sexta-feira, 21 de julho de 2023

FÍLON DE ALEXANDRIA - ANTOLOGIA

 



A REDESCOBERTA DO INCORPÓREO E DA TRASNCENDÊNCIA

 

II. FILO E O PRELÚDIO DE UMA GRANDE VIRADA DO PENSAMENTO OCIDENTAL

 

(Síntese de Pe Paolo Cugini. )

(Digitação: Neilka Vieira)

 

A primeira formulação do problema das relações entre a Revelação divina e a filosofia, ou seja, entre a fé e a razão.

 

[...] De fato, tratando-se desses problemas [sobre os destinos do homem e sobre sua sorte escatológica], só é possível fazer uma dessas duas coisas: ou aprender de outro qual é a verdade; ou descobri-la por si próprios; ou, se isso é impossível, aceitar, entre os raciocínios humanos, o melhor e menos fácil de refutar, e sobre ele, como sobre uma jangada, afrontar o risco da travessia do mar da vida: a menos que se possa fazer a viagem de modo mais seguro e com menor risco sobre uma nave mais sólida, ou seja, confiando-se a uma divina revelação[1].

 

Como as ciências sobre as quais se baseia a cultura geral (τα εγκυκλια) contribuem para o aprendizado da filosofia (φιλοσοφια), assim também a filosofia contribui para a aquisição da sapiência (σοφια). De fato, a filosofia é o esforço para alcançar a sapiência, e a sapiência é a ciência das coisas divinas e humanas e das causas destas. Portanto, como a cultura geral é serva (δουλη) da filosofia, assim também a filosofia é serva da sapiência (φιλοσοφια δουλη σοφιας)[2].

 

III. A METAFÍSICA, A TEOLOGIA E A ONTOLOGIA DE FILO.

 

A superação dos pressupostos materialistas e imanentistas dos sistemas helenísticos e a reafirmação do incorpóreo e da transcendência.

 

“E o Senhor Deus disse: não é bom que o homem esteja só: façamo-lhe uma ajudante semelhante a ele” (Gênesis 2,18). Por que razão, ó profeta, não é bom que o homem esteja só? Porque, diz ele, é bom que somente o Uno esteja só; e Deus, sendo Único, é Uno em si mesmo e nada é semelhante a Deus; assim, porque é bom que o Ser seja Uno, já que ao Uno se refere o bem, não poderia ser bom que o homem ficasse só. Mas que Deus seja só pode-se explicar também do seguinte modo, ou seja, pelo motivo de que nem antes da geração do mundo havia qualquer coisa junto a Ele: de fato, não tem necessidade de nada absolutamente. Melhor, porém, é esta explicação: Deus é Uno e Único, não é um composto, é uma natureza simples (φυσις απλη), enquanto cada um de nós e todas as outras coisas que foram geradas são múltiplas. Eu, por exemplo, sou muitas coisas: alma, corpo, e na alma, parte não-racional e parte-racional e, depois, no corpo, quente e frio, pesado ou leve, seco e únido. Ao invés, Deus não é um composto, nem é constituído por muitas partes, mas é isento de mistura com outro. De fato, se algo se acrescentasse a Deus, deveria ser superior, ou inferior ou igual a Ele. Mas não há nada que seja igual ou superior a Deus, e nada que seja inferior pode acrescentar-se a Ele; do contrário, Ele seria diminuído; mas se isso fosse possível, Ele seria também corruptível, o que não é nem lícito pensar[3].

 

Nem mesmo todo o cosmo poderia constituir um lugar adequado e uma morada para Deus, porque Ele é o lugar para si próprio, e Ele é pleno de si mesmo, e Ele, Deus, basta a si próprio, e é Ele quem preenche e contém todas as outras coisas, que são pobres, solitárias e vazias, sem ser por sua vez contido por nada, sendo Ele, o Uno e o Todo[4].

 

Não existe uma única espécie de ímpios e de sacrilégios, mas muitas e de diferentes naturezas. Uns afirmam que as Idéias incorpóreas são um nome vazio, privado de verdadeira realidade, eliminando dos seres a sua essência mais necessária, ou seja, o modelo arquetípico de todas as qualidades essenciais, segundo o qual todas as coisas recebem forma e medida. As sagradas tábuas da lei os denunciam como “mutilados”. De fato, como quem foi mutilado perdeu a qualidade e a forma e não é senão, para dize-lo propriamente, matéria informe, assim a doutrina que suprime as Idéias desorganiza todas as coisas e as conduz à realidade anterior à distinção dos elementos, ou seja, a realidade privada de forma e de qualidade. E o que poderia ser mais absurdo? Segundo a doutrina da Idéias, de fato, Deus gerou todas as coisas, sem contudo ter contato direto – não era lícito, com efeito, que o Ser feliz e bem-aventurado tocasse a matéria ilimitada e confusa -, mas valeu-se das Potências incorpóreas, cujo verdadeiro nome é Idéias, para que todo gênero de coisas assumisse a forma que lhe convinha. Ao invés, a doutrina que suprime as Idéias introduz muita desordem e confusão; de fato, eliminando as Idéias das quais derivam as qualidades, eliminam também a qualidade[5].

 

A nova concepção de Deus.

 

As obras são sempre, de algum modo, indícios dos artífices. Quem, de fato, à vista de estátuas ou de quadros não pensou no escultor ou no pintor? Quem, à vista de roupas, naves, casas, não pensou no tecelão, no armador, no arquiteto? E quando alguém entra numa cidade bem ordenada, na qual os negócios civis são muito bem organizados, que poderá pensar senão que esta cidade é governada por boas autoridades? Assim, o que chega à cidade verdadeiramente grande, que é esse cosmo, vendo os montes e as planícies repletos de animais e de plantas, as torrentes dos rios e dos riachos, a extensão dos mares, o clima bem temperado, a regularidade do ciclo das estações, e depois, o sol e a lua dos quais dependem o dia e a noite, as revoluções e os movimentos dos outros planetas e das estrelas fixas e de todo céu, não deverá formar-se com verossimilhança e, antes, com necessidade a noção do Criador, Pai e também Senhor? De fato, nenhuma das obras de arte se produz a si mesma, e esse cosmo implica suma arte e sumo conhecimento, de modo que deve ter sido produzido por um artífice dotado de conhecimento e de perfeição absolutos. Desse modo formamos a noção da existência de Deus[6].

É impossível que exista em ti um intelecto disposto de modo a ter a função de cabeça, à qual obedece toda a comunidade dos órgãos do corpo e à qual se submete cada um dos sentidos e que, ao invés, o cosmo, que é a obra mais bela, maior e mais perfeita e do qual todas as outras coisas constituem simples partes, seja sem soberano que o tenha unido e o governe com justiça. E, se o soberano é indivisível, não deves admirar-te. Nem mesmo o intelecto que existe em ti é visível. O que reflete sobre essas coisas tentando explica-las sem partir de longe, mas de perto, de si mesmo e das coisas que lhe estão ao redor, chegará de modo claro à conclusão de que o cosmo não é o primeiro Deus, mas que é obra do primeiro Deus e Pai de todas as coisas, o qual, mesmo sem ter ele mesmo forma, torna visíveis todas as coisas, pequenas ou grandes, e torna manifestas as naturezas. Não considerou digno deixar-se compreender pelos olhos do corpo, talvez porque não seria coisa santa que um ser mortal tivesse contato imediato com o eterno, talvez também por fraqueza da nossa vista. De fato, ela não teria podido acolher a luz que provém do Ser, pois não é nem mesmo capaz de olhar diretamente os raios do sol[7].

 

Existe também uma inteligência mais perfeita e mais purificada, iniciada nos grandes mistérios, que conhece a Causa não a partir das coisas criadas, como se conhece pela sombra o objeto que a produz, mas, superado o criado, recebe uma clara manifestação do Incriado, de modo que, a partir dele, ela O compreende, assim como à sua sombra, ou seja, o Logos e este cosmo. É Moisés quem diz: “Manifesta-te a mim, para que te veja claramente” (Êxodo 33,13); não te manifestes a mim através do céu, da terra, da água, do ar ou, em geral, através de uma criatura; que eu possa ver a tua Idéia não em outro, mas em Ti, ó Deus, já que as manifestações nos seres criados se perdem enquanto no ser Incriado permanecem duráveis, estáveis e eternas. Por isso Deus chamou Moisés e falou com ele[8].

 

É preciso esclarecer com uma imagem como acontece essa visão direta. Não é, por acaso, com o próprio sol que vemos este sol sensível? E não é com os próprios astros que vemos os astros? E, em geral, não se vê a luz com a luz? Do mesmo modo, também Deus, que é luz de si próprio, só é contemplado mediante. Ele mesmo, sem que nada mais coopere ou seja capaz de cooperar para a clara compreensão da sua existência. Ora, os pesquisadores que se esforçam por conhecer o Incriado e o Criador de todas as coisas, partindo da dualidade partindo da unidade, porque esta é o princípio; buscam, ao invés, a verdade os que se representam Deus com Deus, a luz com a Luz[9].

 

A tua solicitude é digna de louvor e eu a aprovo, mas o teu pedido não é adequado a nenhuma das coisas criadas. Eu concedo coisas adequadas a quem as deve receber: de fati, nem tudo o que para mim é fácil dar, é possível que o homem o receba. Portanto, a quem é digno da minha graça eu concedo todos aqueles dons que é capaz de acolher. Mas a compreensão da minha essência não só a natureza humana, mas também o céu e o mundo inteiro não poderiam contê-la[10].

 

“Moisés tomou a tenda e a plantou fora do campo” (Êxodo 33,7): ele a pôs longe do acampamento do corpo, esperando poder ser desse modo apenas um suplicante e um perfeito servo de Deus. Ele disse que essa tenda chama-se tenda do Testemunho, e com toda precisão: a tenda d’Aquele que É existe e não só é dominada. Entre as virtudes, de fato, a que é própria de Deus existe verdadeiramente, porque só Deus subsiste no ser (εος μονος εν τω ειναι υφεστηκεν); por essa razão necessária Moisés dirá n’Ele: “Eu sou Aquele que É” (Êxodo 3, 14), enquanto as coisas que vêm depois d’Ele não são segundo o ser, mas são consideradas subsistir apenas por opinião[11].

 

A primeira formulação filosófica da doutrina da criação.

 

Alguns, admirando o cosmo mais do que o seu Criador, proclamaram-no incriado e eterno, e, de maneira falsa e ímpia, acusaram o Criador de grande inatividade, enquanto, ao contrário, era preciso reverenciar as suas Potências de Criador e de Pai e não exaltar o cosmo além da justa medida. Mas Moisés, que tinha alcançado o vértice da filosofia e tinha aprendido mediante oráculos muitas verdades relativas à realidade e às mais essenciais, sabia que é absolutamente necessário que entre os seres exista, de um lado, uma causa ativa e, de outro, uma causa passiva, e sabia que a causa ativa é o Intelecto universal à ciência e até mesmo superior ao próprio bem e ao belo, enquanto a causa passiva é por si imóvel e inanimada e, porém, movida, informada e animada pelo Intelecto, transformou-se na obra mais perfeita, que é este cosmo. Os que afirmam que ele é ingênito não se dão conta de estão cortando pela raiz o que é mais útil e necessário à piedade, ou seja, a Providência[12].

É uma potência [do  Ser supremo] que cria o mundo e que tem como fonte o que é realmente bem. Se, de fato, alguém quer buscar a causa pela qual esse universo foi produzido, parece-me que não falhará na sua tentativa ao dizer o que também um dos antigos filósofos [i. é, Platão] disse, isto é, que o Pai e o Criador era bom: por graça da sua bondade. Ele não recusou a excelência da sua própria natureza a uma realidade que não tinha por si nada de belo, mas que podia se tornar todas as coisas. De fato, esta era por sim sem ordem, sem qualidade, privada de vida, de homogeneidade, mas plena de heterogeneidade, de discórdia e de desarmonia; ela recebeu, porém, uma inversão é uma transformação que a levaram a ter as propriedades exatamente contrárias e melhores: ordem, qualidade, vida, homogeneidade, acordo, harmonia, e tudo o que pertence à Idéia mais elevada[13].

[...] Alguns compreenderam que a arte com a qual Deus criou todas as coisas, sem sofrer nem tensão nem distensão, mas permanecendo sempre a mesma no supremo limite da perfeição, produziu cada um dos seres de modo perfeito, tendo o Criador utilizado todos os números e todas as Idéias para alcançar a perfeição. Ele julgou “para o pequeno e para o grande”, como diz Moisés (Deuteronômio 1,17), quando criou e formou todas as coisas, sem que pela obscuridade da matéria fosse tirado qualquer coisa da capacidade do artífice, nem que pelo esplendor dela fosse acrescentado. De fato, também os artesãos, os que são valorosos, quaisquer que sejam as matérias das quais se servem, boas ou más, desejam produzir obras dignas de elogio. Alguns, antes, movidos pelo amor ao belo, fizeram com matérias de menor valor obras mais engenhosas das que foram feitas com matérias mais valorosas, tendo-se proposto compensar com a contribuição da sua habilidade técnica a deficiência da matéria. Diante de Deus nenhuma coisa material tem valor; por conseqüência, tornou partícipe da sua própria arte tudo de modo igual. Por isso se diz também nas Sagradas Escrituras: “Deus viu todas as coisas que tinha feito, e eram todas boas” (Gênesis 1,31), e tudo o que recebe o mesmo louvor tem o mesmo valor diante de quem louva. Mas Deus não louvou a matéria que tinha sido objeto da sua elaboração, privada de vida, desordenada e destinada a dissolver-se, e, ademais, por si corruptível, irregular e desigual, mas louvou as obras produzidas pela sua arte e realizadas mediante uma Potência única, igual e uniforme e mediante uma ciência igual e idêntica[14].

 

[...] Deus produziu o mundo, a sua obra perfeitíssima, a partir do não-ser ao ser (εκ του μη οντος εις το ειναι)[15].

[...] Deus suscitou a totalidade das coisas do não-ser[16].

Deus, quando gerou todas as coisas, não as tornou simplesmente visíveis, mas produziu o que antes não era (α προτερον ουκ ην, εποιησεν), sendo Ele não apenas Demiurgo, mas Criador (ου δημιουργος μονον αλλα και κτιοτης αυτος ων)[17].

 

O justo, buscando a natureza dos seres, faz essa descoberta única e excelente: todas as coisas são graça a Deus (χασιν οντα του εου τα συμπαντα), e nada é dom da criatura, porque não é sua posse, enquanto tudo é posse de Deus, e por isso, também, a graça só a Ele pertence. Aos que buscam o princípio da criação poder-se-ia com todo direito responder que é a bondade e a graça de Deus (αγαοτης και χαρις του), com a qual ele beneficiou o gênero que veio depois d’Ele: de fato, tudo o que existe no cosmo e o próprio cosmo é um dom, um benefício, uma graça de Deus[18].

 

Tudo é graça de Deus: terra, água, ar, fogo, sol, astros, céu, todos os animais e todas as plantas. Deus não faz nenhuma graça a si mesmo, porque não tem necessidade disso, mas dá o mundo ao mundo, dá as partes às próprias partes, e, reciprocamente, umas às outras, e, ademais, ao todo[19].

 

A doutrina do “Logos”.

 

Sobre isso [refere-se ao exemplo do arquiteto que quer construir a cidade] deve-se pensar que vale também para Deus, que, tendo pensado em fundar a grande cidade [i. é, o universo], pensou primeiro os tipos e com eles formou o cosmo inteligível para produzir depois o cosmo sensível, servindo-se daquele como modelo. Portanto, como o projeto de uma cidade forjado na mente do arquiteto não ocupava um lugar exterior, mas era impresso na alma do artífice, assim, do mesmo modo, o mundo constituído pela Idéias não podia ter outro lugar senão o Logos divino, que organizou essa realidade. Que outro lugar poderia haver senão a Potência de Deus, que fosse capaz de acolher e conter não digo todas, mas uma única Idéia como essa?[20]

E pouco depois, na mesma obra, se lê:

[...] Para falar mais claramente, pode-se dizer que o cosmo inteligível não é outra coisa senão o Logos de Deus no ato de formar o mundo, já que a cidade inteligível não é outra coisa senão o cálculo do arquiteto que já pensa em fundar a cidade[21].

 

A doutrina das “potências”

 

Quando a alma é toda iluminada por Deus, como sob do meio-dia, e toda ela repleta em todas as partes de luz espiritual, torna-se isenta de sombra em meio aos raios que se difundem ao seu redor, ela capta uma tríplice representação de um único objeto, de um objeto como Ser, e dos outros dois como sombras que se projetam daquele; algo desse gênero acontece também àqueles que se encontram na luz sensível: de fato, as coisas, quer estejam paradas, quer se encontrem em movimento, amiúde projetam dupla sombra. Não se crerá, porém, que se tratando de Deus, a palavra “sombras” seja usada em sentido próprio. Trata-se apenas de um termo usado em sentido impróprio para uma representação mais clara da coisa que se está explicando, porque na verdade não é assim. Com efeito (como poderia dizer alguém que estivesse o mais próximo possível da verdade) o centro é o Pai de todas as coisas, o qual nas Sagradas Escrituras é chamado com o nome próprio de Aquele que É, enquanto as que estão de um lado e do outro são as Potências mais antigas e mais próximas do Ser: uma é a Potência criadora, a outra é a Potência Real. a Potência Criadora é denominada Deus [εος deriva, como se disse, de τιημι], porque mediante ele o Ser fez e organizou o universo; a Potência Real é denominada Senhor, porque é justo que quem fez o criado o governe e o domine. Portanto, o centro, acompanhado como de guardas pelas duas Potências, oferece à inteligência que tem a visão dela, ora a representação de uma só coisa, ora de três: de uma só, quando a inteligência se tenha completamente purificado, e, tendo transcendido não só a multiplicidade dos números, mas também a díade que é a mais próxima da unidade, prende-se à Idéia que é isenta de mistura e não é combinada com nada e que, por si, não tem absolutamente necessidade de nada; de três, ao invés, quando, não estando ainda iniciada nos grandes mistérios, participa ainda apenas das cerimônias menores e ainda não é capaz de captar o Ser por si e sem nada de outro, mas só através da sua atividade regente. Essa “segunda navegação”, como a chamam, apresenta-se como parte de uma crença cara a Deus, mas a primeira maneira não é simplesmente parte de uma crença, mas é a própria crença cara a Deus, ou, antes, mais originária que a crença e mais venerável do que qualquer crença, ela é a própria Verdade[22].

 

[O oráculo divino] dizia-me que Deus é verdadeiramente um só, mas as Potências primeiras e supremas são duas, ou seja, a Bondade e a Soberania, e que com a sua Bondade criou todas as coisas e com a Soberania rege o criado. Uma terceira potência, que reúne as outras duas, está no meio delas e é o Logos: é com o Logos, de fato, que Deus é tanto Soberano como Bom[23].

 

II. A ANTROPOLOGIA E A MORAL DE FILO

 

Nova concepção da natureza do homem, ou o homem em três dimensões.

 

Eis a passagem na qual Filo fornece a interpretação de Gênesis 1;26ss.:

Depois de todas as outras coisas, como se disse, Moisés diz que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1,26). E isso é muito bem dito, porque nada do que foi criado é mais semelhante a Deus que o homem. Mas ninguém imagine essa semelhança referindo-se a alguma característica do corpo: de fato, nem Deus tem forma humana, nem o corpo humano tem forma divina. A palavra “imagem” é aqui referida ao intelecto (νους) que é o guia da alma (ψυχη). De fato, o intelecto que existe em cada homem particular foi feito à imagem daquele único Intelecto universal como de acordo com um arquétipo, e de certo modo é como um Deus para quem o leva em si e em si o encerra como simulacro divino. A relação que o grande Soberano tem relativamente a todo o universo, como parece, corresponde à que o intelecto humano tem relativamente ao homem. O intelecto é por si invisível, enquanto vê todas as coisas; tem uma essência incognoscível, enquanto compreende a essência de todas as outras coisas. Mediante as múltiplas artes e as ciências ele desvela todas as vias mestras, procede através da terra e do mar, escrutando o que há num outro elemento. Depois, elevando-se como por força de asas, contempla a atmosfera e os seus fenômenos e depois se lança mais para cima, na direção do éter e das revoluções celestes e, tomando parte na dança dos planetas e das estrelas fixas segundo as leis de uma música perfeita, seguindo o amor pela sapiência que dirige os seus passos, depois de ter dominado do alto toda a realidade sensível, nesse ponto alcança o inteligível[24].

E eis a passagem na qual Filo interpreta Gênesis 2,7:

Moisés disse em seguida: “Deus plasmou o homem tornando a poeira do solo e soprou sobre o seu rosto um sopro de vida” (Gênesis, 2,7). Essa nova retomada do tema mostra de modo claríssimo a grande diferença entre o homem plasmado desse modo e o homem que foi precedentemente gerado à imagem de Deus [i.é, na narração de Gênesis 1,26ss.]. De fato, o homem plasmado é sensível, é participante da qualidade sensível, é composto concretamente de corpo e alma, é homem e mulher, de natureza mortal. Ao invés, o homem feito à imagem de Deus é uma Idéia, um Gênero, um Selo; é inteligível, incorpóreo, nem homem nem mulher, de natureza incorruptível. Diz, portanto, Moisés, que a constituição do homem sensível e individual é dada pela composição de substância terrestre e de espírito divino (πνευματος ειου). De fato, o corpo foi criado pelo Artífice que tomou a poeira e com ela plasmou uma figura humana, enquanto a alma não deriva de nada criado, mas diretamente do Pai e Senhor do universo. Com efeito, o que Ele soprou nele foi o Espírito divino (πνευμα ειον), que dessa natureza feliz e bem-aventurada destacou como uma colônia para junto de nós, em benefício da nossa raça, a fim de que, embora sendo mortal na sua parte visível, pudesse se tornar imortal na sua parte invisível. Por isso, com boa razão, pode-se dizer que o homem constitui a fronteira entre a natureza mortal e a imortal, participando, na medida do necessário, de uma e de outra, e que foi criado mortal e imortal, mortal segundo o corpo e imortal segundo o pensamento[25].

 

“E Deus plasmou o homem, tomando a poeira do solo e soprou no seu rosto um sopro de vida e o homem foi gerado como alma vivente” (Gênesis 2,7). Existem dois gêneros de homem celeste e outro o homem terrestre [= o homem paradigma ideal e o homem real]. O homem celeste, enquanto criado à imagem de Deus, não participa da substância corruptível e terrestre [= enquanto paradigma ideal e incorpóreo], enquanto o homem terrestre foi tirado de uma matéria extensa, que Moisés chamou de poeira. Por isso, ele diz que o homem celeste não foi “plasmado”, mas “modelado à imagem” de Deus, e que o homem terrestre é um ser plasmado não gerado pelo Artífice. Mas é preciso considerar que o homem da terra é intelecto (νους) que penetra no corpo, porém, enquanto ainda não penetrou nele. Esse tipo de intelecto é na realidade terrestre e corruptível (γεωδης και φαρτος), se Deus não sopra nele uma potência de verdadeira vida. Nesse caso ele é “gerado” e não “plasmado” como alma que não é inerte e privada de forma, mas uma alma realmente pensante e vivente[26].

 

A palavra “soprou dentro” significa: inspirou, ou pôs uma alma nas coisas inanimadas [= vivificou as coisas sem vida]; não caiamos, com efeito, no absurdo de crer que Deus para soprar se valha de órgãos da boca e das narinas; Deus não só tem forma humana, mas não tem qualificações. A expressão tem um sentido mais profundo. Existem três coisas: a) o que sopra, b) o que recebe, c) o que é soprado. Ora, a) o que sopre é Deus; b) o que recebe é o intelecto (νους); c) o que é soprado é o Espírito (πνεμα). Que deriva desses três elementos? Dos três elementos deriva uma união, tendo Deus estendido a Potência que vem d’Ele ao sujeito, por meio do Espírito. E por que motivo, senão para que recebêssemos uma noção d’Ele? De fato, como a alma poderia pensar Deus se Ele não a tivesse inspirado e não a tivesse tocado, na medida do possível? O intelecto humano não teria ousado subir tanto a ponto de captar a natureza de Deus, se Deus mesmo não o tivesse atraído a Si, na medida em que o intelecto humano podia ser atraído, e não o tivesse marcado segundo as Potências suscetíveis de serem conhecidas por Ele[27].

 

A superação do intelectualismo ético da filosofia grega e a proclamação da fé como suprema virtude.

 

Existem duas convicções opostas e contraditórias entre si: uma que atribui tudo ao intelecto [= à razão humana], como se ele fosse o supremo guia de tudo, no raciocinar, no sentir, no estar em movimento ou em repouso; a outra submete-se a Deus como a seu Criador. Símbolo da primeira convicção é Caim, chamado “possesso”, porque acreditava possuir todas as coisas; da outra é símbolo Abel: explica-se, de fato, esse nome como se significasse “aquele que remete tudo a Deus”[28].as da terra e do mar, escrutando o que h, procede atravso, como parece, corresponde

 

O Pai criador considera digna da liberdade apenas a razão e desatou os nós da necessidade para liberta-la, dando-lhe aquela parte que ela era capaz de receber daquilo que a Ele pertence como próprio em máximo grau, que é a livre vontade (το εκουσιον). De fato, os outros seres vivos, em cujas almas não existe a parte destinada à liberdade, ou seja, o intelecto, foram dados, subjugados e postos a serviço dos homens como escravos aos senhores; ao invés, o homem, tendo recebido a faculdade de querer e de operar por própria vontade, cumprindo na maior parte dos casos ações livres, com boa razão lastima as más ações que cumpre premeditadamente e louva as ações retas que cumpre por sua espontânea vontade. Quando aos outros seres, plantas e animais, nem são louváveis os bons frutos nem lastimáveis os maus – porque receberam os movimentos e as mudanças, nos dois sentidos, sem escolhe-los e sem quere-los – mas só a alma humana, que recebeu de Deus o movimento voluntário (την εκουσιον κινησιν) e só por esta razão tornou-se semelhante a Ele, tendo sido, tanto quanto possível, libertada da necessidade, senhora má e terrível, poderia ser acusada justamente de não tratar adequadamente o seu libertador. E é por isso, exatamente, que a justa razão deve sofrer o juízo inexorável que cabe aos libertos ingratos[29].

 

O itinerário para Deus, a união mística com Ele e o êxtase.

 

Existem coisas muito mais divinas que o homem por natureza, como, para ficar nas mais visíveis, os astros dos quais se compõe o universo. Do que se disse, é claro que a sapiência é ao mesmo tempo ciência e intelecção das coisas mais excelsas por natureza[30].

 

Desci, pois, do céu, e, depois de ter descido, não voltai novamente a fazer inquisições sobre a terra, sobre o mar, sobre os rios, sobre as espécies de animais e de plantas, mas indagai apenas sobre vós e sobre a vossa natureza sem buscar outra morada senão vós mesmo. De fato, examinado a fundo o que pertence à morada que vos é própria, o que ordena e o que obedece, o que é animado e o que é inanimado, o que é racional e o que é sem razão, o que é imortal e o que é mortal, o que é melhor e o que é pior, obtereis diretamente uma ciência clara de Deus e das suas obras[31].

 

Do mesmo modo em que migraste dos outros lugares, foge e sai também de ti mesmo. Que significa isso? Não conserves o teu pensamento, a tua razão e a tua compreensão para ti mesmo, oferece e dá também essas coisas. Àquele que é causa do exato pensar e da compreensão não enganadora. Essa tua oferta acolherá o mais sagrado dos lugares sagrados[32].

 

Assim são as coisas: quem compreendeu a fundo a si próprio e grandemente desesperou, vendo claramente a nulidade que é própria de todas as coisas criadas, e quem desespera de si próprio conhece Aquele que é[33].

O momento justo para a criatura encontrar o seu Criador acontece quando ela reconheceu a própria nulidade[34].

É a gloria de uma alma extraordinariamente grande superar o criado, superar os seus limites, agarra-se apenas ao incriado, segundo os sagrados preceitos, nos quais está preciso “aderir a Ele” (deuteronômio 30,20). Por isso, aos que se apegam a Ele e o servem ininterruptamente, Ele dá em troca a Si próprio como herança[35].

 



[1] Platão, Fédon, 85 c-d.

[2] Congr., 79.

[3] Leg. all., II, 1-3.

[4] Leg. all., I, 44.

[5] Spec., I, 327-329.

[6] Spec., I, 32-35.

[7] Abr., 74-76.

[8] Leg. all., III, 100s

[9] Praem., 45s.

[10] Spec., I, 43s.

[11] Deter., 160.

[12] Opif., 7-9.

[13] Opif., 21s.

[14] Her., 156-160.

[15] Mos., II, 267.

[16] Leg. all., III, 10.

[17] Somn., I, 76.

[18] Leg. all., III, 78.

[19] Deus, 107.

[20] Opif., 19s.

[21] Opif., 24.

[22] Abr., 119-123, Aui “segunda navegação” tem um sentido totalmente inusual.

[23] Cher., 27.

[24] Opif., 69s.

[25] Opif., 134s.

[26] Leg. all., I, 31s.

[27] Leg. all., I, 36-38.

[28] Sacrif., 2.

[29] Deus, 47s.

[30] Aristóteles, Ética Nicomaquéia, Z 7, 1141 a 34-b 2.

[31] Migr., 185.

[32] Heres, 75.

[33] Samn., I, 60.

[34] Heres, 30.

[35] Congr., 134.

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