sexta-feira, 21 de julho de 2023

O MÉDIO-PLATONISMO - ANTOLOGIA

 





O MÉDIO-PLATONISMO E A REDESCOBERTA DA METAFÍSICA PLATÔNICA.

 

I. GÊNESE, CARACTERISTICAS E EXPOENTES DO MÉDIO-PLATONISMO.

 

As últimas vicissitudes da Academia e as origens do médio-platonismo.

 

Fui – como de costume – ó Bruto, ouvir Antíoco junto com Parco Pisão no ginásio chamado Ptolomeu, e estavam conosco o meu irmão Quinto, Tito Pompônio e Lúcio Cícero, que por parentesco é meu sobrinho por parte de pai, mas por afeto me é caro como um irmão. Combinamos fazer um passeio vespertino pela Academia, sobretudo porque tal lugar naquela hora tinha pouca gente. Portanto, encontramos-nos todos na casa de Pisão na hora marcada. Dali percorremos conversando os seis estádios que existem partindo da porta Dípilo. Quando chegamos à região da Academia com toda justiça celebrada, havia justamente a solidão que nós desejávamos. Então Pisão disse: “Devo atribuir a um fenômeno natural ou a um erro o fato de que, quando chagamos aos lugares que sabemos terem sido freqüentados por homens dignos de memória, sentimos uma impressão maior do que quando ouvimos falar das suas ações ou lemos alguns dos seus escritos? Por exemplo, agora estou emocionado. Vem-me à mente Platão que, segundo se nos diz, foi o primeiro que costumava discutir aqui, e aqueles pequenos jardins perto daqui não só me fazem recordá-lo, mas parece que o põem diante dos meus olhos. Aqui estiveram Espêusipo, Xenócrates, aqui esteve o escolarca Pólemon, que se sentava justamente naquele lugar que ali vemos [...][1].

 

II. A METAFÍSICA DO MÉDIO-PLATONISMO.

 

O ser incorpóreo, Deus e a sua transcendência.

 

[...] Vai-se divagando de emanações de Deus e de transformações tais que Deus se dissolveria em fogo com todo o universo e depois, novamente, se contrairia, aqui embaixo, e se distenderia pouco a pouco em terra, mar, vento, animais, e entraria nas formas pavorosas dos viventes e das plantas: tudo isso, até mesmo ouvi-lo, é impiedade![2]

E ainda:

Não é verossímil nem conveniente, como afirmam alguns filósofos, que Deus se encontre misturado com alguma matéria sujeita a todas as afecções e com coisas que sofrem inumeráveis formas de necessidade, causalidade e mudança[3].

Deus, reafirma Plutarco, é transcendente no sentido em que Ele é a realidade imaterial e imutável, sempre idêntica a si:

Mas Deus, em si mesmo, está muito longe da terra, incontaminado, incorruptível, puro de toda matéria que sofre destruição e morte[4].

 

[...]

Trata-se, ao contrário, de um modo, antes, do modo mais completo, em si e para si, de volver-se a deus e saudá-lo: pronunciar esta sílaba já significa instalar-se na inteligência do ser divino. Explico-me: deus, como para acolher cada um de nós no ato de nos aproximar daquele lugar, dirige-nos aquela sua advertência: “Conhece-te a ti mesmo”, que é muito mais do que o costumeiro “Salve”. E nós, em troca, confessamos a deus: “Tu és – EI”, e assim pronunciamos o apelativo preciso, verídico e único que somente a ele se adapta. Na verdade, a nós homens não compete, rigorosamente falando, o ser. Toda mortal é, na verdade, a natureza, introduzida como é, entre o nascer e o morrer; ela oferece apenas um fantasma e uma aparência, frágil e lânguida, de si. Quando fixas a tua mente com a intenção de captá-la, é como se apertasses a água com a mão. Quanto mais a constranges e tentas recolhê-la, tanto mais os próprios dedos que a encerram fazem-na escorrer e perder-se. Do mesmo modo, também a razão insegura, por sua vez, sujeita a plena clareza de todas as coisas às várias influências e à mudança: ela fica desiludida, quer se volte para o seu nascer, quer para o seu perecer, pois nunca conseguirá captar nada de estável, nada que exista realmente. “Certo, não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”, como diz Heráclito, nem, portanto, se pode entrar duas vezes, na mesma situação, uma substância mortal. Ao contrário, súbitas e rápidas mudanças “distendem-na e de novo a contraem” ou, melhor, não “de novo”, não “mais tarde”, mas “ao mesmo tempo” ela se constitui e perece, “entra e sai”. De onde se segue que tal substância mortal não leva a termo na via da existência tudo o que nela entra no devir, pelo simples fato de que justamente esse devir não conhece nunca trégua ou repouso. Assim, do germe, numa transformação incessante, ela produz o embrião, depois o fato e depois a criança, em seguida, o adolescente, o jovem, e depois o homem, o ancião, o velho, destruindo pouco a pouco os estágios precedentes do desenvolvimento e das diferentes idades, para dar lugar às que se seguem. Entretanto nós – ó, que coisa mais ridícula! – não tememos senão uma só morte, enquanto, na realidade, sofremos e sofreremos infinitas mortes! Porque, não só “a morte do fogo – no dizer de Heráclito – nasce do ar, e a morte do ar nasce pela água”, mas isso é muito mais claro no nosso caso: o homem maduro morre quando nasce o velho; e o jovem morreu para dar lugar ao homem maduro; e assim a criança para dar lugar ao jovem; e o feto para a criança. O homem de ontem é morto pelo homem de hoje; e o homem de hoje morre pelo homem de amanhã. Ninguém persevera, ninguém é uno; mas nós nos tornamos uma multidão: em torno a não sei que fantasma, em torno a um substrato comum de argila a matéria circula e se esvai. De resto, como é que, supondo perseverar numa identidade, alegramo-nos agora com coisas diferentes das que antes nos alegravam? Como é que objetos contrários suscitam ora amor, ora ódio, ora admiração, ora lástima? Por que usamos palavras sempre diferentes e estamos sujeitos a diferentes sentimentos? Por que não são nunca iguais em nós nem o aspecto, nem a figura, nem o pensamento? Sem mudanca, com efeito, não se explicam esses estados constantemente diferentes; e quem muda, portanto, não é mais o mesmo. Mas se alguém não é o mesmo, simplesmente não é, mas se torna sempre novo e diferente do diferente de antes, justamente pelo fato de mudar. Erram os nossos sentidos, por ignorância do ser real, ao dar ser ao que apenas aparece. Mas, então, que é o ser real? O eterno, Aquele que não nasce. Aquele que não morre. Aquele no qual nem sequer um instante de tempo pode introduzir mudança. Algo que se move e que aparece simultâneo com a matéria em movimento; algo que flui perpétua e irresistivelmente, como um vaso de nascimento e de morte: eis o tempo! Até mesmo as palavras habituais, o “depois”, o “antes”, o “será”, o “acontece” são a espontânea confissão do nosso não-ser. De fato, é ingênuo e absurdo dizer “é” de alguma coisa que ainda não entrou no ser, ou de alguma coisa que já cessou de ser. As nossas expressões habituais, sobre as quais se fundam, ademais, a nossa noção do tempo, isto é, “existe”, “é presente”, “agora”, diluem-se todas quando o raciocínio se aprofunda nelas. O presente, de fato, distanciado como é, necessariamente, do futuro e do passado, dissipa-se como um raio para os que querem captá-lo. Mas se a natureza medida encontra-se na mesma relação com o tempo que a mede, nada existe nela que seja estável, nada que seja existente; antes, tudo está sujeito às vicissitudes do nascimento e da morte, sob o comum ritmo do tempo. De modo que, dizer do Ser verdadeiro, “ele foi” ou “ele será” é quase um sacrilégio. Tais determinações, na verdade, são flexões e alterações do que não nasceu para permanecer no ser. Mas deus (seria preciso dize-lo?) “e”; é, digo, não já segundo do o ritmo do tempo, mas no eterno, que é imóvel, atemporal, sem vicissitudes; e não admite nem antes, nem depois, nem futuro, nem passado, nem idade de velhice ou de juventude. Não, Ele é uno e na unidade do presente preenche o “sempre”: o que nesse sentido existe realmente, o “é” unicamente: não advém, não será, não começou, não acabará[5].

 

Além das causas eficientes, não podem existir senão as incorpóreas; de fato, os corpos são passivos e mutáveis e não se encontram sempre nas mesmas e idênticas condições, nem são fixos e imutáveis, e logo se descobre que são passivos também quando parece que neles existe uma atividade; assim, pois, como existe algo de puramente passivo, assim também é preciso que exista algo de absolutamente ativo; e isso não poderia ser outra coisa senão o incorpóreo[6].

Deus não tem partes porque não existe nada antes dele; de fato, a parte e aquilo do que as coisas são feitas existem antes daquilo de que são partes; com efeito, a superfície existe antes do sólido e a linha antes da superfície; não tendo, pois, partes, é imóvel seja no que diz respeito ao movimento espacial, seja no que diz respeito ao qualitativo. Se, de fato, mudasse, isso aconteceria ou por si mesmo ou por outro: se fosse por outro, mudaria ou para pior ou para melhor: ambas as possibilidades são, contudo, absurdas. Daí resulta também que ele é incorpóreo. Isso também se demonstra com os seguintes argumentos: se Deus tivesse corpo, seria constituído de matéria e de forma; todo corpo é, com efeito, um composto de matéria e da forma que lhe é imanente; esse composto é semelhante às Idéias e participa delas de um modo difícil de explicar; é absurdo, então que Deus seja feito de matéria e de forma: não seria, com efeito, simples e originário. Conseqüentemente é incorpóreo. E ainda: se fosse corpo, seria feito de matéria, portanto, seria ou fogo, ou água, ou terra, ou ar ou qualquer coisa derivada desses elementos; mas nenhum desses tem caráter de princípio. Ademais, seria posterior à matéria, se de mataria fosse feito: dado o absurdo dessas conclusões, é necessário concebê-lo como incorpóreo: de fato, se é corpo, é corruptível e gerado e mutável: mas cada um desses atributos é absurdo com relação a ele[7].

 

Segundo Platão existem duas realidades – que nós chamamos essências [= substâncias] – das quais todas as coisas e o próprio mundo derivam: a primeira é captada apenas com o pensamento, a segunda pode cair sob os sentidos. Mas a primeira, que é captada com os olhos da mente, encontra-se sempre na mesma condição, igual e semelhante a si própria, como a que verdadeiramente é: a segunda, ao invés, como afirma Platão, nasce e morre, e é captada pela opinião sensível e não-racional. E como a primeira é considerada o verdadeiro ser, a segunda não é verdadeiro ser. A primeira substância ou essência é o primeiro Deus e a mente e a forma  das coisas, e também a alma delas, a segunda substância é tudo o que recebe uma forma e que se gera e tem origem do modelo da substância superior, que pode mudar e transformar-se confluindo e escorrendo com a água dos rios[8].

 

É inefável e captável apenas com o intelecto, como se disse, pois não é nem gênero, nem espécie, nem diferença específica e nem mesmo, por outro lado, lhe compete qualquer especificação, nem má (porque não é lícito dizer isso), nem boa (pois ele seria bom por participação em alguma coisa, e especificamente na bondade); nem é indiferente (porque isso não corresponde à sua noção). Nem se lhe atribui qualidade (porque não tem nada a ver com qualidades e é perfeito independentemente da qualidade), nem é sem qualidade (porque não é privado de qualidades que com ele possam competir). Não é parte de alguma coisa, nem tem partes como um todo, nem por conseqüência, é igual a qualquer coisa, nem diferente; nada, com efeito, se lhe acrescenta por força da qual possa ser separado das outras coisas; nem move, nem é movido[9].

 

As Idéias como pensamento de Deus e a distinção entre inteligíveis primeiros ou Idéias transcendentes e inteligíveis segundos ou formas imanentes às coisas.

Dado que [...] o primeiro Intelecto é excelsamente belo, é necessário que também o seu inteligível seja excelsamente belo, mas em nada mais belo que Ele; portanto, pensa a si mesmo, e os pensamentos de si mesmo e esta sua atividade é, justamente, a Idéia[10].

 

Que as Idéias existam é provado com os seguintes argumentos: se Deus é um intelecto ou qualquer coisa pensante, então tem pensamentos e esses pensamentos são eternos e imutáveis; mas se isso é assim, existem Idéias. E se a matéria é, por sua própria natureza, sem medida, é necessário que encontre medida em algum outro, melhor e imaterial; mas a antecedente é verdadeira, portanto, também a conseqüente o é. Mas se é assim, então as Idéias existem como medidas imateriais[11].

 

A hierarquia do divino: rumo à da doutrina das hipóstases.

 

Dado que o Intelecto é melhor que a alma e, do intelecto em potência, é melhor o que em ato pensa todas as coisas juntas e sempre, e mais excelente do que esta é a causa dele e o que pode estar acima dele, tal é o primeiro Deus, que é a causa da eterna atividade do intelecto de todo o céu. Ele o faz mover-se, permanecendo ele mesmo imóvel, como faz o sol com relação à vista, quando esta o olha, e como o objeto do desejo move o desejo, permanecendo imóvel; assim, justamente, também esse intelecto moverá o intelecto de todo o céu. Porque o primeiro intelecto é excelsamente belo, mas em nada mais belo que ele: portanto, pensa a si mesmo e os seus pensamentos, e esta sua atividade é, justamente, a Idéia. Ademais o primeiro Deus é eterno, inefável, perfeito em si, isto é, sem qualquer necessidade, eternamente realizado, isto é, eternamente perfeito, inteiramente realizado, isto é, inteiramente perfeito: é divindade, substancialidade, verdade, proporção, bem. Digo isso não pretendendo separar essas coisas, mas pretendendo pensar, mediante elas, uma unidade. É bem porque beneficia toda coisa enquanto é possível a ela, sendo causa de todo bem; é belo porque por sua natureza é perfeito e proporcionado; é verdade porque é princípio de toda verdade, como o sol é princípio de toda luz; é pai porque é causa de toda e ordena o intelecto do céu e a alma do mundo em relação a si mesmo e às suas intelecções. Segundo a sua vontade, de fato, preencheu todas as coisas de si mesmo e, tendo despertado a alma do mundo e tendo-a voltado para si mesmo, é causa do seu intelecto. Esse intelecto, ordenado pelo pai, ordena toda a natureza nesse mundo[12]

 

A cosmologia médio-platônica: a matéria e a origem do cosmo.

 

Ela é, pois, chamada por Platão de matriz impressionável, receptáculo, nutriz, mãe, espaço, substrato não-perceptível pela sensação e captável apenas por meio de um raciocínio bastardo. Ela tem a propriedade de receber tudo o que nasce, tendo a função de uma nutriz ao carregar e receber todas as figuras, mas é por si sem forma, sem qualidade e sem figura; embora sendo modelada e marcada por essas figuras como uma matriz impressionável que assume essas figuras, ela não possui em si nenhuma figura nem qualidade. De fato, não seria algo apto a receber marcas e formas variadas, se não fosse privada de qualidade e daquelas figuras que ela acolhe; vemos, com efeito, que também os que preparam com óleo ungüentos perfumados, usam o óleo inodor e os que querem plasmar formas com cera e argila, lixam e tornam esses materiais o quanto possível privados de qualquer figura. Portanto, é necessário que também a matéria, que tudo acolhe, se deve receber as formas em toda a sua extensão, não tenha em si qualquer natureza delas, mas seja sem qualidade e sem forma, para poder acolher, justamente, as formas; sendo tal, não é nem corpo, nem incorpóreo, mas é corpo em potência, como dizemos que o bronze é estátua em potência, enquanto se tornará estátua quando tiver recebido a forma[13].

 

Platão observa que a matéria deve ser ingênua e incorruptível, que não é nem fogo, nem água, nem qualquer outro dos princípios ou elementos originários, mas entre todos é primeira, capaz de receber forma e de receber figura e, ademais, bruta e privada de qualificações formais: é o Deus artífice que a conforma na sua totalidade. Platão a considera infinita: de fato, o que é infinito não tem um limite determinado para a sua grandeza e, portanto, dado que a matéria é privada de termo, pode-se, justamente, considerá-la ilimitada. Mas Platão não admite nem que seja corpórea nem incorpórea, não a considera, com efeito, um corpo, porque nenhum corpo pode ser privado de forma; ademais, não se pode dizer que é sem corpo, porque nada do que é incorpóreo pode apresentar um corpo, enquanto potencialmente e racionalmente lhe parece ser corpo, e é por isso que ela não é captável nem só com o tato, nem só com a conjetura racional. De fato, os corpos se conhecem em virtude de sua evidência com um raciocínio que é congênere, enquanto o que é privado de matéria corpórea é captado com os raciocínios. Portanto, a característica dessa matéria se capta com uma conjetura espúria e como que ambígua[14].

 

Quando Platão diz que o mundo é gerado, não se deve entendê-lo no sentido em que houve um tempo no qual o mundo não existia, mas que o mundo está sempre em devir e manifesta um princípio mais originário do que o seu ser. E também a alma do mundo, que é eterna, nem mesmo a esta deus cria, mas a ordena; e diz-se que a cria no seguinte sentido: despertando e voltando para si  intelecto dela e a ela mesma como de uma letargia e de um sono profundo, para que, olhando para os inteligíveis de Deus, acolha as Idéias e as formas, olhando para os pensamentos dele[15].

 

A demonologia médio-platônica.

 

Platão, Pitágoras, Xenócrates, Crísipo, seguidores dos primitivos escritores de coisas sagradas, afirmam que os Demônios são dotados de força sobre-humana, antes, superam de muito, por extensão de potência, a nossa natureza, mas não possuem o elemento divino puro e incontaminado, mas participam, ao mesmo tempo, de uma dupla sorte, enquanto reúnem natureza espiritual e sensação corpórea, na qual acolhem prazer e trabalho; e tal elemento misto é, justamente, a fonte da perturbação[16].

 

III. A ANTROPOLOGIA E A ÉTICA DO MÉDIO-PLATONISMO

 

O fim supremo do homem e a assimilação a Deus.

 

Platão, em conseqüência de todas essas coisas, põe como fim o assimilar-se a Deus enquanto possível; esta doutrina é tratada de vários modos. Às vezes, de fato, diz que o assimilar-se a Deus é ser sábios, justos e santos, como no Teeteto; por isso é preciso também tentar fugir daqui para o alto, o quanto antes possível; a fuga é, com efeito, o assimilar-se a Deus enquanto possível. O assimilar-se é o tornar-se justo e santo com o pensamento, às vezes apenas o ser justo, como no último livro da República: não está nunca ignorado pelos deuses aquele que deseje ser justo e, ocupando-se da virtude, enquanto possível ao homem, queira assimilar-se a Deus. No Fédon, depois, diz que o assimilar-se a Deus é tornar-se ao mesmo tempo temperantes e justos, mais ou menos como se segue: “Portanto, serão os mais felizes e afortunados e irão para os melhores lugares, os que praticam a virtude comum e a própria do bom cidadão, a que chamamos temperanças e justiça”. Às vezes diz que o fim é assimilar-se a Deus, às vezes que é segui-lo, como quando afirma: “Deus, segundo a antiga tradição, princípio e fim etc.”. Às vezes diz as duas coisas, como quando afirma: “A alma que segue a Deus e que se assimila a ele etc.”. O bem é o principio do que convém fazer e também disso afirma-se que vem de Deus; portanto o fim que se segue ao princípio é assimilar-se a Deus, ao Deus celeste, evidentemente, e não, por Zeus, ao supraceleste, o qual não tem virtude, mas é melhor do que esta; por isso pode-se dizer que a infelicidade é uma má disposição da divindade interior, a felicidade, uma boa disposição. Podemos chegar a ser semelhantes a Deus, se tivermos uma natureza adaptada, costumes, uma educação e uma vida segundo as leis e, sobretudo, se usarmos a razão, o ensinamento e a tradição das doutrinas, de modo a manter-nos afastados da maioria das coisas humanas e de modo a estar sempre voltados às coisas inteligíveis. Se queremos ser iniciados nos conhecimentos mais elevados, a preparação e a purificação do demônio que existe em nós deverão acontecer através da música, da aritmética, da astronomia e da geometria, e deveremos nos ocupar também do corpo com a ginástica, a qual adestra e bem dispõe os corpos à guerra e à paz[17].

 

Procedendo ordenadamente, é preciso falar agora, sumariamente, das coisas ditas por Platão relativas à ética. Ele considerava que o bem mais valoroso e maio não fosse fácil de encontrar e, tendo-o encontrado, não seria prudente oferecê-lo a todos. Certamente pouquíssimos e seletos discípulos tornou participantes da sua lição sobre o Bem. Ademais, examinando acuradamente as suas obras, pode-se ver que Platão pôs o nosso bem na ciência e na contemplação do primeiro bem, que pode ser chamado Deus primeiro intelecto[18].

 

A natureza espiritual do homem e a concepção dualista de alma e corpo.

 

A parte imersa e presa nos movimentos do corpo é chamada alma; quanto à parte incorruptível, a maioria a chama intelecto e a crêem interior a si mesmos, como os reflexos num espelho; mas os que julgam melhor a chamam Demônio, como a parte que lhes é exterior[19].

 

Sobre o fato, Platão pensa, aproximadamente, essas coisas. Diz que tudo está submetido ao fato, mas que nem tudo é predestinado. Com efeito, o fato é como uma lei e não estabelece, por exemplo, que uma pessoa fará determinada coisa, que outra sofrerá outra coisa: isso, com efeito, iria ao infinito, pois infinito é o número dos seres vivos e infinito o número das coisas que lhes acontecem; ademais, o que está em nosso poder não estaria mais e não existiriam louvores, lástimas e qualquer outra coisa do gênero; o fato estabelece, ao invés, que se uma alma escolhe uma vida  faz certas coisas, se lhes seguirão outras. A alma é, pois, sem senhor e dela dependem o fazer e o não fazer e isso não está submetido ao vínculo; as conseqüências das suas ações, ao invés, se cumprirão segundo o destino. Por exemplo: ao fato de Paris raptar Helena, fato que depende dele, seguir-se-á que os gregos farão guerra por Helena. Assim, com efeito, também Apolo predisse a Laio: “Se gerares um filho, este te matará”. Na lei divina estão contidos Laio e o fato de que ele gere um filho, mas só o que se segue a isso é predestinado[20]

 

A tábua dos valores e a virtude.

 

Ele pensava que todas as coisas chamadas boas pelos homens tinham esse nome pela sua participação, de certo modo, no primeiro e mais valoroso bem, do mesmo modo que as coisas doces e quentes têm esse nome pela sua participação no primeiro doce e no primeiro quente. Só o nosso intelecto e a nossa razão podem chegar a assimilar-se ao bem; por isso também o nosso bem é belo, nobre, divino, amável, proporcionando e chamado com nomes dignos do divino. Dentre os que a maioria chama bens, por exemplo, a saúde, a beleza, a força, a riqueza e as outras coisas afins, nenhum em si é um bem, se não é usado virtuosamente; de fato, separados da virtude, estão apenas no nível da matéria e tornam-se males para os que os usam sem consideração; algumas vezes Platão os chama também de bens mortais [= bens por participação][21].

 

A ética médio-platônica e a ética estóica.

 

O que possui a ciência da qual falamos é o mais afortunado e feliz, contudo não pelas honras que, sendo tal, receberá, nem pelas recompensas, mas mesmo que devesse permanecer desconhecido a todos os homens e lhe acontecessem os que são chamados males, por exemplo, a perda de todos os homens os direitos, o exílio, a morte. Ao invés, quem, sem ter essa ciência, possui todos os que são chamados bens, como a riqueza, o poder real, a saúde do corpo, o vigor, a beleza, em nada é mais feliz[22].

 



[1] Cícero, De finibus, V, 1, 1-2.

[2] Plutarco, De E ap. Delph., 393 e.

[3] Plutarco, Ad. Princ. iner., 781 e.

[4] Plutarco, De Is. et Osir., 382 f. Sobre as relações entre Plutarco e o estoicismo uma boa contribuição foi dada por D. Babut, Plutarque et lê stoïcisme, Paris 1969 (para o tema específico que estamos tratando cf. pp. 453ss.).

[5] Plutarco, De E ap. delph., 392 a-393 b.

[6] Albino, Didascálico.

[7] Albino, Didascálico, X, 7-8.

[8] Apuleio, De Platone, I, 193. Deve-se notar que, embora de passagem, Apuleio, pouco antes (190), define Deus como “incorporeus, unus” e “απεριμετρος”, ou seja infinito, usando um termo grego inusitado, que tem um paralelo semelhante (embora não idêntico), por exemplo, em Filo de Alexandria (cf., por exemplo, Sacrif., 59, onde é usado o termo aperigrajoV).

[9] Albino, Didascálico, X, 4.

[10] Albino, Didascálico, X, 3.

[11] Albino, Didascálico, IX, 3.

[12] Albino, Didascálico, X, 2-3; ver também a passagem reportada mais adiante, p. 305.

[13] Albino, Didascálico, VIII, 2-3.

[14] Apuleio, De Platone, II, 191s.

[15] Albino, Didascálico, XIV, 3.

[16] Plutarco, De Is. et Osir., 360 d-e. Cf. Apuleio, De deo Socratis, 147s.

[17] Albino, Didascálico, XXVIII, 1-4.

[18] Albino, Didascálico, XIII, 1.

[19] Plutarco, De gênio Socratis, 391 e; cf. também De facie, 943 a.

[20] Albino, Didascálico, XXVI, 1-2. Sobre esses temas ver também Ps.-Plutarco, De fato, 5.

[21] Albino, Didascálico, XXVII, 2; cf. também o resto do capítulo.

[22] Albino, Didascálico, XXVII, 5.

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