domingo, 15 de outubro de 2023

PIERRE BOURDIEU, ZUOK, A PRODUÇÃO DA CRENÇA

 




Sociales Paris, 2001,

Digitação: Jaciara Souza Pereira

Síntese: Paolo Cugini

                            

Contribuição para uma economia dos bens simbólicos ([¹])

                    A Denegação da “Economia”

Quando o único capital útil, eficiente, é o capital irreconhecido, reconhecido, legítimo, a que se da o nome de “prestigio” ou “autoridade”, neste caso, o capital econômico pressuposto, quase sempre, pelos empreendimentos culturais só pode garantir os ganhos específicos produzidos pelo campo – e, ao mesmo tempo, os ganhos “econômicos” que eles sempre implicam – se vier a converter-se em capital simbólico: a única acumulação legitima, tanto para o autor quanto para o crítico, tanto para o marchand de quadros quanto para o editor ou o diretor de teatro, consiste em adquirir um nome, um nome conhecido e reconhecido, capital de consagração que implica um poder de consagrar, alem de objetos (é o efeito de grife ou de assinatura) ou pessoas (pela publicação, exposição, etc.), portanto, de dar valor e obter benefícios desta operação. (pag. 20)

                O Círculo da Crença

Passando do criador ao descobridor como criador do criador, limitamo-nos a deslocar a questão inicial; neste caso, restaria determinar de onde vem o poder de consagrar que é reconhecido ao comerciante de arte. Ainda aqui, a resposta carismática se oferece já pronta: os grandes marchands, os grandes editores, são “descobridores” inspirados que, guiados por sua paizão desinteressada e irrefletida por uma obra, “fizeram” o pintor ou o escritor, ou então, permitira-lhe ele se fizesse, amparando-o nos momentos difíceis, respaldados na fé que haviam colocado nele, orientando-o com seus conselhos e livrando-o das preocupações materiais. (pag. 23)

                          Fé e Má-Fé

O princípio da eficácia de todos os atos de consagração não é outro senão o próprio campo, lugar da energia social acumulada, reproduzido com a ajuda dos agentes e instituições através das lutas pelas quais eles tentam apropriar-se dela, empenhando o que haviam adquirido de tal energia nas lutas anteriores. (pag. 25)

                        Sacrilégios Rituais

A  estas análises, podem-se-iam opor as tentativas que se multiplicara por volta da década de 60, sobretudo, no domínio da pintura, para quebrar o círculo da crença, se não fosse por demais evidente que esses espécies de sacrilégios rituais, dessacralizacoes ainda sacralizantes que se kimitam sempre a escandalizar os crentes, estão votados a serem, por sua vez, sacralizados, e a fundaram uma nova crença. (pag. 27)

                 O Irreconhecimento Coletivo

A eficácia quase mágica da assinatura não é outra coisa senão o poder, reconhecido a alguns, de mobilizar a energia simbólica produzida pelo funcionamento de todo campo, ou seja, a fé no jogo e lances produzidos pelo próprio jogo. (pag. 28)

O artista que, ao escrever seu nome em um ready-made, produz um objeto, cujo preço de mercado não tem qualquer relação com seu custo de produção é coletivamente incumbido da execução de um ato mágico que nada seria sem toda a tradição da qual seu gesto é o coroamento, sem o universo dos celebrantes e crentes que lhe dão sentido e valor por referencia a essa tradição. É inútil procurar fora do campo, ou seja, no sistema de relações objetivas que o constituem, nas lutas das quais ele constitui o lugar, e na forma especifica de energia ou de capital que nele se engendra, o princípio do poder “criador”, essa espécie de mana ou carisma inefável, celebrado pela tradição. (pag. 29)

                                            Dominante e Pretendentes     

A oposição entre o comercial e o “não comercial” encontra-se por toda parte: ela é o principal gerador da maior parte dos julgamentos que, em matéria de teatro, cinema, pintura, literatura, pretendem estabelecer a fronteira entre o que é arte e o que não o é, ou seja, praticamente entre a arte burguesa e a arte intelectual, entre a arte tradicional e a arte de vanguarda, entre a rive droite e a rive gauche ([*¹² Rive droite, rive gauche (literalmente: “margem direita”, “margem esquerda”), entenda-se do rio Sena ao atravessar Paris: a rive gauche é considerada o centro cultural da cidade.]) (pag. 30)

Colocados diante de um objeto tão claramente organizado segundo a oposição canônica, os críticos – por sua vez, distribuídos no espaço da imprensa, segundo a estrutura que se encontra na origem do objeto classificado e do sistema de classificação que eles aplicam – reproduzem, no espaço dos julgamento pelos quais eles o classificam e se classificam, o espaço no qual eles próprios são classificados (círculo perfeito do qual só é possível sair, objetivando-o). dito por outras palavras, os diferentes julgamentos proferidos sobre Le Tournant variam, em seu conteúdo e forma, segundo o órgão de imprensa no qual eles se exprimem, ou seja, desde a maior distância do crítico e de seu público ao mundo intelectual até a maior distância á peça Françoise Dorin e a seu público burguês e a menor distância ao mundo intelectual ([³³])

Pressupostos do Discurso e Afirmações Descabidas

A polarização objetiva do campo faz com que os críticos dos dois lados possam colocar em relevo as mesmas propriedades e, para designá-las, utilizar os mesmos conceitos (malvada, cordelinhos, bom senso, saudável, etc.) mas que assumem um valor irônico (“que bom senso”...)e, portanto, funcionam em sentido inverso quando se dirigem a um público que não mantém com eles a mesma relação de convivência, aliás, fortemente denunciada (“basta que dê um nó para que o público morra de riso”; “a outra que não esperava outra coisa”). O teatro, que só consegue funcionar respaldado na conivência total total entre o autor e os espectadores (eis a razão pela qual a correspondência entre as categorias de teatros e as divisões da classe dominante é, neste ponto, tão estreita e visível ) constitui a melhor demonstração  de que sentido e o valor das palavras (e, sobretudo, “palavras apropriadas”) dependem do mercado em que são colocadas; de que as mesma frases podem receber sentidos opostos quando se dirigem a grupos animados por pressupostos antagonistas. Ao apresentar diante de um público de bulevar as desventuras de um autor de vanguarda, Françoise, Dorin limita-se a explorar a lógica estrutural do campo de classe dominante; assim, ela volta contra o teatro de vanguarda a arma preferencialmente utilizada por este contra a tagarelice “burguesa” e contra o “teatro burguês” que reproduz seus truísmos e clichês (estamos pensando em Ionesco ao descrever a Cantatrice chauve ou Jacques como “uma espécie da paródia ou caricatura do teatro de bulevar, um teatro de bulevar que se decompõe e se torna louco”): ao quebrar a relação de simbiose ética e estética que une o discurso intelectul a seu público, ela o transforma em um sequência de afirmações descabidas que chocam ou provocam o riso porque não são pronunciadas no lugar e diante do público convenientes, ou seja, no sentido verdadeiro, uma paródia, discurso que só pode instaurar com seu público a cumplicidade imediata do riso porque soube obter dele – se é que de antemão já tinha essa certeza – a revocação dos pressupostos do discurso  parodiado. (pag. 51 e 52)

                       Os Fundamentos da Conivência

Convém abstermo-nos de aceitar como explicação suficiente a relação, termo, entre o discurso dos critérios e as propriedades de seu público: se a representação  polêmica elaborada cada um dos campos a respeito de seus adversários reserva a tal lugar e esse modo de explicação é porque permite desqualificar, por referência á lei fundamental do campo, as escolhas estéticas ou éticas ao descobrir, em sua origem, o cinismo calculista – por exemplo, a busca do sucesso a qualquer preço, inclusive pelo uso da provocação e escândalo, argumento preferencialmente da rive droite; pelo servilismo interesseiro com o tópico, de preferência, da rive gauche, do “criado da burguesia”. (pag. 52 e 53)

                        O Poder da Convicção  

A sinceridade (que é uma das condições da eficácia simbólica) só é possível – e se realiza – no caso de um acordo perfeito, imediato, entre as expectativas inscritas na posição ocupada(em um universo menos consagrados, dir-se-ia, “a definição do posto”) e as disposições do ocupante. Não podemos compreender o ajustamento das disposições ás posições (que serve de fundamento, por exemplo, ao ajustamento do jornalista ao jornal e, mesmo tempo, ao público desse jornal, ou o ajustamento dos leitores ao jornal e, ao mesmo tempo, ao jornalista) se ignoramos o fato de que as estruturas objetivas do campo da produção estão na origem das categorias de percepção e apreciação que estruturam a percepção e a apreciação de seus produtos. (pag. 56)

                   Tempo Longo e Tempo Curto

É ainda nas características dos bens culturais, e do mercado onde são oferecidos, que reside o princípio fundamental das diferenças entre os empreendimentos comerciais e os empreendimentos culturais. Um empreendimentos encontra-se tanto mais próximos do pólo comercial (ou, inversamente, mais afastado do pólo cultural), quanto mais direta ou completamente os produtos oferecidos por ele no mercado corresponderem a uma demanda preexistente, ou seja, a interesses preexistentews, e a formas preestabelecidas. (pag. 59)

                             O Tempo e o Dinheiro

O tamanho da empresa e o volume da produção não orientam somente a política cultural através do peso das despesas fixas e da preocupação correlata com o rendimento do capital, mas afetam diretamente a prática dos responsáveis pela seleção dos manuscritos: diferentemente do grande editor, o pequeno pode conhecer pessoalmente, com a ajuda de alguns conselheiros que, ao mesmo tempo, são autores da editora, o conjunto dos livros publicados. Em suma, tudo se conjuga para impedir que o responsável  por uma grande empresa, voltada para atividade editorial, proceda a investimentos de risco e a longo prazo: a estrutura financeira de sua empresa, as obrigações econômicas que lhe impõem a rentabilização do capital, portanto, de pensar antes de tudo nas vendas, além das condições em que ele trabalha e que, praticamente, impedem seu contato direto com os manuscritos e os autores. ([59]) Por sua vez, o editor de vanguarda só pode enfrentar os riscos financeiros (em todo caso, objetivamente, menores) corridos ao investir (no duplo sentido) em empreendimentos que, no melhor dos casos, não podem render senão benefícios simbólicos, com a condição de reconhecer plenamente os desafios específicos do campo da produção e, á semelhança dos escritores ou intelectuais lançados por ele, perseguir o único lucro especifico concebido pelo campo, pelo menos, a curto prazo, ou seja, o “renome” e a “autoridade intelectual” correspondente ([60]) (pag. 63 e 64)

                       Ortodoxia e Heresia

Princípio da oposição entre arte de vanguarda e arte burguesa, entre ascese material, garantia da consagração espiritual, e o sucesso mundano, mercado, entre outros sinais, pelo reconhecimento das instituições (prêmios, academias, etc.) e pelo êxito financeiro, esta visão escatológica contribui para dissimular a verdade da relação entre o campo da produção cultural e o campo do poder ao reproduzir, na lógica especifica do campo intelectual, ou seja, sob a forma transfigurada do conflito entre duas estéticas, a oposição (que não exclui a complementaridade) entre as frações dominadas e as frações dominantes da classe dominante, ou seja, entre o poder cultural (associado á menor riqueza econômica) e o poder econômico e político (associado á menor riqueza cultural). Os conflitos propriamente estéticos sobre a visão legítima do mundo, ou seja, em última análise, sobre o que merece ser representado e sobre a maneira correta de fazer tal representação, são conflitos políticos (supremamente eufemizados) pela imposição da definição dominante da realidade e, em particular, da realidade social. Construída segundo os esquemas geradores da representação reta (e de direita) da realidade – e, em particular, da realidade social, ou seja, em poucas palavras, da ortodoxia – a arte da reprodução ([68]) (cuja forma, por excelência, é o teatro burguês) é apropriada para proporcionar, àqueles que a percebem segundo esses esquemas, a experiências tranqüilizadoras da evidência imediata da representação, ou seja, da necessidade do modo de representação e do mundo representado. Esta arte ortodoxa escaparia ao tempo se não fosse continuamente remetida ao passado pelo movimento introduzido no campo da produção pela pretensão das frações  dominadas em utilizar poderes que lhes são atribuídos para modificar a visão do mundo e derrubar as hierarquias temporais e temporárias ás quais está enganchado o gosto burguês. Detentores de uma delegação (sempre parcial) de legitimidade em matéria cultural, os produtores culturais e, em particular, aqueles que produzem unicamente para os produtores tendem sempre a desviar em seu beneficio a autoridade de que dispõem, portanto, a impor como única legítima sua variante própria da visão dominante do mundo. No entanto, a contestação das hierarquias artísticas instituídas e o deslocamento herético dos limites socialmente admitidos entre o que merece ser conservado, admirado e transmitido, por um lado, e, por outro, o que não tem tal merecimento, só poderá exercer um efeito propriamente artístico de subversão se reconhecer tacitamente o fato e a legitimidade dessa delimitação, ao transformar o deslocamento de tais limites em um ato artístico e ao reivindicar, assim, para o artista o monopólio da transgressão legitima dos limites entre sagrado e profano, portanto, das revoluções dos sistemas artísticos de classificação.

O campo da produção cultural é o terreno por excelência do enfrentamento entre as frações dominantes da classe dominante – que combatem aí, ás vezes, pessoalmente e, quase sempre, por intermédio dos produtores orientados para a defesa de suas idéias e para a satisfação de suas preferências – e as frações dominadas que estão totalmente envolvidas neste combate. ([69]). Por meio desse conflito, consuma-se, em um único e mesmo campo, a integração dos diferentes subcampos socialmente especializados, mercados particulares completamente separados no espaço social e, até mesmo, geográfico, em que as diferentes frações da classe dominante podem encontrar produtos ajustados a seu gosto, tanto em matéria de teatro, como em matéria de pintura, costura ou decoração. (pag. 69 e 70)

                          As Maneiras de Envelhecer

A oposição entre as duas economias, ou seja, entre duas relações com a “economia”, assume assim a forma da oposição entre dois ciclos de vida da empresa da produção cultural, dois modos de envelhecimento das empresas, produtores e produtos. ([7³]) A trajetória que conduz da vanguarda á consagração e a que leva da pequena empresa á grande empresa excluem-se totalmente: a possibilidade da pequena empresa comercial tornar-se uma grande empresa consagrada pode equiparar-se á do grande escritor comercial (como Guy de Cars ou Cécil Saint-Laurent) vir a ocupar empresas comerciais que, fixando-se como finalidade a acumulação de capital “econômico”, só podem crescer ou desaparecer (por falência ou absorção), a única distinção pertinente diz respeito ao tamanho da empresa que tende a crescer com o tempo; no caso das empresas definidas por um elevado grau de degeneração da  “economia” e de submissão á lógica especifica da economia dos bens culturais, a oposição temporal entre os recém-chegados e os antigos, os pretendentes e os atuais titulares, a vanguarda e o clássico, tende a confundir-se com a oposição “econômica” entre pobres e ricos (que são também os grandes), o barato e o caro – neste caso, o envelhecimento é acompanhado quase inevitavelmente por uma transformação “econômica”  propícia a determinar a transformação da relação com a “economia”, ou seja, do afrouxamento da denegação da “economia” que mantém uma relação dialética com o faturamento e o tamanho da empresa: a única defesa contra o envelhecimento é a recusa de crescer pelos ganhos e para o lucro, de entrar na dialética do lucro que, ao aumentar o tamanho da empresa, portanto, as despesas fixas, obriga a buscar o lucro e trazem seu bojo a divulgação, sempre acompanhada pela desvalorização implicada em toda vulgarização ([74]). (pag. 72 e73)

                     Clássicos ou Desclassificados

É claro que o primeiro atribuído pelo campo da produção cultural á juventude remete, uma vez mais, á relação de denegação do poder e da “economia” que está em sua origem: por seus atributos associados á indumentária e por toda sua hexis ([ Conjunto de propriedades associadas ao uso do corpo em que se exterioriza a posição de classe de uma pessoa]) corporal, os intelectuais e os artistas tendem sempre a colocar-se do lado da juventude é porque, tanto nas representações quanto na realidade, a oposição entre jovens e velhos a é homóloga da oposição entre o poder e a seriedade burgueses,  por um lado, e, por outro, a indiferença ao poder ou ao dinheiro, assim como a recusa intelectual do espírito de seriedade, oposição que a representação burguesa – que avalia a idade pelo poder e pela relação correlata ao poder – retoma por sua conta quando identifica o intelectual com o jovem burguês em nome do estatuto comum a ambos de dominantes-dominados, provisoriamente afastados do dinheiro e do poder. ([84]). No entanto, o privilégio consentido á juventude e aos valores de mudança e originalidade aos quais ela está associada só poderá ser compreendido cabalmente a partir da relação dos artistas com os burgueses; ele exprime também a lei especifica da mudança do campo da produção a saber: a dialética da distinção que vota as instituições, escolas, obras e artistas – que, inevitavelmente, estão associados a determinado momento da história da arte, que fizeram época ou ganharam notoriedade – a caírem no passado, tornarem-se clássicos ou desclassificados, serem lançados para fora da história ou “passarem á histórias”, ao eterno presente da cultura em que as mais incompatíveis tendências e escolas “em atividade” podem coexistir pacificamente por terem sido canonizadas, ecademizadas, neutralizadas. (pag. 87 e 88)

                              A Diferença

Não é demais afirmar que a história do campo é a história da luta pelo monopólio da imposição das categoriais de percepção e apreciação legítima; é a própria luta que faz a história do campo; é pela luta ele se temporaliza. O envelhecimento dos autores, obras ou escolas não é, modo algum, o produto de um deslize mecânico para o passado, mas a criação continuada do combate entre aqueles que fizeram época e lutam para que esta perdure, por um lado, e, por outro, aqueles que, por sua vez, não podem fazer época sem remeter para o passado os que têm interesse a interromper o tempo, a eternizar o estado presente; entre os dominantes que estão comprometidos com a continuidade, a identidade, a reprodução, e os dominados, os recém-chegados, que estão interessados na descontinuidade, ruptura, diferença, revolução. Fazer época é impor sua marca, fazer reconhecer (no duplo sentido) sua diferença em relação aos outros produtores e, sobretudo, em relação aos produtores mais outros produtores e, sobretudo, em relação aos produtores e, sobretudo, em relação aos produtores mais consagrados; é, inseparavelmente, fazer existir uma nova posição para além das posições ocupadas, á frente dessas posições, na vanguarda. Introduzir a diferença é produzir tempo. Compreende-se o lugar que, nesta luta pela vida pela sobrevivência, cabe ás marcas distintivas que, na melhor das hipóteses, visam identificar, muitas vezes, as mais superficiais e visíveis das propriedades associadas a um conjunto de obras ou produtores. As palavras, nomes de escolas ou de grupos, nomes próprios, só têm tanta importância porque eles fazem as coisas: como sinais distintivos, eles produzem a existência em um universo em que existir é deferir, “fazer-se um nome”, um nome próprio ou nome comum (a um grupo). Falsos conceitos, instrumentos práticos de classificação que estabelecem as semelhanças e as diferenças, nomeando-as, os nomes de escolas ou de grupos que têm florescido na pintura recente – pop art, minimal art, process art, land art, doby art, arte conceitual, arte povera, Fluxus, novo realismo, nova figuração suporte-superficie, op art, cinética – são produzidos na luta pelo reconhecimento pelos próprios artistas ou seus críticos titulares, e desempenham a função de sinais de reconhecimento que distinguim as galerias, os grupos, assim como os pintores e, ao mesmo tempo, os produtos que eles fabricam ou propõem. (pag. 88 e 89)

Em cada instante do tempo, seja qual for o campo de luta (campo das lutas de classe, campos da classe dominante, campo da produção cultural, etc.), os agentes e as instituições envolvidos no jogo são, ao mesmo tempo, contemporâneo e temporalmente discordantes. O campo do presente não passa de outro nome do campo de lutas (como é demonstrado pelo fato de que um autor do passado está presente na exata medida em que ele está em jogo) e a contemporaneidade como presença ao mesmo presente, ao presente dos outros, só existe praticamente na própria luta que sincroniza tempos discordantes (é assim que, como será demonstrado alhures, um dos principais efeitos das grandes crises históricas, dos acontecimentos que fazem época, consiste em sincronizar os tempos dos campos definidos por durações estruturais especificas); no entanto, a luta que produz a contemporaneidade como confronto de tempos diferentes só poderá ser travada porque os agentes e os grupos que ela opõe não estão presentes no mesmo presente. (pag. 89 e 90-)

O movimento temporal produzido pela aparição de um grupo capaz de fazer época ao impor uma posição avançada traduz-se pela translação de estrutura do campo do presente, ou seja, das posições temporalmente hierarquizadas que se opõem em determinado campo (por exemplo, pop art, arte cinética e arte figurativa); assim, cada uma das posições encontra-se defasada de uma fila na hierarquia temporal que, ao mesmo tempo, é uma hierarquia social.  (pag. 90)

Também a irredutibilidade – operada pelo artista – do trabalho da produção  á fabricação nunca apareceu de maneira tão evidente. Em primeiro lugar, porque a nova definição do artista e do trabalho artístico aproxima o trabalho do artista do trabalho do intelectual e o torna, mais do que nunca, tributário dos comentários intelectuais. Crítico, mas também chefe de escola (no caso, por exemplo, de Restany e dos novos realistas) ou companheiro de identificar a criação com introdução de distâncias, perceptíveis unicamente aos iniciados, em relação a formas e fórmulas conhecida por todos. (pag. 96)

O enriquecimento acompanha o envelhecimento quando a obra chega a entrar no jogo, quando se torna um desafio e, assim, incorpora uma parcela de energia produzida pela luta da qual é o objeto. A luta, que remete a obra para o passado, é também o que lhe garante uma forma de sobrevivência: arrancando-a ao estado de letra morta, de simples coisa do mundo votada ás leis comuns do envelhecimento, ela garante-lhe, no mínimo, a eternidade triste do debate acadêmico.([9²]) (pag. 98)

O COSTUREIRO E SUA GRIFE

Contribuição para uma teoria da magia([¹])

Pierre Bourdieu com Yvette Delsaut

                                           *A Direita e a Esquerda

Por um lado, a preocupação em conservar e explorar uma clientela restrita e antiga que só se conquista pela tradição; por outro, a esperança de converter novos clientes, através de uma arte que pretende estar “ao alcance das massas” – isto é, e ninguém poderá se enganar neste caso, ao alcance das novas frações da burguesia ou, o que vem a ser quase o mesmo, que pretende ser cultural e economicamente acessível aos jovens das frações antigas. O fato de a ideologia populista de abertura ás massas se encontrar em um campo, onde o esquecimento das condições de acesso aos bens oferecidos é mais difícil que alhures, tende a sugerir que ela deva ser sempre compreendida como uma estratégia nos conflitos internos de um campo: os ocupantes de uma posição dominada em um campo especializado podem ter interesse, em certas conjunturas, em utilizar a homologia estrutural entre as oposições internas de um campo e a última oposição entre as classes para apresentar a procura por uma clientela, no sentido econômico ou político do termo (aqui, a das frações dominadas do subcampo dirigente da sob a aparência arrogante democrática de abertura ás massas, denominação eufemística e imprecisa atribuída ás classes dominadas. (pag. 116)

Entre o pólo dominante e o pólo dominado, entre o luxo austero da ortodoxia e o ascetismo ostensivo da heresia, os diferentes costureiros se distribuem segundo uma ordem que permanece praticamente invariável, quando lhes aplicamos critérios tão diferentes como antiguidade da Maison e a importância de seu faturamento, o preço dos objetos oferecidos e o número de provas, a intensidade das cores e, hoje, o espaço reservado ás calças nas coleções.As posições na estrutura da distribuição do capital especifico se exprimem nas estratégias tanto estéticas, quanto comerciais. Para alguns, as estratégias de conservação que visam manter intacto o capital acumulado (o renome da qualidade) contra os efeitos da translação do campo e cujo sucesso depende, evidentemente, da importância do capital possuído e também da aptidão de seus detentores, fundadores e, sobretudo, herdeiros, em gerir racionalmente a reconversão, sempre arriscada, do capital simbólico em capital econômico. Para outros, as estratégias de subversão, que tendem a desacreditar os detentores do mais sólido capital de legitimidade, a remetê-los ao clássico e, em seguida, ao desclassificado, colocando em questão (pelo menos, objetivamente) suas normas estéticas e apropriando-se de sua clientela presente ou, em todo caso, futura, por meio de estratégias comerciais que não poderiam ser utilizadas pelas Maison tradicionais, sem comprometerem sua imagem de prestígio e exclusividade. (pag. 116 e 117)

Segundo esta lógica, um burguês pobre, isto é, um intelectual, seja qual for sua idade biológica, equivale a um jovem burguês: aliás têm muitas coisas em comum, audácias na indumentária, hoje, cabelos longos, gostos fantasistas, idéias políticas simbolicamente avançadas e, origem de tudo isso na opinião do burguês, a falta relativa de dinheiro. Os jovens assim definidos – isto é, grosso modo, o conjunto dos dominantes dominados -  não conseguem negar a hierarquia do dinheiro e da idade a não ser constituindo, de forma decisória, outras formas, menos custosas, da vida de luxo. (pag. 118)

No campo da moda, como em todos os outros campos, são os recém-chegados que, á semelhança do que ocorre no boxe com o desafiante, fazem o jogo. Os dominantes agem sem riscos: não têm necessidade de recorrer a estratégias de blefe ou enaltecimento   eu são outras tantas maneiras de confessar sua fraqueza. (pag. 119)

Em seguida época, os costureiros atuam no interior de um universo de imposições explicitas (por exemplo, as que se referem ás combinações de cores ou não cumprimento dos vestidos) ou implícitas (tal como a que, até uma data recente, excluía as calças das coleções). O jogo dos recém-chegados consiste, quase sempre, em romper com certas convenções em vigor (por exemplo, introduzindo  misturas de cores ou de materiais, até então, excluídos), mas dentro dos limites da convivências e sem colocar em questão a regra do jogo e o próprio jogo. Eles estão comprometidos com a liberdade, a fantasia e a novidade (frequentemente,  identificadas com a juventude), enquanto as instituições dominantes têm em comum a recusa dos exageros e a busca da arte na recusa da afetação e do efeito, isto é na dupla negação, lítotes, understatement, equilíbrio e refinamento. (pag. 121)

Á linguagem da exclusividade, autenticidade e refinamento, com seus componentes específicos – sobriedade, elegância, equilíbrio e harmonia – a vanguarda opõe o rigor ou a audácia, e sempre a liberdade, a jovialidade e a fantasia. ( pag. 122)

Esse campo que tem sua direita e sua esquerda, seus conservadores e seus revolucionários, tem também seu centro, seu lugar neutro, representado aqui por Saint-Laurent que atraio para si os elogios unânimes por meio de uma arte que une, de acordo com uma hábil dosagem, as qualidades polares (clássicas, sutil, harmoniosa, sóbria, delicada, discreta, equilibrada, bonita, fina,feminina, moderna, adaptável a todos os estilos de mulher); que recupera as inovações espalhafatosas dos outros para transformá-las em audácias aceitáveis (“ele lança as calças em larga escala que, no fundo, não haviam obtido êxito com Courrèges por ser um pouco complicado”) que transforma as revoltas da vanguarda em liberdades legítimas, á maneira de Le Monde que publica Asterix em histórias em quadrinhos (“É ele o liberty, os Kilts, que é uma saia maravilhosa, o blazer”); e que não hesita em declarar: “É preciso vir para a rua” ([¹4]). E podemos deixar a última palavra á revista Le Nouvel Observateur, que conhece o assunto: “O responsável por essa abertura á esquerda é, precisamente, um antigo grande costureiro, ou seja, Yves Saint Laurent”([¹5]). (pag. 124)

Os recém-chegados reintroduzem, incessantemente, no campo um ardor e um rigorismo de reformistas. Eles podem mesmo assumi9r ares de revolucionários no momento em que suas disposições de quase artistas de origem burguesa encontram um reforço na necessidade de perseguir uma clientela tentada a denunciar o contrato tácito de delegação que confere aos costureiros o monopólio da “criação” (pag. 125)

 

                         O Campo e a Duração

A lei fundamental deste campo, princípio de sua estrutura e mudança, lê-se diretamente no diagrama (ao lado) em que as maisons de costuras – distribuídas (da esquerda para a direita) segundo a data de sua fundação  – são representadas por dois círculos concêntricos, proporcionais: um (com traço mais acentuado) relativo ao faturamento alcançado, enquanto o outro se refere ao número de empregados. A importância do capital, especifico, cujo faturamento, que é sua forma reconvertida, representa um bom índice cresce com certa regularidade de acordo com a antiguidade da Maison; mas somente até certo ponto, marcado aqui por Dior, a partir do qual tende ao declínio, chegando ao desaparecimento puro e simples. (pag. 134)

A luta pela denominação neste campo conduz necessariamente os pretendentes a submeter á discussão os esquemas de produção e avaliação ortodoxos, produzidos e impostos pelas instituições dominantes; diferentemente das simples variantes ou variações produzidas pela utilização dos esquemas de invenção em vigor e que, seja qual for sua liberdade aparente, são outras tantas reafirmações da autoridade das instituições dominantes, as revoluções especificas t/em por efeito desacreditar antigos princípios de produção e avaliação, fazendo aparecer um estilo – que devia uma parte de sua autoridade e prestigio á sua antiguidade (“Maison de tradição”, “Maison fundada em...”, etc.) – como démodé, fora de uso, ultrapassado. Marcar uma época é reenviar todos aqueles que marcaram época ao status mais ou menos honorífico, mas sempre irreal e, como se diz, honorário, que cada campo, segundo suas próprias tradições, oferece aos antigos dominantes; é fazer história inscrevendo na série de rupturas que definem a periodização específica de um campo uma nova ruptura que remete á história a precedente periodização e determina a translação de toda a estrutura; é, por fim, sujeitar-se a ser, mais cedo ou mais tarde, remetido á história por uma ruptura que obedece aos mesmos princípios e ás mesmas determinações especificas de todas as precedentes. “Fazer moda” não é somente desclassificar a moda do ano anterior, mas desclassificar os produtos daqueles que faziam moda no ano anterior, portanto, desapossá-los de sua autoridade sobre a moda. As estratégias dos recém-chegados, que são também os mais jovens, tendem a rejeitar para o passado os mais velhos e estes colocaram com a translação do campo que desembocará em sua desclassificação (ou, aqui, em seu desaparecimento) pelas estratégias que utilizam para assegurar sua posição dominante que é também a mais próxima do declínio. Não nos seria possível compreender a estrutura e a dinâmica do campo da moda se aceitássemos a explicação comum pelo conflito de gerações, tautologia destinada a funcionar como virtude dormitiva, que se impõe com uma insistência particular em um campo onde a concorrência adquire, de modo mais visível do que em qualquer outra parte (devido á brevidade dos ciclos), a forma de uma querela entre antigos e modernos, entre velhos e jovens. (pag. 137 e 138)

As referências ás artes nobres e legítimas – pintura, escultura, literatura – q1ue fornecem a maior parte de suas metáforas prestigiosas á descrição das roupas e um grande número de seus temas á evocação da vida aristocrática que, se presume, é simbolizada por elas, constituem outras tantas homenagens que a “arte menor” presta ás artes maiores. Do mesmo modo, a tendência dos antiquários de grande prestígio para usurparem a denominação de galeria é uma forma de reconhecer a hierarquia que, no comércio dos objetos de arte, se estabelece entre as antiguidades – produzidas por artistas e vendidas em galerias: o mesmo se passa também como o desvelo manifestado pelos costureiros ao afirmarem sua participação na arte ou, na falta desta, no mundo artístico (as brochuras de Saint- Laurent limitam-se praticamente a falar de suas criações para o teatro), com a assistência de todo o aparelho de celebração (especialistas em relações públicas, jornalistas de moda, etc.) (pag. 141 e 142)

Em oposição aos objetos técnicos – cujo valor, estritamente definido por sua aptidão em assegurar, pelo menor custo, uma função especifica, decresce paralelamente á diminuição de seu rendimento que resulta, seja do desgaste que provém da utilização, seja da concorrência de instrumentos mais econômicos – os objetos simbólicos de ciclo curto, entre os quais os artigos da moda representam o puro limite, possuem um tempo de uso tão arbitrariamente delimitado, quanto sua própria utilização: diante de uma parte essencial de sua raridade á labilidade que os define propriamente, pois o lugar da última diferença, ou seja, do valor distintivo situa-se no tempo – estar na moda é seguir a última moda – os produtores da alta costura estão votados, por definição, a uma rápida desvalorização. E não devem prolongar sua carreira além dos limites que lhes são previamente assinalados por seus próprios criadores, não ser pela existência de uma série de mercados hierarquizados de um ponto de vista temporal (além de econômico e social): certos produtos desclassificados para os consumidores que os utilizam pela primeira vez da última moda – roupas ou romances, peças de teatro ou penteados, esportes ou lugares de férias – ainda podem ser postos a serviço das mesmas funções de distinção, isto é, de classificação, por usuário menos bem posicionados na estrutura da distribuição desse bem raro e, assim por diante, indefinidamente, ou seja, até o mais baixo escalão da estrutura social. (pag. 145)

A degradação no tempo do valor comercial dos bens da moda (com o mecanismo das liquidações e dos submercados)  corresponde á sua difusão, á sua divulgação, isto é, á deterioração de seu poder de distinção. Os costureiros consideram explicitamente estes efeitos em suas criações: “(Utilizo) todas as minhas cores habituais, a não ser que eu tenha sido negativamente influenciada por aquilo que foi visto demais no ano anterior” (Christiane Bailly). Mas, dado que o vale distintivo de um produto é, por definição, relacional, isto é, relativo á estrutura do campo na qual ele se define,o poder de distinção de um bem da moda pode continuar a ser exercido, a serviço de um grupo que ocupa determinada posição na estrutura social – e, ao mesmo tempo, na estrutura da distribuição desse bem – mesmo que ele não seja mais exercido, em virtude precisamente do acesso de um novo grupo a esse bem, pelo grupo que ocupa uma posição  imediatamente superior. (pag. 146 e 147)

Os primeiros responsáveis pela reclassificação dos objetos desclassificados – empreendimento produtivo do ponto de vista econômico e simbólico, do qual a reabilitação de gêneros populares, vulgares ou vulgarizados é um caso particular – devem deter um capital de autoridade estética de tal forma que sua escolha não possa parecer, em momento algum, como uma falta de gosto: é lógico que essa transgressão inicial é perpetrada pelos artistas ou intelectuais de vanguarda (os primeiros a exaltar, hoje, o Kitsch) que encontram na recusa de reconhecer as normas da convivência estética em vigor a legitimidade estética. Entre as estratégias empregadas para evitar o envolvimento com gostos “comprometedores”, a mais comum consiste em dissipar todo equívoco pela associação de objetos, cujo status ainda permanece indeterminado ou incerto, a outros que, sem sombra de dúvida, são incompatíveis com uma adesão vulgar a tais objetos: é, por exemplo em filosofia, a combinação de Marx com Heiddeger em determinada época; de Marx com Freud revisto por Lacan, em outra; e, em decoração, a associação de um objeto Kitsch a uma cômoda Luis XV ou a uma pintura de vanguarda, etc. (pag. 148)

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