20] Albino,
Didascálico, XXVI, 1-2. Sobre esses temas ver também Ps.-Plutarco, De fato, 5.
[21] Albino,
Didascálico, XXVII, 2; cf. também o resto do capítulo.
[22] Albino,
Didascálico, XXVII, 5.
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