O Mundo da PÓLIS de Eric
VOEGELIN São Paulo LOYOLA,, 2009
Digitação: Jaciara Souza Pereira
Síntese: Paolo Cugini
HUMANIDADE E HISTÓRIA
O salto no ser, o evento
histórico que rompe a compacidade do antigo mito cosmológico e estabelece a
ordem do homem em sua imediação sob a autoridade de Deus – é preciso reconhecer
– ocorrer duas vezes na história da humanidade, praticamente ao mesmo tempo, no
Oriente Próximo e nas civilizações
egeias vizinhas. (pag. 75)
Os principais fenômenos que
suscitam dificuldades são quatro:
(1) O salto no ser, quando
ocorre, transforma a sucessão das sociedades precedentes no tempo num passado
da humanidade.
(2) O salto no ser, embora
adquira uma nova verdade sobre a ordem, não adquire toda a verdade, nem
estabelece uma ordem última da humanidade. O esforço pela verdade da ordem
prossegue no nível histórico. As repetições do salto no ser corrigirão a noção
inicial e a completarão com novas descobertas; e a ordem da existência humana,
por mais profundamente afetada pela nova verdade, permanece a ordem de uma
pluralidade de sociedades concretas. Com a descoberta de seu passado, a
humanidade não chegou ao fim de sua historia, mas se tornou consciente do
horizonte aberto de seu futuro.
(3) O salto inicial no ser, a
ruptura com a ordem do mito, ocorre numa pluralidade de casos paralelos, em
Israel e na Hélade, na China e na Índia, em cada caso sendo seguido por sua
própria historia inerente de repetições no novo nível da existência.
(4) Os saltos paralelos no ser
diferem amplamente com respeito ao radicalismo de sua ruptura em relação ao
mito cosmológico e também com respeito á abrangência e á penetração de seu
avanço rumo á verdade sobre a ordem do ser. As ocorrências paralelas não são de
uma mesma classe. (pag. 78)
Desde Hesíodo até Platão,
quando o salto no ser alcançou a atletheia, a verdade da existência, o antigo
mito torna-se o pseudos, a falsidade ou mentira, a inverdade da existência na
qual os antepassados viviam. (pag. 79)
HÉLADE E
HISTÓRIA
Numa primeira abordagem, certamente, não há dúvida
de que na Grécia, como se torna manifesto á luz mais plena da história após 800
a. c., encontramos múltiplas polis divididas pelas rivalidades e envolvidas em
guerras frequentes, ás vezes de uma forma tão atroz que se chega a considerar
uma prova de humanidade se apenas metade da população de uma cidade é
massacrada. Mas esse estrato da ordem grega, embora seja bastante concreto,
certamente não é a estrutura completa da sociedade grega. A história da Grécia
não se dissolve nas histórias das polis individualmente e de suas guerras, e um
estudo dos tipos da ordem da polis e de sua simbolização não poderia ser
considerado um tratamento adequado da ordem grega. Pois acima da ordem das
polis surge, reconhecivelmente, o senso de pertencer a uma sociedade comum mais
ampla. (pag. 101 e 102)
A filosofia, como uma
experiência e uma simbolização da ordem universalmente válida, surge da órbita
da polis. Esse fenômeno, agora, é um reminiscente do “êxodo de Israel para fora
de si mesmo” que aparece no Dêutero-Isaías, ou seja, do processo no qual o
componente universalista na experiência do Reino de Deus se separa da tentativa
de realizar o Reino nas instituições de uma sociedade concreta. (pag. 103)
Tanto o helenismo como a
cristandade devem ser compreendidos, ao que parece, como a operação contínua,
na escala imperial, das forças ordenadoras para as quais Israel e a Hélade, as
sociedades concretas de sua origem, mostraram-se exessivamente estreitas.
(pag.103)
A ciência grega da ordem era
fato muito mais que uma teoria da melhor polis. A própria concepção de uma polis
paradigmática era, nas mãos de Platão e Aristóteles, um instrumento de critica
a ser usado contra a realidade nada paradigmática da cena política circundante.
Sua elaboração de uma ciência da ordem era um ato político consciente,
praticado numa situação concreta de desordem. Alem disso, a necessidade de
firmar as fundações empíricas do diagnóstico da desordem, assim como a
autocompreensão de seu próprio ato de oposição forçaram os filósofos a analizar
a situação com base em sua gênese histórica. A criação de um paradigma da
ordem, sustentado como um modelo de ação em oposição á ordem estabelecida da
sociedade, teria sido, com efeito, uma realização estranha, e talvez até
ininteligível, a não ser que uma filosofia do declínio e da regeneração
histórica da ordem viesse a constituir o seu suporte e a dotasse de sentido.
Portanto, a ciência integral da ordem compreende tanto uma ciência da ordem
paradigmática como uma ciência do curso efetivo não paradigmático da sociedade
na história. E as construções paradigmáticas tinham de fazer sentido com
respeito ao passado recordado que ingressou como o presente no qual foram
criadas. A consciência da situação histórica, portanto, era uma parte essencial
da experiência grega da ordem, e o alcance da ordem que será apropriadamente
designada como grega deve ser determinado, por conseguinte, pela memória da
história contínua que os pensadores do período clássico aplicaram em sua
situação, assim como na compreensão de seu próprio lugar nela. (pag. 107)
Se a memória for aceita como
guia, a história da sociedade grega se estende por um período aproximadamente
igual ao da historia paralela de Israel, com sua memória do êxodo de Abraão
saindo da Ur dos caldeus. (pag. 108)
O conteúdo da memória
helênica é, portanto, inesperável do processo histórico de seu crescimento.
(pag. 109)
Na esteira da invasão do
século XII, formou-se no continente grego algo como um vácuo cultural, quando
os depositários da civilização micênica foram forçados a emigrar, em grandes
grupos – presumivelmente incluindo o estrato social e culturalmente dominante
–, para as ilhas e a área costeira da
Anatólia. No século IX a.C., uma nova Grécia começou a surgir. O renascimento
começou nas polis da Ásia Menor, onde os “Filhos de Iavan” se tornaram vizinhos
dos “Filhos de Ashkenaz” (Gn 10). Nesta área fronteira de imigração
originaram-se as epopeias de Homero, que daí começaram a difundir sua
influencia ao longo das ilhas e do continente, fornecendo aos gregos em
recuperação a consciência de um passado comum. O empreendimento federativo
pan-aqueu contra Troia tornou-se o símbolo vivo de um vinculo cultural
pan-helênico, e, precariamente, até mesmo um vínculo político. Além disso, uma
vez que a guerra dos homens era ao mesmo tempo uma guerra dos deuses, os épicos
proporcionaram uma mitologia comum onde quer que tenham se difundido, criando
assim um contrapeso á diversificação das divindades locais e seus cultos. Neste
aspecto, a função dos deuses heméricos – embora não os próprios deuses – pode
ser comparada ao sumodeísmo egípcio, com sua interpretação dos vários deuses do
sol do Egito como aspectos do deus único que adquiriu supremacia política. E,
por fim, a linguagem das epopeias era um fator unificador na medida em que
compensava a diversificação dos dialetos. Da área egia oriental, então, a
recuperação grega enpandiu-se pelo mundo helênico e, por meio da expansão,
crio-o. Homero era um anatólico ou grego insulano, o primeiro de uma linhagem
brilhante. As cidades costeiras e as ilhas vizinhas eram a religião onde a
cultura pré-helênica sobrevivente e a cultura asiática se encontravam; a partir
dessa região focal, a mistura vital difundia-se ao longo do semicírculo das
ilhas para o oeste da terra firme grega e ainda para a Sicília e o sul da
Itália. Pelo lado de fora, esse vasto semicírculo era cercado a leste pelos
lídios, persas e fenícios, ao sul pelos egípcios, e ao sudeste e oeste pelos
cartagineses e etruscos. (pag. 109)
As historiai eram as
investigações empreendidas por Heródoto como o propósito de preservar de modo
geral as tá genomena, as recordações ou tradições, e de preservar
especificamente as tradições relacionadas á pré-história do grande conflito
entre os helenos e os bárbaros nas Guerras Persas (1.5). No momento,
interessa-nos não a riqueza de detalhes das Histórias, mas o método usado por
Heródoto para extrair de suas fontes o que ele considerava a verdade dos
eventos. Dois exemplos ilustrarão o problema. (pag. 111)
Os dois exemplos serão suficientes
para nossos propósitos. Aparentemente, Heródoto, a fim de transformar suas
fontes em historia, empregou e desenvolveu um método que já era amplamente
aplicado na área fronteiriça das civilizações grega e asiática. No relato dos
sábios persas, uma cronologia dos eventos foi derivada de alguns mitos gregos;
os fatos foram um tanto alterados de modo a favorecer o que hoje chamamos de
“interesse nacional”; e uma história razoável surgiu por meio da aplicação do
senso comum e da prudência elementar. No caso da história de Helena recebida
dos egípcios, vemos que Heródoto, orgulhosamente aproveita o auxilio, ao
desenvolver um argumento do tipo asiático a fim de justificar sua preferência
pela história egípcia contra Homero. (pag. 113)
O método é de interesse em
vários aspectos. Quando Heródoto considerou os mythoi em seu valo nominal como
fontes históricas, abriu-se um amplo panorama do inicio da história grega, com
suas relações com o Egito, e Fenícia e Creta – um panorama que, seu todo, era
historicamente verdadeiro, e embora os métodos desenvolvidos pelos
historiadores e arqueólogos modernos para propósitos de usar os mitos e os
épicos como guias da realidade histórica tenha se tornado infinitamente mais
cautelosos, refinados e complicados, e usualmente conduzam a resultados
largamente diferentes quanto aos detalhes, o principio do procedimento ainda é
aquele seguido por Heródoto. Continuamos a pressupor que uma concentração dos
mitos numa dada área geográfica indica acontecimentos históricos nessa área – e
supomos que uma escovação trará resultados importantes. Quando Homero escolhe o
nome Fênix para o preceptor de Aquiles, ou nome Egípcio para o senhor que faz o
primeiro proferimento na assembleia em Ítaca, presumimos que a civilização
micênica tinha conexões com a Fenícia e o Egito que tornavam tais escolhas
inteligíveis para o ouvinte. E, inversamente, quando, de acordo com as
informações de Heródoto, os sacerdotes egípcios haviam desenvolvido um longo
relato sobre Helena no Egito e haviam inserido em algum lugar de sua história,
presumimos que tinha um conhecimento intimo de vários ciclos de épico grego e
que estes haviam causado impressão sobre eles,
Em segundo lugar, o método
revela uma ampla destruição do mito por uma mitologia racionalista. Pelos textos
de Heródoto, a nova psicologia parece ter sua origem na fronteira asiática; e
isso lançaria uma luz interessante sobre ao menos uma das fontes do
racionalismo que prevalecia em Atenas, na estaria das Guerras Persas, na época
em que Heródoto estabeleceu-se temporariamente na cidade. Por destruição
racionalista referimo-nos ao desenvolvimento da coordenação desapaixonada de
meios e fins como o modelo da ação correta, em oposição inevitável á
participação na ordem de Zeus e de Têmis como no modelo homérico. A
destrutividade aparece, portanto, de modo mais patente no argumento de Heródoto
contra a confiabilidade histórica de Homero. A história de que os troianos não
queriam entregar Helena não podia ser verdadeira, pois ninguém teria sido tão
desatinado a ponto de permitir a ruína da cidade por tal motivo. A profunda
preocupação de Homero com a etiologia da desordem, sua análise sutil que
tentava explicar precisamente por que tal desatino ocorrera estavam
aparentemente perdidas em Heródoto.
Em terceiro lugar, á luz da
reflexão precedente, o método possui interesse como um sintoma da decadência da
civilização helênica. Heródoto conhecia muito bem não só o seu Homero, mas era
também, em geral, um dos homens mais amplamente informados e educados de sua
época. Se Heródoto não fosse mais capaz de entender Homero, impõe-se a questão:
quem poderia? Apenas uma geração antes, Ésquilo ainda se movia no nível
espiritual de Homero; considerando-se o fato de que, apenas algumas décadas
mais tarde, Heródoto era um autor muito admirado e popular em Atenas, o
declínio espiritual e intelectual deve ter sido tão rápido quanto terrível. A
questão é de grande interesse em virtude dos posteriores ataques de Platão a
Homero. Se a interpretação herodotiana era representativa de um tendência
geral, se quase todos leram Homero desse modo, ao menos parte do ataque de
Platão seria dirigido não tanto contra Homero, mas contra a maneira como ele
havia sido interpretado. A noção de Homero, mas contra a maneira como ele havia
sido interpretado. A noção de Homero como o “educador da Hélade” passará por
alguns estudos mais minuciosos nos séculos V e IV. (PAG. 113 e 114)
A racionalidade estrita de
uma luta por poder, sem preocupação com a ordem da sociedade helênica,
tornou-se de fato o modelo de ação na prática política. Em conformidade com a
propensão de seu tempo, Tucídides queria interpretar a história grega desde
seus primeiros tempos como um processo que conduziria ao conflito de sua
própria época. (pag. 115)
A princípio a polis não
surgiu como um tipo uniforme de organização em toda a área da civilização
helênica. As polis não se organizaram ao mesmo tempo, as mesmas circunstâncias.
E as variações do processo de fundação determinaram decisivamente a estrutura
das polis individuais em datas historicamente registradas. (pag. 188)
Usualmente, a topografia da
área, com suas paisagens relativamente estreitas, é enfatizada como a causa da
organização política em pequenas cidades, com um interior agrícola. Contudo, a
sucessão das conquistas frigias, lídia e persa da polis na Anatólia provaram
que a área podia ser perfeitamente integrada em domínios mais amplos, se
houvesse poder e vontade de fazê-lo. (pag. 188)
Como uma cidade, portanto, a
polis nunca se desenvolveu numa comunidade de cidadãos individuais unidos pelo
vínculo de uma conjuratio como as cidades ocidentais medievais; e, como um
Estado territorial, a polis nunca foi capaz de se expandir para formar uma
nação composta de cidadãos individuais como os Estados nacionais ocidentais. O
individuo nunca obteve a posição pessoal em sua unidade política que, sob a
influencia da ideia cristã do homem, caracterizou as formações políticas da
civilização ocidental; ele permaneceu sempre numa posição de mediação por meio
dos parentescos sanguíneos tribais fictícios e estreitos no interior da polis.
(pag. 189)
Uma compreensão da polis
helênica tem a partir da estrutura gentílica, mas não pode terminar nela.
Tal compreensão tem de partir
da estrutura gentílica porque o modo de existência criado pelo gene
aristocráticos, como o conhecemos por meio dos poemas homéricos, persistiu como
o modo dominante na cultura política helênica no decurso de todas as
transformações e democratização até a conquista macedônica no século IV a.C. O
poder político da aristocracia pode ter sido destruído, mas sua cultura
permeava o povo; a democratização da Hélade significava uma extensão da cultura
aristocrática ao povo – ainda que no processo de difusão a qualidade tenha se
diluído. Nunca devemos nos esquecer de que o povo que cometeu as atrocidades
descritas por Tucídides foi o povo do Século de Ouro de Péricles, que os torpes
assassinos e conspiradores eram os homens que encenavam e apreciavam os dramas
de Sófocles e Eurípides, e que a plebe urbanizada esclarecida, odiada por
Platão e Aristóteles, foi o povo no meio do qual a Academia e o Liceu puderam
florescer. Na história da polis helênica, não encontramos as sublevações que
acompanham a ascensão social das classes urbanas na civilização ocidental. Com
as mudanças na estrutura social e econômica e com o desenvolvimento da
personalidade, a epopeia deu lugar ao poema lírico, o poema lírico, á tragédia,
e a tragédia, filosofia – mas a cultura musical e ginástica da sociedade como o
paradigma da cultura de Homero a Platão e Aristóteles. (pag. 191)
A transição do mito para a
metafísica é repleta de problemas que ciência ainda não solucionou definitivamente.
Contudo, pode-se formular o ponto central: que a especulação racional, embora
possa ser usada no interior das formas simbólicas tanto do mito como da
filofia, não é nem uma nem outra ([¹ A longo do presente capítulo sobre
Hesíodo, pressupõe-se a análise de “A dinâmica da experiência” egípcia em Ordem
e história, v.I, cap. 3§3.])
O mito e a filosofia, assim
como o mito e a revelação, são separados pelo salto no, ser, ou seja pela
ruptura com a experiência compacta da ordem cósmico-divina por da descoberta da
ordem transcendente-divina. O no ser, porém, a despeito do radicalismo do
evento quando ocorre, é historicamente preparado por uma variedade de modos
pelos quais o mito se afrouxa e se torna transparente com respeito á ordem
transcendente. Na forma egípcia da ordem, a especulação teogônica da teologia
da menfita, as especulações sumodeístas dos teólogos do império, culminado no
simbolismo de Akhenaton, e também na piedade pessoal dos Hinos a Amon, tornaram
o mito cosmológica tão transparente para o ser transcendente que as formulações
resultantes podiam ser erroneamento
entedidas pelos historiadores como “monoteístas”. O portador desse
processo é o homem, na medida em que existência sob a autoridade de Deus é real
mesmo que ainda não esteja iluminada pelo no ser. (pag. 201 e 202)
A Teogonia representa um
primeiro mergulho no mito olímpico com intenção especulativa; e uma linha
inteligível de evolução especulativa inicia-se desses inícios, passando pelos
filósofos jônicos e itálicos até chegar a Platão e Aristóteles.
A continuidade dessa evolução
foi reconhecida na Antiguidade. O tempo “teologia”cunhado por Platão, foi usado
por Aristóteles para designar sua prima philosophia (posteriormente, a
“metafísica”): “Há três filosofias teóricas: a matemática, a física e a
teolocica”. ([² Aristóteles, Metafísica, VI, 1026 a 18 s. Para a mesma
classificação das “ciências teóricas”, ver Metafísica, XI, 1064 ss.]) Com um
refinado senso da derivação histórica, Aristoteles entendia a Teogonia
hesíodica como o primeiro passo evidente na direção da especulação filosófica.
Ele estava inclinado, porém, a distinguir Hesíodo e seus seguidores, como os
“primeiros pensadores teologizantes”, dos jônicos como os “primeiros pensadores
filosofantes” ([³ “PProttoi theologesantes, protoi philosophesantes”,
Metafísica, I 983b29 e 98b11 ss.]) e encontrou o traço especifico dos “teólogos”
em seu habito de espetacular “mitologicamente”([mythikos). ([4 Metafísica, III,
1000ª9, com referencia especial a Hhesíodo como teólogo, e 1000ª 18. Ver
Werner Jarger, The Theology of the Early Greek Philosophers, London, Oxford
Univertsity Press, 1947, 9-17]). Em um de seus significados, o novo termo teologia foi usado
por Aristóteles para designar a forma de simbolização, intermediária entre o
mito e a filosofia, que encontrou em Hesíodo ([5 um importante empenho para
examinar a forma simbólica intermediária de Hesíodo foi empreendido por Olof
GIGON, Der Ursprung de griechischen Philosophie: Von Hesiod bis Parmenides,
Basel, Schwabe, 1945, esecialmente 36-40. Estou de acordo com a análise de
Gigon até onde ela chega, mas duvido que essa distinção dos meios simbólicos
(“Alles wird Person” – “Alles wird zum Gesgentand”) seja suficiente para dar
conta dos problemas que surgem na filosofia grega, não pelo lado dos símbolos,
mas pelo lado das experiências expressas por meio deles. A simbolização da
realidade transcendente como eidos, forma, na filosofia de Platão, por exemplo,
ilustra a predominância da “Sachanalogie”. Todavia, a experiência platônica do
ser transcendente é importante em si mesma – e é mais próximo do âmbito de
experiência hesiódica, com sua expressão por meio dos símbolos pessoais do
mito, que da experiência dos filósofos jônicos. ]) (pag. 203)
Qual é a verdade do antigo mito? Qual é a fonte da verdade
na especulação do filosofo? Qual mudança de significado um antigo mito sofre ao
ser narrado por GE Hesíodo como uma fábula paradigmática num contexto de
verdade especulativa? Que tipo de verdade tem um deus quando é moldado por
Hesíodo, até onde podemos ver, para se adequar a um requerimento especulativo?
Que tipo de verdade têm as geneologias dos deuses inventados por Hesíodo? Estas
questões perpassam, daí em diante, toda a história do pensamento grego, até
chegar ao seu ápice no conflito de Platão com a verdade do antigo mito, á qual
opõe a verdade de seu novo mito da alma, e especialmente na muito mal
interpretada invenção de Platão de um falso mito, uma “mentira” (pseudos), ao
lado de seus mitos verdadeiros na República ([ ¹² Sobre o problema da verdade e
da mentira no pensamento grego, ver Wilhelm LETHER, Wahrheit und Lüge im
ältesten Griechentum, Leipzig, Koehler a Ameland, 1935]) damental de Hesíodo é
com um novo tipo de verdade, e sua convicção de estar dizendo “coisas
verdadeiras” (etetyna) reaparece em Os trabalhos e os dias. ([¹³ Os trabalhos e
os dias, 10.]) (pag. 205 e 206)
A Teogonia é uma aristei, isto é, uma balada ou uma
narrativa de uma aventura heroica; e Os trabalhos e os dias é uma paraenesis ou
protrepticus, isto é, um discurso admonitório. (pag. 207)
A Teogonia, como dissemos, é uma aristeia. Seu assunto é a
vitória de Zeus sobre as antigas divindades; e a história culmina na
Titanomaquia, a descrição da batalha entre Zeus e a geração de deuses
descendentes de Cronos. Uma vez que Zeus é o pai de eunomia (Ordem), dike
(Justiça) e eirene (Paz) a Titanomaquia traz a vitoria das forcas da verdadeira
ordem sobre a selvageria das forças cósmicas e telúricas. Esse é o nível de
significado determinado pela forma literária. (pag. 207)
Tal evolução não começacom Hesíodo – é perceptível já na
Odisseia ([¹6 No inicio Odisseia, cf, cantos III-V.]) – Cia das forças eticas
torna-se a raison d’être do reino de Zeus. Os outros deuses são deuses mais
“primitivos” em virtude de sua luxuria selvagem, sua crueldade tirânica e,
especialmente, devido ao habito incivilizado de engolir seus filhos para evitar
uma partilha aristocrática do poder entre os imortais. As atrocidades provocam
vinganças atrozes, e as vinganças provocam novas atrocidades. Somente Zeus põe
fim a essa sucessão funesta, pois,embora sua vitória seja conquistada pela
força, é sustentada pela distribuição justa a cada um dos imortais da cota
(time) honrosa que lhe cabe ([17 Teogonia, 71-74]). Essa é, substancialmente, a
concepção de Zeus que foi posteriormente desenvolvida na Oréstia esquiliana, na
figura do deus que chega á sabedoria por meio do sofrimento, e no Fredo de
Platão, no Zeus cujos sucessores são os filósofos, em particular o filho de
Zeus, o próprio Platão. (pag. 208)
O Zeus da Teogonia está no inicio de uma evolução que
termina na divindade platônica dos filósofos. Na obra de Hesíodo, contudo, ele
ainda é um dos muitos deuses do mito, não um símbolo cujo significado está
fixado, independentemente das tradições do mito, pela experiência do filosofo.
(pag. 208)
Ele assumiu três gerações de deuses, descendentes umas das
outras: Urano (o Céu) e Guia (a Terra), Conos e Reia, Zeus e Hera. Hesíodo,
contudo, não tinha, como os teólogos imperiais do Oriente Médio, o ônus da
tarefa de racionalizar a posição de um deus superior como a fonte da ordem
imperial; ele estava livre para penetrar no problema da ordem e de sua origem
por principio. Em Hesíodo, já está presente o universalismo helênico, que não
tem paralelo nas construções da teologia menfita ou no Enuma Elish. A
especulação, isenta como era de preocupações imperiais, podia redundar na
especulação filosófica que nela estava contida de forma compacta. É bem verdade
que era preciso atribuir a cada deus do mito um lugar na árvore genealógica,
mas nessa derivação ordenada dos deuses a partir de seus ancestrais estava
prefigurada, através do mito, a posterior especulação etiológica, a busca pela
causa final (αition) do fenômeno que era se experimentar. A exploração
hesiódica da ordem joviana por meio da ascensão á primeira geração de deuses se
torna, com os filósofos jônios, a ascensão do mundo experimentado a um principio
gerador (arché), seja a água, o fogo ou o ar. (pag. 208 e 209)
Na esfera do mito em si, a trindade Caos-Goia-Eros é
designado como a arché dos deuses, do mesmo modo como um dos elementos é
postulado como a αrché das coisas na especulação jônia. Por conseguinte, não
podemos concordar com as interpretações precedentes (que são ainda aceitas)
segundo as quais o sistema teogônico hesiódico deixa sem resposta a questão da
“origem” e somente os jônios teriam abordado o problema especulatividade. O
erro é provocado pela linguagem simbólica que Hesíodo tem de usar
inevitavelmente ao expressasr um problema estreitamente especulativo. As três
divindades primordiais não existem, em sua linguagem, desde a eternidade, mas
“surgem” como os outros deuses. Essa linguagem que fala de “surgir”, que
pertence ás regras do mito heênico, se compreendida (ou antes, mal
compreendida) como orαtio directα, deixará sem resposta a questão da “origem”.
Se, contudo, distinguirmos – como devemos fazer na análise do mito – a
linguagem do mito e o significado que ela possui, perceberemos que de geração
erótica. Logo, a Teogonia é, no nível do mito, uma especulação tão acabada e
completa sobre a original das coisas quanto o fisicismo jônio. (pag. 209 e 210)
Por fim, deve-se observar que a especulação hesiódica
pressupõe uma considerável flexibilidade do mito, uma ampla margem de liberdade
disponível para a invenção e a transformação. Pois os mitos que entraram na
Teogonia não são os mitos do povo, ligados a localidades e ritos específicos;
pelo contrário, Hesíodo faz um esforço deliberado para superar, se não abolir,
os múltiplos mitos locais e substituí-los por um sistema de deuses típicos –
por vezes as variantes locais ainda podem ser discernidas no novo tipo, como
por exemplo no caso da história do nascimento de Afrodite como a explicação de
seus vários nomes como Citereia e Ciprogeneia. ([²³ Teogonia, 188-200])
Hesíodo, como Homero, foi um criador de deuses para toda a área de civilizacao
helênica e, deste modo, um dos grandes criadores de sua unidade. A obra
mitopoética dos dois poetas foi uma revolução espiritual e intelectual, pois ao
ter estabelecido os tipos de forças cósmicas e éticas, assim como os tipos de
relações e tensões entre elas, ela criou, na forma do mito, um corpo altamente
teorizado de conhecimento concernente á posição do homem em seu mundo que poderia ser usado pelos filósofos como
ponto de partida para a análise e a diferenciação metafísicas ([²4 Na
construção do Banquete, por exemplo, Platão deixa que primeiro orador, Fedro,
faça uma exposição geral do que havia sido dito até então sobre Eros. E essa
exposição começa com as respectivas passagens de Hesíodo e Parmênides (197). O
mesmo procedimento, embora conduza a um resultado metafísico inteiramente
diferente, é seguindo por Aristóteles: na Metafísica 1.4, ele principia a
discussão novamente com as mesmas passagens de Hesíodo e Parmênides. ]). A
liberdade dessa criação, embora assuma proporções revolucionarias em Homero e
Hesíodo, é uma característica geral do processo mitopoético na Hélade ([²5 Para
a impressionante produção de deuses numa continuidade que vincula a sociedade
cretense á helênica, ver o excelente levantamento em Axel W. PERSSON, The
Religion of Greece in Prehistoric Times, Barkeley, University of California
Press, 1942, cap. 5: Minoan-Mycenaean survivals in the greek religion of
Classic Times. ]) Ela continua sendo a pressuposição da posterior evolução dos
deuses desde Hesíodo, por meio da tragédia do século V, até Platão, que, após a
desintegração do mito na época das luzes, recupera sua verdadeira função como o
instrumento de simbolização dos problemas transcendentais limítrofes que estão
além do alcance da construção metafísica mundano-imanente. (pag. 211 e 212)
Os trabalhos e os dias é uma parênese, um discurso
exortatório que Hesíodo dirige a seu irmão Perss. (pag. 212)
O tema da exortação é formulado na invocação inicial das
Musas. Elas são evocadas pelo poeta para exaltar Zeus, já que o destino do
homem está nas mãos do deus; os homens serão célebres ou não, contados ou não,
segundo a vontade do deus. Com a mesma facilidade com que o deus engrandece um
homem, ele o arruína; com a mesma facilidade humilha aqueles que caminham sob a
luz e favorece os obscuros; facilmente endireita o que está errado e facilmente
derruba os arrogantes. (pag. 213)
A esse respeito, as linhas introdutórias de Os trabalhos e
o dias possuem considerável importância, pois não só estabelecem Zeus como o
deus da ordem política justa, mas porque a exemplificação da justiça divina
implica que os homens no poder são injustos e que o restabelecimento da ordem
justa implica a queda dos grandes e a ascensão dos humildes. Encontramos essa
concepção da justiça ainda com um conteúdo típico na noção platônica de que os
homens que detiveram o poder nesta vida terão maior probabilidade de ser
condenados pelos Filhos de Zeus na vida após a morte, enquanto aqueles que não
se envolveram nos assuntos políticos receberão sua recompensa antes do tribunal
eterno. (pag. 213 e 214)
A Dike de Zeus determina que só podemos chegar á Arete
através do trabalho árduo sob o impulso
da boa Éris. Essa Arete hesiódica do camponês (ao ser contrastada com a Arete
hemérica do guerreiro aristocrático) é então detalhada na segunda parte do
poema, numa profusão de regras. O modo de vida do camponês pacifico e
trabalhador é a ordem em conformidade com Dike, Hesíodo se dá ao trabalho de fazer
essa exposição porque tem a esperança de que “o insensato Perses” possa ser
induzido a seguir o conselho. (pag. 215)
A primeira parte de Os trabalhos e os dias contém as três
fábulas e os apocalipses a elas subornados.
O uso da fábula faz parte do estilo exortativo proveniente
de Homero. A força persuasiva da admoestação é intensificada pelas ilustrações
apropriadas extraídas do reservatório compartilhado dos mito, e o argumento em
si é sustentado pela autoridade da sabedoria paradigmática incorporada na
tradição mítica da comunidade. (pag. 216)
Á luz dessas reflexões, uma análise das fábulas tem de
distinguir a historia em si de seu propósito paradigmático. Pois a historia
pode ser um conto de infortúnio, enquanto sua narração é inspirada pela
esperança de que o ouvinte entenda a lição e evite o infortúnio graças a uma
conduta mais inteligível. (pag. 216 e 217)
A primeira fábula é a de Pandora, que conta a história das
imposturas de Prometeu e da punição infligida por Zeus á humanidade (42-105).
Em sua ira provocada por uma impostura
de Prometeu, Zeus escondeu dos homens seu sustento (bion), para que
tivessem de se manter vivos por meio do trabalho árduo. Então Prometeu roubou o
fogo para os homens e, como punição por essa segunda impostura, Zeus ordenou
que se forjasse Pandora, um ser humano em forma de donzela, imitando as deusas
imortais, dotada de todas as graças e prendas e, além disso, equipada com um
vaso cheio de pragas para o homem. Epimeteu, de baixa perspicácia, aceitou a
dádiva dos deuses – e foi assim que o mal (kαkon)começou. “Antes disso, as
tribos dos homens viviam na terra livres do mal e do trabalho penoso e das
moléstias dolorosas que trazem as sombrias Percas sobre os homens – pois na
desventura [kαkotes] os mortais envelhecem rapidamente. Mas a mulher retirou
com as mãos a grande tampa do vaso e dispersou esses e outros sofrimentos para
o homem” (90-95). Somente a Esperança, por determinação de Zeus, foi mantida no
interior do vaso. “Logo, não há como escapar da vontade [noon] de Zeus” (105).
A fábula de Pandora está relacionada á história da queda e
da expulsão do paraíso no Gênesis. Pode-se assumir um reservatório comum de
mitos pré-literários do qual os dois mitos derivariam. A forma hesiódica, porém,
distinguir-se da forma bíblica por sua distribuição das ênfases. O motivo da
rivalidade entre o homem e Deus é abrandado, enquanto a queixa a respeito da
condição humana passa para o primeiro plano. (pag. 217 e 218)
O sonho hesiódico de que não houvesse trabalho, fome,
doenças, envelhecimento e morte, mulheres arrola os negativos das experiências
que são as principais fontes de angustias na vida humana. O paraíso, nesse
sentido, como o sonho de libertar-se do fardo e da angustia da existência, é
uma dimensão constante da alma que se expressa não só nas imagens da
existências imortal no alem, mas, em geral, permeia a ocupação imaginativa com
um estado desejável da existência mundana. (pag. 218)
A análise da segunda fábula é intitulada “as idades do
mundo” porque a expressão é de uso geral para designar o tipo de especulação da
qual a fábula hesiódica é uma amostra ([ ³³ Ver o artigo Ages of the World, e
também o artigo relacionado Cosmogony, in Ecyclopedia of Religion and Ethics,
New York, Scribners, 1913-1923]). O título, entretanto, não deve influenciar a
análise – qual é efetivamente o assunto da fábula terá de ser julgado pela
leitura de seu texto (106-79). Dado que a análise a seguir se desviará das
interpretações estabelecidas em vários aspectos, farei, primeiramente, um
resumo do conteúdo da fábula. (pag. 219)
Mesmo a leitura mais superficial da história revelará que a sequência das
idades do ouro, da prata, do bronze, dos heróis de ferro é desordenada, pois a
série dos metais é interrompida pelos heróis. A conjectura sugere que Hesíodo
de baseou em algum mito das quatro idades dos metais, talvez um mito
babilônico, e o adaptou para seus propósitos, inserindo o mundo da epopeia
homérica entre a idade de bronze e a do ferro. Com efeito, existem histórias
sobre as quatro idades no Oriente Médio e na Índia que podem remontar a fontes
similares ás hesiódicas. (pag. 220)
O trabalho e os dias é um poema, não a exposição discursiva
de uma tese. É preciso ler e estudar a obra em si a fim de chegar á compreensão
da riqueza de seu conteúdo. Não podemos senão auxiliar tal compreensão
circunscrevendo as áreas da experiência na qual se baseia o apocalipse. (pag.
230)
Convém ter certeza a respeito da estrutura da experiência
hesiódica caso se deseje preservar uma visão equilibrada acerca dos paralelos
entre a visão hesiódica da felicidade e da ruína e as visões correspondentes
dos profetas israelitas do século VIII a.C. Embora a busca por paralelos
orientais não deva ser mais reprovada que nos casos da fábula de Pandora, ou de
logos das Idades do Mundo, é preciso ter em mente que não é possível suscitar
questões referentes a influencias literárias. Estamos lidando com a história
das experiências e sua simbolização, e as experiências de Hesíodo, assim como
suas expressões, são inteligíveis no contexto da historia helênica, sem que se
recorra a “influências”. Cada uma das linhas do apocalipse hesiódico poderia
ter sido escrita sem o conhecimento dos paralelos hebraicos. Tendo em mente este
alerta, faremos agora uma justaposição de algumas passagens de Hesíodo e de
alguns versos dos profetas ([5¹ Para uma seleção mais rica dos paralelos entre
Hesíodo e os profetas, cf. TEGGART, The Argumentoof Hesiod’s Worrks and Days.])
Na grande visão do futuro da raça de ferro, Hesíodo escreve
(182 ss.)
Nem o pai estará de acordo [homoiis] com seus filhos, nem
os filhos com seu pai; nem o hóspede com o anfitrião, nem amigo com amigo,; nem
o irmão será estimado pelo irmão como dantes. Os homens desonrarão seus pais
senescentes, criticando-os e insultando-os com palavras ásperas,
monstruosamente arrogantes, desconsiderando a vingança dos deuses; tampouco
tribularão o custo da sua criação a seus idosos pais. [...] Tampouco será
favorecido o homem que mantém seu juramento, ou aquele que age conforme as
leis, ou o homem de excelência; os homens exaltarão os malfeitores e os atos
guiados pela hybris. A justiças estará lado a lado com a forca bruta, e a
vergonha não mais existirá; os piores homens prejudicarão os melhores, dizendo
palavras tortuosas e prestando juramento contra eles. A inveja, as discussões,
o regozijo no malefício serão, para o seu pesar, as companhias de todos os
homens.
Encontramos paralelos dessa visão em profetas como Isaias
(3, 4 ss.):
Dar-lhes-ei crianças como seus príncipes, e meninos os
governarão. E as pessoas serão oprimidas umas pelas outras, e cada um por seu
próximo: a criança se portará com petulância ante o ancião, e o homem da plebe
ante o nobre.
Ou em Oseias (4, 1 ss.):
Não há sinceridade, nem piedade, nem conhecimento de Deus
na terra. Sucumbem sob imprecações , mentiras, assassinatos, roubos e
adultérios, e derrama-se mais sangue sobre o sangue já derramado.
Por isso, a terra se lastimará, e todos os seus habitantes
definharão,; juntamente com os animais selvagens e as aves do céu, também os
peixes do mar desaparecerão.
Ou em Miqueias (7, 2 ss):
O homem bom desapareceu da terra: e não há mais justo entre
os homens; estão todos á espreita para derramar sangue; cada qual caça o seu
irmão com uma rede. Eles são capazes de fazer o mal resolutamente com ambas as
mãos; o príncipe e o juiz pedem gratificação; o grande declara seu desejo
malévolo: então eles ficam satisfeitos.
[...]
Não confies num amigo, não te fies num guia: contém as palavras
que saem de tua boca diante daquele que repousa em teu peito.
Pois o filho desrespeita o pai, a filha se ergue contra a
mãe, a nora contra a sogra; os inimigos de um homem são as pessoas de sua
própria casa.
Contra essa visão da ruína, Hesíodo sustenta sua esperança
de uma cidade justa (225 ss.):
Mas quando eles concedem julgamentos imparciais a
estrangeiros e aos homens locais, e não se desviam daquilo que é justo, sua
cidade florescer e o povo prospera. A paz, a governanta das crianças, está fora
de sua terra, e Zeus, que tudo vê, nunca ordena guerras cruéis contra eles. Nem
a penúria nem o desastre assombram os homens que agem com verdadeira justiça;
mas guardam de boa vontade os campos que são tudo o que lhes importa. A terra
produz seus viveres em abundancia, e nas
montanhas o carvalho oferece frutos e abelhas. Suas lanosas ovelhas são
constantemente tosquiadas; suas mulheres geram filhos semelhantes aos pais.
Eles prosperam continuamente com coisas boas, e não viajam em navios, pois a
fecunda terra rendelhes frutos.
Esta visão pode ser comparada com a de Miqueias (4, 3 s.):
Ele será Juiz entre numerosos povos, e repreenderá nações
poderosas muito distantes; martelando suas espadas, delas farão arados; e de
suas lanças, foices para podar: nenhuma nação brandirá a espada novamente
contra outra nação, nem aprenderá a guerrear.
Ficará cada qual sob sua vinha e sua figueira, ninguém os
ameaçará: pois a boca do Senhor de todos assim falou.
Ou com Isaias (30, 23):
Ele dará a chuva para a semente que tiveres semeado na
terra; e o pão feito com o produto da terra será nutritivo e abundante: naquele
dia, teu gado terá pastagens vastas.
Os bois e os jumentos que lavram o solo comerão forragem de
qualidade, joeirada com a pá e o forcado.
Contudo, não devemos negligenciar o fato de que o certos
versos da Odisseia (XIX, 109 ss.), nos quais Odisseu, incógnito, exalta
Penélope, são mais próximos das visão de Hesíodo que quaisquer trechos dos
profetas:
Tua fama chega ao vasto céu, assim como a fama de um irreprochável
rei, que, com o temor aos deuses no coração, é senhor de muitos homens
poderosos, sustentando a justiça; e a negra terra produz trigo e cevada, e
árvores vergam-se com frutos, os rebanhos procriam sem cessar, e o mar fornece
peixes – tudo isso porque ele é um bom líder; e o povo prospera sob sue
governo.
Portanto, há paralelos – mas, precisamente no caso dos
apocalipses, e em particular, no caso do apocalipse da ruína, sua existência
não remete a fontes comuns, pois o apocalipse da ruína tem como cerne uma
intensificação dos males vivenciados pelo profeta. A visão apocalíptica é algo
como a acentuação da descrição empírica de um estado de coisas insatisfatório,
chegando a um tipo ideal do mal. O profeta da ruína não tem de explorar
civilizações estrangeiras em busca de símbolos que expressem adequadamente sua
angustia da aniquilação – tudo o que tem de fazer é apreender a essência do mal
que o cerca e retratar seus fenômenos sem o entremeio amenizador do bem. Os
símbolos paralelos devem-se á disposição paralela no modo de percepção dos
fenômenos empíricos do mal. Isto é ainda mais verdadeiro no que se refere ás
profecias da bem-aventurança. No contrário de uma economia rural, o anseio por
paz, fertilidade e prosperidade está fadado a produzir símbolos paralelos.
(pag. 234, 235 e 236)
A especulação milesiana não teve sucessores imediatos. Ao
que perece, a conquista pelos persas em 546 a.C. atrapalhou profundamente o
desenvolvimento interno das polis anatólias. Xenófanes de Colofão (c. 565-470)
emigrou para a Italia; e, em 494, Mileto foi destruída. Em seguida, no século
XI, o movimento órfico, com seu mistério da purificação da alma, disseminou-se
pela Grécia, enquanto surgia na Itália o movimento pitagórico com ele
relacionado, e ambos enriqueceram, com sua experiência da alma, a obra dos
filósofos da virada do século VI para o século V a. C. O conhecimento órfico da
alma permeava a obra de Xenófanes e Heráclito (c. 535-475). Os dois grandes
filósofos falaram com a autoridade do místico e representaram a ordem da alma
em oposição á ordem da polis. Em meados do século V, por fim, a cena filosófica deslocou-se da
Itália de Parmênides para a Atenas de Anaxágoras e Demócrito.
Mais importante, todavia, é o fato de que não havia
“escolas” em nenhum sentido concebível to termo. O estilo da civilização
helênica é indelevelmente caracterizado pela ausência de burocracias temporais
e eclesiásticas. Por um milagre da história, área geográfica da civilização
helênica permaneceu imperturbada por invasões estrangeiras desde a migração
dórica até as Guerras Persas, ou seja, aproximadamente de 1.100 a 500 a.C.
Durante seiscentos anos, enquanto no Oriente Próximo e no Extremo Oriente as
civilizações imperiais com suas inevitáveis burocracias eram fundadas,
destruídas e restabelecidas, o paraíso geopolítico em terno do Egeu pôde
desenvolver as civilizações “livres”; primeiramente, de clãs e aristocracias
locais, e, mais tarde, de polis que eram tão pequenas que não demandavam uma administração
burocrática de dimensões consideráveis. Sob tais circunstancias historicamente
única, a transição da Hélade arcaica para a Hélade clássica pôde assumir a
forma de aventuras intelectuais empreendidas por indivíduos não tolhidos pela
pressão de hierarquias, que tendem a preservar as tradições. (pag. 239 e 240)
Uma “escola”, no sentido de gerações sucessivas de
pensadores que se apoiam num substrato comum fornecido pelo “fundador”, só é
possível quando tal substrato é espiritual e intelectualmente rico o bastante
para se tornar um centro efetivo para a organização das almas humanas em
rivalidade com o estoque comum de tradições, ou quando constitui uma variante
específica e intensa no interior da tradição. Antes da fundação da Academia sob
o impacto de Sócrates em Platão, apenas dois homens podem ser considerados, com
ressalvas apropriadas, fundadores de “escolas”: Pitágoras e Parmênides. (pag.
242)
A associação pitagorica era uma comunidade religiosa, com
um “modo de vida” distinto, apoiada em doutrinas concernentes ao destino da
alma e seguidora de uma disciplina requerida para assegurar sua purificação e
sua imortalizacao. É preciso contudo apor ressalvas ao exemplo do pitagorismo
como uma escola, devido ao caráter político da associação. Na medida em que é
possível formar um julgamento apesar da insuficiência das fontes nas quais
basea-lo, os pitagóricos constuíam um clube ou uma organização política,
similar, em seu tipo á hetaireia, que evoluiu passando da livre formação de
grupos de nobres para diversos propósitos de guerra, pilhagem e festins
pacíficos na época pré-polis, a pequenos clubes aristocráticos na polis
democrática do século V. Os pitagóricos distinguiam-se da hetairéia comum pela
considerável dimensão da associação, assim como pela organização hierárquica
interna em iniciados e novatos. A opinião de que o pitagorismo,
sociologicamente, era um ramo aristocrático dos movimentos religiosos de
mistérios que se expressava popularmente nas comunidades de culto órfico tem
muito em seu favor. ([¹ Sobre os aspectos políticos de pitagorismo, cf. Kurt
Von FRITZ, Pythagorean POLITICS IN Southern Italy, New York, Colômbia
University Press, 1940, e Edwin L. MINAR JR., Early Pythagorean Politics,
Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1942.]) (pag. 242)
O salto no ser teve resultados diferentes em Israel e na
Hélade. Em Israel, assumiu a forma da existência histórica de um povo sob a
autoridade de Deus; na Hélade, assumiu a forma da existência pessoal de seres
humanos individuais sob a autoridade de Deus. Formulando-se a questão desta
maneira, ficara patente que “uma hipoteca perpetua do evento concreto e
imanente ao mundo sobre a verdade
transcendente que, em sua ocasião, foi revelada”, da qual tivemos de falar no
caso de Israel ([²Ordem e história, I 218, 234]) será ônus menor para a
filosofia helênica do que para a revelação israelita. A validade universal da
verdade transcendente, a universalidade do Deus do Deus Único sobre a
humanidade como um todo, poderia ser mais facilmente desvinculada da
descoberta, por parte de um individuo, da existência de sua psique sob os
deuses do que da revelação sinaítica da existência de um povo sob a autoridade
de Deus. Não obstante, assim como Israel tinha de carregar o fardo de Canaã,
também a filosofia tinha de carregar o fardo da polis. Pois as descobertas,
embora efetuadas por indivíduos, foram feitas por cidadãos de uma polis; e a
nova ordem da alma, quando comunicada por seus descobridores e criadores,
estava inevitavelmente em oposição á ordem pública, com o apelo implícito ou
explicito aos seus concidadãos para reformarem sua conduta pessoal, os costumes
da sociedade e, por fim, as instituições em conformidade com a nova ordem. A
filosofia helênica se tornou portanto, em grande medida, a articulação da
verdadeira ordem da existência no interior da estrutura institucional de uma
polis helênica. Isso não é necessariamente o grande defeito que os modernos
frequente acreditam ser, pois, afinal, a filosofia se desenvolveu no interior
da polis, e talvez a verdadeira existência filosófica só seja possível num
ambiente que se assemelha ao da cultura e das instituições da polis. (pag. 243
e 244)
O mito recebeu sua forma pan-helênica por meio dos poetas:
“Desde o inicio [ex arches] todos aprenderam de Homero” ([4 DIELS-KRANZ,
Xenófanes B 10]). Por conseguinte, a
afirmação de uma verdade em oposição ao mito tinha necessariamente de assumir a
forma de um ataque a seus criadores. Xenófanes foi o primeiro a ousar fazê-lo.
E seu ataque tornou-se a expressão paradigmática da tensão entre o filosofo-místico
e o poeta, que no século IV motivou ainda o ataque de Platão a Homero na
República.
A tensão não se originou numa versão utilitária á poesia –
embora ainda hoje os críticos de Platão entreguem-se a essa desatinada
suposição – mas foi causada pela autoridade que o poeta conquistara na Hélade.
Homero e Hesíodo transformaram os mitos primitivos e locais na forma
intermediaria de um mito especulativo com validade pan-helênica. No que se
refere á compreensão correta da ordem da existência humana, haviam adquirido,
na área da civilização helênica, uma autoridade pública que corresponde ás
autoridades reais e sacerdotais dos impérios do Oriente Próximo. O ataque de Xnófanes era dirigido não contra a
poesia (que não existia na Hélade na abstração burguesa), mas contra a forma do
mito como um obstáculo á adequada compreensão
da ordem da alma. Ele não questionava, de modo algum, a forma poética em
si, mas a aceitava como o instrumento adequado para expressar a sua própria
verdade. Pag. 245 e 246)
A chave para a compreensão dos fragmentos está na palavra
epiprepei, que significa “é apropriado”. O que Homero e Hesíodo têm a dizer
sobre os deuses é inapropriado; o que tem a dizer Xenófanes, por sua vez, é,
presumivelmente, apropriado. (pag. 247)
A Xenófanes se deve creditar a formulação da teoria de que
o mito é uma representação antropomórfica da divindade que a teoria teve
consequências de amplo alcance, devemos aqui examinar brevemente a natureza do
problema. (pag. 249)
A narrativa da Teoonia é, afinal, a história da eliminação
dos deuses “ inapropriados” pela titanomaquia, e do advento da ordem mais
apropriada de Zeus e sua Dike. Xenófanes, com seu ataque pelo poeta antecessor.
Por conseguinte, podemos dizer que a representação antropomórfica dos deuses é
experimentada como embaraçosa quando os deuses não agem como um homem mais
diferenciado e sensível agiria. Em retrospecto, o antropomorfismo aparece como
uma simbolização dos deuses que corresponde a uma fase passada na
autocompreensão, pois em cada presente a simbolização dos deuses está em
harmonia com o grau de diferenciação atingido pelo homem. Xenófanes, por
exemplo, embora critique Hesíodo por seu antropomorfismo, não si incomoda com sua
própria simbolização de deus como um ser que ouve, vê e pensa e sempre se
mantém no mesmo lugar. Trás do termo antroponorfismo, que se tornou um clichê
cientifissta, se oculta o processo por meio do qual a ideologia do homem se
diferencia e, concomitamente, a simbolização da transcendência.(pag. 250)
A critica da representação antropomórfica aparecerá sob um
novo aspecto ao se considerar a alternativa de Xenófanes ao mito homérico e
hesiódico. Uma vez que os homens criam os deuses á sua própria imagem no nível
comparativamente indiferenciado descrito e criticado por Xenófanes, haverá
tantos deuses quantos homens que se dediquem a tais criações. Somente quando
essa simbolização primitiva for abandonada será possível reconhecer o “deus
único que é maior” como um deus comum para todos os homens, correlato á
humanidade idêntica em todos os seres humanos. Por trás da crítica ao
antropomorfismo aparece a experiência da universalidade divina e humana como a
força motivadora. (pag. 252)
A preocupação acerca do caráter apropriado, portanto,
revela-se como a preocupação acerca da representação adequada de um deus
universal. Na investigação desse problema Xenófanes opôs-se a Homero e Hesíodo,
embora efetivamente tenha dado continuidade á obra dos poetas antecessores,
pois a criação homérica e hesiódica substituíram os mitos locais por um mito
pan-helênico, enquanto Xenófanes deu o próximo passo rumo á criação de uma
divindade universal. (pag. 253)
Séculos de pensamento racional e de especulação
secularizada atrofiaram nossa consciência da complexidade pré-especulativa das
experiências pelas quais a transcendência é apreendida pelo homem. O divino
pode ser experimentado como universal (ou comum, no sentido Herácliteo) sem ser
experimentado necessariamente como único; Xenófanes poderia evocar o Deus Único
como um deus universal sem vincular importância sistemática ao atributo da unicidade.
Ele foi um gênio religioso que descobriu a participação num realissimum inominado
como a essência de sua humanidade. Além disso, Xenófanes percebeu a
essencialidade de sua descoberta, ao menos na medida em que podia expressá-la
no símbolo de um “deus maior” para todos os homens – com a implicação de que o
realissimum seria correlato á transcendência experimentada da existência comum
a todos os seres humanos. Foi a universalidade do realissimum que faz que todas
as representações idiossincráticas de deuses particulares parecessem
“inapropriadas”. Todavia, os deuses que eram inapropriadamente representados
eram, ainda assim, deuses; a inadequação dizia respeito á sua representação,
não á sua divindade. Xenófanes poderia aceitar como suas palavras atribuídas a
Tales. “O mundo está cheio de deuses”. A universalidade da transcendência
descoberta por ele não aboliu os antigos deuses, apenas melhorou sua
compreensão. (pag. 254)
Xenófanes foi o primeiro dos pensadores do Um (henizontes),
pois, “perscrutando a vastidão do Céu [ ton holon ouranon], ‘O Um’, disse ele,
‘é Deus’’’ ([¹8 ARISTÓTELES, Metfísica, I, 986b18 ss. DIELS-KRANZ, Xenophones A
30. Não há por que duvidar da confiabilidade da imformação. Cf. JAEGER,
Theology, 51 ss.]). Segundo Aristóteles, portanto, Xenófanes é o primeiro de um
grupo de pensadores monistas. De modo distinto dos últimos eleatas, ele ainda
não havia levado a especulação ao ponto de interpretar o Um como Logos ou como
Hyle. Seu gênio tem uma retidão espiritual peculiar que pode ser percebida no
vislumbre do Céu, seguido pela asseveração de que o Um é Deus. A parte mais
importante de sua concepção é, para nós, a formulação dessaasseveracao. Talvez
Deus não seja uno, mas o Um é Deus. A experiência concerne ao Um, e se predica
acerca dessa divindade Uma. (pag. 255)
O significado de sophie só pode ser determinado por
referencia ao todo da obra de Xenófanes; deve ser compreendido, de modo
abrangente, como a diferenciação da personalidade juntamente com o correlato
corpo de conhecimentos estudados no capítulo anterior, na seção (O ataque de
Xenófanes ao mito”. Tendo em mente esse significado abrangente do termo sophie,
podemos abordar a rebeliao em nome da nova excelência (Arete) do homem contra a
cultura aristocrática agonal da polis helênica na qual o vencedor em Olímpia
tornara-se o sucessor do herói homérico. (pag. 260)
A crítica da sociedade com a autoridade do apelo espiritual
perdura, de agora em diante, como um tipo para a expressão do pensamento
político. A consciência desse tipo criado por Xenófanes nos ajudará a entender
certos aspectos da obra platônica que, de outro modo, permaneceriam
enigmáticos. (pag. 262)
Tirteu começa: “Eu não recordaria nem poria em minha
narrativa um homem por sua excelência [Arete] na corrida ou na luta; nem que
tivesse o tamanho e a força dos ciclopes, nem que pudesse correr mais rápido
que o vento do norte trácio; nem que tivesse figura mais bela que a de Titono
ou que fosse mais rico que Midas ou Ciniras; nem que fosse mais régio que
Pélops ou mais suaviloquente que Adrasto”. (PAG. 264)
A “bravura impetuosa”: “Pois um homem não é bom na guerra a
menos que possa suportar a visão de matanças sangrantes e que possa alcançar
seu inimigo, avançando contra ele de perto. Isto é virtude [Arete]! O melhor e
mais belo prêmio que um jovem pode ganhar entre os homens! É um bem comum
[xynon esthlon] para a polis e para todo o seu povo quando um homem persevara á
frente entre os primeiros guerreiros, aguentando firmemente, esquecendo toda
fuga vergonhosa, entregando-se de corpo e alma”. (pag. 264)
Numa elegia precedente á reforma, Sólon reflete sobre o
provável destino de “nossa polis” ([5 Elegy and Iambus,v. 1 Solon 4]). Ela
jamais perecerá por vontade dos deuses, mas somente pela insensatez de seu
próprios cidadãos. Iníquo é o pensamento dos lideres do povo; sem respeito pelo
que é sagrado ou pelo que é público, roubam a torto e a direito, e não têm
consideração pelos fundamentos veneráveis da Dike. Mas a Dike, em seu silêncio, está ciente de
tais atos e sua vingança sempre chega no final. Inelutavelmente (aphyktos), as
consequências da violação da Dike se manifestarão na disputa política.
Formar-se-ão conventículos (synodoi), tão caros aos iníquos, e o governo caíra
pelas mãos seus inimigos, e o pobre povo será vendido em escravidão para nações
estrangeiras. O mal público (demosion kakón) penetrará em cada casa privada;
trancar as portas não o manterá distante, pois ele pula por sobre os muros e
encontra cada homem no mais íntimo
recesso de seu lar. Cheio de lástima diante de tais perspectivas, Sólon
conclui: “Meu coração (thymos) me obriga a ensinar isto aos atenienses” – que a
iniquidade ( dysnomia) criará muito mal
para a polis, enquanto a justiça (eunomia) deixará as coisas em ordem e da
forma apropriada (eukosma kai arita). A eunomia reprimirá os iníquos, conterá
os excessos, reduzirá a hybris, retificará os julgamentos distorcidos, abolirá
as facções e o conflito civil, e tornará “todas as coisas apropriadas e
sensatas para os assuntos dos homens”. A elegia é cuidadosamente construída e
contem as principais ideias que Sólon elabora em seus poemas. Podemos seguir
seu fio condutor e considerar os tópicos em sequência.
A elegia principia com uma reflexão sobre as causas da
crise atenienses. A responsabilidade não é dos deuses, mas do desatino dos
homens. Esse é o grande tema da teodiceia, seguindo o paradigma da Odisseia.
Sólon, porém, vai muito mais longe que Homero na exploração do problema.
Posteriormente, quando a tirania de Pisístrato se estabelece, ele adverte seus
compatriotas a não culpar os deuses, pois sofrem em virtude da própria covardia.
Os próprios atenienses deram ao tirano os guardas que agora os mantêm em
servidão; eles andam como raposas, mas não têm cérebro; confiam nas palavras de
um homem, mas não veem seus atos (10). Pela primeira vez, o processo
histórico-político aparece como uma cadeia de causa e efeito; a acao humana é a
causa da ordem ou da desordem da polis. A fonte da nova etiologia torna-se
aparente no seguinte fragmento: “Da nuvem vem a força da neve e do granizo, e o
trovão nasce do relâmpago brilhante; uma polis é arruinada por seus grandes
homens, e o povo cai na servidão de um tirano por causa de sua credulidade”
(9). A causalidade histórica é moldada segundo a causalidade de natureza que
estava sendo descoberta na época pelos físicos jônios. (pag. 269 e 270)
A prosperidade e magnificiência ingênuas do herói não
podiam mais ser a Arete do homem. “Muitos homens maus são ricos, muitos homens
bons são pobres; mas nós, por nossa parte, não devemos trocar a Arete por
riquezas, pois a Arete dura para sempre, enquanto as posses estão agora nas
mãos de um homem e, depois, nas de outro” (15). A verdadeira Arete do homem é
distinta como algo menos tangível que se as posses nas quais o herói encontra a
confirmação de seu mérito. Mas em que consiste precisamente a recém-descoberta
Areta? O gênio religioso de Sólon revela-se na recusa de uma resposta positiva.
A excelência do homem não pode encontrar sua realização na posse de bens
finitos. Os bens que o homem visa em sua ação são apenas aparentes; eles
pertence cem á doxa de seus desejos e buscas. A verdadeira Arete consiste na
obediência do homem a uma ordem universal que, em sua totalidade, só é
conhecida dos deuses. “É muito difícil conhecer a medida oculta do julgamento justo; e, todavia, só ela
contém os limites exatos [peirata] de todas as coisas” (16). A verdadeira Arete
é um ato de fé na ordem desconhecida dos deuses que cuidarão para que o homem
que renuncia a sua doxa aja de acordo com a Dike. Por um lado, “A mente dos
imortais é inteiramente desconhecida para os homens” (17); por outro lado,” por
ordem dos deuses, eu fiz o que eu disse” (34, 6). Já estamos muito próximos do
agathon platônico, sobre o qual nada se pode dizer positivamente, embora seja a
fonte da ordem na Politeia. (pag. 271 e 272)
A concretização dessa natureza oculta, sua tradução em
regras de conduta, é determinada pela existência da polis. Concretamente, a
política de Sólon torna-se o apelo e a pratica do estadista, para equilibrar os
desejos conflitantes dos grupos sociais a fim de que sua coexistência no
interior da polis – e, deste modo, a existência da própria polis – seja
possível. O seguinte fragmento de um apelo é típico:
Acalmai o coração ardente em vosso peito,
Vós, que vos fartastes de muitas coisas boas,
E ponde dentro de limites
Vossa ambição [megam noon].(28 c)
E o mesmo principio de restringir o excesso de paixão está
subjacente a seu conselho de como lidar com as massas:
Pois a abundância gera a hybris
Quando há demasiada prosperidade [olhos]
Para homens cujas mentes não estão optas para ela. (6)
(pag. 273 e 274)
Julgamentos impulsivos sobre tais questões são tão fáceis
quanto perigosos. Entretanto, ousamos dizer que, por seu comedimento e sua
motivação, Sólon foi a mais importante personalidade individual da política
helênica. Muito poucos indivíduos na história da humanidade, como Alexandre ou
Cezar, tiveram o privilegio de criar um novo tipo pessoal. Sólon foi um deles.
Ele criou o tipo de legislador, o nomothetes, no sentido clássico, não apenas
para a Hélade, mas como um modelo para a humanidade. Ele foi um estadista, não
acima dos partidos, mas entre eles; ele partilhou as paixões do povo e, desse
modo, pôde se fazer aceito como parte dele na política; e agiu com autoridade
como o estadista para o povo, pois em sua alma essas paixões se submeteram á
ordem universal. A Eunomia que Sólon criou na polis foi a Eunomia de sua alma.
Em sua pessoa ganhou vida o protótipo do estadista espiritual. Sua alma tinha
amplitude e elasticidade únicas. Ele podia partilhar o pessimismo dos jônios ao
escrever: “Nenhum homem é feliz; todos os mortais fitados pelo sol são
miseráveis” (14); e podia desejar viver até os oitenta anos (20) porque sentia
que mente ainda se desenvolvia: “Á medida que envelheço, aprendo muitas coisas”
(18) (pag. 274)
Entre Sólon e Platão está a história da polis atenienses –
desde a criação de sua ordem por meio da alma de Sólon até sua desintegração
quando a renovação da ordem por meio da alma de Sócrates e Platão foi
rejeitada. A união das paixões humanas e da ordem divina na Eunomia
dissociou-se nas paixões do demos e na ordem que vive por meio da obra de
Platão. (pag. 274)
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