Niilismo
e hermenêutica na cultura pós-moderna
Síntese: Paolo Cugini
I. APOLOGIA DO NILISMO
A
situação em que o homem rola do centro para X. Para Nietzsche, todo o processo
do niilismo pode ser resumido na morte de Deus, ou, também, na “desvalorização
dos valores supremos”. Para Heidegger, o ser se aniquila na medida em que se
transforma completamente no valor.
Somente onde não há instância terminal e “interruptiva”, bloqueadora, do
valor supremo- Deus, os valores podem manifestar-se em sua verdadeira natureza,
que é a convertibilidade, e a
transformabilidade processualidade indefinida.
Não
é por acaso que, precisamente através dos desenvolvimentos hermenêuticos do
pensamento de Heidegger, o niilismo se impõe como a [única] chance do
pensamento contemporâneo.
Do ponto de vista do niilismo – e, por certo, com uma generalização que
pode parecer exagerada --, parece que a cultura do século XX assistiu à
consumação de todos os projetos de “ reapropriação”. Nesse processo incluem-se
não apenas os acontecimentos da teoria –entre os quais, por exemplo, os
desenvolvimentos lacanianos do freudismo
--, mas também, e mais fundamentalmente talvez, as próprias vicissitudes
políticas do marxismo, das revoluções e do socialismo real. A perspectiva da
reapropriação, seja na forma a defesa de uma zona livre do valor de troca, seja
na forma, mais ambiciosa (que, pelo menos no plano teórico, aproxima marxismo e
fenomenologia), da “Refundação” da existência, num horizonte subtraído ao valor
de troca e centrado no valor de uso, sofreu um desgaste não apenas em termos de
derrotas e falências práticas, que em nada diminuíram seu alcance ideal e
normativo.
II. A CRISE DO HUMANISMO
A negação de Deus, ou o registro da sua
morte, não pode dar lugar hoje a nenhuma “reapropriação” pelo homem de uma sua
essência alienada no fetiche do divino. Muita apologética continua a tirar daí,
implícita ou explicitamente, um de seus argumentos contra o ateísmo, acusado de
preludiar necessariamente uma destruição geral do humano – segundo uma espécie
de nêmesis que arrastaria, como a torre de Babel, o homem rebelde à sua
dependência metafísica constitutiva. Ainda que, como creio, se deva repelir
essa rústica apologética de tipo punitivo, é inegável que subsiste uma conexão
entre crise do humanismo e morte de Deus. Em primeiro lugar, ela caracteriza de
modo peculiar o ateísmo contemporâneo, que não pode mais ser um ateísmo “reapropriativo”.
Mas, em segundo lugar e mais profundamente, assinalada de maneira determinante
o mesmo humanismo em crise, o qual se encontra nessa condição inclusive por não
poder mais resolver-se num apelo a um fundamento transcendente. Desse último
ponto de vista, também se pode aceitar a tese de que o humanismo está em crise porque Deus está morto; isto é, a
verdadeira substância da crise do humanismo é a
morte de Deus, anunciada não por acaso por Nietzsche, que é também o
primeiro pensador radical não- humanista da nossa época.
A
conexão entre crise e humanismo e morte de Deus, de resto, só pode parecer
paradoxal caso se considere ser necessariamente o humanismo uma perspectiva que
coloca o homem no centro do universo e que dele faz o senhor do ser.
Não há humanismo a não ser como desenvolvimento de uma metafísica em que
o homem determina um papel para si, que não é necessariamente central ou
exclusivo. Ao contrário, como Heidegger de resto mostra em sua reconstrução,
sempre retomada, da história da metafísica, é só na medida em que vem à luz seu
caráter “humanístico”, no sentido de redução de tudo ao homem, que a metafísica
pode sobreviver como tal. Quando esse caráter redutivo da metafísica se torna
explícito, como acontece, segundo Heidegger, em Nietzsche (o ser como vontade
de poder), a metafísica está em seu ocaso, e com ela, como constatamos cada
dia, também declina o humanismo. Por isso , a morte de Deus – momento
culminante e, ao mesmo tempo, final da metafísica – também é, inseparavelmente,
a crise do humanismo. Em outras palavras ainda: o homem só mantém a posição de
“centro” da realidade, a que alude a concepção corrente de humanismo, por força
de uma referência a um Grund que lhe
garante esse papel. A tese agostiniana segundo a qual Deus é o mais íntimo de
mim do que eu mesmo o sou nunca foi uma verdadeira ameaça ao humanismo; ao
contrário, serviu-lhe, inclusive historicamente, de suporte. “Larvatus prodeo”: esse mote familiar à
psicanálise também é a lei do pensamento metafísico, que nesse sentido, sempre
é ideológico. O sujeito só afirma sua centralidade na história do pensamento
mascarando-se nos semblantes “imaginários” do fundamento (é verossímil que
entre a concepção heideggeriana da metafísica e as teses lacanianas sobre o
jogo de imaginário e simbólico haja mais que uma simples analogia ou
proximidade superficial). Não se trata de propor uma interpretação psicologista
da metafísica (no sentido que o termo tem para Heidegger), mas, no máximo, de
inserir a problemática da constituição e da maturação do eu num horizonte
ontológico, segundo a linha inaugurada por Heidegger em Sein uno Zeit.
Em
que sentido, mais precisamente, a conexão indicada por Heidegger entre
humanismo e metafísica pode nos ajudar a compreender de maneira mais adequada
crise do humanismo? Ao que parece, é sobretudo no sentido de conferir um
significado filosófico preciso a um conjunto de idéias, não raro conectadas de
uma forma pouco clara entre si, que compõe a consciência da crise do humanismo
na cultura atual. Em Heidegger, de fato, a crise do humanismo, enquanto ligada
à culminância da metafísica e a seu fim, relaciona-se de maneira não acidental
à técnica moderna. Ora, é justamente em conexão coma técnica que quase sempre se fala, hoje, de crise do
humanismo. A técnica aparece como causa
de um processo geral de desumanização, que compreende seja o obscurecimento dos
ideais humanistas da cultura em favor de uma formação do homem centrada nas
ciências e nas habilidades produtivas racionalmente dirigidas, seja, no plano
da organização social e política, um processo de acentuada racionalização que
deixa entrever as características da sociedade da organização total, descrita e
criticada por Adorno. É precisamente a respeito dessa conexão entre crise do
humanismo e triunfo da civilização técnica, usual em grande parte da cultura
hodierna, que Heidegger oferece indicações teóricas de peso decisivo.
A
veia existencialista que caracteriza a filosofia e a cultura européia do
primeiro trintênio do século XX tende a ver na crise do humanismo apenas um
processo de decadência prática de um
valor – a humanidade--, que permanece, porém, definido teoricamente pelas
mesmas características que tinha tradição.
Nenhuma suspeita de que o fato de Ter posto em movimento esses
mecanismos de desumanização possa indicar que há algo não funcionando na
estrutura mesma do sujeito.
Se a crise do humanismo está seguramente ligada, na experiência do
pensamento do século XX, ao crescimento do mundo técnico e da sociedade racionalizada,
esse vínculo nas diversas interpretações que dele são dadas constitui também
uma linha de demarcação entre concepções profundamente diferentes do
significado dessa crise. O ponto de vista que se desenvolve na discussão sobre
ciências do espírito, que tem uma expressão teórica exemplar na fenomenologia,
mas que, em geral, liga-se á corrente existencializada presente em boa parte da
cultura das primeiras décadas do século XX (por exemplo, também e especialmente
no marxismo), pode ser chamado, assim, de leitura nostálgico-restauradora da
crise do humanismo. A relação com a técnica `vista, aqui, essencialmente, como
uma ameaça, a que o pensamento reage seja tomando consciência cada vez mais
nítida das características peculiares que distinguem o mundo humano do da
objetividade científica, seja esforçando-se por preparar, teórica ou
praticamente (como é o caso do pensamento marxista), a repropriação pelo
sujeito da sua centralidade. Essa concepção restauradora não põe em discussão,
de modo substancial, o humanismo da tradição, no sentido de que, para esta, a
crise não atinge os conteúdos do ideal humanista, e sim suas chances de
sobrevivência histórica nas novas condições de vida da modernidade.
Mas
outra atitude abre caminho no mesmo horizonte cultural e no mesmo arco de
tempo: é uma atitude mais radical pela qual a imposição da técnica se configura
não tanto como uma ameaça quanto como uma provocação, inclusive no sentido de
apelo.
Como a crise ou o fim da metafísica, também a crise do humanismo, que
faz parte daquela, deve ser descritos em termos de Verwindung,
portanto de um ultrapassamento que, na realidade, é reconhecimento de
vinculo, convalescença de uma doença, assunção de uma responsabilidade. Essa Verwindung – na metafísica, do humanismo
– se realiza quando há abertura ao apelo do Ge-Stell.
Na noção Heideggeriana de Ge-Stell,
contudo o que ela implica, encontra-se a interpretação teórica da visão radical
da crise do humanismo. Ge-Stell, que
traduzimos por im-posição, representa, para Heidegger, a totalidade do “por”
técnico, do interpelar, provocar, ordenar, que constitui a essência histórico-
destinal do mundo da técnica. Essa essência não é diferente da metafísica, mas
é a sua consumação; isso porque a metafísica sempre concebeu o ser como Grund, como fundamento que assegura a
razão e de que a razão se assegura. Mas a técnica, em seu projeto global de
concatenar tendencialmente todos os entes em vínculos causais previsíveis e
domináveis, representa o desdobramento máximo da metafísica. Aqui está a raiz
da impossibilidade de contrapor as erronias do triunfo da técnica à tradição
metafísica; são momentos diferentes de um único processo. Enquanto aspecto da
metafísica, o humanismo também não pode Ter a ilusão de representar valores alternativos
aos valores técnicos. O fato de a técnica se apresentar como uma ameaça para a
metafísica e para o humanismo é apenas uma aparência, derivada de que, na
essência da técnica, desvendam-se as características próprias da metafísica e
do humanismo, que estes sempre haviam mantido ocultas. Esse desvendamento-
desdobramento também é momento final, culminância e início da crise, para a
meta física e para o humanismo. Mas já que tal culminância não é o resultado de
uma necessidade histórica, de um processo regido por alguma dialética objetiva,
mas sim Gabe – dar-se-dom do ser, que tem um destino apenas como envio, missão,
anúncio-- , por esses motivos, em última análise, a crise do humanismo não é
ultrapassamento, mas Verwindung,
apelo em que o homem é chamado a restabelecer-se do humanismo, a remeter-se a
ele e a remetê-lo a si com algo que é destinado.
Assim, o Ge-Stell não é apenas o momento em que a metafísica e o
humanismo acabam, no sentido do desaparecimento e da liquidação, como a
interpretação nostálgico-restauradora dessa crise; o Ge-Stell também é, escreve
Heidegger, “um primeiro lampejar do Ereignis” , um anúncio do evento do ser com
seu dar-se além dos quadros do pensamento imêmore da metafísica. O Ge-Stell
comporta, de fato, a possibilidade de que, nele, envolvidos num abalo
recíproco, homem e ser percam as suas qualificações metafísicas, antes de tudo
a que os contrapõe como sujeito e objetivo. O humanismo, que é parte e aspecto
da metafísica, consiste na definição do homem como subjectum. A técnica
representa a crise do humanismo não porque o triunfo da racionalização negue os
valores humanistas, como um análise superficial nos levou a crer, mas sim
porque, representando a consumação da metafísica, chama o humanismo a uma
superação, a uma Verwindung. Também em Nietzsche, antes de em Heidegger, a
crise do humanismo estava ligada ao estabelecimento do domínio da técnica na
modernidade, entendida como imortalidade da alma, e reconhecer que, ao
contrário, o eu é muito mais um feixe de “várias almas mortais”, precisamente
porque a existência na sociedade tecnologicamente evoluída não é mais
caracterizada por um perigo contínuo e uma conseqüente violência.
Já
o anti-humanismo é, para Reidegger um
aspecto conseqüente da reproposição do problema do sentido do ser fora do
horizonte metafísico da simples presença. O anti- humanismo heideggeriano, em
suma, não se formula como reivindicação de um “outro princípio que,
transcendendo o homem e suas pretensões de domínio (a “vontade de poder” e o
niilismo que a acompanha), poderia fornecer um ponto de referência. Isso coloca
fora de questão, na minha opinião, a possibilidade de uma leitura “religiosa”
de Heidegger. O sujeito é “ultrapassado” na medida em que é um aspecto do
pensamento que esquece o ser em favor da objetividade e da simples- presença.
Esse pensamento, entre outras coisas, torna impossível compreender a vida do
Ser- aí na sua peculiar historicidade e a reduz ao momento da certeza de si, à
evidência do sujeito ideal da ciência; elimina-se, pois, o que o Ser- aí tem de
puramente “subjetivo”, enquanto não redutível ao “sujeito do objeto. Por isso,
o humanismo da tradição metafísica também tem o caráter repressivo e ascético,
que se intensifica no pensamento moderno quanto mais a subjetividade se modela
com base na objetividade científica e torna-se pura função dela.
O
primado do sujeito na metafísica é função da redução do ser á presença: o
humanismo é a doutrina que atribui ao homem o papel de sujeito, isto é, de
autoconsciência como sede da evidência, no quadro do ser pensado como Grund, como presença plena. Também em
nome das razões “não humanistas” do sujeito – da sua Befindlichkeit, da sua historicidade, das sua diferenças -- , Sein und Zeit colocara o problema do ser
e mostrara, inicialmente, que a concepção do ser com base do modelo da presença
era fruto de um ato de “abstração” histórico- cultural, que está esclarecido
posteriormente como um evento destinal, de Geschic.
Como quer que seja, poderíamos dizer, começa-se desde então a suspeitar uma Erde por trás da Welt histórico- cultural da metafísica. Por trás do ser como
simples- presença da objetividade está o ser como tempo, como acontecimento da
época e destino, e por trás da consciência que intenciona as coisas como
evidências há outra coisa, a projetualidade jogada da existência que contesta
as pretensões de hegemonia da consciência.
Essa “recuperação” dos elementos irdisch,
terrestres, que também são elementos autenticamente históricos (não
historocistas) do existir, não pode, porém, ser configurada como uma
reapropriação. A obstinação com o que Heidegger
trabalha, nos escritos tardios, em torno da noção de Ereignis e dos conceitos conexos de Ver- eignen, Enteignen, Ueber- eignen
pode ser explicada, mais do que como uma atenção ao caráter eventual, não
simplesmente- presente, do ser, como um esforço para libertar seu conceito
juvenil de Eigentlichkeit,
autenticidade, de qualquer valência reapropriante (e, portanto, como tal, ainda
metafísica e humanista).
O
que significa dizer que a crise do humanismo contemporâneo é crise na medida em
que falta qualquer base possível de “reapropriação” – isto é inextricavelmente
ligada à morte de Deus e ao fim da metafísica --, é o que Heidegger se esforça
por pensar na sua interrogação da essência da técnica moderna.
Se
vale a análise, heideggeriana do nexo entre metafísica, humanismo e técnica, o
sujeito que nos era proposto defender da desumanização técnica era,
precisamente ele, a raiz dessa desumanização, já que a subjetividade que se
define doravante apenas como o sujeito do objeto é pura função do mundo da
objetividade, tendendo, ao contrário, irrefreavelmente, a também se tornar
objeto de manipulação.
Escutar o apelo do Ge Stell
como “ primeiro lampejar do Ereignis”
quer dizer, pois, dispor-se a viver radicalmente a crise do humanismo. O que
não significa – e o nome de Heidegger deveria garanti-lo – entregar-se sem
reservas às leis da técnica, à multiplicidade dos seus “jogos”, à vertiginosa
concatenação dos seus mecanismos. O fim da metafísica não nos liberta para esse
tipo de entrega. Por isso, Heidegger insiste sempre que é necessário pensar a essência da técnica e que essa essência
não é, por sua vez, uma coisa técnica. A saída do humanismo e da metafísica não
é uma superação, é uma Verwindung; a
subjetividade não é uma coisa que se deixa simplesmente para trás, como um
traje que se deixa de usar. Se, por um lado, Heidegger fornece as condições
teóricas para eliminar qualquer visão demoníaca da técnica e da racionalização
social e para apreender os elementos de destino que nos falam a partir dela,
por outro reconduz a técnica ao sulco da metafísica e da tradição que nos liga
a ela. Ver a técnica em seu nexo com essa tradição significa também não se
deixar impor o mundo que ela plasma como a “realidade”, dotada das
características peremptórias, mais uma vez metafísicas, que eram próprias do ontos on metafísico, é indispensável um sujeito que não se pense mais,
por sua vez, como sujeito forte. A crise do humanismo, no sentido radical que
assume em pensadores como Nietzsche e Heidegger, mas também em psicanalistas
como Lacan e, talvez, em escritores como Musil, resolve-se provavelmente numa
“cura de emagrecimento do sujeito”, que o torne capaz de escutar o apelo de um
ser que não se dá mais no tom peremptório do Grund, ou do pensamento de
pensamento, ou do espírito absoluto, mas que dissolve a sua presença- ausência
nos retículos de uma sociedade transformada cada vez mais num organismo
sensibilíssimo de comunicação.
O FIM DA MODERNIDADE
O
Ser-aí só pode ser uma totalidade antecipando(se para) a morte. Dentre todas as
possibilidades que constituem o projeto do Ser-aí, isto é, seu ser-no-mundo, a
possibilidade de morrer é a única de que o Ser-aí não pode escapar. Não só: a
morte também é a possibilidade que, enquanto o Ser-aí é, permanece pura
possibilidade, Mas é precisamente nesse fato de ser uma possibilidade
permanente, que realizando-se tornaria impossíveis todas as outras
possibilidades aquém dela (as possibilidades concretas de que o homem de fato
vive), que a morte também age como o fator que manifesta todas as outras
possibilidades em seu caráter de possibilidade e que, portanto, confere à
existência o ritmo móvel de um dis-cursus, de um contexto cujo sentido se
constitui como um todo musical que nunca se detém numa nota isolada.
Tudo isso significa que o Ser-aí só se funda como uma totalidade
hermenêutica na medida em que vive continuamente a possibilidade de não
existir-mais. Podemos descrever essa condição dizendo que a fundação do Ser-aí
coincide com o seu “desfundamento”: a totalidade hermenêutica do Ser aí é
fundada unicamente em relação com a sua possibilidade constitutiva de não
existir mais.
A
não identificabilidade de ser e fundamento é um dos pontos mais explícitos da
ontologia heideggeriana: o ser não é fundamento, qualquer relação de fundação
se dá já sempre no interior de uma época
do ser. Numa passagem de Ser e tempo,
aliás Heidegger fala explicitamente da necessidade de “abandonar o ser como
fundamento”, se quiser aproximar de um pensamento não mais metafisicamente
orientado apenas para a objetividade.
O Na-denken, isto é, o rememorar que se
contrapõe ao esquecimento do ser característico da metafísica, se define assim
como um salto no abismo da mortalidade, ou, o que dá o mesmo, como um
confiar-se ao vínculo libertador da tradição. O pensamento que se subtrai ao
esquecimento metafísico não é, portanto, um pensamento que alcança o ser em
pessoa, representando-o, fazendo-o presente; ao contrário, é precisamente isso
que constitui o pensamento metafísico da objetividade. O ser nunca é
verdadeiramente pensável como presença; o pensamento que não o esquece é apenas
o que recorda, isto é, que o pensa já sempre como desaparecido, ido embora,
ausente. Portanto, também é verdade, em certo sentido, para o pensamento
rememoramte o que Heidegger diz do niilismo: que, nesse pensamento, do ser como
tal “nada mais há”. A importância da tradição, isto é, da transmissão de
mensagens lingüisticas cujas cristalizações constituem o horizonte dentro do
qual o Dasein é jogado enquanto
projeto historicamente determinado, deriva do fato de que, precisamente, o ser
como horizonte capaz de abertura e no qual os entes aprecem só se pode dar
sempre como vestígio de palavras
passadas, anúncio transmitido (jogam aqui as ressonâncias literais do termo Geschick, que significa destino e
envio). Esse transmitir relaciona-se intimamente coma mortalidade do Ser-aí: só porque as gerações
se sucedem no ritmo natural de nascimento e morte, o ser é anúncio que se
transmite.
Como sucede nas reconstruções etimológicas que Heidegger faz das grandes
palavras do passado, a relação com a tradição não nos fornece um ponto firme
sobre o qual poderíamos apoiar-nos, mas impele-nos a uma espécie de remontar in infinitum, em que a pretensa
definitividade e coatividade dos horizontes históricos em que nos encontramos
se fluidifica, ao passo que a ordem presente dos entes, que, no pensamento
objetivante da metafísica, pretende identificar-se com o ser, é desvelada como
um horizonte histórico particular. Mas não num sentido puramente relativista: o
que Heidegger tem m vista é sempre o sentido do ser, e não a relatividade
irredutível das épocas. Através do remontar in
infinitum e da fluidificação dos horizontes históricos, é o sentido do ser
que é recordado. Esse sentido, que só se dá a nós como ligado à mortalidade, à
transmissão de mensagens lingüisticas entre as gerações, é o oposto da
concepção metafísica do ser como estabilidade, força, enérgheia; é um ser fraco,
declinante, que se desdobra no desvanecer, aquele Gering, inaparente irrelevante, de que fala a conferência sobre A coisa.
Se
assim é, não apenas a constituição hermenêutica do Ser-aí tem um caráter
niilista, porque o homem só seu funda rolando do centro para X, mas também
porque o ser cujo sentido se trata de recuperar é um ser que tende a
identificar-se com o nada, com as características efêmeras do existir, como
encerrado entre os termos do nascimento e da morte.
VIII. VERDADE E RETÓRICA NA ONTOLOGIA HERMENÊUTICA
É
sobretudo enquanto sede, ou lugar, de realização do concreto, do ethos comum de uma determinada
sociedade histórica, que a linguagem serve de mediação total da experiência do
mundo. Mais ainda que de linguagem, portanto, poder-se-ia falar de uma língua historicamente determinada. Nela,
vivenciamos aquele mundo “que possuímos e compartilhamos, o qual abraça a
história passada e o presente e recebe sua articulação lingüistica nos
discursos que os homens se dirigem reciprocamente. É esse mundo compartilhado e
articulado na língua que possui as características da racionalidade; com ele se
identifica o logos, entendido ao
mesmo tempo como linguagem como logos vivo,
segundo Gadamer, a concepção grega da racionalidade da natureza e a concepção
hegeliana da razão na história. E também poderíamos acrescentar, a visão da
língua natural presente na filosofia analítica posterior a Wittgenstein.
Gadamer descreve esse âmbito lingüistico- ético que rege a experiência
retomando a noção grega de Kalón, em
conexão com a de theoría. A theoría não é, antes de mais nada, no
mais antigo uso lingüistico dos gregos, uma construção conceitual formalizada,
que comporta um destaque “objetivante” entre sujeito e objeto. Ela é, ao contrário,
a participação na procissão do deus, participação em que os theorói atuam, de resto, como delegados
da sua polis; portanto, é um olhar
participando e, de certo modo, pertencendo mais do que possuindo o objeto. E kalón, como escreve Gadamer num dos
ensaios de A razão na idade da ciência, “não designava
apenas as criações da arte e do culto... mas compreendia também o que era
desejável sem sombra de dúvidas e que não era necessário justificar, mostrando
a sua utilidade. Isso, para s gregos, era o domínio da theoría, e theoría para
eles era entregar-se a algo que, sobrevindo com a sua presença, se oferece a
todos como um Dom comum...”.
A
linguagem como lugar da mediação total é, precisamente, essa razão, esse logos que vive no pertencer comum a um
tecido de tradição viva, a um ethos.
Assim entendida, a linguagem- logos-kalón
tem um nexo constitutivo com o bem: ambos são fins por si mesmos, valores
últimos não buscados com vistas a outro, e a beleza é apenas a perceptibilidade
da idéia do bem, seu resplandecer, como Gadamer escreve no parágrafo conclusivo
de verdade e método. Qualquer
racionalidade da experiência histórica de indivíduos ou grupos só é possível em
referência a esse logos, que é, ao
mesmo tempo, mundo e linguagem. Ele não tem as características infinitas da
autotransparência do espírito absoluto hegeliano; é dialético, mas somente na
medida em que vive no diálogo a cada vez finito e qualificado das humanidades
históricas. Gadamer chama-o também de entendimento social (sozialer Einverstandnis) e consciência social (mas num sentido mais
restrito e descritivo.
IX. HERMENÊUTICA E ANTROPOLOGIA
A “transcendentalização” da antropologia, se assim se pode dizer e que a
mim parece o sentido das recentes posições de Habermas (e de Apel), parece-me
útil como ponto de partida para uma reflexão sobre hermenêutica e antropologia,
porque é avançada por Rorty no quadro de uma adesão substancial aos resultados
do pensamento de Heidegger e de Gadamer, portanto do ponto de vista da
hermenêutica. Ela atesta uma espécie de vocação desta última a entrar numa
relação estreitíssima com a antropologia cultural, ou melhor, poder-se- ia
dizer, a dissolver-se nela. É verdade que, como se sabe, Habermas e Apel
pretende libertar de seus limites internos, refundando-a na perspectiva de uma
teoria da comunicação ilimitada, entendida como a priori de tipo Kantiano; mas, para ser fiel às suas origens
heideggerianas, a hermenêutica se recusa a toda e qualquer reassunção numa
perspectiva transcendental; Kantismo e neokantismo são momentos daquele
pensamento metafísico além do qual Heidegger propusera-se ir, partindo de uma
concepção em torno da noção de Geworfenheit
como qualidade da vez radicalmente contingente do projeto no âmbito do qual as
coisas se dão ao Ser-aí como mundo. A Geworfebheit
– não abstramente teorizada (como ainda podia parecer em Sein und Zeit, com o corolário de fundar uma possível “antropologia
filosófica” heideggeriana), mas repleta das qualificações histórico-destinais
que se tornaram claras a Heidegger nas obras dos anos 30 e que identificam a
“projetidade” do projeto como seu “estar disposto” numa linguagem
historicamente determinada – é precisamente a que só se abre a uma consideração
antropológica no sentido vasto, mas bastante específico, a que alude a página
de Rorty. Se ainda não quisermos fazer antropologia metafísica (descrição de
estruturas universais do dar-se do fenômeno homem), porque levamos a sério a
projetidade histórico-destinal do Ser-aí, então não podemos deixar de desenvolver
o discurso no sentido da antropologia cultural, aquela que, segundo a expressão
de Habermas, que também pode ser lida em sentido heideggeriano, considera os
interesses cognoscitivos (ou: os projetos que servem de a priori de qualquer relação do homem com o mundo) resultados da
história natural – porém, mais em geral, da história tout court, já que é verossímil que, fora da perspectiva
transcendental, também a distinção entre história natural e “história” não tem
mais sentido. Diremos, pois: como eventos no âmbito do Geschick. Ao enfatizar essa espécie de vocação da hermenêutica à
antropologia cultural, Rorty isola seguramente um dos significativos que a
antropologia adquiriu no curso da sua história, talvez o mais remoto e mais
problemático (como veremos), mas também, provavelmente, o mais característico.
A
posição de Rorty de que partimos não privilegia apenas um certo modo de
conceber a antropologia; ou, melhor, realiza essa opção com base numa concepção
da hermenêutica que é necessário esclarecer. Na perspectiva de , a hermenêutica
é definida em oposição á epistemologia, numa obra, já citada Philosophy and the Mirror of Nature, cujo tema principal é a crítica do modelo
fundacional da filosofia ocidental que culmina, na idade moderna, precisamente como
uma progressiva identificação entre a filosofia e a epistemologia (entendida
como teoria do conhecimento fundado – e fundado numa capacidade da mente de
espalhar fielmente a natureza, ou, em todo caso, de funcionar de acordo com um
esquema estável, natural, etc.). Muito embora existam algumas oscilações no uso
que Rorty faz do termo epistemologia, a
contraposição com base na qual define a hermenêutica é clara: a epistemologia
se baseia no pressuposto de que todos os discursos são comensuráveis e traduzíveis
entre si, e de que a fundação da sua verdade consiste precisamente na tradução
numa linguagem de base, a linguagem do espelhamento dos fatos, ao passo que
hermenêutica admite que essa linguagem de base, a linguagem do outro, em vez de
traduzi-la na sua. A hermenêutica, poderíamos dizer, é mais como travar
conhecimento com uma pessoa do que seguir uma demonstração logicamente
construída. Epistemologia e hermenêutica não se excluem reciprocamente, mas,
pelo menos num dos sentidos que Rorty atribui aos termos, aplicam-se a campos
diferentes: a epistemologia é o discurso da “ciência normal”, enquanto a
hermenêutica é o discurso da “ciência revolucionária”. “ Somos
‘epistemológicos’ ” , diz Rorty, “quando entendemos perfeitamente o que
acontece, mas queremos codificá-lo com vistas a ampliá-lo, reforçá-lo
ensiná-lo, fundá-lo. Somos necessariamente hermenêuticos quando não entendemos
o que acontece, mas somos honestos o bastante para admiti-lo...
Na
ontologia hermenêutica contemporânea, a centralidade da condição inicial do Missverstehen se transforma numa
verdadeira concessão do ser, que o caracteriza com os traços da eventualidade e
da alteridade. Segundo Heidegger, não se dá um ser senão como Zwiefalt, como “desdobramento”, e é
provável que um dos modos em que o Zwiefalt
acontece – ou melhor, talvez o próprio modo em que o Zwiefalt acontece – seja precisamente a situação interpretativa, o
dar-se do texto, ou do outro em geral, como alteridade (com isso, insiste-se
numa leitura de Heidegger que poderia eliminar alguns pontos de oposição com E.
Levinas). Poderíamos dizer que, a menos que se queira correr o risco de recair numa concepção
onticizante do ser, não se pode pensar a diferença ontológica a não ser como
“interferência”, ou, o que dá no mesmo, como diálogo. Não há outra experiência,
outro modo de dar-se do ser (o qual, de resto, nada é além desse dar-se) a não
ser o choque do Missverstehen inicial,
que se experimenta diante da alteridade.
A
ocidentalização aconteceu antes de mais nada no nível de extensão do domínio
político e, sobretudo, da difusão de modelos culturais; mas esse aspecto
político-cultural é acompanhado por outro, de caráter mais científico e
metodológico: o fato de que as sociedades ditas primitivas sejam encaradas como
objetos de um saber todo dominado por categorias “ocidentais”. O que nada
diminui, convém precisar, o caráter científico da antropologia cultural; ao
contrário, apenas o emprego dessas categorias profundamente ocidentais faz da
antropologia uma ciência, isto é, um aspecto da empresa metafísica de redução
do mundo à objetividade mensurável. Mas precisamente isso levanta dúvidas sobre
a possibilidade de conceber a antropologia como discurso sobre as outras
culturas, o que em nada compromete a validez científica do trabalho de campo,
por exemplo, que em vez de ser enquadrado numa conceitualidade científica de
rigor metafísico se vê claramente distinguido pela curiosidade exótica, pelo
abandono à intuição individual, pelo gosto preguiçoso-sonhador por horizontes
mágicos.
Reconhecer que a condição de encontro com a alteridade cultural radical
– que representa o conteúdo da noção de hermenêutica etnográfica e também da
noção de antropologia como Rorty a descreve – é, na realidade, um ideal prenhe
do condicionamentos ideológicos abre caminho para um passo ulterior do
discurso, que não se limite a registrar a ocidentalização como um acontecimento
lamentável provocado pelo triunfo do capitalismo imperialista aliado à ciência-
técnica da época da metafísica consumada. Assim como a antropologia nutre
fundadas suspeitas acerca do caráter ideológico do ideal de um encontro com
culturas radicalmente outras, também a hermenêutica faz a experiência de que o
sonho de uma alteridade radical é ausgetraumt,
tanto no plano teórico como no plano histórico-destinal.
A
experiência que a hermenêutica faz com a antropologia (buscando, como vimos em
Rorty, uma espécie de
identificação-dissolução nela) se torna, desse ponto de vista, uma experiência
decepcionante que produz um amadurecimento. A hermenêutica busca a antropologia
como discurso da alteridade radical; mas, de fato, a antropologia não se
interpreta (mais?) como esse lugar da alteridade e pensa a si mesma como um
aspecto interno do processo geral d ocidentalização e homologação – processo
que, de resto, só se manifesta como uma perda do ponto de vista de um ideal
desvelado, por sua vez, como ideológico. Essa vicissitude da antropologia
funciona, para a hermenêutica, como um convite ulterior a meditar de maneira
menos enfática, ou “metafísica”, sobre os problemas trazidos à luz pelo nexo
entre as duas questões, (a) e (b), que nos colocamos. Tendo começado procurando
na antropologia um terreno ideal de verificação da sua concepção do ser como
eventualidade e alteridade, a hermenêutica se vê remetida a meditar sobre o
significado da mesmice e sobre o nexo desta com a homologação metafísica do
mundo.
O
que temos diante de nós não é a organização total do mundo em rígidos esquemas
tecnológicos, mas “um enorme estaleiro de sobrevivências” que, interagindo com
a distribuição desigual do poder e dos recursos em nível planetário, dá lugar
ao crescimento de situações marginais que são a verdade do primitivo em nosso
mundo. A ilusão hermenêutica – mas também antropológica – de encontrar o outro,
com todas as suas enfatizações teóricas, vê-se às voltas com uma realidade
mista, em que a alteridade consumou-se, mas não a favor da sonhada organização
total, e sim de uma condição de contaminações difundidas. Talvez seja essa,
mais ainda que a Europa da tradicional unidade cristã em que a hermenêutica se
distinguiu, embora sempre como disciplina técnica, a condição dentro da qual
ela, ao contrário, se desenvolvesse em ontologia.
As perguntas que nos fizemos a cerca do possível nexo entre a mesmice do
diálogo hermenêutico e a homologação metafísica da terra devem levar em conta
isso, quando mais não porque um dos dois termos da relação a pensar – a
homologação – é transformado; e, a meu ver, num sentido decisivo, já que, no
horizonte de uma ontologia da eventualidade e da alteridade, a única forma de
mesmice que se pode admitir sem cair na identificação metafísica do ser com um
ente é precisamente essa mesmice fraca, contaminada – não, é claro, a unidade
férrea da organização total do mundo metafísico-técnico, mas tampouco uma
unidade “autêntica” qualquer que se oponha diametralmente a ela. Na
autoconsciência da antropologia cultural atual que se confronta com a
marginalidade do primitivo – e de qualquer outra cultura – em nosso mundo,
esperamos talvez a ambigüidade do Ge-Stell
heideggeriano, lugar de extremo perigo, mas, também, primeiro lampejar do Ereignis.
O
grande estaleiro de sobrevivências não é muito diferente do guarda-roupas de um
teatro, a que Nietzsche compara o ‘jardim da história” em que o homem do século
XIX circula sem encontrar nenhuma identidade forte, mas apenas uma
disponibilidade de “máscaras”. Tudo isso, como podemos admitir, se pensarmos na
experiência da antropologia e na condição do primitivo como gueto e margem, sem
nenhuma implicação de significados “dionisíacos”, lúdicos, ou até, poderíamos
dizer, de leuzianos. O mundo da ontologia hermenêutica (genitivo subjetivo e
objetivo) não é nem a “jaula de aço” da organização total, nem a glorificação
do simulacro de Deleuze; ele é, ao contrário, o mundo do niilismo em ato, em
que o ser só tem chance de tornar a dar-se como autêntico na forma do
empobrecimento – não a pobreza da ascese ainda ligada ao mito de encontrar, no
fundo, o núcleo esplendente do verdadeiro valor, mas a pobreza do
inaparente-marginal, da contaminação vivida como único Ausweg possível dos sonhos da metafísica, como quer que sejam
camuflados. (Talvez o cargo cult também seja “um primeiro
lampejar do Ereignis”.) A
antropologia não é – como tampouco a hermenêutica – nem o encontro com a
alteridade radical, nem a “organização” científica do fenômeno humano em termos
de estruturas; provavelmente, ela se fecha na sua forma (a terceira dentre as
que foram historicamente definidas em nossa cultura) de diálogo com o arcaico –
mas do único modo em que o Arché pode
se dar na época da metafísica consumada: a forma da sobrevivência, da
marginalidade e da contaminação.
X. NIILISMO E PÓS-MODERNO EM FILOSOFIA
1. Um discurso sobre o
pós-moderno em filosofia, se não quiser ser apenas uma pesquisa rapsódica das
características da filosofia contemporânea capazes de ser comparadas coma quilo
que, em outros domínios, da arquitetura à literatura e à crítica, é chamado por
esse nome, deve ser guiado, creio eu, por um termo introduzido em filosofia por
Heidegger, o de Verwindung. Verwindung é a palavra que Heidegger
usa, de resto bastante raramente (uma página de Holzwege, um ensaio de Vortrage
und Aufsatzw e, sobretudo, o primeiro dos dois ensaios de Identitat und Differenz), para indicar
algo análogo á Ueberwindung, a
superação ou ultrapassamento, mas que se distingue desta por nada possuir da Aufhebung dialética, nem do “deixar para
trás” que caracteriza a relação com um passado que não tem mais nada a
dizer-nos. Ora, é precisamente a diferença entre Verwindung que nos pode ajudar a definir o “pós” do pós-moderno em
termos filosóficos.
O
primeiro filósofo a falar em termos de Verwindung,
ainda que, naturalmente, não empregue essa palavra, não é Heidegger, mas
Nietzsche. Pode-se sustentar legitimamente que a pós-modernidade filosófica
nasce na obra de Nietzche.
Humano, demasiado humano efetua uma verdadeira dissolução
da modernidade mediante a radicalização das próprias tendências que a
constituem. Se a modernidade se define como a época da superação, da novidade
que envelhece e é logo substituída por uma novidade mais nova, num movimento
irrefreável que desencoraja qualquer criatividade, ao mesmo tempo que requer e
a impõe como única forma de vida – se assim é, então não se poderá sair da
modernidade pensando-se superá-la. O
recurso às forças eternizantes indica essa exigência de encontrar um caminho
diferente. Nietzche vê com muita clareza, já no ensaio de 1874, que o
ultrapassamento é uma categoria tipicamente moderna e, portanto, não é capaz de
determinar uma saída da modernidade. Não apenas a modernidade é constituída
pela categoria da superação temporal (a inevitável sucessão dos fenômenos
históricos de que o homem moderno se torna consciente por causa do excesso de
historiografia), mas também, segundo uma conseqüêncialidade muito estrita, pela
categoria da superação crítica.
Deus “morre”, vitimado pela religiosidade, pela vontade de verdade que
seus fiéis sempre cultivaram e que agora os leva a reconhecer ele próprio como
um erro de que agora os leva a reconhecer ele próprio como um erro de que agora
podem dispensar-se.
É com essa conclusão niilista que se sai de fato da modernidade, segundo
Nietzsche. Pois a noção de verdade não mais subsiste e o fundamento algum para
crer no fundamento, isto é, no fato de que o pensamento deva “fundar”: não se
sairá da modernidade mediante uma superação crítica, que seria um passo ainda
de todo interno à própria modernidade. Fica claro, assim, que se deve buscar um
caminho diferente. É esse momento que se pode chamar de nascimento da
pós-modernidade em filosofia, um acontecimento cujos significados e cujas
conseqüências, assim como os da morte de Deus anunciada no aforismo 125 da Gaia ciência, ainda não acabamos de
medir.
A
primeira e mais relevante, que se anuncia na mesma obra, a Gaia ciência, em que Nietzsche fala pela primeira vez da morte de
Deus, é a idéia do eterno retorno do igual; que significa, entre outras coisas,
o fim da época da superação, isto é, da época do ser pensado sob o signo do novum. Quaisquer que sejam os outros
significados, deveras problemáticos, da idéia do eterno retorno no plano
metafísico, ela tem, pelo menos, com certeza, esse sentido “seletivo” (o
adjetivo é de Nietzsche); ou seja, para nós, de revelar a essência da
modernidade como época da redução do ser ao novum.
Tanto as vanguardas artísticas do início do século (sobretudo o futurismo, como
é obvio), quando certas filosofias, como o hegeliano-marxismo de Bloch, mas
também de Adorno e de Benjamin, podem ser evocadas aqui como exemplos de tal
redução. Mas poderíamos recordar igualmente que, em ética, o valor que parece
ser mais geralmente – e tacitamente – aceito hoje é o de “desenvolvimento): o
bem é mais ou menos explicitamente o que abre a possibilidade de um
desenvolvimento ulterior, da personalidade, da vida, etc. O caráter “epocal” do
fenômeno também é visto no fato de que, conquanto com Nietzsche e Heidegger
seja possível reconhecer que a ética não se pode fundar em tal valor, não
encontramos facilmente qual valor poderia substituí-lo. A pós-modernidade
apenas começou, a identificação do ser com o novum (que, como se sabe, Heidegger vê expressa de modo emblemático
pela noção nietzscheana de vontade de poder) continua a projetar a sua sombra
sobre nós, como o Deus já morto de que fala A gaia ciência.
A
Aufklarung – o desenrolar da força do
fundamento na história – não acaba com a destruição da idéia de verdade e de
fundamento.
A tarefa do pensamento não é mais, como sempre a modernidade pensou,
remontar ao fundamento e, por essa via, encontrar o novum-se-valor, que em
se desenrolar sempre posterior confere sentido à história:
basta pensar como os renascimentos, na arte e na cultura ocidental, sempre
foram inspiradas por retomadas – da origem, do “clássico”, etc.
É
sobretudo essa comparação entre a insignificância da e a riqueza de cores da
realidade mais próxima que nos pode proporcionar uma idéia do que Nietzsche
pensa se a tarefa do pensamento na época em que a fundação e a idéia de verdade
se dissolveram.
O
que Humano, demasiado humano, em suas linhas finais, chama de uma “filosofia da
manhã” é, justamente, o pensamento não mais orientado com base na ou no
fundamento, mas na proximidade.
Todas
as obras do período iniciado com Humano, demasiado humano (ou seja,
principalmente Aurora e A gaia ciência) são um esforço para determinar a idéia
dessa filosofia da manhã.
O
homem capaz da filosofia da manhã é o homem de bom temperamento, que não tem em
se nada “do tom irritadiço e do encarniçamento característico dos cães e dos
homens envelhecidos... nos grilhões”. Têm o mesmo sentido as ilusões, bastante
freqüente inclusive por motivos biográficos, à saúde, à convalescença, que
enchem as páginas dos escritos desse mesmo período. Estamos mais uma vez diante
de um esforço para pensar a saída da metafísica numa forma não ligada a
superação crítica, como na Segunda inatual; mas aqui, em conseqüência da
radicalização da análise química, sabemos que não se trata de recorrer a
valores “supra-históricos”, mas de viver plenamente a experiência da
necessidade do erro, de elevar-se por um instante acima do processo, ou seja,
de viver a errância com uma atitude diferente. Sabemos, sobretudo, que o
conteúdo do pensamento da manhã nada mais é que a própria errância da
metafísica, apenas vista de um ponto diferente, o do homem de “bom
temperamento”.
Para descrever essa atitude - cujo sentido essencial é reportar-se ao
passado da metafísica (e, portanto, também a modernidade como o resultado final
dela e da moral platônico-cristã) de um modo que não seja nem a pura aceitação
dos seus erros, nem a crítica ultrapassaste que, na realidade, os prossegue e
que Nietzsche pensa em termos de convalescença e de bom temperamento - , creio
que se deve recorrer `a noção heideggerianos. Não proporei, todavia, aqui, uma
análise completa dele. Em todos os textos aqui ilude pouco acima, trata-se de
um texto que indica uma espécie de Ueberwindung imprópria, de uma superação que
não é no sentido usual da palavra, nem no sentido da Aufhebung dialética.
Por ora, gostaria apenas de mostrar em que sentido a palavra Verwindung
pode nos ajudar o que Nietzsche busca sobre o nome de filosofia da manhã e que,
na hipótese que proponho, constitui a essência da pós- modernidade filosófica.
Para Heidegger, a possibilidade de uma mudança que nos leve a um
Ereignis mais de princípio – ou seja: fora, além, da metafísica – está ligada a
uma Verwindung desta. Traduzamos: a metafísica não algo que “se possa pôr de lado, como uma
opinião. Tampouco se pode deixa-la para trás, como uma doutrina que não se
acredita mais”, ela é algo que permanece em nós como vestígios de uma doença ou
como uma dor, a que nos resignamos; ou, ainda, poderíamos dizer, jogando com a
polivalência do termo italiano rimettersi,
é algo que de que alguém se restabelece, se recupera, a que alguém se remete,
que alguém remete (que envia). Além de todos esses significados, também há o de
distorção, que, de resto, já se pode ler no significado da
convalescença-resignação: não se aceita a metafísica pura e simplesmente, como
ninguém se dá sem reservas ao Ge-Stell
como sistema da imposição tecnológica; pode-se viver a metafísica e o Ge-Stell como uma chance, como a possibilidade
de uma mudança em virtude da qual aquela e este se torcem numa direção Que não
é a prevista por sua essência própria, mas que a ela está relacionada.
Um
pensamento da fruição. Ainda que se insista, como se faz aqui, no alcance
emancipador do Andenken, este sempre
pode Ter a aparência de uma pura e simples repetição apologética da tradição
metafísica.
A
ontologia hermenêutica implica uma ética que poderia ser definida como uma
ética dos bens em oposição a uma ética dos imperativos.
A
re-mamoração, ou, antes, a fruição (o reviver), também entendida em sentido
“estético”, das formas espirituais do passado não tem a função de preparar
alguma coisa, mas tem um efeito emancipador em si mesma. É a partir daqui, talvez, que uma ética pós-moderna
poderia ser oposta ás éticas, ainda metafísicas, do “desenvolvimento”, do
crescimento, do novum como valor
último.
Um
pensamento da contaminação. Na aproximação proposta entre a filosofia da manhã
de Nietzsche e o Andenken
heideggeriano há, cumpre reconhecê-lo, uma Verwindung,
uma retomada-distorção que se exerce sobre o próprio Heidegger. Ela consiste na
preferência que é dada aqui ao lado mais hermenêutico, ou, antes, niilista, do
pensamento heideggeriano.
A
tensão no sentido um pensamento totalmente outro pode levar a resultados
místicos; o interesse pelo remontar não tanto além, mas através das errâncias
da metafísica vai, ao contrário, na direção de uma “filosofia da manhã” de tipo
nietzschiano e sublinha um tom “niilista” no pensamento de Heidegger.
Um
pensamento do Ge-Stell. Já Nietzsche
ligara a experiência da morte de Deus – isto é, da superfluidade explícita de
todo fundamento – à nova situação de relativa segurança que a existência
individual e social adquiriu em virtude da organização social e do
desenvolvimento técnico. Em Heidegger, uma conexão análoga é representada pela
noção de Ge-Stell e por sua
ambigüidade . É precisamente a essa ambigüidade que se refere a Verwindung . Poderíamos dizer: o
“objeto” da Verwindung é principalmente
o Ge Stell ; nele, de fato, a metafísica se consuma em sua forma mais
desenvolvida, a organização total da terra mediante a técnica. Isso significa
que a Verwindung da metafísica se
exerce como Verwindung do Ge-Stell.
Em
outras palavras, trata-se-à de descobrir e de preparar a manifestação das
chances ultra e pós- metafísicas da tecnologia planetária. Essa Verwindung também será feita,
obviamente, reconstituindo-se a continuidade entre tecnologia e tradição
passada do ocidente, no sentido indicado pela tese heideggeriana da técnica
como continuação e consumação da metafísica ocidental.
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