terça-feira, 15 de agosto de 2023

O Mundo da PÓLIS. Sintese do livro de Eric VOEGELIN

 



                  O Mundo da PÓLIS de Eric VOEGELIN São Paulo LOYOLA,, 2009

 Digitação: Jaciara Souza Pereira

Síntese: Paolo Cugini

                                             HUMANIDADE E HISTÓRIA

O salto no ser, o evento histórico que rompe a compacidade do antigo mito cosmológico e estabelece a ordem do homem em sua imediação sob a autoridade de Deus – é preciso reconhecer – ocorrer duas vezes na história da humanidade, praticamente ao mesmo tempo, no Oriente Próximo  e nas civilizações egeias vizinhas. (pag. 75)

Os principais fenômenos que suscitam dificuldades são quatro:

(1)  O salto no ser, quando ocorre, transforma a sucessão das sociedades precedentes no tempo num passado da humanidade.

(2)  O salto no ser, embora adquira uma nova verdade sobre a ordem, não adquire toda a verdade, nem estabelece uma ordem última da humanidade. O esforço pela verdade da ordem prossegue no nível histórico. As repetições do salto no ser corrigirão a noção inicial e a completarão com novas descobertas; e a ordem da existência humana, por mais profundamente afetada pela nova verdade, permanece a ordem de uma pluralidade de sociedades concretas. Com a descoberta de seu passado, a humanidade não chegou ao fim de sua historia, mas se tornou consciente do horizonte aberto de seu futuro.

(3)  O salto inicial no ser, a ruptura com a ordem do mito, ocorre numa pluralidade de casos paralelos, em Israel e na Hélade, na China e na Índia, em cada caso sendo seguido por sua própria historia inerente de repetições no novo nível da existência.

(4)  Os saltos paralelos no ser diferem amplamente com respeito ao radicalismo de sua ruptura em relação ao mito cosmológico e também com respeito á abrangência e á penetração de seu avanço rumo á verdade sobre a ordem do ser. As ocorrências paralelas não são de uma mesma classe. (pag. 78)  

Desde Hesíodo até Platão, quando o salto no ser alcançou a atletheia, a verdade da existência, o antigo mito torna-se o pseudos, a falsidade ou mentira, a inverdade da existência na qual os antepassados viviam. (pag. 79)

                               HÉLADE E HISTÓRIA

Numa  primeira abordagem, certamente, não há dúvida de que na Grécia, como se torna manifesto á luz mais plena da história após 800 a. c., encontramos múltiplas polis divididas pelas rivalidades e envolvidas em guerras frequentes, ás vezes de uma forma tão atroz que se chega a considerar uma prova de humanidade se apenas metade da população de uma cidade é massacrada. Mas esse estrato da ordem grega, embora seja bastante concreto, certamente não é a estrutura completa da sociedade grega. A história da Grécia não se dissolve nas histórias das polis individualmente e de suas guerras, e um estudo dos tipos da ordem da polis e de sua simbolização não poderia ser considerado um tratamento adequado da ordem grega. Pois acima da ordem das polis surge, reconhecivelmente, o senso de pertencer a uma sociedade comum mais ampla. (pag. 101 e 102)

A filosofia, como uma experiência e uma simbolização da ordem universalmente válida, surge da órbita da polis. Esse fenômeno, agora, é um reminiscente do “êxodo de Israel para fora de si mesmo” que aparece no Dêutero-Isaías, ou seja, do processo no qual o componente universalista na experiência do Reino de Deus se separa da tentativa de realizar o Reino nas instituições de uma sociedade concreta. (pag. 103)

Tanto o helenismo como a cristandade devem ser compreendidos, ao que parece, como a operação contínua, na escala imperial, das forças ordenadoras para as quais Israel e a Hélade, as sociedades concretas de sua origem, mostraram-se exessivamente estreitas. (pag.103)

A ciência grega da ordem era fato muito mais que uma teoria da melhor polis. A própria concepção de uma polis paradigmática era, nas mãos de Platão e Aristóteles, um instrumento de critica a ser usado contra a realidade nada paradigmática da cena política circundante. Sua elaboração de uma ciência da ordem era um ato político consciente, praticado numa situação concreta de desordem. Alem disso, a necessidade de firmar as fundações empíricas do diagnóstico da desordem, assim como a autocompreensão de seu próprio ato de oposição forçaram os filósofos a analizar a situação com base em sua gênese histórica. A criação de um paradigma da ordem, sustentado como um modelo de ação em oposição á ordem estabelecida da sociedade, teria sido, com efeito, uma realização estranha, e talvez até ininteligível, a não ser que uma filosofia do declínio e da regeneração histórica da ordem viesse a constituir o seu suporte e a dotasse de sentido. Portanto, a ciência integral da ordem compreende tanto uma ciência da ordem paradigmática como uma ciência do curso efetivo não paradigmático da sociedade na história. E as construções paradigmáticas tinham de fazer sentido com respeito ao passado recordado que ingressou como o presente no qual foram criadas. A consciência da situação histórica, portanto, era uma parte essencial da experiência grega da ordem, e o alcance da ordem que será apropriadamente designada como grega deve ser determinado, por conseguinte, pela memória da história contínua que os pensadores do período clássico aplicaram em sua situação, assim como na compreensão de seu próprio lugar nela. (pag. 107)

Se a memória for aceita como guia, a história da sociedade grega se estende por um período aproximadamente igual ao da historia paralela de Israel, com sua memória do êxodo de Abraão saindo da Ur dos caldeus. (pag. 108)

O conteúdo da memória helênica é, portanto, inesperável do processo histórico de seu crescimento. (pag. 109)

Na esteira da invasão do século XII, formou-se no continente grego algo como um vácuo cultural, quando os depositários da civilização micênica foram forçados a emigrar, em grandes grupos – presumivelmente incluindo o estrato social e culturalmente dominante –,  para as ilhas e a área costeira da Anatólia. No século IX a.C., uma nova Grécia começou a surgir. O renascimento começou nas polis da Ásia Menor, onde os “Filhos de Iavan” se tornaram vizinhos dos “Filhos de Ashkenaz” (Gn 10). Nesta área fronteira de imigração originaram-se as epopeias de Homero, que daí começaram a difundir sua influencia ao longo das ilhas e do continente, fornecendo aos gregos em recuperação a consciência de um passado comum. O empreendimento federativo pan-aqueu contra Troia tornou-se o símbolo vivo de um vinculo cultural pan-helênico, e, precariamente, até mesmo um vínculo político. Além disso, uma vez que a guerra dos homens era ao mesmo tempo uma guerra dos deuses, os épicos proporcionaram uma mitologia comum onde quer que tenham se difundido, criando assim um contrapeso á diversificação das divindades locais e seus cultos. Neste aspecto, a função dos deuses heméricos – embora não os próprios deuses – pode ser comparada ao sumodeísmo egípcio, com sua interpretação dos vários deuses do sol do Egito como aspectos do deus único que adquiriu supremacia política. E, por fim, a linguagem das epopeias era um fator unificador na medida em que compensava a diversificação dos dialetos. Da área egia oriental, então, a recuperação grega enpandiu-se pelo mundo helênico e, por meio da expansão, crio-o. Homero era um anatólico ou grego insulano, o primeiro de uma linhagem brilhante. As cidades costeiras e as ilhas vizinhas eram a religião onde a cultura pré-helênica sobrevivente e a cultura asiática se encontravam; a partir dessa região focal, a mistura vital difundia-se ao longo do semicírculo das ilhas para o oeste da terra firme grega e ainda para a Sicília e o sul da Itália. Pelo lado de fora, esse vasto semicírculo era cercado a leste pelos lídios, persas e fenícios, ao sul pelos egípcios, e ao sudeste e oeste pelos cartagineses e etruscos. (pag. 109)

As historiai eram as investigações empreendidas por Heródoto como o propósito de preservar de modo geral as tá genomena, as recordações ou tradições, e de preservar especificamente as tradições relacionadas á pré-história do grande conflito entre os helenos e os bárbaros nas Guerras Persas (1.5). No momento, interessa-nos não a riqueza de detalhes das Histórias, mas o método usado por Heródoto para extrair de suas fontes o que ele considerava a verdade dos eventos. Dois exemplos ilustrarão o problema. (pag. 111)

Os dois exemplos serão suficientes para nossos propósitos. Aparentemente, Heródoto, a fim de transformar suas fontes em historia, empregou e desenvolveu um método que já era amplamente aplicado na área fronteiriça das civilizações grega e asiática. No relato dos sábios persas, uma cronologia dos eventos foi derivada de alguns mitos gregos; os fatos foram um tanto alterados de modo a favorecer o que hoje chamamos de “interesse nacional”; e uma história razoável surgiu por meio da aplicação do senso comum e da prudência elementar. No caso da história de Helena recebida dos egípcios, vemos que Heródoto, orgulhosamente aproveita o auxilio, ao desenvolver um argumento do tipo asiático a fim de justificar sua preferência pela história egípcia contra Homero. (pag. 113)

O método é de interesse em vários aspectos. Quando Heródoto considerou os mythoi em seu valo nominal como fontes históricas, abriu-se um amplo panorama do inicio da história grega, com suas relações com o Egito, e Fenícia e Creta – um panorama que, seu todo, era historicamente verdadeiro, e embora os métodos desenvolvidos pelos historiadores e arqueólogos modernos para propósitos de usar os mitos e os épicos como guias da realidade histórica tenha se tornado infinitamente mais cautelosos, refinados e complicados, e usualmente conduzam a resultados largamente diferentes quanto aos detalhes, o principio do procedimento ainda é aquele seguido por Heródoto. Continuamos a pressupor que uma concentração dos mitos numa dada área geográfica indica acontecimentos históricos nessa área – e supomos que uma escovação trará resultados importantes. Quando Homero escolhe o nome Fênix para o preceptor de Aquiles, ou nome Egípcio para o senhor que faz o primeiro proferimento na assembleia em Ítaca, presumimos que a civilização micênica tinha conexões com a Fenícia e o Egito que tornavam tais escolhas inteligíveis para o ouvinte. E, inversamente, quando, de acordo com as informações de Heródoto, os sacerdotes egípcios haviam desenvolvido um longo relato sobre Helena no Egito e haviam inserido em algum lugar de sua história, presumimos que tinha um conhecimento intimo de vários ciclos de épico grego e que estes haviam causado impressão sobre eles,

Em segundo lugar, o método revela uma ampla destruição do mito por uma mitologia racionalista. Pelos textos de Heródoto, a nova psicologia parece ter sua origem na fronteira asiática; e isso lançaria uma luz interessante sobre ao menos uma das fontes do racionalismo que prevalecia em Atenas, na estaria das Guerras Persas, na época em que Heródoto estabeleceu-se temporariamente na cidade. Por destruição racionalista referimo-nos ao desenvolvimento da coordenação desapaixonada de meios e fins como o modelo da ação correta, em oposição inevitável á participação na ordem de Zeus e de Têmis como no modelo homérico. A destrutividade aparece, portanto, de modo mais patente no argumento de Heródoto contra a confiabilidade histórica de Homero. A história de que os troianos não queriam entregar Helena não podia ser verdadeira, pois ninguém teria sido tão desatinado a ponto de permitir a ruína da cidade por tal motivo. A profunda preocupação de Homero com a etiologia da desordem, sua análise sutil que tentava explicar precisamente por que tal desatino ocorrera estavam aparentemente perdidas em Heródoto.

Em terceiro lugar, á luz da reflexão precedente, o método possui interesse como um sintoma da decadência da civilização helênica. Heródoto conhecia muito bem não só o seu Homero, mas era também, em geral, um dos homens mais amplamente informados e educados de sua época. Se Heródoto não fosse mais capaz de entender Homero, impõe-se a questão: quem poderia? Apenas uma geração antes, Ésquilo ainda se movia no nível espiritual de Homero; considerando-se o fato de que, apenas algumas décadas mais tarde, Heródoto era um autor muito admirado e popular em Atenas, o declínio espiritual e intelectual deve ter sido tão rápido quanto terrível. A questão é de grande interesse em virtude dos posteriores ataques de Platão a Homero. Se a interpretação herodotiana era representativa de um tendência geral, se quase todos leram Homero desse modo, ao menos parte do ataque de Platão seria dirigido não tanto contra Homero, mas contra a maneira como ele havia sido interpretado. A noção de Homero, mas contra a maneira como ele havia sido interpretado. A noção de Homero como o “educador da Hélade” passará por alguns estudos mais minuciosos nos séculos V e IV. (PAG. 113 e 114)

A racionalidade estrita de uma luta por poder, sem preocupação com a ordem da sociedade helênica, tornou-se de fato o modelo de ação na prática política. Em conformidade com a propensão de seu tempo, Tucídides queria interpretar a história grega desde seus primeiros tempos como um processo que conduziria ao conflito de sua própria época. (pag. 115)

A princípio a polis não surgiu como um tipo uniforme de organização em toda a área da civilização helênica. As polis não se organizaram ao mesmo tempo, as mesmas circunstâncias. E as variações do processo de fundação determinaram decisivamente a estrutura das polis individuais em datas historicamente registradas. (pag. 188)

Usualmente, a topografia da área, com suas paisagens relativamente estreitas, é enfatizada como a causa da organização política em pequenas cidades, com um interior agrícola. Contudo, a sucessão das conquistas frigias, lídia e persa da polis na Anatólia provaram que a área podia ser perfeitamente integrada em domínios mais amplos, se houvesse poder e vontade de fazê-lo. (pag. 188)

Como uma cidade, portanto, a polis nunca se desenvolveu numa comunidade de cidadãos individuais unidos pelo vínculo de uma conjuratio como as cidades ocidentais medievais; e, como um Estado territorial, a polis nunca foi capaz de se expandir para formar uma nação composta de cidadãos individuais como os Estados nacionais ocidentais. O individuo nunca obteve a posição pessoal em sua unidade política que, sob a influencia da ideia cristã do homem, caracterizou as formações políticas da civilização ocidental; ele permaneceu sempre numa posição de mediação por meio dos parentescos sanguíneos tribais fictícios e estreitos no interior da polis. (pag. 189)

Uma compreensão da polis helênica tem a partir da estrutura gentílica, mas não pode terminar nela.

Tal compreensão tem de partir da estrutura gentílica porque o modo de existência criado pelo gene aristocráticos, como o conhecemos por meio dos poemas homéricos, persistiu como o modo dominante na cultura política helênica no decurso de todas as transformações e democratização até a conquista macedônica no século IV a.C. O poder político da aristocracia pode ter sido destruído, mas sua cultura permeava o povo; a democratização da Hélade significava uma extensão da cultura aristocrática ao povo – ainda que no processo de difusão a qualidade tenha se diluído. Nunca devemos nos esquecer de que o povo que cometeu as atrocidades descritas por Tucídides foi o povo do Século de Ouro de Péricles, que os torpes assassinos e conspiradores eram os homens que encenavam e apreciavam os dramas de Sófocles e Eurípides, e que a plebe urbanizada esclarecida, odiada por Platão e Aristóteles, foi o povo no meio do qual a Academia e o Liceu puderam florescer. Na história da polis helênica, não encontramos as sublevações que acompanham a ascensão social das classes urbanas na civilização ocidental. Com as mudanças na estrutura social e econômica e com o desenvolvimento da personalidade, a epopeia deu lugar ao poema lírico, o poema lírico, á tragédia, e a tragédia, filosofia – mas a cultura musical e ginástica da sociedade como o paradigma da cultura de Homero a Platão e Aristóteles. (pag. 191)

A transição do mito para a metafísica é repleta de problemas que ciência ainda não solucionou definitivamente. Contudo, pode-se formular o ponto central: que a especulação racional, embora possa ser usada no interior das formas simbólicas tanto do mito como da filofia, não é nem uma nem outra ([¹ A longo do presente capítulo sobre Hesíodo, pressupõe-se a análise de “A dinâmica da experiência” egípcia em Ordem e história, v.I, cap. 3§3.])

O mito e a filosofia, assim como o mito e a revelação, são separados pelo salto no, ser, ou seja pela ruptura com a experiência compacta da ordem cósmico-divina por da descoberta da ordem transcendente-divina. O no ser, porém, a despeito do radicalismo do evento quando ocorre, é historicamente preparado por uma variedade de modos pelos quais o mito se afrouxa e se torna transparente com respeito á ordem transcendente. Na forma egípcia da ordem, a especulação teogônica da teologia da menfita, as especulações sumodeístas dos teólogos do império, culminado no simbolismo de Akhenaton, e também na piedade pessoal dos Hinos a Amon, tornaram o mito cosmológica tão transparente para o ser transcendente que as formulações resultantes podiam ser erroneamento  entedidas pelos historiadores como “monoteístas”. O portador desse processo é o homem, na medida em que existência sob a autoridade de Deus é real mesmo que ainda não esteja iluminada pelo no ser. (pag. 201 e 202)   

A Teogonia representa um primeiro mergulho no mito olímpico com intenção especulativa; e uma linha inteligível de evolução especulativa inicia-se desses inícios, passando pelos filósofos jônicos e itálicos até chegar a Platão e Aristóteles.

A continuidade dessa evolução foi reconhecida na Antiguidade. O tempo “teologia”cunhado por Platão, foi usado por Aristóteles para designar sua prima philosophia (posteriormente, a “metafísica”): “Há três filosofias teóricas: a matemática, a física e a teolocica”. ([² Aristóteles, Metafísica, VI, 1026 a 18 s. Para a mesma classificação das “ciências teóricas”, ver Metafísica, XI, 1064 ss.]) Com um refinado senso da derivação histórica, Aristoteles entendia a Teogonia hesíodica como o primeiro passo evidente na direção da especulação filosófica. Ele estava inclinado, porém, a distinguir Hesíodo e seus seguidores, como os “primeiros pensadores teologizantes”, dos jônicos como os “primeiros pensadores filosofantes” ([³ “PProttoi theologesantes, protoi philosophesantes”, Metafísica, I 983b29 e 98b11 ss.]) e encontrou o traço especifico dos “teólogos” em seu habito de espetacular “mitologicamente”([mythikos). ([4 Metafísica, III, 1000ª9, com referencia especial a Hhesíodo como teólogo, e 1000ª 18. Ver Werner Jarger, The Theology of the Early Greek Philosophers, London, Oxford Univertsity Press, 1947, 9-17]). Em um de seus significados, o novo termo teologia foi usado por Aristóteles para designar a forma de simbolização, intermediária entre o mito e a filosofia, que encontrou em Hesíodo ([5 um importante empenho para examinar a forma simbólica intermediária de Hesíodo foi empreendido por Olof GIGON, Der Ursprung de griechischen Philosophie: Von Hesiod bis Parmenides, Basel, Schwabe, 1945, esecialmente 36-40. Estou de acordo com a análise de Gigon até onde ela chega, mas duvido que essa distinção dos meios simbólicos (“Alles wird Person” – “Alles wird zum Gesgentand”) seja suficiente para dar conta dos problemas que surgem na filosofia grega, não pelo lado dos símbolos, mas pelo lado das experiências expressas por meio deles. A simbolização da realidade transcendente como eidos, forma, na filosofia de Platão, por exemplo, ilustra a predominância da “Sachanalogie”. Todavia, a experiência platônica do ser transcendente é importante em si mesma – e é mais próximo do âmbito de experiência hesiódica, com sua expressão por meio dos símbolos pessoais do mito, que da experiência dos filósofos jônicos. ]) (pag. 203)

Qual é a verdade do antigo mito? Qual é a fonte da verdade na especulação do filosofo? Qual mudança de significado um antigo mito sofre ao ser narrado por GE Hesíodo como uma fábula paradigmática num contexto de verdade especulativa? Que tipo de verdade tem um deus quando é moldado por Hesíodo, até onde podemos ver, para se adequar a um requerimento especulativo? Que tipo de verdade têm as geneologias dos deuses inventados por Hesíodo? Estas questões perpassam, daí em diante, toda a história do pensamento grego, até chegar ao seu ápice no conflito de Platão com a verdade do antigo mito, á qual opõe a verdade de seu novo mito da alma, e especialmente na muito mal interpretada invenção de Platão de um falso mito, uma “mentira” (pseudos), ao lado de seus mitos verdadeiros na República ([ ¹² Sobre o problema da verdade e da mentira no pensamento grego, ver Wilhelm LETHER, Wahrheit und Lüge im ältesten Griechentum, Leipzig, Koehler a Ameland, 1935]) damental de Hesíodo é com um novo tipo de verdade, e sua convicção de estar dizendo “coisas verdadeiras” (etetyna) reaparece em Os trabalhos e os dias. ([¹³ Os trabalhos e os dias, 10.]) (pag. 205 e 206)

A Teogonia é uma aristei, isto é, uma balada ou uma narrativa de uma aventura heroica; e Os trabalhos e os dias é uma paraenesis ou protrepticus, isto é, um discurso admonitório. (pag. 207)

A Teogonia, como dissemos, é uma aristeia. Seu assunto é a vitória de Zeus sobre as antigas divindades; e a história culmina na Titanomaquia, a descrição da batalha entre Zeus e a geração de deuses descendentes de Cronos. Uma vez que Zeus é o pai de eunomia (Ordem), dike (Justiça) e eirene (Paz) a Titanomaquia traz a vitoria das forcas da verdadeira ordem sobre a selvageria das forças cósmicas e telúricas. Esse é o nível de significado determinado pela forma literária. (pag. 207)

Tal evolução não começacom Hesíodo – é perceptível já na Odisseia ([¹6 No inicio Odisseia, cf, cantos III-V.]) – Cia das forças eticas torna-se a raison d’être do reino de Zeus. Os outros deuses são deuses mais “primitivos” em virtude de sua luxuria selvagem, sua crueldade tirânica e, especialmente, devido ao habito incivilizado de engolir seus filhos para evitar uma partilha aristocrática do poder entre os imortais. As atrocidades provocam vinganças atrozes, e as vinganças provocam novas atrocidades. Somente Zeus põe fim a essa sucessão funesta, pois,embora sua vitória seja conquistada pela força, é sustentada pela distribuição justa a cada um dos imortais da cota (time) honrosa que lhe cabe ([17 Teogonia, 71-74]). Essa é, substancialmente, a concepção de Zeus que foi posteriormente desenvolvida na Oréstia esquiliana, na figura do deus que chega á sabedoria por meio do sofrimento, e no Fredo de Platão, no Zeus cujos sucessores são os filósofos, em particular o filho de Zeus, o próprio Platão. (pag. 208)    

O Zeus da Teogonia está no inicio de uma evolução que termina na divindade platônica dos filósofos. Na obra de Hesíodo, contudo, ele ainda é um dos muitos deuses do mito, não um símbolo cujo significado está fixado, independentemente das tradições do mito, pela experiência do filosofo. (pag. 208)

Ele assumiu três gerações de deuses, descendentes umas das outras: Urano (o Céu) e Guia (a Terra), Conos e Reia, Zeus e Hera. Hesíodo, contudo, não tinha, como os teólogos imperiais do Oriente Médio, o ônus da tarefa de racionalizar a posição de um deus superior como a fonte da ordem imperial; ele estava livre para penetrar no problema da ordem e de sua origem por principio. Em Hesíodo, já está presente o universalismo helênico, que não tem paralelo nas construções da teologia menfita ou no Enuma Elish. A especulação, isenta como era de preocupações imperiais, podia redundar na especulação filosófica que nela estava contida de forma compacta. É bem verdade que era preciso atribuir a cada deus do mito um lugar na árvore genealógica, mas nessa derivação ordenada dos deuses a partir de seus ancestrais estava prefigurada, através do mito, a posterior especulação etiológica, a busca pela causa final (αition) do fenômeno que era se experimentar. A exploração hesiódica da ordem joviana por meio da ascensão á primeira geração de deuses se torna, com os filósofos jônios, a ascensão do mundo experimentado a um principio gerador (arché), seja a água, o fogo ou o ar. (pag. 208 e 209)     

Na esfera do mito em si, a trindade Caos-Goia-Eros é designado como a arché dos deuses, do mesmo modo como um dos elementos é postulado como a αrché das coisas na especulação jônia. Por conseguinte, não podemos concordar com as interpretações precedentes (que são ainda aceitas) segundo as quais o sistema teogônico hesiódico deixa sem resposta a questão da “origem” e somente os jônios teriam abordado o problema especulatividade. O erro é provocado pela linguagem simbólica que Hesíodo tem de usar inevitavelmente ao expressasr um problema estreitamente especulativo. As três divindades primordiais não existem, em sua linguagem, desde a eternidade, mas “surgem” como os outros deuses. Essa linguagem que fala de “surgir”, que pertence ás regras do mito heênico, se compreendida (ou antes, mal compreendida) como orαtio directα, deixará sem resposta a questão da “origem”. Se, contudo, distinguirmos – como devemos fazer na análise do mito – a linguagem do mito e o significado que ela possui, perceberemos que de geração erótica. Logo, a Teogonia é, no nível do mito, uma especulação tão acabada e completa sobre a original das coisas quanto o fisicismo jônio. (pag. 209 e 210)   

Por fim, deve-se observar que a especulação hesiódica pressupõe uma considerável flexibilidade do mito, uma ampla margem de liberdade disponível para a invenção e a transformação. Pois os mitos que entraram na Teogonia não são os mitos do povo, ligados a localidades e ritos específicos; pelo contrário, Hesíodo faz um esforço deliberado para superar, se não abolir, os múltiplos mitos locais e substituí-los por um sistema de deuses típicos – por vezes as variantes locais ainda podem ser discernidas no novo tipo, como por exemplo no caso da história do nascimento de Afrodite como a explicação de seus vários nomes como Citereia e Ciprogeneia. ([²³ Teogonia, 188-200]) Hesíodo, como Homero, foi um criador de deuses para toda a área de civilizacao helênica e, deste modo, um dos grandes criadores de sua unidade. A obra mitopoética dos dois poetas foi uma revolução espiritual e intelectual, pois ao ter estabelecido os tipos de forças cósmicas e éticas, assim como os tipos de relações e tensões entre elas, ela criou, na forma do mito, um corpo altamente teorizado de conhecimento concernente á posição do homem em seu mundo  que poderia ser usado pelos filósofos como ponto de partida para a análise e a diferenciação metafísicas ([²4 Na construção do Banquete, por exemplo, Platão deixa que primeiro orador, Fedro, faça uma exposição geral do que havia sido dito até então sobre Eros. E essa exposição começa com as respectivas passagens de Hesíodo e Parmênides (197). O mesmo procedimento, embora conduza a um resultado metafísico inteiramente diferente, é seguindo por Aristóteles: na Metafísica 1.4, ele principia a discussão novamente com as mesmas passagens de Hesíodo e Parmênides. ]). A liberdade dessa criação, embora assuma proporções revolucionarias em Homero e Hesíodo, é uma característica geral do processo mitopoético na Hélade ([²5 Para a impressionante produção de deuses numa continuidade que vincula a sociedade cretense á helênica, ver o excelente levantamento em Axel W. PERSSON, The Religion of Greece in Prehistoric Times, Barkeley, University of California Press, 1942, cap. 5: Minoan-Mycenaean survivals in the greek religion of Classic Times. ]) Ela continua sendo a pressuposição da posterior evolução dos deuses desde Hesíodo, por meio da tragédia do século V, até Platão, que, após a desintegração do mito na época das luzes, recupera sua verdadeira função como o instrumento de simbolização dos problemas transcendentais limítrofes que estão além do alcance da construção metafísica mundano-imanente. (pag. 211 e 212)  

Os trabalhos e os dias é uma parênese, um discurso exortatório que Hesíodo dirige a seu irmão Perss. (pag. 212)

O tema da exortação é formulado na invocação inicial das Musas. Elas são evocadas pelo poeta para exaltar Zeus, já que o destino do homem está nas mãos do deus; os homens serão célebres ou não, contados ou não, segundo a vontade do deus. Com a mesma facilidade com que o deus engrandece um homem, ele o arruína; com a mesma facilidade humilha aqueles que caminham sob a luz e favorece os obscuros; facilmente endireita o que está errado e facilmente derruba os arrogantes. (pag. 213)

A esse respeito, as linhas introdutórias de Os trabalhos e o dias possuem considerável importância, pois não só estabelecem Zeus como o deus da ordem política justa, mas porque a exemplificação da justiça divina implica que os homens no poder são injustos e que o restabelecimento da ordem justa implica a queda dos grandes e a ascensão dos humildes. Encontramos essa concepção da justiça ainda com um conteúdo típico na noção platônica de que os homens que detiveram o poder nesta vida terão maior probabilidade de ser condenados pelos Filhos de Zeus na vida após a morte, enquanto aqueles que não se envolveram nos assuntos políticos receberão sua recompensa antes do tribunal eterno. (pag. 213 e 214)    

A Dike de Zeus determina que só podemos chegar á Arete através do trabalho  árduo sob o impulso da boa Éris. Essa Arete hesiódica do camponês (ao ser contrastada com a Arete hemérica do guerreiro aristocrático) é então detalhada na segunda parte do poema, numa profusão de regras. O modo de vida do camponês pacifico e trabalhador é a ordem em conformidade com Dike, Hesíodo se dá ao trabalho de fazer essa exposição porque tem a esperança de que “o insensato Perses” possa ser induzido a seguir o conselho. (pag. 215)

A primeira parte de Os trabalhos e os dias contém as três fábulas e os apocalipses a elas subornados.

O uso da fábula faz parte do estilo exortativo proveniente de Homero. A força persuasiva da admoestação é intensificada pelas ilustrações apropriadas extraídas do reservatório compartilhado dos mito, e o argumento em si é sustentado pela autoridade da sabedoria paradigmática incorporada na tradição mítica da comunidade. (pag. 216)

Á luz dessas reflexões, uma análise das fábulas tem de distinguir a historia em si de seu propósito paradigmático. Pois a historia pode ser um conto de infortúnio, enquanto sua narração é inspirada pela esperança de que o ouvinte entenda a lição e evite o infortúnio graças a uma conduta mais inteligível. (pag. 216 e 217)

A primeira fábula é a de Pandora, que conta a história das imposturas de Prometeu e da punição infligida por Zeus á humanidade (42-105). Em sua ira provocada por uma impostura  de Prometeu, Zeus escondeu dos homens seu sustento (bion), para que tivessem de se manter vivos por meio do trabalho árduo. Então Prometeu roubou o fogo para os homens e, como punição por essa segunda impostura, Zeus ordenou que se forjasse Pandora, um ser humano em forma de donzela, imitando as deusas imortais, dotada de todas as graças e prendas e, além disso, equipada com um vaso cheio de pragas para o homem. Epimeteu, de baixa perspicácia, aceitou a dádiva dos deuses – e foi assim que o mal (kαkon)começou. “Antes disso, as tribos dos homens viviam na terra livres do mal e do trabalho penoso e das moléstias dolorosas que trazem as sombrias Percas sobre os homens – pois na desventura [kαkotes] os mortais envelhecem rapidamente. Mas a mulher retirou com as mãos a grande tampa do vaso e dispersou esses e outros sofrimentos para o homem” (90-95). Somente a Esperança, por determinação de Zeus, foi mantida no interior do vaso. “Logo, não há como escapar da vontade [noon] de Zeus” (105).

A fábula de Pandora está relacionada á história da queda e da expulsão do paraíso no Gênesis. Pode-se assumir um reservatório comum de mitos pré-literários do qual os dois mitos derivariam. A forma hesiódica, porém, distinguir-se da forma bíblica por sua distribuição das ênfases. O motivo da rivalidade entre o homem e Deus é abrandado, enquanto a queixa a respeito da condição humana passa para o primeiro plano. (pag. 217 e 218)

O sonho hesiódico de que não houvesse trabalho, fome, doenças, envelhecimento e morte, mulheres arrola os negativos das experiências que são as principais fontes de angustias na vida humana. O paraíso, nesse sentido, como o sonho de libertar-se do fardo e da angustia da existência, é uma dimensão constante da alma que se expressa não só nas imagens da existências imortal no alem, mas, em geral, permeia a ocupação imaginativa com um estado desejável da existência mundana. (pag. 218)

A análise da segunda fábula é intitulada “as idades do mundo” porque a expressão é de uso geral para designar o tipo de especulação da qual a fábula hesiódica é uma amostra ([ ³³ Ver o artigo Ages of the World, e também o artigo relacionado Cosmogony, in Ecyclopedia of Religion and Ethics, New York, Scribners, 1913-1923]). O título, entretanto, não deve influenciar a análise – qual é efetivamente o assunto da fábula terá de ser julgado pela leitura de seu texto (106-79). Dado que a análise a seguir se desviará das interpretações estabelecidas em vários aspectos, farei, primeiramente, um resumo do conteúdo da fábula. (pag. 219)

Mesmo a leitura mais superficial  da história revelará que a sequência das idades do ouro, da prata, do bronze, dos heróis de ferro é desordenada, pois a série dos metais é interrompida pelos heróis. A conjectura sugere que Hesíodo de baseou em algum mito das quatro idades dos metais, talvez um mito babilônico, e o adaptou para seus propósitos, inserindo o mundo da epopeia homérica entre a idade de bronze e a do ferro. Com efeito, existem histórias sobre as quatro idades no Oriente Médio e na Índia que podem remontar a fontes similares ás hesiódicas. (pag. 220)

O trabalho e os dias é um poema, não a exposição discursiva de uma tese. É preciso ler e estudar a obra em si a fim de chegar á compreensão da riqueza de seu conteúdo. Não podemos senão auxiliar tal compreensão circunscrevendo as áreas da experiência na qual se baseia o apocalipse. (pag. 230)

Convém ter certeza a respeito da estrutura da experiência hesiódica caso se deseje preservar uma visão equilibrada acerca dos paralelos entre a visão hesiódica da felicidade e da ruína e as visões correspondentes dos profetas israelitas do século VIII a.C. Embora a busca por paralelos orientais não deva ser mais reprovada que nos casos da fábula de Pandora, ou de logos das Idades do Mundo, é preciso ter em mente que não é possível suscitar questões referentes a influencias literárias. Estamos lidando com a história das experiências e sua simbolização, e as experiências de Hesíodo, assim como suas expressões, são inteligíveis no contexto da historia helênica, sem que se recorra a “influências”. Cada uma das linhas do apocalipse hesiódico poderia ter sido escrita sem o conhecimento dos paralelos hebraicos. Tendo em mente este alerta, faremos agora uma justaposição de algumas passagens de Hesíodo e de alguns versos dos profetas ([5¹ Para uma seleção mais rica dos paralelos entre Hesíodo e os profetas, cf. TEGGART, The Argumentoof Hesiod’s Worrks and Days.])

Na grande visão do futuro da raça de ferro, Hesíodo escreve (182 ss.)

Nem o pai estará de acordo [homoiis] com seus filhos, nem os filhos com seu pai; nem o hóspede com o anfitrião, nem amigo com amigo,; nem o irmão será estimado pelo irmão como dantes. Os homens desonrarão seus pais senescentes, criticando-os e insultando-os com palavras ásperas, monstruosamente arrogantes, desconsiderando a vingança dos deuses; tampouco tribularão o custo da sua criação a seus idosos pais. [...] Tampouco será favorecido o homem que mantém seu juramento, ou aquele que age conforme as leis, ou o homem de excelência; os homens exaltarão os malfeitores e os atos guiados pela hybris. A justiças estará lado a lado com a forca bruta, e a vergonha não mais existirá; os piores homens prejudicarão os melhores, dizendo palavras tortuosas e prestando juramento contra eles. A inveja, as discussões, o regozijo no malefício serão, para o seu pesar, as companhias de todos os homens.

Encontramos paralelos dessa visão em profetas como Isaias (3, 4 ss.):

Dar-lhes-ei crianças como seus príncipes, e meninos os governarão. E as pessoas serão oprimidas umas pelas outras, e cada um por seu próximo: a criança se portará com petulância ante o ancião, e o homem da plebe ante o nobre. 

Ou em Oseias (4, 1 ss.):

Não há sinceridade, nem piedade, nem conhecimento de Deus na terra. Sucumbem sob imprecações , mentiras, assassinatos, roubos e adultérios, e derrama-se mais sangue sobre o sangue já derramado.

Por isso, a terra se lastimará, e todos os seus habitantes definharão,; juntamente com os animais selvagens e as aves do céu, também os peixes do mar desaparecerão.

Ou em Miqueias (7, 2 ss):

O homem bom desapareceu da terra: e não há mais justo entre os homens; estão todos á espreita para derramar sangue; cada qual caça o seu irmão com uma rede. Eles são capazes de fazer o mal resolutamente com ambas as mãos; o príncipe e o juiz pedem gratificação; o grande declara seu desejo malévolo: então eles ficam satisfeitos.

[...]

Não confies num amigo, não te fies num guia: contém as palavras que saem de tua boca diante daquele que repousa em teu peito.

Pois o filho desrespeita o pai, a filha se ergue contra a mãe, a nora contra a sogra; os inimigos de um homem são as pessoas de sua própria casa.

Contra essa visão da ruína, Hesíodo sustenta sua esperança de uma cidade justa (225 ss.):

Mas quando eles concedem julgamentos imparciais a estrangeiros e aos homens locais, e não se desviam daquilo que é justo, sua cidade florescer e o povo prospera. A paz, a governanta das crianças, está fora de sua terra, e Zeus, que tudo vê, nunca ordena guerras cruéis contra eles. Nem a penúria nem o desastre assombram os homens que agem com verdadeira justiça; mas guardam de boa vontade os campos que são tudo o que lhes importa. A terra produz seus viveres em abundancia,  e nas montanhas o carvalho oferece frutos e abelhas. Suas lanosas ovelhas são constantemente tosquiadas; suas mulheres geram filhos semelhantes aos pais. Eles prosperam continuamente com coisas boas, e não viajam em navios, pois a fecunda terra rendelhes frutos.

Esta visão pode ser comparada com a de Miqueias (4, 3 s.):

Ele será Juiz entre numerosos povos, e repreenderá nações poderosas muito distantes; martelando suas espadas, delas farão arados; e de suas lanças, foices para podar: nenhuma nação brandirá a espada novamente contra outra nação, nem aprenderá a guerrear.

Ficará cada qual sob sua vinha e sua figueira, ninguém os ameaçará: pois a boca do Senhor de todos assim falou.

Ou com Isaias (30, 23):

Ele dará a chuva para a semente que tiveres semeado na terra; e o pão feito com o produto da terra será nutritivo e abundante: naquele dia, teu gado terá pastagens vastas.

Os bois e os jumentos que lavram o solo comerão forragem de qualidade, joeirada com a pá e o forcado.

Contudo, não devemos negligenciar o fato de que o certos versos da Odisseia (XIX, 109 ss.), nos quais Odisseu, incógnito, exalta Penélope, são mais próximos das visão de Hesíodo que quaisquer trechos dos profetas:

Tua fama chega ao vasto céu, assim como a fama de um irreprochável rei, que, com o temor aos deuses no coração, é senhor de muitos homens poderosos, sustentando a justiça; e a negra terra produz trigo e cevada, e árvores vergam-se com frutos, os rebanhos procriam sem cessar, e o mar fornece peixes – tudo isso porque ele é um bom líder; e o povo prospera sob sue governo.

Portanto, há paralelos – mas, precisamente no caso dos apocalipses, e em particular, no caso do apocalipse da ruína, sua existência não remete a fontes comuns, pois o apocalipse da ruína tem como cerne uma intensificação dos males vivenciados pelo profeta. A visão apocalíptica é algo como a acentuação da descrição empírica de um estado de coisas insatisfatório, chegando a um tipo ideal do mal. O profeta da ruína não tem de explorar civilizações estrangeiras em busca de símbolos que expressem adequadamente sua angustia da aniquilação – tudo o que tem de fazer é apreender a essência do mal que o cerca e retratar seus fenômenos sem o entremeio amenizador do bem. Os símbolos paralelos devem-se á disposição paralela no modo de percepção dos fenômenos empíricos do mal. Isto é ainda mais verdadeiro no que se refere ás profecias da bem-aventurança. No contrário de uma economia rural, o anseio por paz, fertilidade e prosperidade está fadado a produzir símbolos paralelos. (pag. 234, 235 e 236)    

A especulação milesiana não teve sucessores imediatos. Ao que perece, a conquista pelos persas em 546 a.C. atrapalhou profundamente o desenvolvimento interno das polis anatólias. Xenófanes de Colofão (c. 565-470) emigrou para a Italia; e, em 494, Mileto foi destruída. Em seguida, no século XI, o movimento órfico, com seu mistério da purificação da alma, disseminou-se pela Grécia, enquanto surgia na Itália o movimento pitagórico com ele relacionado, e ambos enriqueceram, com sua experiência da alma, a obra dos filósofos da virada do século VI para o século V a. C. O conhecimento órfico da alma permeava a obra de Xenófanes e Heráclito (c. 535-475). Os dois grandes filósofos falaram com a autoridade do místico e representaram a ordem da alma em oposição á ordem da polis. Em meados do século V,  por fim, a cena filosófica deslocou-se da Itália de Parmênides para a Atenas de Anaxágoras e Demócrito.

Mais importante, todavia, é o fato de que não havia “escolas” em nenhum sentido concebível to termo. O estilo da civilização helênica é indelevelmente caracterizado pela ausência de burocracias temporais e eclesiásticas. Por um milagre da história, área geográfica da civilização helênica permaneceu imperturbada por invasões estrangeiras desde a migração dórica até as Guerras Persas, ou seja, aproximadamente de 1.100 a 500 a.C. Durante seiscentos anos, enquanto no Oriente Próximo e no Extremo Oriente as civilizações imperiais com suas inevitáveis burocracias eram fundadas, destruídas e restabelecidas, o paraíso geopolítico em terno do Egeu pôde desenvolver as civilizações “livres”; primeiramente, de clãs e aristocracias locais, e, mais tarde, de polis que eram tão pequenas que não demandavam uma administração burocrática de dimensões consideráveis. Sob tais circunstancias historicamente única, a transição da Hélade arcaica para a Hélade clássica pôde assumir a forma de aventuras intelectuais empreendidas por indivíduos não tolhidos pela pressão de hierarquias, que tendem a preservar as tradições. (pag. 239 e 240)

Uma “escola”, no sentido de gerações sucessivas de pensadores que se apoiam num substrato comum fornecido pelo “fundador”, só é possível quando tal substrato é espiritual e intelectualmente rico o bastante para se tornar um centro efetivo para a organização das almas humanas em rivalidade com o estoque comum de tradições, ou quando constitui uma variante específica e intensa no interior da tradição. Antes da fundação da Academia sob o impacto de Sócrates em Platão, apenas dois homens podem ser considerados, com ressalvas apropriadas, fundadores de “escolas”: Pitágoras e Parmênides. (pag. 242)

A associação pitagorica era uma comunidade religiosa, com um “modo de vida” distinto, apoiada em doutrinas concernentes ao destino da alma e seguidora de uma disciplina requerida para assegurar sua purificação e sua imortalizacao. É preciso contudo apor ressalvas ao exemplo do pitagorismo como uma escola, devido ao caráter político da associação. Na medida em que é possível formar um julgamento apesar da insuficiência das fontes nas quais basea-lo, os pitagóricos constuíam um clube ou uma organização política, similar, em seu tipo á hetaireia, que evoluiu passando da livre formação de grupos de nobres para diversos propósitos de guerra, pilhagem e festins pacíficos na época pré-polis, a pequenos clubes aristocráticos na polis democrática do século V. Os pitagóricos distinguiam-se da hetairéia comum pela considerável dimensão da associação, assim como pela organização hierárquica interna em iniciados e novatos. A opinião de que o pitagorismo, sociologicamente, era um ramo aristocrático dos movimentos religiosos de mistérios que se expressava popularmente nas comunidades de culto órfico tem muito em seu favor. ([¹ Sobre os aspectos políticos de pitagorismo, cf. Kurt Von FRITZ, Pythagorean POLITICS IN Southern Italy, New York, Colômbia University Press, 1940, e Edwin L. MINAR JR., Early Pythagorean Politics, Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1942.]) (pag. 242)

O salto no ser teve resultados diferentes em Israel e na Hélade. Em Israel, assumiu a forma da existência histórica de um povo sob a autoridade de Deus; na Hélade, assumiu a forma da existência pessoal de seres humanos individuais sob a autoridade de Deus. Formulando-se a questão desta maneira, ficara patente que “uma hipoteca perpetua do evento concreto e imanente ao  mundo sobre a verdade transcendente que, em sua ocasião, foi revelada”, da qual tivemos de falar no caso de Israel ([²Ordem e história, I 218, 234]) será ônus menor para a filosofia helênica do que para a revelação israelita. A validade universal da verdade transcendente, a universalidade do Deus do Deus Único sobre a humanidade como um todo, poderia ser mais facilmente desvinculada da descoberta, por parte de um individuo, da existência de sua psique sob os deuses do que da revelação sinaítica da existência de um povo sob a autoridade de Deus. Não obstante, assim como Israel tinha de carregar o fardo de Canaã, também a filosofia tinha de carregar o fardo da polis. Pois as descobertas, embora efetuadas por indivíduos, foram feitas por cidadãos de uma polis; e a nova ordem da alma, quando comunicada por seus descobridores e criadores, estava inevitavelmente em oposição á ordem pública, com o apelo implícito ou explicito aos seus concidadãos para reformarem sua conduta pessoal, os costumes da sociedade e, por fim, as instituições em conformidade com a nova ordem. A filosofia helênica se tornou portanto, em grande medida, a articulação da verdadeira ordem da existência no interior da estrutura institucional de uma polis helênica. Isso não é necessariamente o grande defeito que os modernos frequente acreditam ser, pois, afinal, a filosofia se desenvolveu no interior da polis, e talvez a verdadeira existência filosófica só seja possível num ambiente que se assemelha ao da cultura e das instituições da polis. (pag. 243 e 244)          

O mito recebeu sua forma pan-helênica por meio dos poetas: “Desde o inicio [ex arches] todos aprenderam de Homero” ([4 DIELS-KRANZ, Xenófanes B 10]). Por  conseguinte, a afirmação de uma verdade em oposição ao mito tinha necessariamente de assumir a forma de um ataque a seus criadores. Xenófanes foi o primeiro a ousar fazê-lo. E seu ataque tornou-se a expressão paradigmática da tensão entre o filosofo-místico e o poeta, que no século IV motivou ainda o ataque de Platão a Homero na República.

A tensão não se originou numa versão utilitária á poesia – embora ainda hoje os críticos de Platão entreguem-se a essa desatinada suposição – mas foi causada pela autoridade que o poeta conquistara na Hélade. Homero e Hesíodo transformaram os mitos primitivos e locais na forma intermediaria de um mito especulativo com validade pan-helênica. No que se refere á compreensão correta da ordem da existência humana, haviam adquirido, na área da civilização helênica, uma autoridade pública que corresponde ás autoridades reais e sacerdotais dos impérios do Oriente Próximo. O  ataque de Xnófanes era dirigido não contra a poesia (que não existia na Hélade na abstração burguesa), mas contra a forma do mito como um obstáculo á adequada compreensão  da ordem da alma. Ele não questionava, de modo algum, a forma poética em si, mas a aceitava como o instrumento adequado para expressar a sua própria verdade. Pag. 245 e 246)

A chave para a compreensão dos fragmentos está na palavra epiprepei, que significa “é apropriado”. O que Homero e Hesíodo têm a dizer sobre os deuses é inapropriado; o que tem a dizer Xenófanes, por sua vez, é, presumivelmente, apropriado. (pag. 247)

A Xenófanes se deve creditar a formulação da teoria de que o mito é uma representação antropomórfica da divindade que a teoria teve consequências de amplo alcance, devemos aqui examinar brevemente a natureza do problema. (pag. 249)

A narrativa da Teoonia é, afinal, a história da eliminação dos deuses “ inapropriados” pela titanomaquia, e do advento da ordem mais apropriada de Zeus e sua Dike. Xenófanes, com seu ataque pelo poeta antecessor. Por conseguinte, podemos dizer que a representação antropomórfica dos deuses é experimentada como embaraçosa quando os deuses não agem como um homem mais diferenciado e sensível agiria. Em retrospecto, o antropomorfismo aparece como uma simbolização dos deuses que corresponde a uma fase passada na autocompreensão, pois em cada presente a simbolização dos deuses está em harmonia com o grau de diferenciação atingido pelo homem. Xenófanes, por exemplo, embora critique Hesíodo por seu antropomorfismo, não si incomoda com sua própria simbolização de deus como um ser que ouve, vê e pensa e sempre se mantém no mesmo lugar. Trás do termo antroponorfismo, que se tornou um clichê cientifissta, se oculta o processo por meio do qual a ideologia do homem se diferencia e, concomitamente, a simbolização da transcendência.(pag. 250)

A critica da representação antropomórfica aparecerá sob um novo aspecto ao se considerar a alternativa de Xenófanes ao mito homérico e hesiódico. Uma vez que os homens criam os deuses á sua própria imagem no nível comparativamente indiferenciado descrito e criticado por Xenófanes, haverá tantos deuses quantos homens que se dediquem a tais criações. Somente quando essa simbolização primitiva for abandonada será possível reconhecer o “deus único que é maior” como um deus comum para todos os homens, correlato á humanidade idêntica em todos os seres humanos. Por trás da crítica ao antropomorfismo aparece a experiência da universalidade divina e humana como a força motivadora. (pag. 252)

A preocupação acerca do caráter apropriado, portanto, revela-se como a preocupação acerca da representação adequada de um deus universal. Na investigação desse problema Xenófanes opôs-se a Homero e Hesíodo, embora efetivamente tenha dado continuidade á obra dos poetas antecessores, pois a criação homérica e hesiódica substituíram os mitos locais por um mito pan-helênico, enquanto Xenófanes deu o próximo passo rumo á criação de uma divindade universal. (pag. 253)

Séculos de pensamento racional e de especulação secularizada atrofiaram nossa consciência da complexidade pré-especulativa das experiências pelas quais a transcendência é apreendida pelo homem. O divino pode ser experimentado como universal (ou comum, no sentido Herácliteo) sem ser experimentado necessariamente como único; Xenófanes poderia evocar o Deus Único como um deus universal sem vincular importância sistemática ao atributo da unicidade. Ele foi um gênio religioso que descobriu a participação num realissimum inominado como a essência de sua humanidade. Além disso, Xenófanes percebeu a essencialidade de sua descoberta, ao menos na medida em que podia expressá-la no símbolo de um “deus maior” para todos os homens – com a implicação de que o realissimum seria correlato á transcendência experimentada da existência comum a todos os seres humanos. Foi a universalidade do realissimum que faz que todas as representações idiossincráticas de deuses particulares parecessem “inapropriadas”. Todavia, os deuses que eram inapropriadamente representados eram, ainda assim, deuses; a inadequação dizia respeito á sua representação, não á sua divindade. Xenófanes poderia aceitar como suas palavras atribuídas a Tales. “O mundo está cheio de deuses”. A universalidade da transcendência descoberta por ele não aboliu os antigos deuses, apenas melhorou sua compreensão. (pag. 254)

Xenófanes foi o primeiro dos pensadores do Um (henizontes), pois, “perscrutando a vastidão do Céu [ ton holon ouranon], ‘O Um’, disse ele, ‘é Deus’’’ ([¹8 ARISTÓTELES, Metfísica, I, 986b18 ss. DIELS-KRANZ, Xenophones A 30. Não há por que duvidar da confiabilidade da imformação. Cf. JAEGER, Theology, 51 ss.]). Segundo Aristóteles, portanto, Xenófanes é o primeiro de um grupo de pensadores monistas. De modo distinto dos últimos eleatas, ele ainda não havia levado a especulação ao ponto de interpretar o Um como Logos ou como Hyle. Seu gênio tem uma retidão espiritual peculiar que pode ser percebida no vislumbre do Céu, seguido pela asseveração de que o Um é Deus. A parte mais importante de sua concepção é, para nós, a formulação dessaasseveracao. Talvez Deus não seja uno, mas o Um é Deus. A experiência concerne ao Um, e se predica acerca dessa divindade Uma. (pag. 255)  

O significado de sophie só pode ser determinado por referencia ao todo da obra de Xenófanes; deve ser compreendido, de modo abrangente, como a diferenciação da personalidade juntamente com o correlato corpo de conhecimentos estudados no capítulo anterior, na seção (O ataque de Xenófanes ao mito”. Tendo em mente esse significado abrangente do termo sophie, podemos abordar a rebeliao em nome da nova excelência (Arete) do homem contra a cultura aristocrática agonal da polis helênica na qual o vencedor em Olímpia tornara-se o sucessor do herói homérico. (pag. 260)

A crítica da sociedade com a autoridade do apelo espiritual perdura, de agora em diante, como um tipo para a expressão do pensamento político. A consciência desse tipo criado por Xenófanes nos ajudará a entender certos aspectos da obra platônica que, de outro modo, permaneceriam enigmáticos. (pag. 262)

Tirteu começa: “Eu não recordaria nem poria em minha narrativa um homem por sua excelência [Arete] na corrida ou na luta; nem que tivesse o tamanho e a força dos ciclopes, nem que pudesse correr mais rápido que o vento do norte trácio; nem que tivesse figura mais bela que a de Titono ou que fosse mais rico que Midas ou Ciniras; nem que fosse mais régio que Pélops ou mais suaviloquente que Adrasto”. (PAG. 264)

A “bravura impetuosa”: “Pois um homem não é bom na guerra a menos que possa suportar a visão de matanças sangrantes e que possa alcançar seu inimigo, avançando contra ele de perto. Isto é virtude [Arete]! O melhor e mais belo prêmio que um jovem pode ganhar entre os homens! É um bem comum [xynon esthlon] para a polis e para todo o seu povo quando um homem persevara á frente entre os primeiros guerreiros, aguentando firmemente, esquecendo toda fuga vergonhosa, entregando-se de corpo e alma”. (pag. 264)

Numa elegia precedente á reforma, Sólon reflete sobre o provável destino de “nossa polis” ([5 Elegy and Iambus,v. 1 Solon 4]). Ela jamais perecerá por vontade dos deuses, mas somente pela insensatez de seu próprios cidadãos. Iníquo é o pensamento dos lideres do povo; sem respeito pelo que é sagrado ou pelo que é público, roubam a torto e a direito, e não têm consideração pelos fundamentos veneráveis da Dike.  Mas a Dike, em seu silêncio, está ciente de tais atos e sua vingança sempre chega no final. Inelutavelmente (aphyktos), as consequências da violação da Dike se manifestarão na disputa política. Formar-se-ão conventículos (synodoi), tão caros aos iníquos, e o governo caíra pelas mãos seus inimigos, e o pobre povo será vendido em escravidão para nações estrangeiras. O mal público (demosion kakón) penetrará em cada casa privada; trancar as portas não o manterá distante, pois ele pula por sobre os muros e encontra cada homem no mais íntimo  recesso de seu lar. Cheio de lástima diante de tais perspectivas, Sólon conclui: “Meu coração (thymos) me obriga a ensinar isto aos atenienses” – que a iniquidade (  dysnomia) criará muito mal para a polis, enquanto a justiça (eunomia) deixará as coisas em ordem e da forma apropriada (eukosma kai arita). A eunomia reprimirá os iníquos, conterá os excessos, reduzirá a hybris, retificará os julgamentos distorcidos, abolirá as facções e o conflito civil, e tornará “todas as coisas apropriadas e sensatas para os assuntos dos homens”. A elegia é cuidadosamente construída e contem as principais ideias que Sólon elabora em seus poemas. Podemos seguir seu fio condutor e considerar os tópicos em sequência.

A elegia principia com uma reflexão sobre as causas da crise atenienses. A responsabilidade não é dos deuses, mas do desatino dos homens. Esse é o grande tema da teodiceia, seguindo o paradigma da Odisseia. Sólon, porém, vai muito mais longe que Homero na exploração do problema. Posteriormente, quando a tirania de Pisístrato se estabelece, ele adverte seus compatriotas a não culpar os deuses, pois sofrem em virtude da própria covardia. Os próprios atenienses deram ao tirano os guardas que agora os mantêm em servidão; eles andam como raposas, mas não têm cérebro; confiam nas palavras de um homem, mas não veem seus atos (10). Pela primeira vez, o processo histórico-político aparece como uma cadeia de causa e efeito; a acao humana é a causa da ordem ou da desordem da polis. A fonte da nova etiologia torna-se aparente no seguinte fragmento: “Da nuvem vem a força da neve e do granizo, e o trovão nasce do relâmpago brilhante; uma polis é arruinada por seus grandes homens, e o povo cai na servidão de um tirano por causa de sua credulidade” (9). A causalidade histórica é moldada segundo a causalidade de natureza que estava sendo descoberta na época pelos físicos jônios. (pag. 269 e 270)

A prosperidade e magnificiência ingênuas do herói não podiam mais ser a Arete do homem. “Muitos homens maus são ricos, muitos homens bons são pobres; mas nós, por nossa parte, não devemos trocar a Arete por riquezas, pois a Arete dura para sempre, enquanto as posses estão agora nas mãos de um homem e, depois, nas de outro” (15). A verdadeira Arete do homem é distinta como algo menos tangível que se as posses nas quais o herói encontra a confirmação de seu mérito. Mas em que consiste precisamente a recém-descoberta Areta? O gênio religioso de Sólon revela-se na recusa de uma resposta positiva. A excelência do homem não pode encontrar sua realização na posse de bens finitos. Os bens que o homem visa em sua ação são apenas aparentes; eles pertence cem á doxa de seus desejos e buscas. A verdadeira Arete consiste na obediência do homem a uma ordem universal que, em sua totalidade, só é conhecida dos deuses. “É muito difícil conhecer a medida  oculta do julgamento justo; e, todavia, só ela contém os limites exatos [peirata] de todas as coisas” (16). A verdadeira Arete é um ato de fé na ordem desconhecida dos deuses que cuidarão para que o homem que renuncia a sua doxa aja de acordo com a Dike. Por um lado, “A mente dos imortais é inteiramente desconhecida para os homens” (17); por outro lado,” por ordem dos deuses, eu fiz o que eu disse” (34, 6). Já estamos muito próximos do agathon platônico, sobre o qual nada se pode dizer positivamente, embora seja a fonte da ordem na Politeia. (pag. 271 e 272)

A concretização dessa natureza oculta, sua tradução em regras de conduta, é determinada pela existência da polis. Concretamente, a política de Sólon torna-se o apelo e a pratica do estadista, para equilibrar os desejos conflitantes dos grupos sociais a fim de que sua coexistência no interior da polis – e, deste modo, a existência da própria polis – seja possível. O seguinte fragmento de um apelo é típico:

Acalmai o coração ardente em vosso peito,

Vós, que vos fartastes de muitas coisas boas,

E ponde dentro de limites

Vossa ambição [megam noon].(28 c)

E o mesmo principio de restringir o excesso de paixão está subjacente a seu conselho de como lidar com as massas:

Pois a abundância gera a hybris

Quando há demasiada prosperidade [olhos]

Para homens cujas mentes não estão optas para ela. (6) (pag. 273 e 274)      

Julgamentos impulsivos sobre tais questões são tão fáceis quanto perigosos. Entretanto, ousamos dizer que, por seu comedimento e sua motivação, Sólon foi a mais importante personalidade individual da política helênica. Muito poucos indivíduos na história da humanidade, como Alexandre ou Cezar, tiveram o privilegio de criar um novo tipo pessoal. Sólon foi um deles. Ele criou o tipo de legislador, o nomothetes, no sentido clássico, não apenas para a Hélade, mas como um modelo para a humanidade. Ele foi um estadista, não acima dos partidos, mas entre eles; ele partilhou as paixões do povo e, desse modo, pôde se fazer aceito como parte dele na política; e agiu com autoridade como o estadista para o povo, pois em sua alma essas paixões se submeteram á ordem universal. A Eunomia que Sólon criou na polis foi a Eunomia de sua alma. Em sua pessoa ganhou vida o protótipo do estadista espiritual. Sua alma tinha amplitude e elasticidade únicas. Ele podia partilhar o pessimismo dos jônios ao escrever: “Nenhum homem é feliz; todos os mortais fitados pelo sol são miseráveis” (14); e podia desejar viver até os oitenta anos (20) porque sentia que mente ainda se desenvolvia: “Á medida que envelheço, aprendo muitas coisas” (18) (pag. 274)

Entre Sólon e Platão está a história da polis atenienses – desde a criação de sua ordem por meio da alma de Sólon até sua desintegração quando a renovação da ordem por meio da alma de Sócrates e Platão foi rejeitada. A união das paixões humanas e da ordem divina na Eunomia dissociou-se nas paixões do demos e na ordem que vive por meio da obra de Platão. (pag. 274)

 

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