Sintiese: Paolo
Cugini
Sobre a vida num mundo líquido-moderno
Quando se patinha sobre o gelo fino, a segurança está
na nossa velocidade.
Ralph Waldo
Emerson, Sobre a prudência.
A “vida líquida”
e a “modernidade líquida” estão intimamente ligadas. A “vida líquida” é uma
forma de vida que tende a ser levada à frente numa sociedade líquido-moderna.
“Líquido-moderna” é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus
membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a
consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir. A liquidez da vida e da
sociedade se alimentam e se revigoram mutuamente. A vida líquida, assim como a
sociedade líquido-moderna, não pode manter a forma ou permanecer em seu curso
por muito tempo.
Numa sociedade
líquido-moderna, as realizações individuais não podem solidificar-se em posses
permanentes porque, em um piscar de olhos, os ativos se transformam em
passivos, e as capacidades, em incapacidades. As condições de ação e as
estratégias de reação envelhecem rapidamente e se tornam absoletas antes de os
atores terem uma chance de aprendê-las efetivamente. (pág.7)
Prever
tendências futuras a partir de eventos passados torna-se cada dia mais
arriscado e, freqüentemente, enganoso. É cada vez mais difícil fazer cálculos
exatos, uma vez que os prognósticos seguros são inimagináveis.
A vida líquida é
uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante. As preocupações
mais intensas e obstinadas que assombram esse tipo de vida são os temores de
ser pego tirando uma soneca, não conseguir acompanhar a rapidez dos eventos,
ficar para trás, deixar passar as datas de vencimento, ficar sobrecarregado de
bens agora indesejáveis, perder o momento que pede mudança e mudar de rumo
antes de tomar um caminho sem volta. A vida líquida é uma sucessão de
reinícios, e precisamente por isso é que os finais rápidos e indolores. (pág.8)
As chances mais
amplas de vitória pertencem às pessoas que circulam perto do topo da pirâmide
do poder global, para as quais o espaço pouco significa e a distância não é
problema. Pessoas que se consideram em casa em muitos lugares, mas em nenhum
deles em particular. Tão leves, lépidas e voláteis quanto o comércio e as
finanças cada vez mais globais e extraterritoriais que as assistiram no parto e
que sustentam sua existência de nômades. (pág.10)
Ligações frouxas
e compromissos revogáveis são os preceitos que orientam tudo aquilo em que se
engajam e a que se apegam. (pág.11)
A leveza e a
graça acompanham a liberdade – de movimento, de escolha, de deixar de ser o que
se é e de se tornar o que ainda não se é. Os que estão do lado receptor da nova
mobilidade planetária não têm essa liberdade. Não podem contar com a clemência
daqueles em relação aos quais prefeririam manter distância nem com a tolerância
daqueles de quem gostariam de estar mais próximos. (pág.12)
A eternidade é o
óbvio rejeitado. Mas, não a infinitude. Enquanto esta durar, o presente
permanece, o dia de hoje pode-se esticar para além de qualquer limite e
acomodar tudo aquilo que um dia se almejou vivenciar apenas na plenitude do
tempo. (pág.14 e 15)
Velocidade, e
não duração, é o que importa. Com a velocidade certa, pode-se consumir toda a
eternidade do presente contínuo da vida eterna. A incerteza de uma vida mortal
em um universo imortal foi finalmente resolvida: agora é possível parar de se
preocupar com as coisas eternas sem perder as maravilhas da eternidade. Com
efeito, ao longo de uma vida mortal pode-se extrair tudo aquilo que a
eternidade poderia oferecer. Talvez não se possa eliminar a restrição temporal
da vida mortal, mas pode-se remover (ou pelo menos tentar) todos os limites das
satisfações a serem vividas antes que se atinja o outro limite, o irremovível. (pág.15)
A vida líquida é
uma vida de consumo. Projeta o mundo e todos os seus fragmentos animados e
inanimados como objetos de consumo, ou seja, objetos que perdem a utilidade (e
portanto o viço, a atração, o poder de sedução e o valor) enquanto são usados.
Molda o julgamento e a avaliação de todos os fragmentos animados e inanimados
do mundo segundo o padrão dos objetos de consumo. (pág.16 e 17)
As partes do
mundo impróprias para o serviço, ou não mais capazes de realizá-lo, tornam-se
irrelevantes e desassistidas, ou são descartadas e varridas para longe. Essas
partes são apenas os detritos do zelo auto-reformista, sendo a lata de lixo seu
destino natural. Pela lógica da vida líquida, preservá-las seria irracional.
Para o próprio bem dessas partes, o direito de serem preservadas não pode ser
facilmente defendido, e muito menos provado, pela lógica da vida líquida.
É por essa razão
que o advento da sociedade líquido-moderna significou a morte das principais
utopias da sociedade e, de modo mais geral, da idéia de “boa sociedade”. Se a
vida líquida estimula algum interesse pela transformação social, a reforma
postulada tem como principal objetivo empurrar a sociedade ainda mais em
direção à rendição, uma a uma, de todas as suas pretensões de um valor próprio,
com exceção do valor de uma força policial a preservar a segurança do “eus” que
se auto-reformam, e à aceitação e ao entrincheiramento do princípio da
compensação (versão política da “garantia de seu dinheiro de volta”) caso o
policiamento fracasse ou seja considerado inadequado. (pág.19 e 20)
1
O indivíduo sitiado
A individualidade é uma tarefa que a sociedade
dos indivíduos estabelece para seus membros – como tarefa individual, a ser
realizada individualmente por indivíduos que usam recursos individuais. E, no
entanto, essa tarefa é autocontraditória e autofrustrante: na verdade, é
impossível realizá-la.
Justamente com o
desafio da individualidade, contudo, a sociedade dos indivíduos fornece a seus
membros os meios de conviver com essa impossibilidade – ou, em outras palavras,
de fechar os olhos à essencial e incurável impossibilidade da tarefa, ainda que
o lote das tentativas fracassadas de realizá-la continue crescendo e se torne
cada vez mais denso. (pág.29)
Como tarefa, a
individualidade é o produto final de uma transformação societária disfarçada de
descoberta pessoal. O emergir da individualidade assinalou um progressivo
enfraquecimento, a desintegração ou destruição da densa rede de vínculos
sociais que amarrava com força a totalidade das atividades da vida. (pág.31)
A idéia de
“indivíduo” autoconstruído representou uma necessidade desse tipo quando os
modernos marinheiros tomaram o lugar dos jangadeiros pré-modernos. Com a
comunidade em retirada e seu sistema imunológico, destinado a evitar a
contaminação por problemas, se transformando ele mesmo num problema, não era
mais possível continuar cego e surdo à escolha da direção e à necessidade de
manter-se no caminho. A “forma como são as coisas” virou “ a forma como as
coisas devem ser feitas”. A sociedade (essa “comunidade imaginada” que
substitui a comunidade oculta das vistas em sua própria luz ofuscante, ou um
ambiente social que não precisava do, e nem teria sobrevivido ao, uso da
imaginação a serviço da autovigilância) representava a nova necessidade (sem
escolha) como um direito humano (duramente conquistado). (pág.32)
Cada membro da
sociedade individualizada encontra alguns obstáculos no seu caminho para a
individualidade de facto. Essa não é fácil de conseguir, muito menos de
preservar. Entre a rápida sucessão de fichas simbólicas de identidade comumente
usadas e endêmica instabilidade das escolhas que recomendam, a busca da
individualidade significa uma luta para toda a vida. (pág.35)
Não admira que a
individualização tenha seus descontentes e insatisfeitos. Juntamente com a
linha de produção de consumidores felizes, há uma outra, menos intensamente
anunciada, mas não menos eficientes, daqueles desqualificados, simultaneamente,
do banquete do consumo e da corrida pela individualização. (pág.38)
A polarização já
foi longe demais para que ainda seja possível elevar a qualidade de vida da
população planetária ao nível dos países mais privilegiados do Ocidente. Como
aponta John Reader, “se cada pessoa na Terra vivesse com tanto conforto quanto
um cidadão da América do Norte, precisaríamos não de apenas um, mas de três
planetas para suprir a todos”.[1]
Sendo esse o
caso, a individualidade é e deverá continuar sendo por muito tempo um
privilégio. Um privilégio dentro de cada uma das sociedades, quase autônomas,
em que o jogo da auto-afirmação é levado à frente por meio da separação entre
os consumidores “emancipados”, plenamente desenvolvidos – lutando para comprar
para compor e recompor suas individualidades singulares a partir das “edições
limitadas” dos últimos modelos da alta-costura -, e a massa sem rosto dos que
estão “presos” e “fixos” a uma identidade sem escolha, atribuída ou imposta,
sem perguntas, mas em todo caso “superdeterminada”. (pág.39)
Permitam-me
repetir: a imagem da “cultura híbrida” é um verniz ideológico sobre a
extraterritorialidade alcançada ou proclamada. Isenta da soberania de unidades
políticas territorialmente circunscritas, tais como as redes extraterritoriais habitadas pela elite
global, a “cultura híbrida” busca sua identidade na liberdade em relação a
identidades designadas e inertes, na licença para desafiar e menosprezar os
tipos de marcadores, rótulos ou estigmas culturais que circunscrevem e limitam
os movimentos e as escolhas do resto das pessoas, presas ao lugar: os “locais”.
Para os que a
praticam e usufruem, a nova “indeterminação” do ego tende a ser referida pelo
nome de “liberdade”. Pode-se argumentar, porém, que ter uma identidade
“indeterminada”, que é eminentemente “até segunda ordem”, não constrói um
estado de liberdade, mas o recrutamento obrigatório e interminável para uma
guerra de libertação que, em última instância, nunca é vitoriosa: uma batalha
diária, sem folga permitida, para livrar-se, para esquecer. Quando a identidade
deixou de ser um legado incômodo – (impossível de descartar), mas confortável
(impossível de ser levada embora) – de ser uma vez por todas um ato de
comprometimento que se espera e anseia que dure pela eternidade, e passou a ser
a tarefa de toda a vida de indivíduos órfãos pela perda de heranças e privados
de um céu verossímil para acreditar – ela deve ter transformando, e de fato o
fez, num esforço eternamente inconcluso, assim como irritantemente ambivalente,
para lavar as mãos em relação a antigos compromissos e escapar à ameaça de vir
se envolver num comprometimento em relação ao qual os outros prazerosamente, e
com sucesso, lavariam as mãos. A liberdade das pessoas em busca da identidade é
parecida com a de um ciclista; a penalidade por parar de pedalar é cair, e
deve-se continuar pedalando apenas para manter a postura ereta. A necessidade
de continuar na labuta é um destino sem escolha, já que a alternativa é
apavorante demais para ser considerada.
Vagando de um
episódio para outro, vivendo cada um deles de olhos fechados a suas
conseqüências e mais ignorante ainda em relação a seu destino, guiada pelo
impulso de apagar a história passada em vez de pelo desejo de traçar o mapa do
futuro, a identidade está presa para sempre no presente, tendo agora negada sua
significação permanente como alicerce do futuro. A identidade luta para abraçar
as coisas “sem as quais não se pode estar nem ser visto” hoje, embora
totalmente consciente de que, muito provavelmente, estas se transformarão em
coisas “com as quais não se pode estar nem ser visto” amanhã. O passado de cada
identidade está salpicado de latas de lixos em que foram despejadas, uma por
uma, as coisas indispensáveis de dois dias atrás, transformadas nos fardos
incômodos de ontem.
O único “cerne
identitário” que se pode ter certeza de que vai emergir da mudança contínua não
apenas são e salvo, mas provavelmente até reforçado, é o homo eligens – o
“homem que escolhe” (embora não o “homem que escolheu”!): um ego
permanentemente impermanente, completamente incompleto, definitivamente
indefinido – e autenticamente inautêntico. Sobre o empreendimento
líquido-moderno, Richard Sennett escreveu: “Negócios perfeitamente viáveis são
destruídos e abandonados, empregados capazes são lançados à deriva em vez de
ser recompensados, simplesmente porque a organização tem de provar ao mercado
que é capaz de mudar”.[2]
Substitua “negócios” por “identidades”, “empregados capazes” por “propriedades
e parceiros” e “organização” por “self” – e você terá uma descrição fiel do
destino que define o homo eligens.
O homo eligens e o mercado de commodities
coexistem em perfeita simbiose. Ambos não viveriam para ver o dia seguinte se
não fossem apoiados e nutridos pela companhia um do outro. O mercado não
sobreviveria caso os consumidores se apegassem às coisas. Para sua própria
sobrevivência, não pode tolerar clientes comprometidos e leais ou que apenas se
mantenham numa trajetória consistente e coesa que resista a desvios e evite
saídas colaterais. (pág.46,47 e 48)
Em suma, a busca
de dois valores, liberdade e segurança, ambos amplamente cobiçados, já que
indispensáveis a uma vida digna e feliz, converge no atual discurso sobre a
identidade. As duas linhas de busca notoriamente se evadem à coordenação, cada
qual tentando a conduzir a um ponto além daquele em que a outra busca se
arrisca a ser travada, interrompida ou mesmo invertida. Embora não se possa
conceber uma vida digna ou satisfatória sem uma mistura tanto de liberdade
quanto de segurança, dificilmente se consegue um equilíbrio satisfatório entre
esses dois valores: se as tentativas do passado, inumeráveis e invariavelmente
frustradas, servem para alguma coisa, esse equilíbrio pode muito bem ser
inalcançável. Um déficit na segurança repercute na angustiante incerteza e,
agora, fobia de que o “excesso de liberdade” – beirando uma permissão para o
“tudo é válido” – inevitavelmente será nutrido. Um déficit de liberdade, por
outro lado, é vivenciado com um debilitante excesso de segurança (a que os
sofredores dão o codinome de “dependência”).
O problema,
porém, é que, quando falta segurança, os agentes livres são privados da confiança
sem a qual dificilmente se pode exercer a liberdade. Se uma segunda linha de
trincheiras, poucas pessoas a não ser os aventureiros mais ousados têm
suficiente coragem para enfrentar os riscos de um futuro desconhecido e
incerto, e, sem uma rede segura, a maioria se recusará a dançar na corda bamba
e se sentirá profundamente infeliz se forçada a fazê-lo contra a vontade.
Quando, por
outro lado, o que falta é a liberdade, a segurança parece escravidão ou prisão.
Pior ainda, quando se é submetido a essa situação por muito tempo sem intervalo
e sem ter experimentado um outro modo de ser, mesmo a prisão pode sufocar o
desejo de liberdade, juntamente com a capacidade de praticá-la, e então se
transformar no único hábitat aparentemente natural e habitável – não sendo mais
percebida como opressiva. (pág.50 e 51)
Qualquer aumento
na liberdade pode ser traduzido como um decréscimo na segurança e vice-versa.
As duas leituras se justificam, e qual delas se move para o centro da
preocupação pública num determinado momento depende de outros fatores além dos
elegantes argumentos apresentados para justificar a escolha. (pág.52)
Cada vez mais,
os apelos por liberdade e a apresentação dessa liberdade como cura universal
para os males presentes e futuros, assim como as demandas por afastar e
empurrar do caminho quaisquer restrições que tolham os movimentos daqueles que
esperam fazer bom uso do fato de ser estar movendo, levantam as suspeitas de
parecer uma ideologia da elite global emergente. Recaem sobre ouvidos moucos de
uma grande parcela da população do planeta e estão se transformando rapidamente
num grande obstáculo ao diálogo planetário.
Simplificando um
pouco, mas apenas um pouco, podemos dizer que, enquanto os beneficiários de
nossa globalização perigosamente desequilibrada, instável e desigual vêem a
liberdade desenfreada com o melhor meio de alcançar sua própria segurança, é
numa horrorosa e lamentável insegurança que as vítimas dessa mesma
globalização, pretendidas ou colaterais, suspeitam que o principal obstáculo
está em se tornar livres (e fazer qualquer uso da liberdade se esta lhes for
concebida). Parafraseando Jean Anouilh, poder-se-ia dizer que, mesmo que todos
os homens pensem que a causa da liberdade está do seu lado, só os riscos e
poderosos sabem que está. A carne se transforma em veneno do outro lado da mesa
(ou do campo de batalha, como pode ser o caso e, cada vez com mais freqüência,
é). (pág.53 e 54)
2
De mártir a herói e de herói a celebridade
A martirologia
substitui e afastou gradualmente a mitologia do “pecado original” comum das
religiões arcaicas. Também reverteu a mensagem contida na mitologia arcaica –
contando a história dos primórdios do ato de violência não do ponto de vista dos
assassinos, não da maneira como um “bando de matadores impenitentes” teria
relatado sua ação malévola, mas do ponto de vista das vitimas. Em vez de
justificar e enobrecer a violência cometida contra um inimigo infiel
(geralmente um inimigo maligno, uma criatura estranha fisicamente defeituosa)
como um sacrifício necessário para salvar a comunidade da perdição, como faziam
os mitos arcaicos, as histórias de martírio preservadas na cultura pós-Abraão
condenavam o chamado sacrifício como um ato de atrocidade abominável. Os dois
tipos de história evocavam a multidão, cometiam, incitavam ou aplaudiam o
assassinato. Mas se os mitos arcaicos condenavam as vítimas e glorificavam a
multidão acuante e linchadora, as histórias de martírio denunciavam e
censuravam as más intenções e a cegueira da multidão, ao mesmo tempo em que
celebravam a retidão e a probidade de sua vítima – culpavam as turbas por
perseguirem inocentes. (pág.56 e 57)
Os mártires são
vítimas que sabiam disso – e preferiram morrer a mentir, conferindo desse modo
a sua morte a significação de um testemunho de que há verdades que não podem
ser caladas por gargantas grosseiras, não importa em que número. (pág.57 e 58)
Os mártires são
pessoas que enfrentam desvantagens esmagadoras. Não apenas no sentido de que
sua morte é quase certa, mas também de que seu derradeiro sacrifício
provavelmente não será valorizado pelos espectadores, muito menos receberá
deles o respeito que merece: talvez precise esperar muito tempo até mesmo para
ser reconhecido como um sacrifício em prol de uma boa causa.
Concordando com
o martírio, as potencias vítimas da horda furiosa colocam a lealdade à verdade
acima de todos os cálculos de benefícios ou ganhos terrenos (materiais,
tangíveis, racionais e pragmáticos), sejam eles genuínos ou putativos,
individuais ou coletivos.
É isso que separa
o mártir do herói moderno. O melhor que os mártires poderiam esperar em termos
de ganho seria a derradeira prova de sua integridade moral, do arrependimento
de seus pecados, da redenção de sua alma. Os heróis, por outro lado, são
modernos – calculam perdas e ganhos, querem que seu sacrifício seja
recompensado. (pág.58 e 59)
A sociedade de
consumo líquido-moderna estabelecida na parte rica do planeta não tem espaço
para mártires ou heróis, já que mina, despreza e milita contra os dois valores
que desencadearam sua oferta e demanda. Em primeiro lugar, milita contra o
sacrifício das satisfações imediatas em função de objetivos distantes e,
portanto, contra a aceitação de um sofrimento prolongado tendo em vista a
salvação na vida após a morte – ou, na versão secular, retarda a gratificação
agora em nome de mais ganhos no futuro. Em segundo, questiona o valor de
sacrificar satisfações individuais em nome de uma “causa” ou do bem-estar de um
grupo (na verdade, nega a existência de grupos “maiores que a soma das partes”
e de causas mais importantes do que a satisfação individual). Em suma, a
sociedade de consumo líquido-moderna despreza os ideais do “longo prazo” e da
“totalidade”. Num ambiente que promove os interesses do consumidor e é por eles
sustentando, nenhum dessas ideais mantém o antigo poder de atração, encontra
apoio na experiência cotidiana, está afinado com as reações treinadas ou se
harmoniza com a intuição do senso comum. Assim sendo, tais ideais tendem a ser
substituído pelos valores da gratificação instantânea e da felicidade
individual. (pág.63 e 64)
3
Cultura: rebelde e ingovernável
Os criadores de
cultura não têm escolha: são obrigados a conviver com esse paradoxo. Não
importa o barulho com que protestem contra as pretensões e a interferência dos
gerentes, precisam procurar um modus com-vivendi com a gerência para não
afundar na irrelevância. Podem escolher entre gerentes com diferentes
propósitos e que tratem a liberdade da
criação cultura segundo diferentes projetos – mas decerto não entre aceitar e
rejeitar o gerenciamento
A cultura mira,
por assim dizer, “o pensamento” de tudo aquilo que atualmente passa por
“realidade”. Não se preocupa com o que por acaso tenha sido posto na agenda do
dia e definido como o imperativo do momento. Pelos menos se esforça por
transcender o impacto limitador da “atualidade” assim definida, e luta para se
livrar de suas demandas. (pág.76)
Por séculos a
cultura viveu numa incômoda simbiose com o gerenciamento, lutando
desconfortavelmente, por vezes sufocando nos braços dos gerentes – mas também
correndo para eles em busca de abrigo e emergindo do encontro revigorada e
reforçada. A cultura sobreviverá à mudança do gerenciamento? Ser-lhe-á
permitido algo mais que uma existência efêmera, como a de uma borboleta? Será
que o novo gerenciamento, fiel ao novo estilo de administração, limitará o seu
encargo ao despojamento de recurso? Será que o cemitério dos “eventos
culturais”, falecidos ou abortados, vai substituir o declive ascendente como
metáfora adequada para a cultura? (pág.84)
4
Procurando refúgio na Caixa de Pandora
- ou
medo segurança e a cidade
O solo sobre o
qual nossas expectativas de vida têm de se apoiar é reconhecidamente instável –
tal como nossos empregos e as empresa que os oferecem, nossos parceiros e redes
de amizade, a posição que ocupam na sociedade e a auto-estima e auto-confiança
dela decorrentes. O “progresso”, que já foi a mais extrema manifestação de
otimismo radical, promessa de felicidade universalmente compartilhada e
duradoura, deslocou-se para o pólo de previsão exatamente oposto, não-tópico e
fatalista. Agora significa uma ameaça de mudança inflexível e inescapável que
pressagia não a paz e o repouso, mas a crise e a tensão contínuas, impedindo
qualquer momento de descanso; uma espécie de dança das cadeiras em que um
segundo de desatenção resulta em prejuízo irreversível e exclusão inapelável.
Em vez de grandes expectativas e doces sonhos , o “progresso” evoca uma insônia
repleta de pesadelos de “ser deixado para trás”, perder o trem ou cair da
janela de um veículo em rápida aceleração.
Incapazes de
reduzir o ritmo espantoso da mudança, muito menos de prever e controlar sua
direção, nós nos concentramos no que podemos ou acreditamos poder, ou no que
nos garantem que podemos influenciar: tentamos calcular e minimizar o risco de
nós pessoalmente, ou das pessoas que atualmente nos são mais próximas e mais
queridas, sermos atingidas pelos incontáveis e indefiníveis perigos que o mundo
opaco e seu futuro incerto nos reservam. (págs.91 e 92)
Podemos afirmar
que as fontes de perigo se mudaram para o coração da cidade. Amigos, inimigos e
sobretudo os ardilosos e misteriosos forasteiros que circulam ameaçadoramente
entre os dois extremos agora se misturam e se esbarram nas ruas das metrópoles.
A guerra contra a insegurança, os perigos e os riscos agora estão dentro da
cidade, onde se definem os limites dos campos de batalha e se traçam as linhas
entre as frentes. Trincheiras e bunkers fortemente blindados destinados a
separar os estranhos, mantê-los à distância e barrar sua entrada estão se
tornando rapidamente um dos aspectos mais visíveis das aglomerações urbanas
contemporâneas – embora assumam diversas formas e seus arquitetos façam o
possível para fundir suas criações à paisagem, “normalizando” desse modo o
estado de emergência em que vivem os moradores viciados em segurança.
As formas mais
comuns de fortalezas defensivas são as “comunidades fechadas” (com ênfase,
segundo os folhetos dos corretores imobiliários e as práticas dos moradores, no
“fecho”, não na “comunidade”), cada vez mais populares, com seguranças
obrigatórias e monitores de vídeo na entrada. O número de “comunidades
fechadas” nos Estados Unidos já passa de 20 mil, enquanto sua população é
superior a 8 milhões de pessoas. O significado de “fechada” torna-se a cada ano
mais elaborado: um condomínio da Califórnia chamado Desert Island, por exemplo,
é cercado por um fosso de
A invisibilidade
planejada e produzida é uma tendência que se espalha numa arquitetura urbana
guiada pelo medo. Outra tendência é a intimidação, seja por um exterior
atemorizante cuja aparência de fortaleza fica ainda mais desconcertante e
humilhante devido a uma profusão de guaritas de verificação e segurança
uniformizados altamente ostensivos, seja pela insolente e arrogante exibição de
ornamentos provocativamente ricos, extravagantes e intimidantes. (págs.97 e 98)
A insegurança
alimenta o medo. Não surpreende que a guerra contra a insegurança ocupe lugar
de destaque na lista de prioridades dos planejadores urbanos; ou pelo menos
estes acreditam que deveria e, se indagados, insistem nisso. O problema, porém,
é que quando a insegurança se vai, a espontaneidade, a flexibilidade, a
capacidade de surpreender e a oferta de aventuras, principais atrações da vida
urbana, também tendem a desaparecer das ruas da cidade. A alternativa à
insegurança não é a bênção da tranqüilidade, mas a maldição do tédio. É
possível superar o medo e ao mesmo tempo fugir do tédio? Pode-se suspeitar que
esse quebra-cabeça é o maior dilema a confrontar os planejadores e arquitetos
urbanos – um dilema para o qual ainda não se encontrou solução convincente,
satisfatória e incontestada, uma questão para a qual talvez não se possa achar
uma resposta plenamente adequada, mas que (talvez pela mesma razão)
continuará estimulando arquitetos e
planejadores a produzir experimentos cada vez mais radicais e invenções cada
vez mais ousadas. (pág.101)
Desde o início,
as cidades têm sido lugares em que estranhos convivem em estreita proximidade,
embora permanecendo estranhos. A companhia de estranhos é sempre assustadora
(ainda que nem sempre temida), já que faz parte da natureza dos estranhos,
diferentemente tanto dos amigos quanto dos inimigos, que suas intenções,
maneiras de pensar e reações a condições comuns sejam desconhecidas ou não
conhecidas o suficiente para que se possa calcular as probabilidades de sua
conduta. Uma reunião de estranhos é um lócus de imprevisibilidade endêmica e
incurável. Pode-se dizer isso de outra forma: os estranhos incorporam o risco.
Não há risco sem pelo menos algum resquício de medo de um dano ou perda, mas
sem risco também não há chance de ganho ou triunfo. Por essa razão, os ambientes
carregados de risco não podem deixar de ser vistos como locais de intensa
ambigüidade, o que, por sua vez, não deixa de evocar atitudes e reações
ambivalentes. Os ambientes repletos de risco simultaneamente atraem e repelem,
e o ponto em que uma reação se transforma no seu oposto é eminentemente
variável e mutante, virtualmente impossível de apontar com segurança, que dirá
de fixar. (pág.102)
Os espaços
públicos são, por esses motivos, os locais em que a atração e a repulsão
completam entre si em proporções que se alteram de modo rápido e contínuo. São,
portanto, locais vulneráveis, expostos a ataques esquizofrênicos ou
maníaco-depressivos, mas também os únicos em que a atração tem uma chance de
superar ou neutralizar a repulsão. (págs.102 e 103)
Sejamos
preciosos: isso se aplica não exatamente a quaisquer espaços públicos, mas
apenas àqueles que se rendem tanto à ambição modernista de aniquilar a nivelar
as diferenças quanto à tendência pós-modernistas de calcificar as diferenças
por meio da separação e do estranhamento mútuos. Isso se aplica aos espaços
públicos que reconhecem o valor criativo e de vivacidade da diferença, ao mesmo
tempo em que encorajam as diversidades a se engajar num diálogo significativo.
(pág.103)
5
Os consumidores na sociedade líquido-moderna
A sociedade de
consumo tem por base a premissa de satisfazer desejos humanos de uma forma que
nenhuma sociedade do passado pôde realizar ou sonhar. A promessa de satisfação,
no entanto, só permanecerá sedutora enquanto o desejo continuar irrealizado; o
que é mais importante, enquanto houver uma suspeita de que o desejo não foi
plena e totalmente satisfeito. Estabelecer alvos fáceis, garantir a facilidade
de acesso a bens adequados aos alvos desejos “legítimos” e “realistas” – isso
seria como a morte anunciada da sociedade de consumo, da indústria de consumo e
dos mercados de consumo. A não-satisfação dos desejos e a crença firme e eterna
de que cada ato visando a satisfazê-los deixa muito a desejar e pode ser
aperfeiçoado – são esses os volantes da economia que tem por alvo o consumidor.
A sociedade de
consumo consegue tornar permanente a insatisfação. Uma forma de causar esse
efeito é depreciar e desvalorizar os produtos de consumo logo depois de terem
sido alçados ao universo dos desejos do consumidor. Uma outra forma, ainda mais
eficaz, no entanto, se esconde da ribalta: o método de satisfazer toda
necessidade/desejo/vontade de uma forma que não pode deixar de provocar novas
necessidades/desejos/vontades. O que começa como necessidade deve terminar como
compulsão ou vício. (págs. 106 e 107)
Essa paciência
cujo tempo de duração foi radicalmente reduzido conduz à busca de fins rápidos
e radicais para relacionamentos desagradáveis. Mas isso pode apresentar
problemas específicos: para a maioria de nós, dizer a um parceiro que vá embora
porque ele ou ela não fornece mais benefícios, ou os benefícios que fornece não
são mais excitantes, pode, afinal, mostrar-se mais angustiante do que livrar-se
de um carro velho ou de um computador defasado. (pág.115)
Corpo de consumo
O tipo de
“consumidor ideal” que o mercado de consumo procura pode ser exemplificado por
uma fábrica trabalhando a todo vapor 24 horas por dia, sete dias por semana,
para garantir uma sucessão ininterrupta de desejos particulares de curta
duração e altamente descartáveis. (pág.121)
Já que a idéia de
boa forma oferece apenas vagas e incertas instruções práticas sobre o que fazer
e o que evitar, e como nunca se pode estar certo de que as instruções não vão
ser alteradas ou mesmo ser revogadas antes que se possa implementá-las na sua
totalidade, lutar pela boa forma significa não ter descanso; de qualquer
maneira, nunca imaginar que se possa descansar com a consciência tranqüila e
sem apreensão. A pessoa devota à causa da boa forma está em constante
movimento. Deve estar sempre mudando e pronta a novas mudanças. O lema do nosso
tempo é “flexibilidade”: todas as formas devem ser maleáveis, todas as
condições, temporárias, todos os formatos , passíveis de remodelagem. Reformar,
de modo obsessivo e devotado, é tanto um dever quanto uma necessidade.
(pág.124)
Infância de consumo
Ter filhos custa
dinheiro – muito dinheiro. Ter um filho acarreta (ao menos para a mãe) uma
considerável perda de renda e simultaneamente um considerável crescimento dos
gastos familiares (diferentemente do que ocorria no passado, um filho é pura e
simplesmente um consumidor – não contribui para a renda familiar). A Daycare
Trust, uma instituição de caridade, calcula que o preço médio de uma vaga numa
creche para uma criança de menos de dois anos chegou a 134 libras por semana no
final de 2002, em relação à renda familiar, que atingiu a média de 256 libras
por semana. [3] A
remuneração média de uma babá que trabalha o dia inteiro reduziria o orçamento
familiar em 18.546 libras por ano no interior, chegando a 27.320 libras em
Londres. Como concluiu Brendan Benard, secretário geral do Trades Union
Congress, “a impossibilidade de trabalhar porque o custo da assistência à
infância continua muito distante do orçamento familiar está condenando centenas
de milhares de famílias grandes a uma vida de pobreza”. Centenas de milhares de
famílias já estão condenadas a viver na pobreza. Outras centenas de milhares
observam o destino delas e tomam nota. (pág.136)
Vivemos agora
numa sociedade de consumidores. O hábitat natural dos consumidores é o mercado,
lugar de comprar e vender. No caso dos futuros consumidores, a respostas pronta
e sincera ao fascínio das mercadorias e o impulso compulsivo e vicioso de
comprar são as principais virtudes a ser plantadas e cultivadas; a indiferença
à sedução administrada pelo mercado ou a falta de recursos para reagir
adequadamente a suas exigências são pecados mortais que precisam ser
erradicados ou punidos com o banimento.
Assim sendo,
para ajustar seus membros ao novo hábitat natural (agora os shopping centers e
a rua em que as mercadorias de grife compradas nas lojas são apresentadas ao
público para dotar seus portadores do valor dessas mesmas mercadorias), a
sociedade dos consumidores focaliza seu “reprocessamento da infância” no
gerenciamento dos espíritos. Não importa os corpos – treiná-los é coisa do
passado. A grande novidade, como diz Dany- Robert Dufour, é a conquista e
realocação da alma.[4]
(pág.145 e 146)
6
Aprendendo a andar sobre a areia movediça
Passaram-se mais
de dois milênios desde que os antigos sábios da Grécia inventaram a noção de
Paidéia para que a idéia de “educação por toda a vida” se transformasse de um
oxímoro (uma contradição em termos) num pleonasmo (algo como “manteiga
amanteigada” ou “ferro metálico”...). Essa notável transformação ocorreu bem
recentemente, nas últimas décadas, sob o impacto do ritmo de mudança
drasticamente acelerado no ambiente social em que os dois principais atores da
educação – professores e discípulos – precisavam atuar.
No instante em
que uma bala é disparada de uma arma de fogo, a direção e a distância a ser
percorridas já foram decididas pela forma e posição da arma e pela quantidade
de pólvora dentro da cápsula; pode-se calcular, com pouca ou nenhuma chance de
erro o ponto que o projétil vai atingir, e pode-se escolher esse ponto
movendo-se o cano da arma ou alterando a quantidade de pólvora. Essas
qualidades dos mísseis balísticos fizeram deles armas ideais para ser
utilizadas na guerra de trincheiras – em que os alvos permaneciam enterrados em
suas trincheiras ou bunkers e os projéteis eram os únicos corpos em movimento.
(pág.152)
As mesmas
qualidades os tornam inúteis, contudo, quando alvos se forem mais rápidos que
os projéteis, e ainda mais caso se mover – particularmente se forem mais
rápidos que os projéteis, e ainda mais caso se movam de forma errática e
imprevisível, derrubando os cálculos preliminares da trajetória planejada.
Faz-se necessário então um míssil inteligente que possa mudar de direção no
meio do caminho, dependendo das circunstâncias, que seja capaz de detectar
imediatamente os movimentos do alvo, suas alterações de posição e velocidade –
e dessas informações deduzir o ponto exato em que suas trajetórias se cruzarão.
Esses mísseis inteligentes não podem suspender a coleta e o processamento de
informações enquanto viajam, muito menos concluí-las – seu alvo nunca pára de
se mover e mudar de direção e velocidade, de modo que a marcação do local de
encontro deve ser constantemente atualizada e corrigida. (pág.153)
Podemos concluir
que os mísseis inteligentes seguem uma estratégia de “racionalidade
instrumental”, embora em sua versão liquidificada, fluída, por assim dizer, ou
seja, abandonando o pressuposto de que o fim será dado, estável e estático, de
modo que só os meios precisam ser calculados e manipulados. Mísseis ainda mais
inteligentes não serão limitados a um alvo pré-selecionado, mas os escolherão
enquanto prosseguem. O que vai guiá-los é mais a consideração de qual será o
máximo que poderão alcançar dadas as suas capacidades técnicas e que potencial alvo
estão mais equipados para atingir. Seria, podemos dizer, um caso de
“racionalidade instrumental” invertida: os alvos são selecionados com os
mísseis no ar, e são os meios disponíveis que decidem que “objetivo” acabará
sendo selecionado. Nesse caso, a “inteligência” do míssil e sua eficácia se
beneficiariam caso o equipamento fosse de uma natureza mais “generalista” ou
“descomprometida”, sem focalizar uma categoria especifica de fins, nem estar
superajustada para atingir um tipo de alvo particular.(pág.153)
Os mísseis
inteligentes, tais como seus primos balísticos mais velhos, aprendem no
caminho. De modo que o que se precisa fornecer-lhes desde o início é a
capacidade de aprender, e aprender depressa. Isso é obvio. O que, no entanto, é
menos visível, embora não menos cruel que a capacidade de aprender rapidamente,
é a capacidade de esquecer instantaneamente o que se aprendeu antes. Os mísseis
inteligentes não seriam inteligentes se não fossem capazes de “mudar de idéia”
ou revogar as decisões prévias sem hesitação ou lamento... Não devem acalentar
excessivamente as informações que adquirem nem desenvolver de maneira alguma o
hábito de se comportar de acordo com essas informações. Todas as informações
que recebem envelhecem rapidamente e, se não forem prontamente descartadas,
podem desorientar em vez de fornecer uma orientação confiável. O que os
“cérebros” dos mísseis inteligentes não podem jamais esquecer é que o conhecimento
que adquirem é eminentemente descartável, bom apenas até segunda ordem e só
temporariamente útil, e que a garantia do sucesso é não descuidar do momento em
que o conhecimento adquirido não tem mais utilidade e precisa ser jogado fora,
esquecido e substituído. (pág.153 e 154)
Os filósofos da
educação da era sólido-moderna viam os professores como lançadores de mísseis
balísticos e os instruíram sobre como garantir que seus produtos permanecessem
estritamente no curso predeterminado pelo impulso original. E não admira que,
nos estágios iniciais da era moderna, os mísseis balísticos eram a maior
realização da inventividade técnica humana. Prestavam um serviço impecável a
quem desejasse conquistar e dominar o mundo tal como ele era. Como Hilaire
Belloc declarou confidencialmente, referindo-se aos nativos africanos,
“Aconteça o que acontecer, nós temos a arma de Maxim, e eles não” (a arma
inventada por Hiram Stevens Maxim, permitam-me lembrar, era uma máquina para
lançar um grande número de balas num curto espaço de tempo, e só funcionava se
houvesse muitas dessas balas à mão). Na verdade, porém, essa visão da tarefa do
professor e do destino do discípulo era muito mais antiga do que a idéia de
“míssil balístico” e do que a Era Moderna que o inventou – há um antigo
provérbio chinês que precede de dois mil anos a modernidade, mas ainda é citado
pela Comissão das Comunidades Européias, no limiar do século XXI, em apoio ao
seu programa “Aprendizagem por toda a vida”: “Planejando para um ano, plante
milho. Planejando para uma década, plante árvores. Planejando para vida, treine
e eduque pessoa.” Só como a entrada nos tempos líquido-modernos é que a antiga
sabedoria perdeu seu valor pragmático e as pessoas preocupados em aprender e
com a promoção da aprendizagem conhecida pelo nome de “educação” tiveram de
mudar sua atenção dos mísseis balísticos para os inteligentes.
Mais
precisamente, no ambiente líquido-moderno a educação e a aprendizagem, para
terem alguma utilidade, devem ser contínuas e realmente por toda a vida. Nenhum
outro tipo de educação ou aprendizagem é concebível; a “formação” dos eus ou
personalidades é impensável de qualquer outra forma que não seja uma reformação
permanente e eternamente inconclusa. (pág. 154 e 155)
Pode-se dizer
que em nenhuma outra época o ato da escolha foi tão exacerbadamente
autoconsciente como agora, conduzindo como o é em condições de dolorosa mais
incurável incerteza, sob a ameaça constante de “ficar para trás” e ser excluído
do jogo e impedido de obter qualquer retorno pelo fracasso em atender às novas
demandas. (pág.155)
Hoje em dia, o
conhecimento precisa ser constantemente renovado, as próprias profissões
precisam mudar; do contrário, todo o esforço para ganhar a vida vai dar em
nada.”[5]
Em outras palavras, o impetuoso crescimento do novo conhecimento prévio se
combinam para produzir ignorância humana em grande escala e para reabastecer
continuamente, talvez até ampliar, o estoque. (pág.156)
No ambiente
liquído-moderno, a educação e a aprendizagem, para terem alguma utilidade, devem
ser permanentes e realmente ocorrer ao longo da vida. Espero que agora possamos
ver que uma das razões, talvez a decisiva, pela qual elas devem ser permanentes
e ocorrer ao longo da vida é a natureza da tarefa com que nos confrontamos na
estrada compartilhada que leva ao “capacitamento” – tarefa que é como deve
exatamente ser a educação: contínua, sem fim, ocorrendo ao longo da vida.
É assim mesmo
que a educação deve ser para que os homens e mulheres do mundo liquído-moderno
possam perseguir seus objetivos existenciais com pelo menos um pouco de
engenhosidade e autoconfiança, e esperar ter sucesso. Mas há outra razão, menos
discutida, embora mais poderosa do que aquela que temos discutido até agora:
não se refere a adaptar as habilidades humanas ao ritmo acelerado da mudança
mundial, mas a tornar esse mundo em rápida mudança mais hospitaleiro para a
humanidade. (pág.163 e 164)
Nesse cenário de ignorância, é fácil sentir-se
perdido e infeliz - e mais fácil ainda é
estar perdido e infeliz sem perceber isso. Como Pierre Bourdieu memoravelmente
observou, a pessoa que não tem domínio do presente não pode sonhar em controlar
o futuro. (pág.166)
A ignorância
produz a paralisia da vontade. A pessoa não sabe o que lhe está reservado nem
tem como avaliar os riscos. Para autoridades impacientes com as restrições
impostas aos detentores do poder por uma democracia viva e animada, esse tipo
de impotência do eleitorado, produzido pela ignorância, e a descrença
generalizada na eficácia do dissenso, juntamente com a falta de disposição para
se envolver politicamente, são fontes de capital político necessários e
bem-vindas: a dominação por meio as ignorância e da incerteza deliberadamente
cultivadas é mais confiável e barata do que um governo com base num profundo
debate dos fatos e num longo esforço de atingir a concordância quanto à verdade
e às formas menos arriscadas de proceder. (pág.166)
A ignorância
política tem a capacidade de se autoperpetuar, e uma corda feita de ignorância
e inação vem a calhar quando a voz da democracia corre o perigo de ser sufocada
ou ter suas mãos atadas.
Precisamos da
educação ao longo da vida para termos escolha. Mas precisamos dela ainda mais
para preservar as condições que tornam essa escolha possível e a colocam ao
nosso alcance. (pág.166 e 167)
7
O pensamento em tempos sombrios
(Arendt e Adorno revisitados)
O passado tende
a ser destruído de modo incansável e sistemático, tornando praticamente
impossível a redenção das esperanças, de modo que os indivíduos “são reduzidos
à mera seqüência de experiências instantâneas que não deixam traço, ou então
cujo traço é odiado como irracional, supérfluo ou ‘suplantado’ no sentido
literal do termo”.[6]
Quando os indivíduos se tornam assim reduzidos, é pouco provável que busquem
segurança na esperança , ou seja, numa causa que ainda deve consolidar-se na
realidade. (pág.175)
A lógica da
responsabilidade planetária visa a, ao menos em principio, confrontar os
problemas gerados globalmente de maneira direta – no seu próprio nível. Parte
do pressuposto de que soluções permanentes e verdadeiramente eficazes para os
problemas de âmbito planetário só podem ser encontradas e funcionar por meio da
renegociação e reforma das redes de interdependências e interações globais. Em
vez de se voltar à limitação dos prejuízos e benefícios locais, resultantes das
guinadas caprichosas e acidentais das forças econômicas globais, deve-se buscar
em novo tipo de ambiente global em que os itinerários das iniciativas
econômicas tomadas em qualquer lugar do planeta não sejam mais extravagantes,
guiados apenas pelos ganhos momentâneos, sem prestar atenção aos efeitos
indesejados e às “baixas colaterais”, nem dar importância às dimensões sociais
dos cálculos de custo-benefício. Em suma, essa lógica está voltada, citando
Habermas, para o desenvolvimento de uma “política que possa nivelar-se com os
mercados globais”.
Nós sentimos,
imaginamos, suspeitamos o que deve ser feito. Mas não podemos conhecer o
aspecto e a forma que isso acabará assumindo. Podemos estar bem certos,
contudo, de que esse aspecto não será familiar. Será bem diferente de tudo
aquilo a que estamos acostumados.
[1] John Reader, Cities (Heinemann, 2004), p.303,
citado M. Wackernagel e William E. Reeves, Our ecological Footprint: Reducing
Human Impact on Earth (New Society Publishers, 1996), p.13-14.
[2] The Corrosion of Character: The
Personal Consequences of Work in the New Capitalism (W.W. Norton, 1982), p.51.
[3] Ver “Childcare rises to 25 per cent of income”,
Guardian, 26 jan 2004.
[4] Dufour, L’Art de réduire lês têtes,
p.10.
[5] Jacek Wojciechowski, “Studia
podyplomowe”, Fórum Akademickie, 5 (2004)
[6] Ibid., p.216.
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