Síntese:
Paolo Cugini
Primeira
Parte
Antropologia
do Rito
Capítulo primeiro
O Rito:
Definição e Classificação
1.Introdução
Segundo
Benveniste, [1]
rito vem do latim ritus, que indica a ordem estabelecida e, mais atrás, liga-se
ao grego artýs, como o significado também de “prescrição, decreto”. Mas a
verdadeira raiz antiga e original parece ser a de ar (modo de ser, disposição
organizada e harmônica das partes no todo), da qual derivam a palavra sânscrita
rta e a iraniana asta, e, em nossa línguas, os termos “arte”, “rito”, família
de conceitos intimamente ligada à idéia de harmonia restauradora e à idéia de
“terapia” como substitutivo ritual. Outros autores observam que “rito” poderia
ter, em sua base, a raiz indo-européia ri, que significa fica “escorrer” e,
nesse sentido, ligar-se-ia ao significado que têm as palavras “ritmo”, “rima”,
“rio” (river), sugerindo, respectivamente, o fluir ordenado de palavras, da
música e da água.[2]
(pág.18)
O rito coloca
ordem, classifica, estabelece as prioridades, dá o sentido do que é importante
e do que é secundário. O rito nos permite viver num mundo organizado e
não-caótico, permite-nos sentir em casa, num mundo que, do contrário,
apresentar-se-ia a nós como hostil, violento, impossível. Se é verdade que o
cosmo tem a força de opor-se ao caos, isso se deve ao rito e à sua força
organizada.[3]
(pág.19)
2. Propostas interlocutórias e uma definição com
fundo religionista
O rito é uma
vivência que tem fundamentalmente duas faces correlacionadas: por um lado, é
uma ação não-instrumental com caráter expressivo, e isso liga-se bem como o seu
movimento para um mundo “místico”, tendendo a levar para uma compreensão
“mística” de toda a existência; por outro lado, é um fato concreto que vive na
opacidade como qualquer outro fato comunicativo social.
Poderíamos
dizer, então, simplificando e traduzindo para um contexto mais religioso, que o
rito é uma remissão mística, totalizante (o momento de referência a crenças em
“seres místicos”) e jogo (ação expressivo-simbólica), num abraço e num
entrelaçamento único entre os sinais do mundo no nível empírico e o significado
do mundo no nível metaempírico. Por isso, nesse contexto é preciso não esquecer
que o rito é uma ação que se realiza com objetos e com gestos, em relação a
pessoas e a situações deste mundo e que, nesse sentido, o simbólico tem também
a contrapartida do pragmático (ou que pretende der “pragmático”). É para a
existência dessa dupla valência que os antropólogos nos advertem.[4]
(pág.30)
Há uma
idiossincrasia latente – da qual dificilmente nos damos conta – entre as idéias
místicas e o mundo (naturalmente opaco) dos objetos quotidianos. Ora, levar os
segundos a significar as primeiras, isto é, as experiências místicas, é uma
empreitada da qual se encarrega o rito, através de uma mediação profunda que
pretende encaixar, nesse ponto, o diálogo entre o natural e o sobrenatural.
Talvez só percebemos facilmente essa transposição e sublimação realizada pelo rito em relação às realidades mundanas
quando observamos ritos estranhos e que até então desconhecíamos. (pág.31)
3. Classificação dos ritos
3.1 A natureza fenomenológico-religiosa do rito
Não há dúvida de
que o rito é, principalmente e de maneira prioritária, um ato de adoração, um
momento de expressão de um “Todo” no nível comunitário, um ato de culto que tem
a sua direção intencional metaempírica e, como tal, é capaz de unificar de
maneira profunda a experiência do real. É direta ou indiretamente um “voltar-se
para o Outro” ou, pelo menos, um sentir, através do estar e do fazer juntos,
“que o sentido do mundo está fora do mundo”. Esse ato e essa “linha de vôo”,
porém ser criados sobre o pano de fundo de muitas motivações secundárias, assim
como podem servir-se das mais variadas ações simbólicas e pragmáticas.
Embora na
variedade e diversidade estrutural de cada rito, sou levado a pensar que, em
todo caso, o primum fenomenológico de um rito é aquele momento em que se
explicita e se dá forma ao que Otto chama de “sentimento criatural”.[5]
Todo o resto é moldura, é secundário, é dependente desse primeiro ato
insubstituível de reconhecimento e de adoração, que naturalmente, dependemos
dos contextos dos contextos religiosos, pode ser direto ou indireto, expresso
ou oculto, consciente ou subconsciente, além de estar mais ou menos ligado a
várias estratificações de tipo social, cultural e psicológico. (pág.35 e 36)
3.2 Classificação histórico-religiosa dos ritos
Se se pretende,
pois, manter uma linha rigorosamente fenomenológica, os ritos, do ponto de
vista da sua natureza intrínseca, deveriam ser distinguidos levando-se em
conta, de modo prioritário, a intenção global dos celebrantes, como justamente
reconhecer também Zuesse.[6]
Ora, desse critério se aproxima mais a distinção clássica própria da história
das religiões.[7]
Se, por isso, esse ponto de partida é pertinente, então é bom adotar aqui a
escolha histórico-religiosa e criar uma tipologia histórica que se aproxime o
mais possível das intenções dos crentes.
Nesse quadro
podemos, então, distinguir uma primeira e grande tipologia independente: os
ritos apotropaicos, os ritos eliminatórios e os ritos de purificação, ritos que
na escola sociológica francesa e, especialmente, em Dukheim, são chamados de
“ritos negativos”.
Trata-se de
ritos com os quais a pessoa se empenha em manter distante um elemento ou um ser
perigoso. Nesse contexto, sons, rumores, tambores, sinos, acendimentos de fogo,
círculos mágicos, movimentos circulares, incensação, tudo serve para criar um
jogo de afastamento. (pág.36 e 37)
No seio do
cristianismo antigo, por exemplo, o próprio sinal-da-cruz era um rito
“apotropaico”, enquanto servia para espantar e manter afastados os demônios,
protegendo o lugar sagrado de infestações perigosas. A história das religiões
do passado talvez poderia ser reescrita por inteiro seguindo-se esse modelo do
“sagrado”, concebido nessa sua dimensão apotropaica.[8]
(pág.38)
Os ritos
eliminatórios acentuam , de algum modo, a possibilidade de mandar embora o mal,
o pecado ou alguma outra coisa, por meio da transferência ou da supressão do
próprio mal, entendido como uma entidade física ou moral, com qualidades,
porém, sempre objetiváveis e, portanto que podiam ser ligadas a um lugar
próximo ou distante. Também esses ritos demonstram a sua antiguidade por meio
do tipo de pensamento que os acompanha. A materialização do espiritual é
importante e permite a imputabilidade e a circunscrição clara do que é
negativo.[9]
(pág.39)
Os ritos de
purificação, ao invés, demonstram uma concepção mais ético-antropológica,
deslocando, nesse caso, o acento para o elemento moral propriamente humano, com
uma responsabilidade que recai sobre a pessoa, embora muito freqüentemente
esteja presente o aspecto da culpa como uma “mancha” da qual é preciso se
libertar.[10]
Estes ritos se expressam, especialmente, através do jejum, das mortificações
etc., e através de atos exteriores que são expressões de liberdade e de
mudança, como, por exemplo, o tirar os sapatos, o cortar os cabelos e o
desfazer-se das vestes, e, sobretudo, a realização de sacrifícios. (pág.39)
Os ritos
sacrificais são uma outra especificação das ofertas primiciais e se referem
sobretudo ao sacrifício de animais. Talvez constituam uma das formas mais
antigas de ritual, talvez o ritual por excelência, e que, segundo Girad[11]
ou Burkert[12],
deu origem ao senso religioso enquanto tal. (pág.40)
Os ritos de
repetição do drama divino podem ser considerados ritos completos, articulados.
Trata-se de ritos que já têm uma estruturação perfeita e onde está em evidência
a relação entre o legómenon e o drómenon, manifestando uma intencionalidade
religiosa mito-poiética, pela qual, em outras palavras, repetem e amplificam a
história dos deuses e do mundo, apresentando-se como “cartas de fundação” do
mundo e dos seus ordenamentos. O mais famoso ritual antigo que tem essa
estrutura completa é o ritual do akitu (de doze dias), a repetição dramática do
Enuma Elish, que se realizava no início do ano novo na Babilônia, com a
humilhação do rei e a sua nova entronização, que representava, por sua vez, a
entronização e a coroação do deus Marduk como rei do universo.[13]
Enfim, devem ser
colocados no elenco os ritos de transmissão da força sagrada. Considero esse
tipo de ritual como o último, na consideração histórico-religiosa, mas também
muito importante. Trata-se de ritos que permitem manter a força sagrada em
certo lugar ou de atribuí-la a certas pessoas, segundo várias modalidades. Os
ritos de bênção e de consagração são, por exemplo, ritos que assumem essa
função. Por sua vez, esses tipos acontecem por meio de certo tipo de contato
com forças energéticas: a água santa, o óleo, o sangue. (pág.43)
3.3 Os ritos ligados ao ciclo da vida.
Primeira
classificação antropológica.
Critério
etiológico.
Os ritos de
passagem constituem, talvez, o capítulo mais amplo e significativo desse tipo
de ritualidade. Trata-se de ritos de “causação”, enquanto estão ligados a
momentos fundamentais da vida, como o nascimento, a iniciação, o casamento e a
morte, e “causam” uma verdadeira mudança de vida; fato que é de grande
relevância para qualquer sociedade. (pág.43)
Os ritos
cíclicos constituem uma outra grande categoria de ritos e têm uma função que
Eliade chama de “regenerativa” do tempo e que parece claramente interna à sua
constituição, pela dinâmica de renovação do tempo que eles implicam. Induzem
fundamentalmente a uma “contemplação” e a um retorno ao tempo original, visto
como o verdadeiro tempo, não-mutável e não-precário. Em geral esses ritos estão
ligados a fenômenos naturais, como o surgimento da lua nova, o início de uma
nova estação, o início do ano novo, os primeiros dias da primavera. (pág.44 e
45)
Esses ritos
revestem-se de uma importância especial sobretudo para aquelas religiões que
têm uma tendência maior a enfatizar os fenômenos naturais como paradigma para a
sua experiência religiosa.[14](pág.45)
Os ritos de
crise são aqueles que nascem em particulares situações de emergência e são
considerados normalmente pelos antropólogos como paradigmáticos de toda
ritualidade, enquanto seriam capazes de englobar qualquer outro rito e de ser,
de algum modo, a confirmação da sua verdade antropológica tout cout. Todos os
ritos talvez devessem ser considerados ritos de crise? Uma discussão sobre esse
assunto talvez nunca tenha fim, mas inevitavelmente se confundiria com o
problema da religião como tal. (pág.45 e 46)
3.4 Ritos com fundo sociocultural e religioso
Os ritos de
inversão teriam, de si, um papel perturbador do social e, através da paródia e
da ridicularização das estruturas sociais e religiosas, serviriam, porém, para
a reconfirmação do próprio social. Foram estudados sobretudo por Babcock.[15]
Os ritos de rebelião, ao invés, como ritos de nivelamento “simbólico” dos
conflitos através da representação do drama ritual, tiveram como estudioso
sobretudo M. Gluckman.[16]
Os ritos de gracejo, que enquanto tais desapareceram das nossas culturas, têm
uma importância ainda relevante em muitas sociedades e a sua interpretação,
mesmo em nossos dias, é bastante frágil e controvertida.[17]
(pág.48)
3.5. Ritos com conotação mística
Há, enfim, uma
categoria de ritos aos quais parece pouco adequado aplicar o termo de “ritual”,
porquanto nascem mais de um desejo e de uma tendência “anti-ritualista”, embora
depois tomem uma configuração standard que as aproxima do mundo ritual. Estou
pensando nos ritos de meditação e de transe, para os quais o discurso seria,
sobretudo, o de estabelecer até que ponto os quais o discurso seria, sobretudo,
o de estabelecer até que ponto eles teriam a ver com um verdadeiro contexto
ritualista ou, ao invés, com um contexto de “negação” da ritualidade. De fato,
aqui nos encontramos mais próximos da mística do que do ritual enquanto tal.
(pág.49)
4. Interpretações do rito
4.1. Interpretação sociofuncionalista
Uma vasta gama
de estudiosos a partir fundamentalmente de Durkheim entra numa categoria
interpretativa do ritual que não separa o momento social do religioso,
transformando este último numa variante dependente do primeiro aspecto.
(pág.51)
4.2. Interpretação psicanalítica e catártica
Os ritos foram,
em geral, interpretados em chave psicanalítica a partir de Freud e constatada a
afinidade que os ritos demonstram com certos atos obsessivos. (pág.53)
4.3. Interpretação estruturalista e cognitivista
A interpretação
estruturalista dos ritos, que deve ser considerada em relação à antropologia e
à análise dos mitos do estruturalista francês Lévi-Strauss, tem continuidade
com Leach,[18]
Tambiah, Sperber, Lawson-McCauley, e não pode ser separada de considerações
lingüísticas, mas está ligada idealmente a todo um novo perfil cultural e
epistemológico. De modo particular, foi a vigorosa influência exercida pela
cibernética, pela teoria dos jogos e pela análise matemática formal – que aos
poucos ia se difundindo – que favoreceu a transformação da concepção antropológica
do processo cultural modelando-o cada vez mais segundo o lingüístico. (pág.55)
OS rituais
seriam a expressão de idéias complexas que não podem encontrar um resultado
comunicativo a não ser através do mito ou na ação ritual, e no qual o mito é
uma metáfora do rito e vice-versa. Enfim, a complexidade de uma mensagem ritual
está ligada à função do número unidades informativas elaboradas pelo rito e
pelo grau de integração entre elas. (pág.55)
4.4. Interpretação etológica e ecológica
Nessas últimas
décadas, passou-se muito velozmente de interpretações “teológicas” do rito para
leituras de caráter “etológico”, nas quais se reconduz o sentido do rito para o
momento de uma comunicação por meio de sinais, o que se vê também nos animais.
(pág.57)
A interpretação
ecológica, ao invés, parece capaz de recompreender a religião e de ler os ritos
sobre o pano de fundo de uma visão “holística”, muito cara ao mundo
contemporâneo, sem, aliás, descurar totalmente o aspecto religioso, embora o
coloque seriamente entre parênteses. (pág.58)
4.5. Interpretação microssociológica
Também no
contexto de uma leitura microssociológica se sai de uma interpretação religiosa
dos ritos para reconhecer o valor de uma ritualidade quotidiana que nos é muito
usual e que se baseia nas relações interpessoais. Trata-se de um comportamento
“ritual” que nos permite controlar melhor as emoções e responder adequadamente
a estímulos socioculturais em relação às pessoas que nos rodeiam e em relação
às expectativas que elas têm em relação a nós. Nesse contexto, são emblemáticos
os estudos de E. Goffman sobre os “ritos de interação”, sobre a relação face a
face, onde se trata de organizar a experiência mais do que organizar a
sociedade.[19]
(pág.60)
4.6. Interpretação expressivo-lúdico-simbólica dos
ritos
O rito, pela sua
variedade e pelo seu emprego nos contextos mais diversos, pode ser interpretado
– como vimos – mediante todas as disciplinas antropológicas à nossa disposição.
Mas se há uma disciplina que parece ser capaz de captar seus aspectos
antropológicos profundos, associando-os aos especificamente religiosos, que não
são de fato secundários, é a fenomenologia religiosa, que por isso se coloca
como mediação dos significados religiosos e antropológicos do ritual em toda a
sua expansão e significação. Ela sabe captar as intencionalidades religiosas
mediante motivos antropológicos, fazendo interagir o quadro antropológico com o
contexto em que se expressam finalidades “místicas”. (pág.61)
Capítulo Segundo
A Ritualidade Numa Perspectiva Sociofuncionalista
Pistas E Aprofundamentos
Segunda
premissa
A importância
do rito em antropologia
Portanto, a
importância religiosa dos ritos é reconhecida junto com a existência da
religião e, todavia, é independente da existência do sobrenatural. (pág.69)
O assunto
insistente e que não dá trégua no discurso do sociólogo francês consiste
justamente em considerar que nos ritos se celebra essencialmente a sociedade,
que eles nada mais são que o espelho em que a sociedade se reconhece e se
fortalece, “unindo os corações e estabelecendo a ordem”. (pág.70)
É um dado de
fato, sublinhado por quase todos os antropólogos, que o rito é um poderoso
veículo da tradição, não por último através da formalidade mesma que está
inclusa no rito e da autoridade que ele carrega. Uma autoridade tal que é vista
como estreitamente ligada à origem do mundo e que, portanto, reporta-se a algo
originário, e por isso absolutamente incontestável.[20]
(pág.70 e 71)
1.Aprofundamento das teses
antropológico-funcionalistas no estudo do ritual
1.1. Durkheim. O rito como autopoiesis do social
Para se definir, não é preciso partir da
premissa de que se trate de um todo indivisível, e sim de um conjunto, um
agregado de partes. Todavia, há um quid unificador de todas as crenças
religiosas simples ou complexas – afirma Dunkheim - , que supõe a organização
das coisas reais ou irreais em dois tipos opostos: o sagrado e o profano.[21]
Sagrado e profano são, pois, considerados duas categorias antitéticas e
opostas, ao ponto de a antítese tradicional entre bem e mal não ser nada perto
dela... (pág.73)
3. René Girard
O rito com expressão de uma violência passada e de
um equilíbrio social reencontrado, mas instável.
A tese de Girard
articula-se a partir de dois pressupostos de caráter genético e, na sua opinião,
indiscutíveis. São eles:
- os ritos todos nasceram como ritos
de sacrifício, e por isso o sacrifício é o analogatum princeps de qualquer
ritual; se, depois, ele perdeu esse estatuto original, o foi por
degradação;
- no início teria havido uma
violência social que teria desencadeado um acúmulo de diferenças e,
conseqüentemente, uma cadeia de vinganças, às quais, em determinada hora,
teria de ser posto um termo.
Ora o sacrifico
– e o rito enquanto tal, num segundo momento – teria a função de remediar a situação
original, de eliminar as relações de tensão, os dissensos, as invejas, as
brigas, trazendo de volta a harmonia à comunidade.
Mas de que modo
o sacrifício seria capaz de permitir À humanidade essa passagem da violência à
harmonia, do selvagem e instintivo ao cultural e civil? A solução aconteceria,
uma vez por todas, a cadeia de vinganças. O sacrifício, nesse sentido, seria
uma violência sem risco de ulterior vingança, escreve Girard. (pág.93)
O desequilíbrio
total causado por uma idéia obsessiva de vingança, num contexto no qual, depois
do sacrifício, segue-se uma situação em que os riscos de vingança deixam de
existir, confirmaria a visão girardiana.[22]
(pág.93 e 94)
Todo ritual
religioso manifesta o seu caráter funcionalista em relação ao social; aliás, a
partir da ritualidade se pode construir uma teoria geral do surgimento e da
maturação de uma cultura. Mas Girard adverte: se tudo provém do rito, qualquer
alteração dele, qualquer perda do elemento sacrificial, pode levar à destruição
da própria humanidade. (pág.96)
Capítulo terceiro
Perspectiva Etológica E Ecológica Da Ritualização E Do
Rito
Trajetória
e aprofundamento
2. Protocolo de trabalho
Aqui se sustenta
que é necessário reconhecer que há afinidades entra a ritualidade animal e a
humana e que essas afinidades foram colocadas em evidência pelos etólogos,
independentemente das interpretações dadas por eles ao fenômeno.
Outra tese ou
hipótese: presumo que não se possa excluir que o ritual humano – à semelhança
do animal – tenha raízes no biológico e/ou no sistema neurofisiológico, como
nos ajudam a compreender alguns filões do pensamento contemporâneo, embora, no
quadro da organização “holística” do próprio ambiente, ele não possa ser todo
deduzido desses sistemas e dessas referências de puro caráter mecanicista.
Considero, pois, que é apropriado falar – como propõe V. Turner – de uma
“co-adaptação de elementos culturais e genéticos”.
Parece
necessário reconhecer, afinal, que a ritualidade humana, na medida em que é
conceitualizada e “conscientizada”, é capaz de assumir também características
específicas. Algumas dessas características específicas são, por sua vez,
capazes de criar um âmbito próprio, pertinente à consciência religiosa e à
“comunicação religiosa”. Nesse sentido, não parece oportuno criar alternativas
muito fáceis e simplistas entre matéria e espírito ou entre “Deus e o cérebro”,
mas parece muito apropriado e inteligente ir para uma visão “sistêmica” e
“holística” do viver, em que todas as partes e todos os níveis de existência
estejam em relação com o todo. (pág.106)
3. A ritualização e a ampliação do conceito de rito
Pode-se resumir
a definição de Huley em quatro elementos, destacados também por Turner: a) a
ritualização promove uma melhor e mais clara função de sinal, tanto no seio da
espécie como em espécies diferentes; b) serve como estímulo de modelos mais
eficazes de ação em outros indivíduos; c) reduz o dano intra-específico; d)
serve como mecanismo de coesão sexual ou social.[23]
Ora, essa
definição e compreensão da ritualização e da ritualidade tem uma conotação bem
ampla e parece indicar uma “metacomunicação”, para além do comportamento formal
e finalizado presente como “ritualidade primária” no mundo animal. Ela foi,
depois, aprofundada por K. Lorez e lentamente veio a se formar um conceito de
ritualização ainda mais elaborado e exigente do que o anterior. Formou-se um
conceito que o famoso etólogo austríaco define como:
“um modelo de
comportamento que adquire uma função totalmente nova, a da comunicação, onde –
ainda segundo o autor – a função primária também pode ser representada, mas com
freqüência se retrai”.[24]
(pág.108)
Em outras
palavras, na ritualização, que se aproxima cada vez mais do conceito de “rito”,
vê-se um ato formalizado heterodirigido, que poderíamos também chamar de
“dis-funcional” em relação ao seu objetivo imediato, que se esclarece num
contexto em que se trata de comunicar, na verdade, de modo complexo.[25]
Ora, neste
quadro em que encontramos muitos ritos próprios de várias espécies de animais
há todos os elementos formais de um rito. Há uma “reorientação” da ação com
objetivo social e demonstrativo, há o módulo estereotipado de ação, há a
repetição e a redundância e há, enfim, uma função comunicativa particular.
Além disso,
pode-se observar que o comportamento ritual desse tipo de ritualidade apresenta
uma riqueza impressionante de casos e, portanto, é amplamente documentável. Vai
das demandas rituais de alimento às grandes exibições e às cenas de namoro
entre machos e fêmea, da defesa do próprio território às ofertas
(pré-copulação) de alimento à fêmea, por parte do macho, até aqueles que Huxley
define como “jogos” e “esportes”. (pág.109)
Percebe-se,
assim, que no comportamento dos animais, além de se destacar cada vez mais,
através de pesquisas empíricas e processos de segmentação de um ritual animal,
os comportamentos primordiais que estimulam os animais e comportar-se de um
modo e não de outro, devem-se levar em conta problemas de “segunda
empiricidade”, de pulsões competitivas principais, que demonstram interesse de
caráter social e tendentes a controlar o medo, a agressividade, onde se
ritualiza, por exemplo, simbolicamente, a busca do parceiro sexual. (pág.110)
Um rito de
amizade e solidariedade clássico é descrito por Lorenz, a propósito de um casal
de patos selvagens que, quando estão juntos e pretendem demonstrar
cordialidade, fingem estar em luta contra um inexistente intruso. Com gritos de
exultação, esses patos se asseguram da solidariedade e amizade recíprocas. O
ritual, nesse caso, é “re-direcionado” com escopo demonstrativo. (pág.111)
De um lado,
sempre haverá biólogos que não se deixarão impressionar pelo simbólico;[26]
do outro, haverá a necessidade de salvaguardar os aspectos simbólicos e sociais
próprios do mundo humano, como defendem os sociólogos, por exemplo.E, não por
acaso, estes últimos consideram, ou melhor, consideravam como seu campo próprio
tudo que se refere ao comportamento humano, repelindo qualquer abordagem
biológica e, particularmente, opondo-se às teses de Lorenz.[27]
Conclusivamente,
acho que seria simples demais falar de “instinto”, de um lado, e de
“consciência”, do outro, de natureza e de cultura, de ação “funcional”, de um
lado, e de ação “simbólica”, do outro. Isso porque certa simbolicidade parece
inscrita também no mundo animal. Sem querer fazer indevidas incursões por um
campo por demais delicado e controvertido, creio que seria necessário, pelo
menos, interligar mais esses dois mundos. Há alguma coisa da cultura na
natureza, sob o aspecto de aprendizado; há alguma coisa de instinto na
consciência, onde a ação ritual não é nunca a expressão de uma conscientização
e liberdade total, mas é também o resultado da tradição, do ambiente, do
contexto, e não só da consciência.[28]
(pág.114 e 115)
4. O biológico e o filogenético na ritualização
Mas, através
dessas considerações, vem à tona um outro elemento de destaque na ritualização
dos animais: o biológico. Parece, na realidade, que as forças biológicas e
genéticas, na formação da ritualização, assumem uma preponderância notável –
aliás, decisiva – quando se observa o mundo dos animais. A questão é
inevitável: a ritualização não nasce, talvez, de uma estrutura filogenética já
predisposta e orientada para os vários tipos de resposta ambiental? Na
realidade, é preciso reconhecer que da ritualização dos animais ao estudo do
mundo biológico, filogenético e neuronial, a passagem é curta. (pág.115)
Seria preciso,
sobretudo, partir do pressuposto de que há uma estreita inter-relação entre
sujeito que conhece e realidade conhecida, e por isso não é facilmente pensável
um mundo “externo”, “objetivo”, “determinado”, “estático”, “passivo”, que
esteja sujeito às leis do cérebro ou da cultura. Sujeito e mundo interagem de
modo a formar a realidade num todo indivisível e imprescindível. Mas, dado que essa
tese epistemológica foi reelaborada recentemente por Maturana e Varela, e
também foi reinterpretada de uma maneira interessante por F. Capra, pretendo
dizer alguma coisa referindo-me a esse autor que se apresenta como um egrégio
divulgador dos sistemas autopoiéticos dos neurofisiólogos chilenos. (pág.121)
5. Perspectiva ecológica do rito
A perspectiva
ecológica do rito faz-se, no final, portadora dessa visão “holística! Sobre a
concepção do real, da qual estamos tentando apresentar algumas pistas de compreensão
e aprofundamento. Mas para que o discurso não fique muito improvisado e, assim,
superficial, é preciso passar ao menos por dois breves parágrafos que delimitem
e, ao mesmo tempo, criem o milieu dentro do qual será adequadamente visto nosso
problema.
As duas
passagens obrigatórias são as da relação entre religião e natureza e, também, o
tema da ecologia cultural americana, que constitui a abordagem mais imediata da
“ecologia e ritualidade”. (pág.123)
6. Religião e Ecologia
Num confronto
direto entre religião e ecologia, a primeira tendência a ser controlada de modo
crítico é aquela pala qual, sob o estímulo da Cultural Ecology americana[29]
- como veremos logo a seguir – , a ecologia compreende o “todo” da situação do
homem no mundo: a sua realidade ambiental, psicológica, social, étnica e
nacional. Ora, semelhante expansão do conceito de ecologia, como disciplina que
estuda o homem e o seu ambiente, corre o risco de embrenhar-se num beco sem saída,
porquanto toda ciência deve manter-se fiel a uma escolha prioritária e
específica. Se, porém, por outros motivos, essa limitação não parece praticável
– porquanto a ecologia deve confrontar-se sempre como o todo, ou sobretudo
porque o necessário cruzamento entre o sociocultural e o ecológico, no sentido
entrevisto, não permite nenhuma separação de classe, pois é ainda a partir da
cultura e da sociedade que é possível fazer o discurso sobre a natureza – será
preciso, pelo menos, tentar não reduplicar totalmente o discurso
socioantropológico, buscando uma especificação própria da ecologia em sua
característica mais imediata, e apenas num segundo momento se poderá,
utilmente, puxar a visão ecológica para a dimensão sociocultural, da qual, em
última análise, parece não ser possível se subtrair. (pág.124 e 125)
7. Os ritos como espelho da solidariedade entre
religião e natureza
Uma tese de
fundo que se pode confirmar através de toda a história das religiões é a
seguinte: os ritos nas várias religiões antigas, como também nas religiões
etnológicas e em nosso próprio mundo religioso secularizado, jamais perderam a
sua relação mediata ou imediata com a natureza, com o ambiente biológico, com o
reino vegetal e animal. (pág.126 e 127)
Os grandes
fenômenos naturais estão na origem do nascimento dos deuses.
Seria suficiente
essa indicação para se compreender que a religião e os ritos vivem num
entrelaçamento vital e indissolúvel com a natureza. Essa tese me parece
amplamente documentada no nível histórico-religioso, e muito significativa.
Mesmo saindo fora da pré-história das religiões, na qual os grandes mitos
cosmogônicos são também mitos teogônicos, onde, portanto, deus e os fenômenos
naturais tendem a fundir-se,[30]
existe na história religiosa um âmbito em que as divindades se assemelham a
grandes fenômenos naturais ou têm os mesmos nomes de tais fenômenos.[31]
(pág.127)
A relação microcosmo-macrocosmo
é um segundo tema tipológico que poderia demonstrar exaustivamente que natureza
e religião estão estreitamente ligadas e são interdependentes e que essa
relação poderia derivar daquela visão antiqüíssima própria do Upanishad, que
consiste na tendência própria da experiência religiosa de ver o homem como uma
miniatura da realidade cósmica. A relação microcosmo-macrocosmo não indica uma
simples correspondência externa entre fenômenos cósmicos e elementos humanos, e
sim uma dependência do microcosmo (o homem) em relação aos elementos
fundamentais da natureza: se o sol corresponde ao olho, se a respiração ao
vento, se o fogo corresponde ao alimento, essas correspondências indicam aos
poucos uma harmonização do homem com a natureza e manifestam, mais em
profundidade, o tema do retorno aos próprios elementos naturais. (pág.129)
Um terceiro e
último tema, que poderia aglutinar o conjunto das reflexões expostas acima e
traduzi-las num contexto prático-operativo e ritual é o tema do sacrifício nas
religiões. Trata-se de uma realidade que percorre todo o mundo das religiões e
que se enraíza de maneira particular na biologia, na natureza, na vida do homem
ligada à dos animais, das plantas, da natureza. Ainda que alguns autores
sublinhem o aspecto “cultural” do sacrifício, não há dúvida de que o primeiro e
verdadeiro fundamento do sacrifício tem caráter biológico-natural.[32]
(pág.130)
8. A Cultural Ecology americana e os seus
pressupostos
Poderíamos
estabelecer a data da publicação do livro de Kroeber Cultural and Natural Areas
of Native North Americana,[33]
isto é, 1939, como o início oficial dos novos interesses nas relações entre
ecologia e cultura. Em Kroeber, de fato, aparece o conceito de “integração”
cultural e ambiental, e a partir dessa intuição, nasce o estudo correspondente
das áreas culturais em relação ao ambiente. (pág.130)
É preciso dizer,
porém, que o antropólogo americano se move também em outra direção, tão ou mais
importante para a visão ecológica de conjunto. Em Cultura e utilidade, que
parece um manifesto de economia cultural, o autor apresenta uma exaustiva
argumentação em favor do significado do pragmatismo, fazendo ver que o valor é
sempre simbólico e que cada sistema de sinais é dotado de uma lógica pessoal e
de uma ordem subjetiva que pode ser estudada utilizando-se várias perspectivas.
Dir-se-ia, assim, que Marshall Sahlins tende para uma relativização total da
racionalidade, deduzindo que nenhuma cultura é mais racional do que outra,
fazendo um importante ingresso – eu diria – ao que hoje chamamos, por
convenção, de mundo pós-moderno. (pág.133)
9. R. Rappaport e a visão ecológica do rito kaiko
A síntese
unitária das relações ecoculturais a que se referia Kroeber torna-se um modelo
operacional na perspectiva de Rappaport, o qual, além disso, sabe explorar de
maneira apropriada os métodos cibernéticos e estatísticos colocados à
disposição dos cientistas da última geração. De fato, não se pode negar que a
cibernética ofereceu modelos cada vez mais fecundos para a investigação das
relações de auto-regulação entre homem, animais, plantas e ambiente físico,
conseguindo, de certo modo, reconstruir a trajetória do bioma natural com
métodos matemáticos. (pág.134)
O rito é
colocado como uma proteção a todo o ambiente em que os tsembaga vivem,
conjugando de maneira perfeita as necessidades religiosas com aquelas
econômicas e socioculturais que estão na base da vida em sociedade. (pág.135)
11. Conclusão geral: as ciências antropológicas e o
mundo ritual e religioso
O grande
problema é o de uma convergência in unum de todas as ciências do homem, sem
privilégios e sem prioridades, porquanto a natureza humana parece ser “uma”,
ainda que cultural, geográfica e economicamente se expresse em formas
diversificadas.
A antropologia
sociocultural, desse ponto de vista, já parece estender a mão às outras
ciências quando epistemologicamente reconhece os seus limites e os seus
procedimentos fragmentários. (pág.139 e 140)
Há, em nosso
mundo cultural, antes ainda de uma contraposição lógica entre ciências naturais
e ciências do espírito, um preconceito de “incompatibilidade” entre essas duas
partes do saber. Esse preconceito é tão alógico quanto atávico, e praticamente
não se tem como remediá-lo. (pág.141)
12. Da fragmentação das ciências à sua compreensão
unitária: o paradigma ecológico e a religião
Quanto mais
fragmentário e analítico for o saber, em seus vários campos, tão mais forte se
levanta a voz que invoca uma nova abordagem “holística” ou “sistêmica”, que
saiba ver que na realidade os conhecimentos devem ser unificados e vistos como
aspectos complementares, como perspectivas integráveis, como campos contíguos
de reflexão, que em seu aspecto mais profundo não somente precisam de uma
interconexão, mas a invocam e a exigem a partir da sua própria análise
setorial.[34]
(pág.141 e 142)
Capítulo quarto
O Rito: Por Necessidade E Por Jogo
Premissa
Minha função é
ir ao essencial: pretendo captar algumas modalidades fundamentais e
inalienáveis de rito que sejam capazes de fazer ver o que o rito é conatural ao
homem. Essa conaturalidade, essa relação fundamental do homem com o mundo
ritual, é o “modelo de encarnação” que eu quero defender neste capítulo,
seguindo uma linha que não é certamente teológica, mas antropológica. O rito
será, aqui, considerado como uma dimensão expressiva do homem e da sua
realidade, tanto em chave cultural quanto em chave religiosa, através de uma
constante “pragmática’ fundamental, que está além e acima de qualquer constante
simbólica. Essa dimensão pragmática é que será chamada a identificar a
“encarnação e a corporeidade do rito”. (pág.146)
3.Propósito e esquema de trabalho
Gostaria de
demonstrar que o rito tem uma fundamental equivalência com a constituição mesma
da pessoa humana no conjunto cultural e, portanto, é um quid necessário e
necessitante. Gostaria, por isso, de propor uma tese que revele não a essência
do rito de maneira autônoma, mas uma “dinâmica polar” onde por necessidade
remete ao homem e o homem remete ao rito. De qualquer modo, gostaria também de
forçar o rito a manifestar a sua essência em relação íntima e indissolúvel com
a expressão mesma do humano: em conexão tanto com o antropológico quanto com o
religioso. (pág.156 e 157)
Para ser mais
eficaz, acho que a minha tese é mais facilmente intuível se for colocada em
oposição e em antítese à de Freud. Se Freud achava que o rito exprimia a
neurose dos homens e da humanidade – enquanto ato obsessivo, repetitivo[35]
- gostaria aqui de demonstrar que, em nossos dias, temos uma conclusão
totalmente oposta. A obsessividade do rito não deve ser vista como oclusiva do
mundo do homem, mas, ao contrário, a falta de rito deve ser interpretada como
uma incipiente esquizofrenia, que leva na direção de múltiplos fins sem permitir
a possibilidade de escolha. É a ausência de ritos, em especial, que é capaz de
formar essa nebulosa em que, através da perda de todo horizonte, consumam-se as
inumeráveis neuroses que atormentavam a atormentam o homem hoje.
A tese de fundo
está, pois, num esquema oposto ao freudiano e também àquele que parece
legitimado pelo nosso mundo cultural contemporâneo, e consiste em demonstrar
que no rito há uma espécie de “hegemonia redentiva” do real[36]
e um resgate da desorganização que está sempre a ameaçar o mundo. Essa
hegemonia redentiva deve ser vista, pois, como uma “consciência prática do
mundo”, pela qual a ação ritual é o primeiro momento de organização da
experiência que fazemos no mundo e tem a ver com aquela que eu chamo de
“pragmática transcendental”, a partir da qual se quer evitar a lógica dos
duplos pensamentos, quer-se forçar o pensamento a sair da ambigüidade, a se
decidir, a ser claro a si mesmo, através da ação ritual que o sobredetermina.
(pág.157 e 158)
3. O rito por necessidade.
Articulação da essência do rito no nível
necessitante
3.1. Para além da dicotomia, cultural e religião
O rito só pode
ser definido e compreendido em relação à cultura ou só pode ser compreendido e
interpretado adequadamente se relacionando à religião? (pág.160)
Não se deve
distinguir entre um rito com fundo cultural e um rito religioso a não ser por
uma intencionalidade que invade, a partir do exterior, o rito religioso.
(pág.160)
Numa visão
global do rito, é preciso afirmar antes de tudo que:
A essência do
rito depende do seu debruçar-se sobre o mundo da vida e da sua capacidade de
dar uma resposta às exigências fundamentais do viver humano. Não creio que haja
uma essência padrão, que independe de critérios e de situações. Por isso,
deve-se partir do pressuposto que o rito explica-se a si mesmo porque explica a
vida, constituindo um feed-back original com ela. É um primum que só pode ser
percebido no contexto da vivência, das situações, dos comportamentos
fundamentais e óbvios do viver; faz parte do mundo das obviedades, o que torna
mais difícil a sua leitura, mas é anterior a qualquer leitura interpretativa.
(pág.161)
3.2. O rito: a hegemonia redentiva da pragmática
ritual[37]
Especificando-se
ulteriormente a sua qualificação vital, o rito poderia ser entendido como uma
ação simbólica que organiza a experiência de sentido do homem no mundo, onde a
ênfase, porém, tende a recair mais sobre a ação e a organização prática do que
sobre a “simbólica” da ação. Ora, esse modo de proceder e de descrever o rito é
óbvio, mas permanecem ocultos o seu modelo e as suas referências. (pág.162)
O rito é uma
constrição a se fazer de uma maneira ordenada, a fim de se aprender a pensar de
maneira ordenada. Há uma espécie de estratégia exercida pela prioridade do
gesto, da palavra, do ato comunicativo, estratégia que ensina, na origem, como
estruturar o mundo e qual significado dar à experiência que a pessoa faz de si
no mundo.[38]
Nesse sentido, o rito revela-se um “transcendental” no nível da ação. É a
condição de possibilidade do dar-se, do agir e da factibilidade do mundo
através do gesto e dos esquemas de ação. A “dizibilidade” do mundo é levada à
sua expressividade através do agir estilizado e ordenado, como percepção
imediata da coordenação com o mundo mesmo. De fato, é o agir que está harmonizado
com o mundo, não o pensar, se for verdade que o mundo é o conjunto dos fatos
que nele acontecem, não das idéias (Wittgenstein). (pág.162)
O rito é, por
assim dizer, um esquema de ação que precede a própria formação da linguagem.
(pág.163)
É falsa a
alternativa pela qual ou se liga o rito ao nível originário do mundo da
religião, ou se afirma que o rito pertence ao nível da cultura. O rito pertence
a ambas as dimensões, mas, ao mesmo tempo, transcende-as, na medida em que é um
originário: é o esquema de ação que dá entonação ao nosso ser-no-mundo, antes
ainda que existam divisões, separações, sujeitos e objetos. Nessa ritualidade
original é que se encaixam tanto a religião como a cultura. A religião pertence
ao rito enquanto a ação e o gesto do homem não podem deixar de assumir um
caráter simbólico e se tornar um transcendental, uma modalidade expressiva de
todo um mundo de sentido; por sua vez, o rito pertence à cultura, enquanto o
rito é uma ação, é um momento ao mesmo tempo comunicativo e constitutivo de uma
visão do mundo participada ou participátivel, portanto é a expressão nuclear do
constituir-se da cultura. (pág.164)
Pela sua
repetitividade, o rito deve ser pensado como uma ação que tem um significado
pré-pragmático e ultra-significante. Quando uma ação é repetida e
invariavelmente repetida, a sua estilização assume um significado simbólico de
confirmação do mundo, porquanto não pode mais ter uma simples função
instrumental e o seu valor deve se inscrever no âmbito da expressividade pura.
As ações normalmente levam-nos a realizar alguma coisa. Quando a ação não pode
realiza nada, suspeita-se de que tenha em si outras finalidades ou de que seja
a sua própria finalidade. Torna-se, de algum modo, simbólica e expressiva de
outras realidades; subentende aquela idéia, já expressa, segundo a qual o rito
precede o pensamento, ou melhor, é o background em que o pensamento se assenta.
No caso do ritual, a ação é capaz de organizar o mundo para aqueles que vivem
esse rito em particular. (pág.164 e 165)
3.3. A mediação do corpo
O rito,
poderíamos dizer então, é a continuação do evento do mundo como eco recebido e
reproposto pelo homem através do seu corpo. Quase que repete mimeticamente os
gestos da natureza: o desabrochar de uma flor, o jorrar rítmico da água, ou o
identificar a estrela da noite através de um gesto e de uma vivência. Creio que
seria preciso partir do originário espelhamento existente ab initio entre
macrocosmo e microcosmo para compreender os ritos; compreender a relação entre
a natureza e o universo que nos circunda e o corpo (microcosmo) como momentos
originários de percepção, de especularidade e de reduplicação de um no outro.
Assim seríamos mais capazes de identificar toda a valências
pragmático-transcendental que se recupera através dos ritos.
Mas se esse é o
significado hegemônico do rito, parece também que o rito tem uma necessidade
intrínseca de ser, e que o seu ser é constitutivo de uma cultura originária que
toca aquele ponto em que a cultura é vizinha, próxima, ainda não separada da
natureza. Caminhamos necessariamente para a origem biológica do agir ritual. È
também a lição que em nossos dias a vida dá ao pensamento, ou melhor, é a
epistemologia do viver precedendo e determinando toda a epistemologia do
pensar. (pág.166)
O pensamento é
uma vivência integrada à vida. Somente quando se isola o pensamento é que se dá
a separação, a dissociação. Somos por demais cartesianos para entender que o
pensamento também está subordinado e dependente de toda uma vivência, na qual
nada é tão originário quanto o ato de repetir expressões/ações da vida como que
numa continuação e num braço com o mundo que nos circunda.
O fato de esses
atos rituais terem sempre uma dimensão simbólica deve-se ao modo de ser próprio
do homem no mundo, a partir do qual, quando o homem repete o ser do mundo, deve
imitá-lo e não pode substituí-lo. (pág.167)
Viver significa,
viver ritualmente; significa percorrer a estrada inversa àquela considerada
normal e que vai do pensamento à compreensão do mundo; significa decodificar o
mundo através da própria experiência perceptiva pré-categorial, traduzida
sempre por esquemas de ações e por ritos que modificam e plasmam a consciência
do mundo em fase continuativa e contígua. Há uma relação de semelhança entre os
eventos do mundo e os ritos do homem, uma conexão mais forte do que qualquer
modalidade especulativa e interpretativa. (pág.168)
O rito é um
transcendental pragmático que coloca em movimento uma consciência
transcendental do mundo ou é apenas uma ação instintiva primordial que nasce da
necessidade de ligar entre si os eventos do mundo? É nesse nível que o momento
cultural do rito se entrelaça com aquele ocultamente religioso; ou é esse o
momento em que o rito manifesta a sua laicidade total.
Estou convencido
de que tão forte é a necessidade do rito para o viver factual do homem no
mundo, quanto transcendentais são a força e a dinâmica que o rito libera, não
por uma simbólica secundária e ligada toda vez aos conteúdos, mas por uma
simbólica original que se manifesta lá onde o rito traduz inevitavelmente a
relação com o mundo. A consciência de si se constrói em torno do corpo e em
relação com o mundo. Somente essas pré-condições abrem o caminho às
possibilidades de ligar a cão à existência no mundo. Em sua obre de conexão e
de desconexão, de saturação e de separação entre eventos do mundo e eventos
relacionados com o mundo, o rito manifesta a sua valência “transcendental” e
age como uma aposta total no mundo. (pág.169 e 170)
4. As finalidades do rito e o rito por jogo
Não o rito visto
em analogia com o jogo, mas o rito por jogo, onde a metalinguagem envolve
também a relação entre os interlocutores e onde a consciência muda a
sinalização de todo o mundo do ritual. Trata-se, por assim dizer, de uma
“segunda metalinguagem”, de uma “segunda navegação”, que permite uma reflexão
em segunda potência. Se a metalinguagem é a linguagem que reflete sobra a
primeira linguagem ou linguagem-objeto-no caso em questão: “eu reconheço que
estou jogando” -, a segunda metalinguagem em que eu gostaria de reconhecer o
rito em sua globalidade nasce de um momento do total afastamento, de
extemporaneidade e de usurpação de significados para uma transposição do real
sem precedentes. Aí, então, a expressão “o rito por jogo” faz pleno sentido.
(pág.171)
4.1. O jogo nos estudos de antropologia e a
particularidade da homologação rito/jogo
O jogo é uma
atividade livre; é uma atividade simulada, que não é para ser levada a sério;
comporta o recorte de um tempo e de um espaço particulares, e, enfim, cria
mundos particulares, extemporâneos, cercados de mistério. A partir dessa
definição e da sugestão de Frobenius, pretendo descrever as características
principais q eu se sujeita o rito, em estreita analogia com o jogo.[39]
(pág.173)
4.2. A confirmação espaço-temporal do rito e do jogo;
ou como sair da vida cotidiana
Parto das limitações de espaço e de tempo. O
rito, como o jogo, tem necessidade delugares pré-dispostos e pré-determinados:
o círculo mágico de que fala Huizinga, a arena, o templo, a igreja, a stupa
para os budistas, o terreiro para o rito do candomblé, o estádio, a mesa de
jogo etc. Trata-se de lugares particulares que servem para uma separação e um
isolamento do cotidiano e da atividade normal, para dar a possibilidade de a
pessoa mergulhar num outro mundo, num outro contexto, para criar, por assim
dizer, um “mundo possível” além daquele com que nos defrontamos na rotina
diária.
À delimitação do
espaço corresponde também uma precisa colocação no tempo. O rito, tal como o
jogo, pode ser repetido, mas não dura indefinidamente: tem um tempo seu, que
deve ser respeitado porque é um tempo subtraído à normalidade e, portanto, é um
tempo “diferente”, que cria cultura, experiência, comunidade, comunicação, e,
pois, é um tempo que cria um evento. (pág.174)
O rito não tem fins nem simbologias
subterrâneas. É simplesmente ele próprio, por jogo. (pág.178)
A finalidade do
rito é intrínseca ao próprio rito, mas para dar espaço a uma metalinguagem
total na qual, poderíamos dizer, entra em jogo e é colocada entre parênteses
toda a realidade do mundo. (pág.178)
O problema é
fundamental: quem realiza o rito não o vê em perspectiva, mas o vive em
plenitude, assim como quem joga um jogo identifica-se com o jogo, com suas
regras, e se deixam simplesmente transportar para um outro mundo. (pág.179)
4.4. As regras constitutivas do rito e do jogo, e a
transposição do real.
A criação
de novos mundos
O rito
“transpõe” verdadeiramente a
significatividade do mundo, embora partindo de referências concretas e
colocando-se em relação com o mundo. Porém, uma vez criada essa katastrophé,
não tem necessidade de demonstrar outros significados, que se tornam todos
secundários e fruto de “passeios” interpretativos diversos. Em resumo, o rito
enquadra-se numa pragmática em que se pode dizer tudo e nada, por isso as
regras se tornam previsíveis e com resultado certo; o jogo, ao invés, “com-põe”
diversamente com as regras, cria metáforas que organizam de maneira diferente o
mundo, cortam-no, recortam-no, colam-no em outras formas. Turner escreve, por
exemplo, que o jogo constitui um poderoso “comentário” sobre o mundo, e se
diverte roubando dele cartões, componentes, fragmentos: de seu interior arranca
e nos restitui produtos novos, aparentemente frágeis e inofensivas. Ora, tudo
isso nos faz entender o quanto as duas dinâmicas são semelhantes, como ambas se
servem de metáforas e como, ao mesmo tempo, embora se movendo ambas a partir de
metáforas, criam e organizam mundos diferentes.[40]
(pág.182)
5. A identificação, o fluxo e o “Ergriffenheit” do
rito e do jogo
5.1. A pragmática do rito
O rito tem uma
estranha configuração: é um gênero performático e lúdico sem referências.
Cria-se um set particular de crenças através dos gestos. Isso é o que basta e o
que é importante para aqueles que agem religiosamente e para a sociedade. Os
sentimentos pessoais são bastante irrelevantes. Bárbara Myerhoff[41]
tem razão quando escreve que, no rito, a genuflexão é tudo. Todo ritual é uma
forma de mentira. Como destacamos acima, ele se baseia num “como se” que Goffman
e Bateson interpretam como a estrutura profunda do rito, enquanto S. Langer, a
esse propósito, com mais delicadeza prefere fazer referência a uma espécie de
“magia virtual”, baseada num ilocutório do tipo “façamos de modo que”, com
subilocutórios do tipo imitativo, representativo, transformacional, mimético.
O lúdico não é
nem verdadeiro nem falso: é real. Acontece aqui e agora. É um evento. Por isso
não tem necessidade de induzir um estado emocional específico. O verdadeiro
específico do rito é “façamos de modo que”, onde o “fazer de modo que” e a
realização como um “realizamos agora o evento” coincidem e fazem parte de um
mesmo ilocutório que se torna perlocutório. (pág.186)
5.2. O rito por jogo da teoria dos sistemas
O rito define o
mundo como um conjunto de conjuntos que deve ser colocado entre parênteses em
vista do aparecimento de um horizonte de sentido não mais ligado à lógica das
conexões mundanas. Pode-se-ia dizer que o rito cria um “excesso” e, para essa
operação, precisa colocar entre parênteses todos os elementos lógicos.
O rito opera
essa exclusão de todos os conjuntos lógicos criando uma moldura dentro da qual
se recorta uma situação de pura liberdade conectiva a partir do sujeito que
cria os limites e, portanto, não está submetido aos mesmos. Os limites do mundo
são os “conjuntos estruturais lógicos”, enquanto os “não-limites do mundo” –
que, aliás, são reconhecidos como tais a partir dos limites – constituem o
verdadeiro complemento de um jogo ritual que recupera o transcendental no nível
pragmático, no pressuposto de que as intenções religiosas são proporcionais
também à liberdade do limite de organização lógica do mundo.
Se quiséssemos
traduzir em outras palavras esse pensamento, poderíamos dizer que onde se nega
toda forma lógica convalidada, enquanto ela é impositiva e necessitante, tem-se
a possibilidade de anunciar algo de novo e de restituir criatividade ao mundo,
em vista do seu significado e do significado religioso. Mas, com isso, não se
volta, talvez, a adotar o modelo “antiestrutural’ que V. Turner atribui ao
conceito de liminariedade? (pág.197 e 188)
Conclusão.
A pragmática ritual como a encarnação mais
verdadeira do rito
Creio que as
religiões – em especial a religião cristã – sobreviverão a todas as tendências
inococlastas secularizantes enquanto souberem realizar ações rituais
litúrgicas, que fogem da discussão e também do alcance de uma racionalidade por
demais dicotômica, para repetir, ao invés, essa “conaturalidade” ao ser do
homem, que é indivisível do corpo, da gestualidade, da ação e de uma Gestalt
global que nunca poderá faltar. (pág.193)
Segunda Parte
Fenomenologia Da Ritualidade
Capítulo quinto
Espaço e Rito
1. Premissa
O espaço, na
vivência ritual, só pode ser percebido através da nossa sensibilidade. Ele é o
“cenário das nossas experiências humanas, a esfera da nossa atividade e das
nossas relações com o ambiente que nos circunda”.[42]
Ora, tudo isso precisa de uma visão unitária e não-dispersiva e dicotômica,
como sempre, na onda do cogito cartesiano, pretendíamos que fosse. (pág.199)
2. Espaço e rito: um binômio originário, sobre o
pano de fundo de uma epistemologia “espacial”
O espaço é
sagrado, então, através de sua própria ordem e organização, e a criação é
sagrada porque é o primeiro ato de organização e de estruturação do universo
num todo ordenado e harmônico, em que as partes convergem para o todo e o todo
é reencontrado em cada uma das partes. Mas, a esta altura, se quiséssemos
encontraríamos os grandes mitos e os grandes esquemas religiosos tradicionais, que,
por sua vez, parecem esclarecedores da relação criação/rito. (pág.202)
6. O rito como corpo, ambiente e organização de
espaços
6.1. Reflexão a partir de R. Hertz, J.Z. Smith, M.
Eliade, V. Turner
No processo de
aprendizado “espacial” não está em jogo uma consciência externa e quantitativa
de coisas e de realidades, por assim dizer, mas é consubstancial uma disposição
implícita e interna, capaz de repetir o sentido do mundo através da sua
colocação ordenada. O rito é a realização desse projeto de tomada de contato
com o mundo como tomada de consciência de si mesmo, porquanto somente o rito é
capaz de formalizar os esquemas de ação para, repetindo-os, captar a sua
intrínseca eficácia e o seu ordenado num jogo de espelhos no qual tudo aparece
no seu devido lugar: do pensamento à ação, do corpo no espaço ao espaço como
movimento ordenado e, portanto, como realidade representada significativamente
e vivida num feedback total.[43]
(pág.207 e 208)
Na relação entre
rito e espaço. M. Eliade descobriu a lei da proposição das hierofanias, da
delimitação entre espaço sagrado e espaço profano e a possibilidade de
“regeneração do tempo”.[44]
A hierofania (manifestação do sagrado) acontece sempre num espaço, delimita um
espaço e consagra o lugar a uma função especial, a ponto mesmo de a dimensão
sacral ser uma variante da dimensão espacial. O sagrado é percebido como
separado, distinto, estendendo-se pelo espaço e, ao mesmo tempo, encerrado no
espaço. (pág.209)
7. O espaço sagrado no âmbito das liturgias.
Rumo a reflexões teológicas
O mistério de
Cristo, para ser ritualizado e revivido na história, precisa fazer-se história,
tomar a forma de um rito, vestir uma simbólica acessível ao homem. (pág.212)
9. Espaço físico
A celebração de
um rito acontece sempre como um evento físico no continuum de espaço/tempo que
a acolhe, mesmo que isso não signifique o achatamento do rito em sua pura
espacialidade circunscrita e em sua temporalidade limitada.[45]
A um primeiro olhar, de fato, o espaço físico é o espaço feito de massas, o
espaço opaco que nos circunda, que se apresenta à nossa vista, definindo por
luzes e sombras, poderíamos dizer também aquele biológico e orgânico, na medida
em que nós somos sistemas abertos e comunicantes. É, enfim, o espaço da nossa
biosfera. (pág.214)
10. Espaço significativo
Trata-se daquele
que os antropólogos anglo-saxônicos chamam de meaning space e que,
infelizmente, a expressão “espaço significativo” não é capaz de traduzir
adequadamente. É o momento em que acontece – poderíamos dizer – a passagem da
“biosfera” do espaço à “semiosfera” dos espaços, para usar um termo caro ao
semiólogo Lotman. Trata-se do espaço que é organizado pelas ações, pelos gestos
e pelas palavras para expressar um contexto; o espaço significativo é, por
isso, a performance, a representação; no caso do rito é a celebração tal como
ela se desenvolve e como envolve todos os participantes. O espaço assume
significado a partir do sistema de sinais como o qual comunicamos e realizamos
ações que organizam o nosso mundo circundante. (pág.215 e 216)
Se há uma
relação estreita entre ambiente e expressão do corpo, essa relação é ainda
maior entre corpo, ambiente, discurso simbólico e organização harmoniosa e
simbólica dos espaços. Se o rito – na concepção antropológica – tem por
essência a organização do mundo em chave religiosa e simbólica, essa
organização deve encontrar uma correspondência nas situações gestálticas e
ambientais, arquitetônicas e figurativas, em que o nosso mundo se exprime, sob
pena, talvez, de ocorrer a grande débâcle performática do rito. (pág.217 e 218)
Capítulo sexto
Tempo e Rito:
O Rito Como Escansão Do Tempo
2. Movimentos atuais do tempo: entre filósofos,
cientistas e antropólogos
O tempo é um
espelho da consciência e se modifica com ela. Não é um objeto e não pode ser
traduzido por uma medida padronizada, a não ser de modo fictício e provisório.
(pág.229)
3. Fenomenologia da relação entre religião e tempo.
Idiossincrasia de uma relação e recusa da
contingência
As religiões
sempre se mostram, de algum modo, imunes aos achaques do tempo e à sua
impiedosa precariedade. As religiões nasceram para se opor à corrosão e à
humilhação que os seres sofrem no tempo, e colocaram uma barreira e combateram
o tempo, fazendo ecoar de profundis, no mundo, uma invocação incessante de
salvação, para escapar da contingência e da precariedade do devir temporal.
(pág.233 e 234)
O tempo, na
realidade, aliena porque tira a disponibilidade do eu em relação a si mesmo e,
sobretudo, porque não dá nunca a possibilidade de a pessoa ser ela mesma de
modo total. A consciência da temporalidade nos faz inexoravelmente sair da
inocência do tempo. A existência é saboreada momento a momento, em pontos
diversos, jamais sendo concebida de maneira total. (pág.234)
Ora, justamente
para contratar a demolição e a desintegração da integridade e da totalidade, as
religiões opuseram ao tempo o conceito de “salvação” como possibilidade de
superar o tempo, de pelo menos espaçar dele, ou como possibilidade oferecida de
resgate do próprio tempo. (pág.234 e 235)
4. A mediação do rito e a reconciliação com o tempo
4.1. O rito como momento criador do tempo.
A
reconciliação da religião com o tempo
Na história das
religiões e na antropologia cultural, pode-se demonstrar facilmente que,
através do rito, a religião não busca mais a fuga do tempo, não se resigna
mais, não se desculpa pela coerção cósmico-temporal em que é obrigada a atuar.
(pág.245)
Repetindo-se de
maneira rítmica e tornando-se a “marca” de um tempo delimitado, colocando-se
como escansão do biorritmo, do intervalo entre trabalho e tempo livre, da
relação entre fase e quotidianidade, entre fas e nefas, entre tempo cósmico e
tempo interior, entre tempo sagrado e tempo profano, o rito não se limita mais
a “pensar” o tempo, mas o modelo e o modifica concretamente, a seu bel-prazer.
Se, na ritualidade, tudo se dá na ordem da repetição, de tempos estabelecidos,
de circunstâncias e de festas recorrentes, a religião não tem mais necessidade
de exorcizar o tempo, mas encontra justamente no rito um precioso e agora
indispensável aliado para a reconciliação in toto como o devir, na medida em
que o rito se torna paradigmático de um tempo religioso que, finalmente, pode
se desligar do seu voto escatológico, mítico ou místico, para se tornar o lugar
do seu fieri significativo, independentemente da sua contração, e de qualquer
outra modalidade de fuga de si mesmo para servir ao religioso. A experiência
religiosa domina tout court o tempo através do rito. (pág.246 e 247)
4.2. O rito como pausa simbólica
No rito, considerado
como expressão de um intervalo, de uma pausa, não se foge do tempo mas se detém
o tempo com o tempo. As quatro modalidades de compreensão do tempo podem ser
reunidas na concepção do rito como tempo simbólico, que foge do tempo normal e,
ao mesmo tempo, ritma o tempo ordinário. (pág.248)
O rito concede
uma dilação ao mundo, detendo o tempo. Se o tempo é imperfeição essencial, o
rito anula esse aspecto “meontológico” do tempo através de uma pausa ulterior
junto ao mundo. Derrota o tempo como um tempo “retardado”. (pág.248)
Basta que se
observe o mundo do ritual: se há algo que ele não suporta, que é incompatível
com a sua estrutura, é a pressa, é o tempo marcado pelo relógio. Pode-se
estabelecer a hora em que deve começar um rito, mas seria blasfemo fixar a hora
do seu término. O rito impõe o próprio ritmo ao tempo e muda a progressão
prefixada dos números com que nós costumamos marcar o nosso devir. (pág.249)
4.3. Comprovação histórico-religiosa e antropológica:
os ritos como espelho de uma interpretação rítmica e “desacelerada” do tempo
Numa elaboração
mais sistemática da pausa simbólica, deveríamos, então, ser capazes de traçar
uma verdadeira fenomenologia da vida cotidiana, na qual os ritos funcionem como
“unidades estruturadas de fluxos de consciência”, essas unidades conscienciais
que são dificilmente descritíveis com palavras e que poderiam ser comparadas
àqueles momentos que W. James chamava de stretches of flight e resting places,[46]
“traços de vôo” e “postos de repouso”, com imagens mais espaciais do que
temporais. Para tentar compreender esse “traço de vôo” que se realiza com o
rito, basta pensar como nós, com a nossa impaciência, preferimos apressar as
coisas, mesmo que isso seja um absurdo no plano existencial e ritual. O único
resultado possível da pressa seria o de levar as coisas ao seu fim, ou seja, à
sua aniquilação. Se nós atingirmos os nossos fins, estaremos “acabados”.
(pág.257)
5. Conclusões.
O rito como ordenador intrínseco do tempo e como um
“retardador” simbólico
A suspensão do tempo,
de que fala Eliade em várias obras, é importante e ajuda a pensar, mas
ultimamente parece mais uma fuga mística. A pausa “simbólica”, ao invés, é uma
realidade antropológica e psicológica e é mais perceptível no interior de todo
movimento ritual. A suspensão transporta tout court ao tempo das origens; a
pausa ritual, ao invés, faz saborear um tempo diferente, próximo àquele das
origens, embora permanecendo no fluxo do tempo ordinário. A função do rito é,
nesse sentido, mais próximo da música do que da realização do mito, ou melhor,
realiza o mito através de uma extrapolação momentânea e uma sedimentação de
espaços e tempos. (pág.259)
A “unidade da
consciência constitutiva do tempo” tem o seu ser no rito. O conjunto de
segmentos temporais encontra a própria justificação e coordenação no rito,
enquanto fenômeno constitutivo do tempo no nível perceptivo da consciência, mas
essa consciência, enquanto fluxo da consciência constitutiva do tempo, contém
já um auto-aparecimento do fluxo e, portanto, o fluxo não é um espelhamento
ulterior e não constitui uma reflexão ulterior. O rito torna-se o lugar em que
constituído e constituinte coincidem e onde não existe um pesado que seja
diferente do pensar, enquanto ato e ação.[47]
Na minha
opinião, é segundo essa modalidade que o rito se torna uma espécie de
“consciência última”, em conformidade com essa estratégia fenomenológica pela
qual se cria um intervalo junto aos seres, segundo essa modalidade altamente qualificada.
Essa qualificação recolhe egregiamente em si o sentido do “prestar atenção” sem
se desdobrar numa segunda consciência.
Segundo essa
dinâmica, o rito dá também, de modo supremo, o senso da ordem porque, através
da pausa simbólica e da parada junto às coisas, pacificam-se os diversos
elementos da natureza. O rito, assim, sincroniza os tempos. Recoloca os
ponteiros do relógio sempre no meio-dia. O centro espacial tem um
correspondente na hora do meio-dia, que seria a hora por excelência. Segundo o
Bundahishs (antigo texto sagrado irânico), quando se realiza um rito “é sempre
meio-dia”. O rito, por isso mesmo, torna cultural a natureza, enquanto traz à
consciência o ritmo natural e dele se apodera; achata, ao invés, para o nível
da natureza, a história porque a história é uma seqüência de eventos
dependentes uns dos outros e numa cadeia causal e cinemática. (pág.261 e 262)
Capítulo sétimo
Rito e Música
Rito e música: afinidades e convergências
Rito e música
poderiam e deveriam, pois, estar entrelaçados desde as origens, tanto mais que
o testemunho dos pitagóricos confirma essa tese: a mousiké é, de fato, a
harmonia dos astros, centrada, por sua vez, na lei dos números que, através da
série de relações de uma metade, dois terços e três quartos, geram, ao mesmo
tempo, as consonâncias de oitava, de quinta e de quarta e, desse modo, a
harmonia do universo. (pág.271)
2. Tentativa de classificação dos ritos em relação
aos modos musicais
Entre música e
rito há um parentesco antigo, antiqüíssimo, talvez até tão antigo que não seja
pensável um rito sem um fato musical, e que, por sua vez, não se pode imaginar
uma música que não esteja ligada a algum tipo de ritualidade.[48]
Agora, porém,
para poder articular o discurso sobre essas verdadeiras ou presumidas conexões,
preciso partir de outras duas premissas. A primeira está em reconhecer que o
significado original da música é, de alguma maneira, bastante semelhante em
todas as culturas, e que – a seu modo – a música teve um papel muito importante
em toda a ritualidade antiga, em especial em relação àquela ritualidade ligada
aos grandes mitos da humanidade, que procura elaborar modelos simbólicos de
clarificação da vida e da morte em sentido religioso.[49]Se
essa relação tem uma sua lógica, é preciso estabelecer que a determinados
sentimentos religiosos correspondem determinados modos de fazer música,
relacionados com essas experiências originárias e primordiais. (pág.281 e 282)
A segunda grande
premissa que é preciso levar em conta – embora admitindo que há uma certa
margem de oscilação no estabelecimento da qualidade dos sentimentos induzidos
por um fato musical, e por isso não se pode sustentar que somos capazes de
identificar uma estreita conexão causal entre um texto musical e os sentimentos
que ele pode induzir e, de fato, induz em situações também análogas e em
pessoas que estejam igualmente predispostas[50]
- está em reconhecer que há, todavia, verdadeiras analogias, algo como
“afinidades semânticas” ou, talvez melhor, “campos semânticos” distintos, e não
apenas fatores arbitrários e subjetivos que agem na determinação do sentido
musical e dos sentimentos que o fato musical provoca.[51]
(pág.282)
3. O modo dórico e todos os seus empregos rituais
3.1. Os ritos sacrificais e a música que os
acompanhava
Talvez o
sacrifício seja a forma cultural mais antiga que nos é dado conhecer.[52]
E justamente em torno do sacrifício temos um primeiro modo de concretização e
conexão da música como o rito.
Na mais antiga
cultura e religiosidade do Mediterrâneo encontramos, para o rito sacrifical, o
acompanhamento da música com o instrumento da flauta. (pág.286 e 287)
Também entre os
romanos precisos testemunhamos da relação música/rito sacrifical, embora
inicialmente possa parecer que os romanos tenham se afastado da dança e da
música, sobretudo no costume privado. (pág.287 e 288)
3.3. O rito fúnebres e a música e eles ligada
Têm uma
particular relevância, em todas as religiões, os ritos fúnebres e a respectiva
música de acompanhamento. Sabemos que já entre os babilônios havia dois coros
de mulheres que se lamentavam alternadamente nas procissões fúnebres. (pág.291)
Ao final desta
breve resenha sobre alguns ritos que se fazem acompanhar de música, segundo o
estudo de Quasten, impõe-se uma reflexão. É o modo dórico que se impõe nesses
ritos, em que a flauta se faz intérprete fundamental em quase todas as culturas
religiosas examinadas. Seja nos ritos culturais dos tempos, nos ritos
sacrificais como nos ritos fúnebres, há uma certa seriedade e sobriedade, que
se fazem acompanhar de uma música contida, séria, uma música de éthos, para
usar a terminologia aristotélica, que não corrompe o rito, antes o interpreta
de modo solene e doloroso. (pág.293)
4. O modo frígio e todos os seus empregos rituais
A história
comparada das religiões registra, porém, um outro tipo de música, muito
importante e, sob certos aspectos, mais empregada do que a primeira: trata-se
de uma música que convencionalmente chamarei de “música frigia” e que está
ligada à dança, ao entusiasmo, ao transe e, em geral, aos fenômenos de
transcendências e de êxtase, à catarse e à regeneração, e que se encontra
presente em numerosos ritos da antiguidade e em todas as áreas
histórico-religiosas, que examinaremos a seguir. (pág.294)
O instrumento
mais adequado para esses rituais era o tímpano, que tinha uma função importante
também no antigo Egito, porque o seu som era capaz de afastar os demônios;
tinha, pois, caráter apotropaico e com o seu ritmo era capaz de provocar também
a excitação religiosa. A flauta frigia diferencia-se da flauta dupla comum pela
haste direita, que aparece encurvada. Só raramente e mais tarde é que aparece
também o chifre no culto a Cibele. (pág.297)
5. Considerações intermediárias.
A natureza do rito e a sua inviolabilidade
5.1. Relação rito-música
A primeira
consideração está em reconhecer, em toda a história das religiões e áreas
geográficas tomadas em consideração, que rito e música são duas realidades que
podem ajudar-se mutuamente, mas que também podem facilmente entrar em mútuo
conflito. A primeira afirmativa baseia-se no fato de que todo rito está ligado
quase indissoluvelmente à música; a segunda evidencia-se a partir de outra
constatação, segundo a qual para certos ritos só podem ser previstos
determinados modos musicais. (pág.301)
Poderíamos,
então, construir, de maneira mais positiva, a afinidade e a solidariedade entre
rito e música com uma afirmativa mais elaborada, do tipo: à natureza do rito
corresponde uma determinada qualidade musical. Esse parece ser o primeiro
proveito que se tira da análise da relação rito-música na história comparada
das religiões. Mas se isso é verdade, então o problema se torna mais complexo,
pois para unir uma certa música ao rito é preciso conhecer a essência e um
certo rito ou da ritualidade em geral, e reconhecer, em espacial, que o mundo
ritual tem especificidades que se mantêm constantes. O problema, por isso,
passa para uma outra margem: é preciso controlar as coordenadas profundas do
mundo ritual e, sobretudo, é preciso estabelecer a natureza do rito. (pág.301 e
302)
5.2. A natureza do rito
Aqui podemos
apenas acenar para o fato de que o rito, por sua natureza, parece em geral
imodificável. Em vista da música e segundo as trajetórias históricas que
traçamos, ele se apresenta com uma função quase fisiológica: como uma
“estilização de sentimentos”.[53]
Ele ordena, acalma e sublima os sentimentos, ou então os exalta e os transforma
radicalmente. (pág.302)
6. Observações sobre a relação entre rito cristão e
música nos primeiros séculos
Ora – segundo a
leitura feita por Quasten – é sobretudo a expressão “de coração”, “com todo o
coração”, que caracteriza a atitude dos cristãos. O canto deve ser expressão de
uma convicção interior e somente um meio para o louvor a Deus.[54]
(pág.306)
E logo se
manifesta, entre os cristãos, uma clara contraposição em relação aos povos
não-cristãos ou que pertencem a religiões mistéricas, tema que aqui não podemos
desenvolver. A atitude rígida e quase inexplicável em relação à música sofre
influência da mentalidade latina, do neoplatonismo em geral e do conceito de
logiké thysìa, que citei acima. (pág.306)
Em geral, pois,
os Padres da Igreja – entre os quais, particularmente, Tertuliano, Clemente de
Alexandria, João Crisóstomo, Gregório Nazianzeno, o próprio Agostinho –
demonstraram uma fobia particular em relação ao uso dos instrumentos musicais
por parte dos cristãos; uma fobia que parece exagerada e incompreensível; por
outro lado, são obrigados a desqualificar certos costumes do A. T. ou tentar
justificar velhas formas de comportamento que agora não valem mais. Esse medo
parece ligado, de modo particular, ao culto aos deuses que existia fora do
âmbito cristão, onde se usava justamente a música; havia, pois, a idéia de que
a música poderia levar longe demais e muito facilmente à adoração de ídolos e
de divindades fora da esfera do único Deus, pai de Jesus Cristo. Trata-se,
provavelmente, de uma contraposição que nasce instintivamente, num mundo em
que, sobretudo o Egito, mas outras áreas também, colocavam juntas, com
facilidade e desenvoltura, muitas divindades, sempre evocadas e convocadas
através de instrumentos musicais, variados e sedutores. Havia, pois, a idéia de
que o cristianismo devia ter uma expressão unívoca e o seu ideal devia ser o da
“hamofonia”, como observaram J. Kroll e O. Casel. No intuito de unir os
espíritos, os cristãos buscavam a unidade inclusive no canto, uma você
dicentes, como repete o Prefácio.[55]
(pág.307 e 308)
Capítulo oitavo
Rito e Teatro:
A Mediação da Performance
1. Um j’accuse e a apresentação das novas funções a
serem assumidas
Não há duvida de
que a crise hodierna do ritual é, de certo modo, filha do iluminismo e do
predomínio incontestável da razão sobre o mundo dos sentimentos e sobre o agir
humano, modelado pelas “religiões do livro”. De fato, foi numa precisa etapa
histórica e histórico-religiosa que aos poucos se enfraqueceu o valor
comunicativo e dramatúrgico do fato religioso. E é nesse contexto que o rito
campo católico – tornou-se puro instrumento de “exortação ética”, “discurso
moral”, “fé sem imagens”, religião no “limite da pura razão instrumental” e,
enfim, “pio exercício” de leitura do livro sagrado, como escreveu recentemente
um biblista protestante bastante conhecido.[56]
(pág.315 e 316)
Ao aproximar o
rito do teatro, e vice-versa, não apenas sob o perfil de presumidas analogias,
mas de declaradas filiações, pretendo sugerir um recíproco enriquecimento que
deve ocorrer entre os dois campos e, indiretamente, gostaria de contribuir para
uma nova visão – que é, aliás, mais antiga – onde seja possível considerar a
relação entre o mundo e a experiência religiosa através da reproposição – na
medida do possível, hoje, no nosso Ocidente – de uma concepção “holística” do
nosso viver e da nossa experiência. (pág.319 e 320)
2. O rito como analogatum princeps do mundo do
teatro, da performance e a própria formação da língua
2.1. O imemorável do rito e a sua função de paradigma
sobre o nascimento da linguagem
Sobre a
afinidade entre rito e teatro a lingüística pode se estender ad infinitum,[57]
mas aquilo que na origem mais nos interessa é o caráter simbólico-reflexivo das
duas ações afins e convergentes e, conseqüentemente, a possibilidade de
evidenciar uma prioridade eventual e estrutural do rito/teatro como ação
simbólica em relação a qualquer outra experiência vivida ou participada,
permitindo a ela apresentar-se como uma antecipação e, até diria, uma
prefiguração da própria constituição da língua. Como se pode notar, o que nos
interessa de modo particular são as raízes últimas do ritual, a sua
simbolicidade criativa de qualquer outro mundo comunicativo e transitivo. Se,
depois, o teatro se tornou o topos em que essa dinamicidade melhor se espelha e
se reconhece hoje, isso parece um fato secundário, certamente significativo mas
nem por isso capaz de questionar a originária simbolicidade do ritual.
(pág.326)
2.2. A relação entre rito e teatro no nível
histórico-religioso
Devemos nos
perguntar: é possível demonstrar historicamente o valor original do rito, a sua
simbólica primordial, que depois opera sucessivamente tanto em relação ao
teatro quanto ao drama em geral, tendo na devida conta todas as dificuldades e
a problematicidade de um olhar retrospectivo tão longínquo? Talvez eu possa,
aqui, traçar apenas algumas linhas de desenvolvimento e fazer referências a
algum caso mais evidente em que esse processo se manifesta. (pág.328)
O esquema da
relação rito-teatro, na antiguidade clássica, poderia ser assim descrito,
segundo Schechner, que repete, neste caso, as teses da escola de Cambridge e,
em especial, a dedução de G.M. Murray: havia um rito primário chamado por Murray
de sacer ludus, quase que completamente desconhecido para nós, do qual, porém,
deduz-se que teriam derivado vários tipos de passos de dança, inspirados, de um
lado, pelo ditirambo e, do outro, sugeridos pelas danças fálicas. Esses dois
ramos principais teriam dado origem à tragédia (a partir do ditirambo) e à
comédia (a partir das danças fálicas).[58]
Não menos
difícil de se definir, em chave histórica, é a relação entre rito e teatro, ou
mesmo só o lugar reservado ao teatro dentro do cristianismo. Relacionando
algumas indicações paradigmáticas que interpretam a história, poderíamos seguir
três pistas de pesquisa; primeiro, aquela que afirma a persistência do teatro
popular a partir da antiga Grécia, através de Roma, até à Idade Média e à
comédia da arte. Trata-se de uma linha mais “externa”, que vê a relação
rito-teatro como um fato extrínseco e não baseado em interconexões
inseparáveis, depois, há uma segunda pista, que reconhece a habilidade da
Igreja em englobar o teatro que persistia desde o tempo dos romanos e ligado a
outras expressões religiosas, tendo sabido modificar sabiamente os seus
conteúdos; há, enfim, a tese segundo a qual, limitadamente à Idade Média, a
própria Igreja cristão estaria na origem de uma redescoberta e reintrodução do
teatro na ritualidade sacra, de modo a reforçar o seu escopo edificante.[59]
(pág.331 e 332)
4. Indicações sobre a originariedade
histórico-religiosa da dança e idéias interpretativas interculturais atuais
Para um primeiro
esboço interpretativo da dança, em vista da sua importante tarefa de mediação
entre rito e teatro, pode-se dizer que a dança é um “teatro total” e que, nessa
direção, movem-se as pesquisas atuais. A estética moderna indica, de fato, a
dança como um “projeto total para um engajamento total”.[60]
Em outras palavras, a dança concentraria em si a missão de uma totalidade
expressivo-comunicativa que não precisa de mais nada e que exprime in toto e da
maneira mais completa a pessoa humana como momento relacional, comunicativo,
expressivo, onde até o conhecimento mais profundo acontece com o corpo e não
com uma inteligência separada do contexto da realidade humana. (pág.341 e 342)
5. Sobre a natureza da performance.
Breve exploração macrotextual
A performance é
o espelho mais autêntico de uma cultura, assim como o rito-performance é o
espelho mais autêntico de uma religião. (pág.352 e 353)
6. Sobre o pano de fundo da semiótica da
performance: o mundo “simbólico” do rito e o mundo ficticional do teatro
O teatro é, na maioria das vezes, fictional,
isto é, “representa”, enquanto que o rito – como os happening, as danças, as
festas, as procissões etc. – constitui um momento-espetáculo de “apresentação”
de uma vivência imediatamente real. Nesse sentido, no rito e nos eventos a ele
similares há um reenvio à própria referencialidade e auto-significância: eles
se “apresentam”, não se “reapresentam fingindo”, como ocorre no teatro.[61]
(pág.347 e 358)
7. Aprofundamento, no nível semiótico, da natureza
diferente da performance do rito e do teatro hoje
É inútil negar
os fatos. Hoje, rito e teatro não têm quase nada em comum, e se é interessante
e estimulante descobrir que na história religiosa e cultural do passado essa
cisão não existia ou era irrelevante, e também se é útil ver que entre os povos
tradicionais existe e resiste ainda a unidade das duas performances, é preciso
enfrentar a realidade tal como ela se desenvolveu. (pág.360)
O teatro visa ao
divertimento das pessoas que estão presentes; o rito é dirigido ao Outro
ausente; o teatro sublinha o tempo presente; o rito vive o tempo simbólico; no
teatro o ator sabe que se comporta “como se”; no rito o ator está pessoalmente
“envolvido”; no teatro os espectadores “observam”; no rito “participam”. E
mais: no teatro os espectadores apreciam ou criticam a performance e se dá
espaço à criatividade individual; no rito os participantes “crêem”, não há
lugar para a crítica, e a criatividade é comunicativa.[62]
(pág.361)
Capítulo nono
O Rito e as Performances do Pós-Moderno Entre a
Dispersividade das Perormances e a Busca de um Significado Holístico
1. O pós-moderno e a nova configuração dos ritos e
das performances
O pós-moderno é
uma sensibilidade feita de fragmentos e de resíduos, é uma sensibilidade
desiludida, autocrítica, que vive num estado de aparente sonolência e
catatonia, não por inédita, mas porque a razão está assediada e cansada e
sente, conseqüentemente, a necessidade de retroceder, de viver entrincheirada
no passado. A idéia de fundo está em reconhecer que o verdadeiro problema não
consiste mais num simples pensar diversamente, mas numa crise de todo o mundo
representado e representável. Numa palavra, é a crise do pensamento objetivo,
definitivo, estatutário, monopolista, onde, antes de tudo, vê-se caírem todos
os ídolos do moderno e se pulverizam os edifícios que antes se julgava indestrutíveis.
(pág.373)
1.2. A recaída específica do pós-moderno no mundo das
performances e do ritos
É hora de
aproximar mais o mundo do rito e das performances do mundo do pós-moderno, para
vermos, por meio de alguns grandes fatores pós-modernos, qual “erosão” acontece
no seio dos rituais e do mundo das performances.
O primeiro
grande fator que levou a uma compenetração e também a uma fusão dos mundos das
performances deve ser atribuído antes de tudo à interdisciplinaridade como
dimensão importante e significativa mas também ameaçadora ao nosso saber.
(pág.382)
O segundo fator
que subverteu e confundiu as performances rituais no pós-moderno pode ser
atribuído à desorganização dos sinais, de certo modo à “parataxia” que domina
incontestavelmente o âmbito do nosso representar e do nosso representar-nos
hoje. Há um modo rapsódico e fragmentário de se expressar que acompanha as
metáforas que acima definimos como do pastiche e da esquizofrenia. Os sinais em
geral se apresentam colocados de modo artificial e sem ordem, pois somos
levados instintivamente para a fragmentariedade, para a incompletude, para a
imperfeição. As performances que daí nascem estão sujeitas a uma certa
arbitrariedade, são cambiantes e mutáveis, são adulteradas de propósito,
resultam fragmentárias e, em geral, contraditórias. (pág.384)
O terceiro e
último fator que influi decisivamente sobre as performances e sobre os ritos é
a ambigüidade da interpretação. (pág.386)
Os jogos de
palavras, os problemas de traduções, as narrativas alegóricas estão na base de
todos esses mal-entendidos que acontecem no momento da comunicação. Não é
somente a hermenêutica clássica que aqui pode dar sugestões iniciáticas a
respeito da dificuldade e da arbitrariedade da interpretação, mas é também o
mundo das artes visuais e a decodificação tão contraditória a que assistimos
frente a obras de arte, a textos fundamentais, a performances do tipo fiction,
jornais, comunicação oral, produção estética, estilos performáticos. (pág.386)
2. Novos ritos e performances emergentes no mundo
pós-moderno
2.3.
Ritualidade profana.
“Estilos de vida” do pós-moderno: “ritos
sem mitos”
No cenário
sempre aberto das várias performances, onde a cultura e a sociedade representam
a si mesmas e reelaboram culturalmente os seus desejos e reeditam as suas
aspirações, onde se evidenciam os projetos e se dramatizam os sonhos segundo
esses níveis de realidade, de que falou longamente A. Schütz, e que finalmente
no pós-moderno têm lugar de legitimação antes não reconhecido como mundos paralelos,
concomitantes, alternativos, interagentes, onde o mundo da realidade cotidiana
se move entrelaçado com o mundo dos sonhos, o mundo da ciência, o mundo da
arte, o mundo da religião, existe também uma realidade cotidiana que se torna
como que o espelho de si mesma e se coloca a meio caminho entre a simples
vivência e reflexividade sobre a vivência, tornando-se, então, por sua vez,
performance dentro do mundo da vida, do mundo do cotidiano. É o mundo da vida
cotidiana descrito por Goffman, onde podemos, por assim dizer, assistir um
número indefinido de performances “moleculares”, na trilha das descrições
feitas pelo sociólogo e fenomenólogo americano.[63]
(pág.402 e 403)
3. O futuro do rito. Rumo às conclusões
O longo caminho
que percorremos nestas páginas procurando identificar a chave do pós-moderno
para depois aplicá-la ao mundo das performances e aos ritos, até chegar aos ritos religiosos e à sua lenta
desagregação, que se verifica atualmente, por meio da “ritualidade sem mito”,
por meio de “estilos de vida” substitutivos das ritualidades religiosas, por
meio de um desfazimento dos mundos simbólicos e da projeção de mito-manias, que
pouco têm em comum com os grandes mitos religiosos da história de todos os
tempos, levou-nos inevitavelmente a duvidar de que se possa salvar uma visão
ritual significativa e orgânica, e nos leva a suspeitar de que hoje a
desorientação e a derrelição são as únicas vias tomadas pela cultura
pós-moderna. (pág.413)
[1] Cf. E. Benveniste, Lê vocabulaire des institutions
indo-européennes, Ed. de Minuit, Paris, 1969, 100.
[2] Cf. V. W. Tuner, Image and
Pilgrimage in Christian Culture: Anthropological Perspectives, Blackwell,
Oxford, 1978, 243-244.
[3] Esse discurso reaparecerá em vários lugares desses estudos. No
entanto, não podemos nos esquecer de que a classificação, a diferença e a ordem
parecem ser configurações originais da percepção do rito. Cf. J.Z. Smith, que
anota: “Ritual is above all na assertion of difference”, e as observações
análogas feitas por G. Bateson na descrição do rito naven, junto aos Yatmul da
Nova Guiné. Cf. também
C. Bell, Ritual. Practice and Theory, Oxford Uni Press, Oxford, Nova York,
Toronto, 1992, 102.
[4] Cf., por exemplo, B. Kapferer, A
Celebration of Demons: Exorcism na the Aesthetic of Healing in Sri Lanka,
Providence, Washington (D.C.), 1991, 4, onde escreve: “In ritual, ideas are
objectified and reified so much that they are made controling and determining
of action”.
[5] Cf. R, Otto, ll sacro. L’irrazionale nell’idea di Di e la sua relazione al razionale,
Feltrinelli, Milão, 1989, 11ss.
[6] Zuesse é o redator do verbete Rito para a Enciclopédia delle
religioni, editada por M. Eliade. Cf. E.M. Zuesse, “Rito”,in M. Eliade (edit.),
Enciclopédia delle religioni, Jaca Book – Marzorati, Milão, 1994, vol. II,
483-501, aqui 492; veja-se também H. Zinser (edit.), Religionswissenschatf.
Eine Einführung, D. Reimer Verlag, Frankfurt a. M., 1988, 78-79, onde o autor
distingue entre a intenção do crente, que é o verdadeiro aspecto teológico do
ritual, e a “função”, que é o aspecto sociológico dos ritos.
[7] Veja-se, especialmente, G. Widengren, Fenomenologia della
religione, EBD, Bolonha, 1984, 333ss. As distinções e a tipologia oferecida por
Widengren, todavia, baseiam-se em critérios muito diferentes e não conseguem
dar um quadro unitário dos vários ritos. O critério temporal, por exemplo, não
pode ser confundido com um critério intrínseco ao ritual. Mas homogênea é a
classificação de Heiler (cf. F. Heiler, Le religioni dell’unmanità. Volume di
introduzione generale, Jaca Book, Milão, 1985, 188ss.), que emprega como único
critério o interno ao próprio rito. Os tipos de rituais, ao invés, examinados
por Grimes em seu estudo mais recente e que serviram para os respectivos
trabalhos e pesquisas, nesse dado âmbito, têm uma extensão boa e cobrem bem
todo o mundo do ritual, mas se abrem para critérios “mistos”, onde ao critério
deduzido da natureza do rito (como, por exemplo, os “ritos sacrificais”) se
acrescentam critérios externos e concomitantes, como, por exemplo, os “ritos de
casamento”, as festas, as peregrinações etc. Cf. R. Grimes, Research in Ritual Studies. A
Programmatic Essay and Bibliography, The Scarecrow Press, Metuchen N. Y. And
London, 1985, 2 e 3. A distinção e classificação
funcional dos ritos propostas por Wallace é interessante, mas o antropólogo usa
um critério não estritamente religioso, embora capaz de dar além da natureza,
tomando por base um critério básico que é o da proteção e da salvação. Cf. F.C. Wallace, Religion: An
Anthropological View, Random House, Nova York, 1966; Idem, “Theological Resources
from the Social Sciences: Rituais, Sacred and Profane”, in Zygoni 1 (1966),
60-96.
[8] A documentação mais ampla dessa categoria e tipo de ritual se
encontra em F. Heiler, Lê religioni dell’umanità. Volume de introduzione
generale, Jaca Book, Milão, 1985, 188ss.
[9] Também para os ritos de eliminação veja-se F. Hiler, op. cit.,
191-195.
[10] Sobre esse tema valem sempre as belas reflexões de P. Ricouer em
seu estudo: P. Ricoeur, Finitudine e colpa, il Mulino, Bolonha, 1970. Para uma
descrição mais em chave antropológica, cf. por exemplo E. Neufeld,
“Purification, Ritual and Hygiene”, in Biblical Archaelogist 34 (1971), 63-66;
L.N. Rosen, “Contagion and Cathaclysm. A Theoretical Approach to the Study of Ritual
Pollution Beliefs”, in African Studies 32 (1973), 229-246.
[11] Veja-se o já clássico estudo de R. Girard, La violenza e il sacro,
Adelphi, Milão, 1980, e Idem, Il capro espiatorio, Adelphi, Milão, 1987.
[12] Cf. W. Burkert, Homo necans. Antropologia del sacrifício cruento
nella Grecia antiga, Boringhieri, Turim, 1981; Idem, Mito e rituale in Grecia.
Struttura e storia, Mondadori, Milão, 1992, especialmente caps. II e III.
[13] Cf., para uma breve, mas eficaz descrição, M. Eliade, Trattato di
storia delle religioni, Boringhieri, Turim, 1972, par. 153, 413 ss.
[14] Veja-se exemplarmente J.A. Barnes,
“Time flies like na Arrow”, in Man 6 (1971), 537-552; E.E. Evans Pritchard,
“Time is not a Continuum”, in M. Douglas (edit.), Rules and Meanings, Pinguin,
Harmondsworth, 1973.
[15] Veja-se o clássico estudo de B.A.
Babcock (edit.), The Reversible World: Symbolic Inversion in Art and Society, Cornell Uni. Press, Ithaca NY, 1978. Um outro ensaio importante que deve ser
levado em conta a respeito dessa categoria de ritos é M. Mckim, “The Feast of
Love”, in M. Singer (edit.), Krishna: Myths, Rites and Attitudes, East-West
Center, Honolulu, 1966.
[16] Cf. M. Gluckman, Rituals of
Rebellion in South East África, Uni. Press, Manchester, 1954; Idem (edit.), Il
rituale nei rapporti sociali, Officina, Roma, 1972.
[17] Cf., para esses ritos, sobretudo A. R. Radcliffe-Brown, “Lê
parentele di scherzo e Altre osservazioni sulle parentele di scherzo”, in Idem,
Struttura e funzione nella società primitiva, Jaca Book, Milão, 1972, onde fundamentalmente
os gracejos fazem parte de uma estrutura de pensamento.
[18] Cf. E. Leach, Cultura e comunicazione, Franco Angeli, Milão, 1981.
[19] A esse propósito, é significativo o título de um dos seus
trabalhos. Cf. E.
Golffman, Frame Analysis: Na Essay on the Organization of Esperience, Harper
and Row, Nova York, 1974.
[20] Sobre essa linha colocam-se, por
exemplo, as reflexões de M. Bloch (edit.), Policial Language and Oratory in
Traditional Society, Academic Press, Nova York, 1975; idem, The Past and the Present:
the Collected Papers of Maurice Bloch, The London School of Economics
Monographs on Social Anthropology, Londres, 1989; S.F. Moore, B.G. Myerhoff
(edit.), Secular Ritual, Van Gorcum, Amsterdã, 1977, onde se faz valer uma
espécie de equivalência entre “ritualização” e “tradicionalização”.
[21] Id., 50.
[22] Cf. R. Girard, La violence et lê
sacré, Grasset, 1972 (tr. It. La violenza e il sacro,
Adelphi, Milão, 1980, aqui 28); cf. também H. Hubert, M. Mauss, Saggio sul
sacrifício, Morcelliana, Bréscia, 1981.
[23] Cfr. V. Turner, op. cit., 267. O texto original de Huxley
encontra-se in J. Huxley, “Il rituale nelle società umane”, in D.R. Cutler
(edit.), La religione oggi, cit., 216-230, aqui em particular 216.
[24] Cf. K. Lorenz, Il considdetto male.
Per una storia naturale dell’aggressione, Garzanti, Milão, 1980, 118.
[25] A observação de Turner, a propósito, é que essa ritualização se
assemelha mais aos comportamentos humanos estilizados que poderíamos chamar de
“comunicativos”, com as boas maneiras, a boa educação, as etiquetas etc. Cf. V.
Turner, op. cit., 267.
[26] Biólogos que não se deixam sugestionar por idéias metafísicas,
como, por exemplo, R.A. Hunde, Biological Bases of Human Social Behavior, Nova
York, 1974 (tr. It. Le basi biologiche del comportamento, Bolonha, 1977), e o
etólogico americano Wilson, que na sua monumental obra só fala de fitnes
referindo-se aos rituais dos animais. Cf. E.O. Wilson, Sociobiologia,
Zanichelli, Bolonha, 1978.
[27]Cf. M.F. Ashley Montangu (edit.),
Man and Aggression, Nova York, 1968; G. Roth (edit.), Kritik der
Verhaltensforschung: Konrad Lorenz und seine Schule, Monique, 1974. Também a visão do sociólogo Parsons não parece admitir muitos
acordos com a biologia. Ele
fala assim do rito: “Thus Ritual is the expression in action as distinct from
thought, of men’s attitudes towards the non empirical aspects of reality”. Cf.
T. Parsons, The Structure of Social Action, 2 vols., Nova York, 1968, 432 (tr. It. La struttura dell’azione sociale, il Mulino, Bolonha, 1987).
Também E. Leach considera que não é possível comparar o ritual humano com
aquele dos animais, vendo uma total incompatibilidade entre as duas
perspectivas. Cf. E.
Leach, “Ritualization in Man in Relation to Conceptual and Social Development”,
in J. Huxley (edit.), op. Cit.; também M. Fortes, no
mesmo contexto, dissocia-se dos etólogos, afirmando que “o rito está ligado à
compreensão das forças inconscientes da existência”. Cf. M. Fortes, “Religious Premises and Logical
Technique in Divinatory Ritual”, in J. Huxley (edit.), cit., 411).
[28] Vejam-se as belas observações que faz Scarduelli: “A etologia ajuda
a entender a gramática do rito, não a sua sintaxe; os ritos humanos têm a
peculiaridade de articular, segundo leis e regras de natureza simbólica, uma
série de ações em que cada uma delas é um conjunto de gestos estereotipados e
exerce o papel de uma unidade de significado; cada unidade tem, porém, um
significado contextual, pois pode ser variadamente combinada com outras
unidades para dar vida a diversos “discursos” rituais. De qualquer modo, é útil
insistir que a rejeição do reducionismo biológico não deve-se traduzir numa
renúncia às contribuições da etologia e muito menos deve induzir a afirmar uma
presumida irredutibilidade do ritual humano aos comportamentos animais, porque
desse modo se terminaria por repropor a contraposição idealista entre Natureza
e Cultura”. Cf. P. Scarduelli, Il rito, cit., 36-37.
[29] Cf. A. Hultkrantz, Ecology of
Religion. Its Scope and Methodology, cit., 224 ss., em
que chama a relação entre religião e cultura-ambiente de environmental.
[30] Vejam-se emblematicamente as teses de M. Muller, um dos primeiros
grandes filósofos e comparatistas no estudo das religiões em suas monumentais
obras. Cf. M. Muller,
Comparative Mythology, Londres, 1859; Idem, Natural Religion, Londres, 1889;
Idem, Physical Religion, Londres, 1898; Idem, Anthropological Religion,
Londres, 1892.
[31] Vejam-se U. Bianchi, Teogonie e cosmogonie, Studium, Roma, 1960.
[32] Para a bibliografia e a confirmação das teses aqui expostas,
veja-se o meu ensaio A. N. Terrin, “Il pasto sacrificale nella storia comparata
delle religioni”, in S. Ubbiali (edit.), Sacrifício: evento e rito, EMP. Pádua,
1998, 263-310.
[33] A.L. Kroeber, Cultural and Natural
Areas of Native North Americana, Uni. of California Press, Berkeley, 1939.
[34] Para essas novas proposições, veja-se em particular o citado F.
Capra, The Web of LIfe, Doubleday-Anchor Book, Nova York, 1996 (tr. It. La rete della vita, Rizzoli,
Milão, 1997); idem, The Turning Point, Simon and Schuster, Nova York, 1982 (tr.
It. Il punto di svolta, Feltrinelli, Milão, 1984).
[35] Veja-se, em especial, S. Freud, “Totem e tabu”, in Opere,
Boringhieri, Turim, 1967-1980, vol. VII.
[36] Tomo emprestada a expressão, que me parece muito sugestiva, de C.
Bell, quando o americano examina as várias facetas da ação e da ação ritual.
Cf. C. Bell, op. cit., 81ss.
[37] A expressão, como vimos, é de C. Bell, que afirma ter unido o
conceito de “processo redentivo”, de Kenelm Burridge, e o conceito de
“hegemonia”, de Antonio Gramsci. Cf. C. Bell, Ritual. Practice and Theory, Oxford Uni. Press, Oxford New
York, 1992, 83.
[38] Para essa idéia “estratégica”, “manipulativa”, do real presente na
ação pragmática, cf. P. Bourdieu, Outline of a Theory of Practice, Cambridge
Uni. Press, Cambridge, 1977, 3-9.
[39] Para uma leitura dessas características do jogo, cf. também Z.
Bauman, Lê sfide dell’etica, cit., 174ss.
[40] Schwartzmann sublinha justamente que, para os antropólogos, essas
regras do jogo servem para vê-lo como uma grande “metáfora interativa”. Cf. H. Schwartzmann, “Play and
Methaphor5”, in J.W. Loy (edit.), The Paradoxes of Play, Leisure Press, West
Point, Nova York, 1982, 26ss.
[41] Cf. S.F. Moore, B.G. Myerhoff
(edit.), Secular Ritual, Assen, van Gorcum, 1977. Num contexto mais amplo, cf.
Também a obra mais recente; J.A. Barnes, A Pack of Lies: Toward a Sociology of
Lying, Cambridge Uni. Press, Cambridge, 1994.
[42] Cf. S, Langer, Sentimento e forma, Feltrinelli, Milão, 1975, 110.
[43] Para essas reflexões – sempre em relação a Merleau-Ponty-veja-se
também M. Merleau-Ponty, Il corpo vissuto 9edit. Por F. Fergnani), Il
Saggiatore, Milão, 1979.
[44] Veja-se emblematicamente M. Eliade, Sacro e profano, Boringhieri,
Turim, 1968; Idem Trattato di storia delle religioni, Boringhieiri, Turim,
1972.
[45] Para essa tese, veja-se W.J. Ong,
“World as View as Event”, in American Anthropologist 71 (1969), 634-647.
[46] Cf. W. James, Principles of
Psichology, Henry, Nova York, 1890, vols. I-IX.
[47] A referência a Husserl é evidente. Servi-me de algumas reflexões do
filósofo de Friburgo sobre o tempo. Cf. E. Husserl, Per la fenomenologia della
coscienza interna del tempo, Franco Angeli, Milão, 18985, em espacial 365 ss.
[48] “Não é improvável – escreve Famer – que a música, ou pelo menos o
som, esteja na origem de toda religião”. Cf. H.G. Farmer, op. cit., 284.
Veja-se também in M. Schneider, op. cit., os caps. “Os deuses são cantos” e
“Uma voz divina cria o mundo e a pronto-humanidade”, 13-35.
[49] Cf., sobre essa temática, M. Schneider, “Die historischen
Grundlagen der musikalischen Symbolik”, in Die Musikforschung 4 (1951),
113-143; veja-se também E. Ansermet, Die Grundlager der Musik im menschichen
Bewusstsein, Munique, 1965. Sobre esse estudo, veja-se, por sua vez, J. Bouman,
“Ernest Ansermet über die Krise in Musik und Religion”, in O. Keiser (edit.),
Denkender Glaube. Festchift für C.H. Ratschow, Berlim/Nova York, 1976.
[50] Cf. E. Hanslich, Del bello musicale, Ricordi, Milão, 1971, que foi
um dos primeiros a defender uma concepção da música baseada na pura forma; cf.
também o grande músico e compositor I. Stravinskij, POÉTICA della musica,
Studio Tese, Pordenone, 1992.
[51] Não me convence, porém, nesse contexto, o pressuposto de F. Staal,
que, aproximando o ritual da música, considera que ambos nada mais sejam que
procedimentos estruturais cujo significado seria totalmente arbitrário. Eu
penso que é preciso atribuir-lhes um significado ao menos com função sugestiva
e no nível simbólico-pragmático, como procurei demonstrar no cap. IV dente livro. Cf. F. Staal,
“Mantras and Bird Songs”, in Journal of the American Oriental Society 105
(1985), 549-558; idem, “The Sound of Religions 33 (1986), 185-224. Também o
recente trabalho de C. Rosen, The Frontiers of Meaning, C. Rosen, 1994 (tr. It. Il pensiero della musica, Garzanti, Milão, 1995), parece caminhar
para essa posição quando escreve: “...a música não reconhecerá nenhum contexto
mais amplo do que ela própria – seja ela social, cultural ou biográfico – ao
qual deva se submeter sem problema. Parafrasenado a solene advertência de
Goethe aos cientistas, poderíamos dizer: não procurem nada atrás das notas, são
elas mesmas a doutrina”. Idem, 96.
[52] É o que diz, por exemplo, W. Burkert, como estudioso do ritual e
das religiões. Cf. W. Burkert, Homo necans. Antropologia dell’uomo cruento
nella Grecia ântica, Boringhieri, Turim, 1981; Idem, Mito e rituale in Grecia.
Struttura e storia, Mondadori, Milão, 1992.
[53] Para essa tese, veja-se em especial S. Langer, Philosophy in a New
Key. A Study in the
Symbolism of Reason, Rite and Art, Harvard Uni Press, Cambridge [Massachusetts],
1969 (tr. it. Filosofia in una nuova chiave.
Linguaggio, mito, rito e arte, Armando Armando, Roma, 1972, em especial 204
ss.). Veja-se o meu estudo: A.N. Terrin, “S. Langer e il rituale come
espressione simbólica”, in Idem, Leitourgìa. Dimensione fenomenológica e
aspetti semiotici, cit.
[54] Cf. J. Quasten, op. cit., 78 ss. Cf., a respeito da relação entre música e teologia, W. Kurzschenkel,
Die theologische Bestimmung der Musik, Trier, 1971, em particular 304.
[55] Cf. as observações bastantes pertinentes e documentadas de J.
Quasten, op. cit. 97 ss.
[56] Para o conjunto, cf. B. Lang (edit.), op. cit., 34 ss, passim.
[57] Tais comparações acontecem sobretudo no nível de “componentes
rituais” como o movimento, a dança, a música, o ritmo, o gesto, o espaço, o
tempo, o jogo, o trabalho e, sobretudo, a “pragmática” da linguagem. Sobre esse
assunto, que aos poucos será objeto também deste estudo, veja-se a ampla
bibliografia de R. L. Grimes, Research in Ritual Studies, cit., especialmente
37-41. Destaco somente dois estudos referentes à pragmática lingüística de
confronto que servem para entender que a linguagem ritual é por si mesma uma
linguagem que precede qualquer outra linguagem: S. Gill, “Performative
Utterances in African Rituals”, in History of Religions 13 (1973), 16-35.
[58] Sobre o assunto já nos alongamos no capítulo sobre Rito e música.
Aqui me refiro sinteticamente à leitura que R.Schechner propõe do mundo
clássico “musical”, seguindo a trilha de G. Murray. Cf. R. Sechechner,
Performance Theory, Routledge, Nova York e Londres 1988, em particular lá onde
o autor propõe um gráfico inspirado justamente nas teses de Murray.
[59] É de difícil elaboração uma visão sintética e bastante
significativa desse longo período. Para as teses, segundo a ordem respectiva exposta no texto, veja-se: A.
Nicoll, Masks, Mimes and Miracles, Cooper Square, Nova York 1963; B.
Hunningher, The Origin of the Theatre, Hill and Wang, Nova York 1961; O.B.
Hardison, Christian Rite and Christian Drama in the Middle Age, John Hopkins
Uni. Press, Baltimore 1965. Para a relação entre música
sacra e profana nei. séc. XIII-XVI”, in A.N. Terrin (edit.), Musica per la
liturgia, EMP Messagero, Pádua 1996, 169-201. É importante levar em contra, em
relação à sociedade e cultura da época, o recente trabalho publicado em
italiano de J. Bossy, Dalla comunità all’individuo. Per uma storia sociale dei
sacramenti nell’Europa moderna, Einaudi, Turim 1998.
[60] Muitos estudiosos contemporâneos colocam-se nessa vertente, como,
por exemplo, a semioticista K. Giurchescu, “La dance comme object sémiotique”,
in Yearbook oh the International Folk Music Council 5 (1974), 175-178, mas
também Judith Hanna, Anya Royce, J. Anderson etc., movem-se nessa mesma linha.
[61] Cf. M. De Martins, Semiótica del teatro. L’analisi testuale dello spettacolo, Bompiani, Milão
1982, 62.
[62] Essas diferenças podem ser interessantes, mas não parecem tão
decisivas como dá a entender Schechner, de quem são tiradas. Cf. R. Schechner,
op. cit., 120.
[63] Veja-se E. Goffman, The
Presentation of Self in Everyday Life, Doubleday, Garden City, 1959 (tr. it. La
vita quotidiana come rappresentazione, il Mulino, Bolonha 1969); Idem,
Interaction Ritual, Doubleday, Garden City 1967 (tr. it. Modelli di
interazione, il Mulino, Bolanha, 1971).
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