segunda-feira, 2 de outubro de 2023

GIANNI VATTIMO - O Fim da Modernidade

 

 


Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna

 

 

Síntese: Paolo Cugini

 

 

I. APOLOGIA DO NILISMO

 

 

 

 

      A situação em que o homem rola do centro para X. Para Nietzsche, todo o processo do niilismo pode ser resumido na morte de Deus, ou, também, na “desvalorização dos valores supremos”. Para Heidegger, o ser se aniquila na medida em que se transforma completamente no valor.

 

    Somente onde não há instância terminal e “interruptiva”, bloqueadora, do valor supremo- Deus, os valores podem manifestar-se em sua verdadeira natureza, que é a   convertibilidade, e a transformabilidade processualidade indefinida.

 

    Não é por acaso que, precisamente através dos desenvolvimentos hermenêuticos do pensamento de Heidegger, o niilismo se impõe como a [única] chance do pensamento contemporâneo.

 

      Do ponto de vista do niilismo – e, por certo, com uma generalização que pode parecer exagerada --, parece que a cultura do século XX assistiu à consumação de todos os projetos de “ reapropriação”. Nesse processo incluem-se não apenas os acontecimentos da teoria –entre os quais, por exemplo, os desenvolvimentos lacanianos  do freudismo --, mas também, e mais fundamentalmente talvez, as próprias vicissitudes políticas do marxismo, das revoluções e do socialismo real. A perspectiva da reapropriação, seja na forma a defesa de uma zona livre do valor de troca, seja na forma, mais ambiciosa (que, pelo menos no plano teórico, aproxima marxismo e fenomenologia), da “Refundação” da existência, num horizonte subtraído ao valor de troca e centrado no valor de uso, sofreu um desgaste não apenas em termos de derrotas e falências práticas, que em nada diminuíram seu alcance ideal e normativo.

 

 

II. A CRISE DO HUMANISMO

 

      A negação de Deus, ou o registro da sua morte, não pode dar lugar hoje a nenhuma “reapropriação” pelo homem de uma sua essência alienada no fetiche do divino. Muita apologética continua a tirar daí, implícita ou explicitamente, um de seus argumentos contra o ateísmo, acusado de preludiar necessariamente uma destruição geral do humano – segundo uma espécie de nêmesis que arrastaria, como a torre de Babel, o homem rebelde à sua dependência metafísica constitutiva. Ainda que, como creio, se deva repelir essa rústica apologética de tipo punitivo, é inegável que subsiste uma conexão entre crise do humanismo e morte de Deus. Em primeiro lugar, ela caracteriza de modo peculiar o ateísmo contemporâneo, que não pode mais ser um ateísmo “reapropriativo”. Mas, em segundo lugar e mais profundamente, assinalada de maneira determinante o mesmo humanismo em crise, o qual se encontra nessa condição inclusive por não poder mais resolver-se num apelo a um fundamento transcendente. Desse último ponto de vista, também se pode aceitar a tese de que o humanismo está em crise porque Deus está morto; isto é, a verdadeira substância da crise do humanismo é a  morte de Deus, anunciada não por acaso por Nietzsche, que é também o primeiro pensador radical não- humanista da nossa época.

 

     A conexão entre crise e humanismo e morte de Deus, de resto, só pode parecer paradoxal caso se considere ser necessariamente o humanismo uma perspectiva que coloca o homem no centro do universo e que dele faz o senhor do ser.

 

     Não há humanismo a não ser como desenvolvimento de uma metafísica em que o homem determina um papel para si, que não é necessariamente central ou exclusivo. Ao contrário, como Heidegger de resto mostra em sua reconstrução, sempre retomada, da história da metafísica, é só na medida em que vem à luz seu caráter “humanístico”, no sentido de redução de tudo ao homem, que a metafísica pode sobreviver como tal. Quando esse caráter redutivo da metafísica se torna explícito, como acontece, segundo Heidegger, em Nietzsche (o ser como vontade de poder), a metafísica está em seu ocaso, e com ela, como constatamos cada dia, também declina o humanismo. Por isso , a morte de Deus – momento culminante e, ao mesmo tempo, final da metafísica – também é, inseparavelmente, a crise do humanismo. Em outras palavras ainda: o homem só mantém a posição de “centro” da realidade, a que alude a concepção corrente de humanismo, por força de uma referência a um Grund que lhe garante esse papel. A tese agostiniana segundo a qual Deus é o mais íntimo de mim do que eu mesmo o sou nunca foi uma verdadeira ameaça ao humanismo; ao contrário, serviu-lhe, inclusive historicamente, de suporte. “Larvatus prodeo”: esse mote familiar à psicanálise também é a lei do pensamento metafísico, que nesse sentido, sempre é ideológico. O sujeito só afirma sua centralidade na história do pensamento mascarando-se nos semblantes “imaginários” do fundamento (é verossímil que entre a concepção heideggeriana da metafísica e as teses lacanianas sobre o jogo de imaginário e simbólico haja mais que uma simples analogia ou proximidade superficial). Não se trata de propor uma interpretação psicologista da metafísica (no sentido que o termo tem para Heidegger), mas, no máximo, de inserir a problemática da constituição e da maturação do eu num horizonte ontológico, segundo a linha inaugurada por Heidegger em Sein uno Zeit.

 

    Em que sentido, mais precisamente, a conexão indicada por Heidegger entre humanismo e metafísica pode nos ajudar a compreender de maneira mais adequada crise do humanismo? Ao que parece, é sobretudo no sentido de conferir um significado filosófico preciso a um conjunto de idéias, não raro conectadas de uma forma pouco clara entre si, que compõe a consciência da crise do humanismo na cultura atual. Em Heidegger, de fato, a crise do humanismo, enquanto ligada à culminância da metafísica e a seu fim, relaciona-se de maneira não acidental à técnica moderna. Ora, é justamente em conexão coma técnica  que quase sempre se fala, hoje, de crise do humanismo.  A técnica aparece como causa de um processo geral de desumanização, que compreende seja o obscurecimento dos ideais humanistas da cultura em favor de uma formação do homem centrada nas ciências e nas habilidades produtivas racionalmente dirigidas, seja, no plano da organização social e política, um processo de acentuada racionalização que deixa entrever as características da sociedade da organização total, descrita e criticada por Adorno. É precisamente a respeito dessa conexão entre crise do humanismo e triunfo da civilização técnica, usual em grande parte da cultura hodierna, que Heidegger oferece indicações teóricas de peso decisivo.

    A veia existencialista que caracteriza a filosofia e a cultura européia do primeiro trintênio do século XX tende a ver na crise do humanismo apenas um processo de decadência prática de um valor – a humanidade--, que permanece, porém, definido teoricamente pelas mesmas características que tinha tradição.

 

        Nenhuma suspeita de que o fato de Ter posto em movimento esses mecanismos de desumanização possa indicar que há algo não funcionando na estrutura mesma do sujeito.

 

       Se a crise do humanismo está seguramente ligada, na experiência do pensamento do século XX, ao crescimento do mundo técnico e da sociedade racionalizada, esse vínculo nas diversas interpretações que dele são dadas constitui também uma linha de demarcação entre concepções profundamente diferentes do significado dessa crise. O ponto de vista que se desenvolve na discussão sobre ciências do espírito, que tem uma expressão teórica exemplar na fenomenologia, mas que, em geral, liga-se á corrente existencializada presente em boa parte da cultura das primeiras décadas do século XX (por exemplo, também e especialmente no marxismo), pode ser chamado, assim, de leitura nostálgico-restauradora da crise do humanismo. A relação com a técnica `vista, aqui, essencialmente, como uma ameaça, a que o pensamento reage seja tomando consciência cada vez mais nítida das características peculiares que distinguem o mundo humano do da objetividade científica, seja esforçando-se por preparar, teórica ou praticamente (como é o caso do pensamento marxista), a repropriação pelo sujeito da sua centralidade. Essa concepção restauradora não põe em discussão, de modo substancial, o humanismo da tradição, no sentido de que, para esta, a crise não atinge os conteúdos do ideal humanista, e sim suas chances de sobrevivência histórica nas novas condições de vida da modernidade.

    Mas outra atitude abre caminho no mesmo horizonte cultural e no mesmo arco de tempo: é uma atitude mais radical pela qual a imposição da técnica se configura não tanto como uma ameaça quanto como uma provocação, inclusive no sentido de apelo.

 

     Como a crise ou o fim da metafísica, também a crise do humanismo, que faz parte daquela, deve ser descritos em termos de  Verwindung, portanto de um ultrapassamento que, na realidade, é reconhecimento de vinculo, convalescença de uma doença, assunção de uma responsabilidade. Essa Verwindung – na metafísica, do humanismo – se realiza quando há abertura ao apelo do Ge-Stell. Na noção Heideggeriana de Ge-Stell, contudo o que ela implica, encontra-se a interpretação teórica da visão radical da crise do humanismo. Ge-Stell, que traduzimos por im-posição, representa, para Heidegger, a totalidade do “por” técnico, do interpelar, provocar, ordenar, que constitui a essência histórico- destinal do mundo da técnica. Essa essência não é diferente da metafísica, mas é a sua consumação; isso porque a metafísica sempre concebeu o ser como Grund, como fundamento que assegura a razão e de que a razão se assegura. Mas a técnica, em seu projeto global de concatenar tendencialmente todos os entes em vínculos causais previsíveis e domináveis, representa o desdobramento máximo da metafísica. Aqui está a raiz da impossibilidade de contrapor as erronias do triunfo da técnica à tradição metafísica; são momentos diferentes de um único processo. Enquanto aspecto da metafísica, o humanismo também não pode Ter a ilusão de representar valores alternativos aos valores técnicos. O fato de a técnica se apresentar como uma ameaça para a metafísica e para o humanismo é apenas uma aparência, derivada de que, na essência da técnica, desvendam-se as características próprias da metafísica e do humanismo, que estes sempre haviam mantido ocultas. Esse desvendamento- desdobramento também é momento final, culminância e início da crise, para a meta física e para o humanismo. Mas já que tal culminância não é o resultado de uma necessidade histórica, de um processo regido por alguma dialética objetiva, mas sim Gabe – dar-se-dom do ser, que tem um destino apenas como envio, missão, anúncio-- , por esses motivos, em última análise, a crise do humanismo não é ultrapassamento, mas Verwindung, apelo em que o homem é chamado a restabelecer-se do humanismo, a remeter-se a ele e a remetê-lo a si com algo que é destinado.

     Assim, o Ge-Stell não é apenas o momento em que a metafísica e o humanismo acabam, no sentido do desaparecimento e da liquidação, como a interpretação nostálgico-restauradora dessa crise; o Ge-Stell também é, escreve Heidegger, “um primeiro lampejar do Ereignis” , um anúncio do evento do ser com seu dar-se além dos quadros do pensamento imêmore da metafísica. O Ge-Stell comporta, de fato, a possibilidade de que, nele, envolvidos num abalo recíproco, homem e ser percam as suas qualificações metafísicas, antes de tudo a que os contrapõe como sujeito e objetivo. O humanismo, que é parte e aspecto da metafísica, consiste na definição do homem como subjectum. A técnica representa a crise do humanismo não porque o triunfo da racionalização negue os valores humanistas, como um análise superficial nos levou a crer, mas sim porque, representando a consumação da metafísica, chama o humanismo a uma superação, a uma Verwindung. Também em Nietzsche, antes de em Heidegger, a crise do humanismo estava ligada ao estabelecimento do domínio da técnica na modernidade, entendida como imortalidade da alma, e reconhecer que, ao contrário, o eu é muito mais um feixe de “várias almas mortais”, precisamente porque a existência na sociedade tecnologicamente evoluída não é mais caracterizada por um perigo contínuo e uma conseqüente violência.

 

    Já o anti-humanismo é, para Reidegger  um aspecto conseqüente da reproposição do problema do sentido do ser fora do horizonte metafísico da simples presença. O anti- humanismo heideggeriano, em suma, não se formula como reivindicação de um “outro princípio que, transcendendo o homem e suas pretensões de domínio (a “vontade de poder” e o niilismo que a acompanha), poderia fornecer um ponto de referência. Isso coloca fora de questão, na minha opinião, a possibilidade de uma leitura “religiosa” de Heidegger. O sujeito é “ultrapassado” na medida em que é um aspecto do pensamento que esquece o ser em favor da objetividade e da simples- presença. Esse pensamento, entre outras coisas, torna impossível compreender a vida do Ser- aí na sua peculiar historicidade e a reduz ao momento da certeza de si, à evidência do sujeito ideal da ciência; elimina-se, pois, o que o Ser- aí tem de puramente “subjetivo”, enquanto não redutível ao “sujeito do objeto. Por isso, o humanismo da tradição metafísica também tem o caráter repressivo e ascético, que se intensifica no pensamento moderno quanto mais a subjetividade se modela com base na objetividade científica e torna-se pura função dela.

 

     O primado do sujeito na metafísica é função da redução do ser á presença: o humanismo é a doutrina que atribui ao homem o papel de sujeito, isto é, de autoconsciência como sede da evidência, no quadro do ser pensado como Grund, como presença plena. Também em nome das razões “não humanistas” do sujeito – da sua Befindlichkeit, da sua historicidade, das sua diferenças -- , Sein und Zeit colocara o problema do ser e mostrara, inicialmente, que a concepção do ser com base do modelo da presença era fruto de um ato de “abstração” histórico- cultural, que está esclarecido posteriormente como um evento destinal, de Geschic. Como quer que seja, poderíamos dizer, começa-se desde então a suspeitar uma Erde por trás da Welt histórico- cultural da metafísica. Por trás do ser como simples- presença da objetividade está o ser como tempo, como acontecimento da época e destino, e por trás da consciência que intenciona as coisas como evidências há outra coisa, a projetualidade jogada da existência que contesta as pretensões de hegemonia da consciência.

      Essa “recuperação” dos elementos irdisch, terrestres, que também são elementos autenticamente históricos (não historocistas) do existir, não pode, porém, ser configurada como uma reapropriação. A obstinação com o que Heidegger  trabalha, nos escritos tardios, em torno da noção de Ereignis e dos conceitos conexos de Ver- eignen, Enteignen, Ueber- eignen pode ser explicada, mais do que como uma atenção ao caráter eventual, não simplesmente- presente, do ser, como um esforço para libertar seu conceito juvenil de Eigentlichkeit, autenticidade, de qualquer valência reapropriante (e, portanto, como tal, ainda metafísica e humanista).

    O que significa dizer que a crise do humanismo contemporâneo é crise na medida em que falta qualquer base possível de “reapropriação” – isto é inextricavelmente ligada à morte de Deus e ao fim da metafísica --, é o que Heidegger se esforça por pensar na sua interrogação da essência da técnica moderna.

 

    Se vale a análise, heideggeriana do nexo entre metafísica, humanismo e técnica, o sujeito que nos era proposto defender da desumanização técnica era, precisamente ele, a raiz dessa desumanização, já que a subjetividade que se define doravante apenas como o sujeito do objeto é pura função do mundo da objetividade, tendendo, ao contrário, irrefreavelmente, a também se tornar objeto de manipulação.

    Escutar o apelo do Ge Stell como “ primeiro lampejar do Ereignis” quer dizer, pois, dispor-se a viver radicalmente a crise do humanismo. O que não significa – e o nome de Heidegger deveria garanti-lo – entregar-se sem reservas às leis da técnica, à multiplicidade dos seus “jogos”, à vertiginosa concatenação dos seus mecanismos. O fim da metafísica não nos liberta para esse tipo de entrega. Por isso, Heidegger insiste sempre que é necessário pensar a essência da técnica e que essa essência não é, por sua vez, uma coisa técnica. A saída do humanismo e da metafísica não é uma superação, é uma Verwindung; a subjetividade não é uma coisa que se deixa simplesmente para trás, como um traje que se deixa de usar. Se, por um lado, Heidegger fornece as condições teóricas para eliminar qualquer visão demoníaca da técnica e da racionalização social e para apreender os elementos de destino que nos falam a partir dela, por outro reconduz a técnica ao sulco da metafísica e da tradição que nos liga a ela. Ver a técnica em seu nexo com essa tradição significa também não se deixar impor o mundo que ela plasma como a “realidade”, dotada das características peremptórias, mais uma vez metafísicas, que eram próprias do ontos on metafísico, é indispensável um sujeito que não se pense mais, por sua vez, como sujeito forte. A crise do humanismo, no sentido radical que assume em pensadores como Nietzsche e Heidegger, mas também em psicanalistas como Lacan e, talvez, em escritores como Musil, resolve-se provavelmente numa “cura de emagrecimento do sujeito”, que o torne capaz de escutar o apelo de um ser que não se dá mais no tom peremptório do Grund, ou do pensamento de pensamento, ou do espírito absoluto, mas que dissolve a sua presença- ausência nos retículos de uma sociedade transformada cada vez mais num organismo sensibilíssimo de comunicação.

 

 

O FIM DA MODERNIDADE

 

     O Ser-aí só pode ser uma totalidade antecipando(se para) a morte. Dentre todas as possibilidades que constituem o projeto do Ser-aí, isto é, seu ser-no-mundo, a possibilidade de morrer é a única de que o Ser-aí não pode escapar. Não só: a morte também é a possibilidade que, enquanto o Ser-aí é, permanece pura possibilidade, Mas é precisamente nesse fato de ser uma possibilidade permanente, que realizando-se tornaria impossíveis todas as outras possibilidades aquém dela (as possibilidades concretas de que o homem de fato vive), que a morte também age como o fator que manifesta todas as outras possibilidades em seu caráter de possibilidade e que, portanto, confere à existência o ritmo móvel de um dis-cursus, de um contexto cujo sentido se constitui como um todo musical que nunca se detém numa nota isolada.

     Tudo isso significa que o Ser-aí só se funda como uma totalidade hermenêutica na medida em que vive continuamente a possibilidade de não existir-mais. Podemos descrever essa condição dizendo que a fundação do Ser-aí coincide com o seu “desfundamento”: a totalidade hermenêutica do Ser aí é fundada unicamente em relação com a sua possibilidade constitutiva de não existir mais.

 

     A não identificabilidade de ser e fundamento é um dos pontos mais explícitos da ontologia heideggeriana: o ser não é fundamento, qualquer relação de fundação se dá já sempre no interior de uma época do ser. Numa passagem de Ser e tempo, aliás Heidegger fala explicitamente da necessidade de “abandonar o ser como fundamento”, se quiser aproximar de um pensamento não mais metafisicamente orientado apenas para a objetividade.

 

     O Na-denken, isto é, o rememorar que se contrapõe ao esquecimento do ser característico da metafísica, se define assim como um salto no abismo da mortalidade, ou, o que dá o mesmo, como um confiar-se ao vínculo libertador da tradição. O pensamento que se subtrai ao esquecimento metafísico não é, portanto, um pensamento que alcança o ser em pessoa, representando-o, fazendo-o presente; ao contrário, é precisamente isso que constitui o pensamento metafísico da objetividade. O ser nunca é verdadeiramente pensável como presença; o pensamento que não o esquece é apenas o que recorda, isto é, que o pensa já sempre como desaparecido, ido embora, ausente. Portanto, também é verdade, em certo sentido, para o pensamento rememoramte o que Heidegger diz do niilismo: que, nesse pensamento, do ser como tal “nada mais há”. A importância da tradição, isto é, da transmissão de mensagens lingüisticas cujas cristalizações constituem o horizonte dentro do qual o Dasein é jogado enquanto projeto historicamente determinado, deriva do fato de que, precisamente, o ser como horizonte capaz de abertura e no qual os entes aprecem só se pode dar sempre como vestígio de palavras passadas, anúncio transmitido (jogam aqui as ressonâncias literais do termo Geschick, que significa destino e envio). Esse transmitir relaciona-se intimamente coma  mortalidade do Ser-aí: só porque as gerações se sucedem no ritmo natural de nascimento e morte, o ser é anúncio que se transmite.

 

     Como sucede nas reconstruções etimológicas que Heidegger faz das grandes palavras do passado, a relação com a tradição não nos fornece um ponto firme sobre o qual poderíamos apoiar-nos, mas impele-nos a uma espécie de remontar in infinitum, em que a pretensa definitividade e coatividade dos horizontes históricos em que nos encontramos se fluidifica, ao passo que a ordem presente dos entes, que, no pensamento objetivante da metafísica, pretende identificar-se com o ser, é desvelada como um horizonte histórico particular. Mas não num sentido puramente relativista: o que Heidegger tem m vista é sempre o sentido do ser, e não a relatividade irredutível das épocas. Através do remontar in infinitum e da fluidificação dos horizontes históricos, é o sentido do ser que é recordado. Esse sentido, que só se dá a nós como ligado à mortalidade, à transmissão de mensagens lingüisticas entre as gerações, é o oposto da concepção metafísica do ser como estabilidade, força, enérgheia; é um ser fraco, declinante, que se desdobra no desvanecer, aquele Gering, inaparente irrelevante, de que fala a conferência sobre A coisa. 

       Se assim é, não apenas a constituição hermenêutica do Ser-aí tem um caráter niilista, porque o homem só seu funda rolando do centro para X, mas também porque o ser cujo sentido se trata de recuperar é um ser que tende a identificar-se com o nada, com as características efêmeras do existir, como encerrado entre os termos do nascimento e da morte.

 

 

VIII. VERDADE E RETÓRICA NA ONTOLOGIA HERMENÊUTICA

 

    É sobretudo enquanto sede, ou lugar, de realização do concreto, do ethos comum de uma determinada sociedade histórica, que a linguagem serve de mediação total da experiência do mundo. Mais ainda que de linguagem, portanto, poder-se-ia falar de uma língua historicamente determinada. Nela, vivenciamos aquele mundo “que possuímos e compartilhamos, o qual abraça a história passada e o presente e recebe sua articulação lingüistica nos discursos que os homens se dirigem reciprocamente. É esse mundo compartilhado e articulado na língua que possui as características da racionalidade; com ele se identifica o logos, entendido ao mesmo tempo como linguagem como logos vivo, segundo Gadamer, a concepção grega da racionalidade da natureza e a concepção hegeliana da razão na história. E também poderíamos acrescentar, a visão da língua natural presente na filosofia analítica posterior a Wittgenstein. Gadamer descreve esse âmbito lingüistico- ético que rege a experiência retomando a noção grega de Kalón, em conexão com a de theoría. A theoría não é, antes de mais nada, no mais antigo uso lingüistico dos gregos, uma construção conceitual formalizada, que comporta um destaque “objetivante” entre sujeito e objeto. Ela é, ao contrário, a participação na procissão do deus, participação em que os theorói atuam, de resto, como delegados da sua polis; portanto, é um olhar participando e, de certo modo, pertencendo mais do que possuindo o objeto. E kalón, como escreve Gadamer num dos ensaios de A razão na idade da ciência, “não designava apenas as criações da arte e do culto... mas compreendia também o que era desejável sem sombra de dúvidas e que não era necessário justificar, mostrando a sua utilidade. Isso, para s gregos, era o domínio da theoría, e theoría para eles era entregar-se a algo que, sobrevindo com a sua presença, se oferece a todos como um Dom comum...”.

     A linguagem como lugar da mediação total é, precisamente, essa razão, esse logos que vive no pertencer comum a um tecido de tradição viva, a um ethos. Assim entendida, a linguagem- logos-kalón tem um nexo constitutivo com o bem: ambos são fins por si mesmos, valores últimos não buscados com vistas a outro, e a beleza é apenas a perceptibilidade da idéia do bem, seu resplandecer, como Gadamer escreve no parágrafo conclusivo de verdade e método. Qualquer racionalidade da experiência histórica de indivíduos ou grupos só é possível em referência a esse logos, que é, ao mesmo tempo, mundo e linguagem. Ele não tem as características infinitas da autotransparência do espírito absoluto hegeliano; é dialético, mas somente na medida em que vive no diálogo a cada vez finito e qualificado das humanidades históricas. Gadamer chama-o também de entendimento social (sozialer Einverstandnis) e consciência social (mas num sentido mais restrito e descritivo.

 

 

IX. HERMENÊUTICA E ANTROPOLOGIA

 

        A “transcendentalização” da antropologia, se assim se pode dizer e que a mim parece o sentido das recentes posições de Habermas (e de Apel), parece-me útil como ponto de partida para uma reflexão sobre hermenêutica e antropologia, porque é avançada por Rorty no quadro de uma adesão substancial aos resultados do pensamento de Heidegger e de Gadamer, portanto do ponto de vista da hermenêutica. Ela atesta uma espécie de vocação desta última a entrar numa relação estreitíssima com a antropologia cultural, ou melhor, poder-se- ia dizer, a dissolver-se nela. É verdade que, como se sabe, Habermas e Apel pretende libertar de seus limites internos, refundando-a na perspectiva de uma teoria da comunicação ilimitada, entendida como a priori de tipo Kantiano; mas, para ser fiel às suas origens heideggerianas, a hermenêutica se recusa a toda e qualquer reassunção numa perspectiva transcendental; Kantismo e neokantismo são momentos daquele pensamento metafísico além do qual Heidegger propusera-se ir, partindo de uma concepção em torno da noção de Geworfenheit como qualidade da vez radicalmente contingente do projeto no âmbito do qual as coisas se dão ao Ser-aí como mundo. A Geworfebheit – não abstramente teorizada (como ainda podia parecer em Sein und Zeit, com o corolário de fundar uma possível “antropologia filosófica” heideggeriana), mas repleta das qualificações histórico-destinais que se tornaram claras a Heidegger nas obras dos anos 30 e que identificam a “projetidade” do projeto como seu “estar disposto” numa linguagem historicamente determinada – é precisamente a que só se abre a uma consideração antropológica no sentido vasto, mas bastante específico, a que alude a página de Rorty. Se ainda não quisermos fazer antropologia metafísica (descrição de estruturas universais do dar-se do fenômeno homem), porque levamos a sério a projetidade histórico-destinal do Ser-aí, então não podemos deixar de desenvolver o discurso no sentido da antropologia cultural, aquela que, segundo a expressão de Habermas, que também pode ser lida em sentido heideggeriano, considera os interesses cognoscitivos (ou: os projetos que servem de a priori de qualquer relação do homem com o mundo) resultados da história natural – porém, mais em geral, da história tout court, já que é verossímil que, fora da perspectiva transcendental, também a distinção entre história natural e “história” não tem mais sentido. Diremos, pois: como eventos no âmbito do Geschick. Ao enfatizar essa espécie de vocação da hermenêutica à antropologia cultural, Rorty isola seguramente um dos significativos que a antropologia adquiriu no curso da sua história, talvez o mais remoto e mais problemático (como veremos), mas também, provavelmente, o mais característico.

 

      A posição de Rorty de que partimos não privilegia apenas um certo modo de conceber a antropologia; ou, melhor, realiza essa opção com base numa concepção da hermenêutica que é necessário esclarecer. Na perspectiva de , a hermenêutica é definida em oposição á epistemologia, numa obra, já citada Philosophy and the Mirror of Nature, cujo tema principal é a crítica do modelo fundacional da filosofia ocidental que culmina, na idade moderna, precisamente como uma progressiva identificação entre a filosofia e a epistemologia (entendida como teoria do conhecimento fundado – e fundado numa capacidade da mente de espalhar fielmente a natureza, ou, em todo caso, de funcionar de acordo com um esquema estável, natural, etc.). Muito embora existam algumas oscilações no uso que  Rorty faz do termo epistemologia, a contraposição com base na qual define a hermenêutica é clara: a epistemologia se baseia no pressuposto de que todos os discursos são comensuráveis e traduzíveis entre si, e de que a fundação da sua verdade consiste precisamente na tradução numa linguagem de base, a linguagem do espelhamento dos fatos, ao passo que hermenêutica admite que essa linguagem de base, a linguagem do outro, em vez de traduzi-la na sua. A hermenêutica, poderíamos dizer, é mais como travar conhecimento com uma pessoa do que seguir uma demonstração logicamente construída. Epistemologia e hermenêutica não se excluem reciprocamente, mas, pelo menos num dos sentidos que Rorty atribui aos termos, aplicam-se a campos diferentes: a epistemologia é o discurso da “ciência normal”, enquanto a hermenêutica é o discurso da “ciência revolucionária”. “ Somos ‘epistemológicos’ ” , diz Rorty, “quando entendemos perfeitamente o que acontece, mas queremos codificá-lo com vistas a ampliá-lo, reforçá-lo ensiná-lo, fundá-lo. Somos necessariamente hermenêuticos quando não entendemos o que acontece, mas somos honestos o bastante para admiti-lo...

 

   Na ontologia hermenêutica contemporânea, a centralidade da condição inicial do Missverstehen se transforma numa verdadeira concessão do ser, que o caracteriza com os traços da eventualidade e da alteridade. Segundo Heidegger, não se dá um ser senão como Zwiefalt, como “desdobramento”, e é provável que um dos modos em que o Zwiefalt acontece – ou melhor, talvez o próprio modo em que o Zwiefalt acontece – seja precisamente a situação interpretativa, o dar-se do texto, ou do outro em geral, como alteridade (com isso, insiste-se numa leitura de Heidegger que poderia eliminar alguns pontos de oposição com E. Levinas). Poderíamos dizer que, a menos que se queira  correr o risco de recair numa concepção onticizante do ser, não se pode pensar a diferença ontológica a não ser como “interferência”, ou, o que dá no mesmo, como diálogo. Não há outra experiência, outro modo de dar-se do ser (o qual, de resto, nada é além desse dar-se) a não ser o choque do Missverstehen inicial, que se experimenta diante da alteridade.

 

   A ocidentalização aconteceu antes de mais nada no nível de extensão do domínio político e, sobretudo, da difusão de modelos culturais; mas esse aspecto político-cultural é acompanhado por outro, de caráter mais científico e metodológico: o fato de que as sociedades ditas primitivas sejam encaradas como objetos de um saber todo dominado por categorias “ocidentais”. O que nada diminui, convém precisar, o caráter científico da antropologia cultural; ao contrário, apenas o emprego dessas categorias profundamente ocidentais faz da antropologia uma ciência, isto é, um aspecto da empresa metafísica de redução do mundo à objetividade mensurável. Mas precisamente isso levanta dúvidas sobre a possibilidade de conceber a antropologia como discurso sobre as outras culturas, o que em nada compromete a validez científica do trabalho de campo, por exemplo, que em vez de ser enquadrado numa conceitualidade científica de rigor metafísico se vê claramente distinguido pela curiosidade exótica, pelo abandono à intuição individual, pelo gosto preguiçoso-sonhador por horizontes mágicos.

 

     Reconhecer que a condição de encontro com a alteridade cultural radical – que representa o conteúdo da noção de hermenêutica etnográfica e também da noção de antropologia como Rorty a descreve – é, na realidade, um ideal prenhe do condicionamentos ideológicos abre caminho para um passo ulterior do discurso, que não se limite a registrar a ocidentalização como um acontecimento lamentável provocado pelo triunfo do capitalismo imperialista aliado à ciência- técnica da época da metafísica consumada. Assim como a antropologia nutre fundadas suspeitas acerca do caráter ideológico do ideal de um encontro com culturas radicalmente outras, também a hermenêutica faz a experiência de que o sonho de uma alteridade radical é ausgetraumt, tanto no plano teórico como no plano histórico-destinal.

 

     A experiência que a hermenêutica faz com a antropologia (buscando, como vimos em Rorty, uma  espécie de identificação-dissolução nela) se torna, desse ponto de vista, uma experiência decepcionante que produz um amadurecimento. A hermenêutica busca a antropologia como discurso da alteridade radical; mas, de fato, a antropologia não se interpreta (mais?) como esse lugar da alteridade e pensa a si mesma como um aspecto interno do processo geral d ocidentalização e homologação – processo que, de resto, só se manifesta como uma perda do ponto de vista de um ideal desvelado, por sua vez, como ideológico. Essa vicissitude da antropologia funciona, para a hermenêutica, como um convite ulterior a meditar de maneira menos enfática, ou “metafísica”, sobre os problemas trazidos à luz pelo nexo entre as duas questões, (a) e (b), que nos colocamos. Tendo começado procurando na antropologia um terreno ideal de verificação da sua concepção do ser como eventualidade e alteridade, a hermenêutica se vê remetida a meditar sobre o significado da mesmice e sobre o nexo desta com a homologação metafísica do mundo.

 

     O que temos diante de nós não é a organização total do mundo em rígidos esquemas tecnológicos, mas “um enorme estaleiro de sobrevivências” que, interagindo com a distribuição desigual do poder e dos recursos em nível planetário, dá lugar ao crescimento de situações marginais que são a verdade do primitivo em nosso mundo. A ilusão hermenêutica – mas também antropológica – de encontrar o outro, com todas as suas enfatizações teóricas, vê-se às voltas com uma realidade mista, em que a alteridade consumou-se, mas não a favor da sonhada organização total, e sim de uma condição de contaminações difundidas. Talvez seja essa, mais ainda que a Europa da tradicional unidade cristã em que a hermenêutica se distinguiu, embora sempre como disciplina técnica, a condição dentro da qual ela, ao contrário, se desenvolvesse em ontologia. As perguntas que nos fizemos a cerca do possível nexo entre a mesmice do diálogo hermenêutico e a homologação metafísica da terra devem levar em conta isso, quando mais não porque um dos dois termos da relação a pensar – a homologação – é transformado; e, a meu ver, num sentido decisivo, já que, no horizonte de uma ontologia da eventualidade e da alteridade, a única forma de mesmice que se pode admitir sem cair na identificação metafísica do ser com um ente é precisamente essa mesmice fraca, contaminada – não, é claro, a unidade férrea da organização total do mundo metafísico-técnico, mas tampouco uma unidade “autêntica” qualquer que se oponha diametralmente a ela. Na autoconsciência da antropologia cultural atual que se confronta com a marginalidade do primitivo – e de qualquer outra cultura – em nosso mundo, esperamos talvez a ambigüidade do Ge-Stell heideggeriano, lugar de extremo perigo, mas, também, primeiro lampejar do Ereignis.

 

    O grande estaleiro de sobrevivências não é muito diferente do guarda-roupas de um teatro, a que Nietzsche compara o ‘jardim da história” em que o homem do século XIX circula sem encontrar nenhuma identidade forte, mas apenas uma disponibilidade de “máscaras”. Tudo isso, como podemos admitir, se pensarmos na experiência da antropologia e na condição do primitivo como gueto e margem, sem nenhuma implicação de significados “dionisíacos”, lúdicos, ou até, poderíamos dizer, de leuzianos. O mundo da ontologia hermenêutica (genitivo subjetivo e objetivo) não é nem a “jaula de aço” da organização total, nem a glorificação do simulacro de Deleuze; ele é, ao contrário, o mundo do niilismo em ato, em que o ser só tem chance de tornar a dar-se como autêntico na forma do empobrecimento – não a pobreza da ascese ainda ligada ao mito de encontrar, no fundo, o núcleo esplendente do verdadeiro valor, mas a pobreza do inaparente-marginal, da contaminação vivida como único Ausweg possível dos sonhos da metafísica, como quer que sejam camuflados.  (Talvez o cargo cult também seja “um primeiro lampejar do Ereignis”.) A antropologia não é – como tampouco a hermenêutica – nem o encontro com a alteridade radical, nem a “organização” científica do fenômeno humano em termos de estruturas; provavelmente, ela se fecha na sua forma (a terceira dentre as que foram historicamente definidas em nossa cultura) de diálogo com o arcaico – mas do único modo em que o Arché pode se dar na época da metafísica consumada: a forma da sobrevivência, da marginalidade e da contaminação.

 

X. NIILISMO E PÓS-MODERNO EM FILOSOFIA

             

     1.  Um discurso sobre o pós-moderno em filosofia, se não quiser ser apenas uma pesquisa rapsódica das características da filosofia contemporânea capazes de ser comparadas coma quilo que, em outros domínios, da arquitetura à literatura e à crítica, é chamado por esse nome, deve ser guiado, creio eu, por um termo introduzido em filosofia por Heidegger, o de Verwindung. Verwindung é a palavra que Heidegger usa, de resto bastante raramente (uma página de Holzwege, um ensaio de Vortrage und Aufsatzw e, sobretudo, o primeiro dos dois ensaios de Identitat und Differenz), para indicar algo análogo á Ueberwindung, a superação ou ultrapassamento, mas que se distingue desta por nada possuir da Aufhebung dialética, nem do “deixar para trás” que caracteriza a relação com um passado que não tem mais nada a dizer-nos. Ora, é precisamente a diferença entre Verwindung que nos pode ajudar a definir o “pós” do pós-moderno em termos filosóficos.

     O primeiro filósofo a falar em termos de Verwindung, ainda que, naturalmente, não empregue essa palavra, não é Heidegger, mas Nietzsche. Pode-se sustentar legitimamente que a pós-modernidade filosófica nasce na obra de Nietzche.

 

      Humano, demasiado humano efetua uma verdadeira dissolução da modernidade mediante a radicalização das próprias tendências que a constituem. Se a modernidade se define como a época da superação, da novidade que envelhece e é logo substituída por uma novidade mais nova, num movimento irrefreável que desencoraja qualquer criatividade, ao mesmo tempo que requer e a impõe como única forma de vida – se assim é, então não se poderá sair da modernidade pensando-se superá-la. O recurso às forças eternizantes indica essa exigência de encontrar um caminho diferente. Nietzche vê com muita clareza, já no ensaio de 1874, que o ultrapassamento é uma categoria tipicamente moderna e, portanto, não é capaz de determinar uma saída da modernidade. Não apenas a modernidade é constituída pela categoria da superação temporal (a inevitável sucessão dos fenômenos históricos de que o homem moderno se torna consciente por causa do excesso de historiografia), mas também, segundo uma conseqüêncialidade muito estrita, pela categoria da superação crítica.

        Deus “morre”, vitimado pela religiosidade, pela vontade de verdade que seus fiéis sempre cultivaram e que agora os leva a reconhecer ele próprio como um erro de que agora os leva a reconhecer ele próprio como um erro de que agora podem dispensar-se.

       É com essa conclusão niilista que se sai de fato da modernidade, segundo Nietzsche. Pois a noção de verdade não mais subsiste e o fundamento algum para crer no fundamento, isto é, no fato de que o pensamento deva “fundar”: não se sairá da modernidade mediante uma superação crítica, que seria um passo ainda de todo interno à própria modernidade. Fica claro, assim, que se deve buscar um caminho diferente. É esse momento que se pode chamar de nascimento da pós-modernidade em filosofia, um acontecimento cujos significados e cujas conseqüências, assim como os da morte de Deus anunciada no aforismo 125 da Gaia ciência, ainda não acabamos de medir.

 

      A primeira e mais relevante, que se anuncia na mesma obra, a Gaia ciência, em que Nietzsche fala pela primeira vez da morte de Deus, é a idéia do eterno retorno do igual; que significa, entre outras coisas, o fim da época da superação, isto é, da época do ser pensado sob o signo do novum. Quaisquer que sejam os outros significados, deveras problemáticos, da idéia do eterno retorno no plano metafísico, ela tem, pelo menos, com certeza, esse sentido “seletivo” (o adjetivo é de Nietzsche); ou seja, para nós, de revelar a essência da modernidade como época da redução do ser ao novum. Tanto as vanguardas artísticas do início do século (sobretudo o futurismo, como é obvio), quando certas filosofias, como o hegeliano-marxismo de Bloch, mas também de Adorno e de Benjamin, podem ser evocadas aqui como exemplos de tal redução. Mas poderíamos recordar igualmente que, em ética, o valor que parece ser mais geralmente – e tacitamente – aceito hoje é o de “desenvolvimento): o bem é mais ou menos explicitamente o que abre a possibilidade de um desenvolvimento ulterior, da personalidade, da vida, etc. O caráter “epocal” do fenômeno também é visto no fato de que, conquanto com Nietzsche e Heidegger seja possível reconhecer que a ética não se pode fundar em tal valor, não encontramos facilmente qual valor poderia substituí-lo. A pós-modernidade apenas começou, a identificação do ser com o novum (que, como se sabe, Heidegger vê expressa de modo emblemático pela noção nietzscheana de vontade de poder) continua a projetar a sua sombra sobre nós, como o Deus já morto de que fala A gaia ciência.

      A Aufklarung – o desenrolar da força do fundamento na história – não acaba com a destruição da idéia de verdade e de fundamento.

 

       A tarefa do pensamento não é mais, como sempre a modernidade pensou, remontar ao fundamento e, por essa via, encontrar o novum-se-valor, que em se   desenrolar  sempre posterior confere sentido à história: basta pensar como os renascimentos, na arte e na cultura ocidental, sempre foram inspiradas por retomadas – da origem, do “clássico”, etc.

 

     É sobretudo essa comparação entre a insignificância da e a riqueza de cores da realidade mais próxima que nos pode proporcionar uma idéia do que Nietzsche pensa se a tarefa do pensamento na época em que a fundação e a idéia de verdade se dissolveram.

 

    O que Humano, demasiado humano, em suas linhas finais, chama de uma “filosofia da manhã” é, justamente, o pensamento não mais orientado com base na ou no fundamento, mas na proximidade.

 

     Todas as obras do período iniciado com Humano, demasiado humano (ou seja, principalmente Aurora e A gaia ciência) são um esforço para determinar a idéia dessa filosofia da manhã.

 

    O homem capaz da filosofia da manhã é o homem de bom temperamento, que não tem em se nada “do tom irritadiço e do encarniçamento característico dos cães e dos homens envelhecidos... nos grilhões”. Têm o mesmo sentido as ilusões, bastante freqüente inclusive por motivos biográficos, à saúde, à convalescença, que enchem as páginas dos escritos desse mesmo período. Estamos mais uma vez diante de um esforço para pensar a saída da metafísica numa forma não ligada a superação crítica, como na Segunda inatual; mas aqui, em conseqüência da radicalização da análise química, sabemos que não se trata de recorrer a valores “supra-históricos”, mas de viver plenamente a experiência da necessidade do erro, de elevar-se por um instante acima do processo, ou seja, de viver a errância com uma atitude diferente. Sabemos, sobretudo, que o conteúdo do pensamento da manhã nada mais é que a própria errância da metafísica, apenas vista de um ponto diferente, o do homem de “bom temperamento”.

 

     Para descrever essa atitude - cujo sentido essencial é reportar-se ao passado da metafísica (e, portanto, também a modernidade como o resultado final dela e da moral platônico-cristã) de um modo que não seja nem a pura aceitação dos seus erros, nem a crítica ultrapassaste que, na realidade, os prossegue e que Nietzsche pensa em termos de convalescença e de bom temperamento - , creio que se deve recorrer `a noção heideggerianos. Não proporei, todavia, aqui, uma análise completa dele. Em todos os textos aqui ilude pouco acima, trata-se de um texto que indica uma espécie de Ueberwindung imprópria, de uma superação que não é no sentido usual da palavra, nem no sentido da Aufhebung dialética.

 

     Por ora, gostaria apenas de mostrar em que sentido a palavra Verwindung pode nos ajudar o que Nietzsche busca sobre o nome de filosofia da manhã e que, na hipótese que proponho, constitui a essência da pós- modernidade filosófica.

 

     Para Heidegger, a possibilidade de uma mudança que nos leve a um Ereignis mais de princípio – ou seja: fora, além, da metafísica – está ligada a uma Verwindung desta. Traduzamos: a metafísica  não algo que “se possa pôr de lado, como uma opinião. Tampouco se pode deixa-la para trás, como uma doutrina que não se acredita mais”, ela é algo que permanece em nós como vestígios de uma doença ou como uma dor, a que nos resignamos; ou, ainda, poderíamos dizer, jogando com a polivalência do termo italiano rimettersi, é algo que de que alguém se restabelece, se recupera, a que alguém se remete, que alguém remete (que envia). Além de todos esses significados, também há o de distorção, que, de resto, já se pode ler no significado da convalescença-resignação: não se aceita a metafísica pura e simplesmente, como ninguém se dá sem reservas ao Ge-Stell como sistema da imposição tecnológica; pode-se viver a metafísica e o Ge-Stell como uma chance, como a possibilidade de uma mudança em virtude da qual aquela e este se torcem numa direção Que não é a prevista por sua essência própria, mas que a ela está relacionada.

 

    Um pensamento da fruição. Ainda que se insista, como se faz aqui, no alcance emancipador do Andenken, este sempre pode Ter a aparência de uma pura e simples repetição apologética da tradição metafísica.

 

    A ontologia hermenêutica implica uma ética que poderia ser definida como uma ética dos bens em oposição a uma ética dos imperativos.

 

    A re-mamoração, ou, antes, a fruição (o reviver), também entendida em sentido “estético”, das formas espirituais do passado não tem a função de preparar alguma coisa, mas tem um efeito emancipador em si mesma. É a  partir daqui, talvez, que uma ética pós-moderna poderia ser oposta ás éticas, ainda metafísicas, do “desenvolvimento”, do crescimento, do novum como valor último.

    Um pensamento da contaminação. Na aproximação proposta entre a filosofia da manhã de Nietzsche e o Andenken heideggeriano há, cumpre reconhecê-lo, uma Verwindung, uma retomada-distorção que se exerce sobre o próprio Heidegger. Ela consiste na preferência que é dada aqui ao lado mais hermenêutico, ou, antes, niilista, do pensamento heideggeriano. 

 

    A tensão no sentido um pensamento totalmente outro pode levar a resultados místicos; o interesse pelo remontar não tanto além, mas através das errâncias da metafísica vai, ao contrário, na direção de uma “filosofia da manhã” de tipo nietzschiano e sublinha um tom “niilista” no pensamento de Heidegger.

 

   Um pensamento do Ge-Stell. Já Nietzsche ligara a experiência da morte de Deus – isto é, da superfluidade explícita de todo fundamento – à nova situação de relativa segurança que a existência individual e social adquiriu em virtude da organização social e do desenvolvimento técnico. Em Heidegger, uma conexão análoga é representada pela noção de Ge-Stell e por sua ambigüidade . É precisamente a essa ambigüidade que se refere a Verwindung . Poderíamos dizer: o “objeto” da Verwindung é principalmente o Ge Stell ; nele, de fato, a metafísica se consuma em sua forma mais desenvolvida, a organização total da terra mediante a técnica. Isso significa que a Verwindung da metafísica se exerce como Verwindung do Ge-Stell.

 

     Em outras palavras, trata-se-à de descobrir e de preparar a manifestação das chances ultra e pós- metafísicas da tecnologia planetária. Essa Verwindung também será feita, obviamente, reconstituindo-se a continuidade entre tecnologia e tradição passada do ocidente, no sentido indicado pela tese heideggeriana da técnica como continuação e consumação da metafísica ocidental.

                        

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