segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Jacques Derrida e Gianni Vattimo (Org.) - A Religião

 





O Vestígio Do Vestígio*

 

Síntese: pe Paolo Cugini

 

Gianni Vattimo

 

Baseando-nos sobretudo em considerações como estas, parece preferível a hipótese segundo a qual o reaparecimento, a volta da religião em nossa experiência, não é um fato puramente acidental, a ser posto de lado para simplesmente nos concentramos nos conteúdos que desse modo retornam. Podemos, ao contrário, supor legitimamente que o retorno seja um aspecto (ou o aspecto) essencial da experiência religiosa.

Mas o que será preciso observar para considerar as atuais modalidades concretas do retorno do religioso? Essas modalidades parecem ser principalmente de dois tipos, que são permitam o estabelecimento de uma ligação imediata, ao menos à primeira vista. De um lado, com presença mais patente na cultura comum, o retorno do religioso (com exigência, como nova vitalidade de igrejas, seitas, como busca de doutrinas e práticas outras – a “moda” das religiões orientais, etc.) é antes de mais nada motivado pela premência de riscos globais que nos parecem inéditos, sem precedentes na história da humanidade. (pág.92)

A queda dos interditos filosóficos contra a religião, já que é justamente disso que se trata, coincide com a dissolução dos grandes sistemas que acompanharam o desenvolvimento da ciência, da técnica e da organização social modernas; e, portanto, com o desaparecimento de qualquer fundacionalismo – em outras palavras, daquilo que a consciência comum parece buscar em sua volta à religião. (pág.93)

O problema que assim se coloca é se a religião seria inseparável da metafísica no sentido heideggeriano da palavra; isto é, se é possível pensar-se Deus apenas como o fundamento imóvel da história, do qual tudo parte e ao qual tudo deve retornar – com a conseqüência dificuldade de designação de um sentido qualquer a esse enorme vaivém.

Diante dessa contradição – que não é só aparente – entre a necessidade de fundamentos que se expressa no retorno da religião na consciência comum, e a própria redescoberta da (plausibilidade da) religião em decorrência da dissolução das metanarrações metafísicas, a filosofia parece ter de procurar reconhecer e trazer à tona as raízes comuns das duas formas do “retorno”. (pág.94)

A raiz comum da necessidade religiosa disseminada em nossa sociedade e do retorno da (plausibilidade da) religião na filosofia de hoje é constituída pela referência à modernidade como época da ciência e da técnica ou, na expressão de Heidegger, como época da concepção do mundo. Se a reflexão crítica quer se apresentar como uma interpretação autêntica da necessidade religiosa da consciência comum, tem de mostrar que essa necessidade não se satisfaz adequadamente como uma pura e simples retomada da religiosidade “metafísica”, isto é, com uma fuga do potencial de confusão da modernização e da Babel da sociedade secularizada em função de um renovado fundacionalismo. Uma tal “demonstração” seria possível? A pergunta simplesmente traduz a questão fundamental da filosofia heideggeriano, mas também pode ser lida como variação do projeto nietzscheano do “super-humano”, que deveria ser o homem capaz de se elevar ao nível de suas novas possibilidades de domínio do mundo. Reagir ao caráter problemático e caótico do mundo moderno tardio por meio de uma volta a Deus como fundamento metafísico significa, em termos Nietzsche considera inevitável para todos os que, justamente, não aceitaram tal desafio. (pág.94 e 95)

É (só) porque as metanarrações metafísicas se dissolveram que a filosofia redescobriu a plausibilidade da religião e pode, por conseguinte, olhar para a necessidade religiosa da consciência comum fora dos esquemas da crítica iluminista. (pág.96)

Dizer, porém, que a figura do retorno, portanto a historicidade, seja essencial e não acidental para a experiência religiosa à qual queremos voltar tenha de se configurar como qualificada por seu pertencer à época do fim da metafísica; antes de mais nada,  o que a filosofia extrai da experiência da essencialidade da figura do retorno é uma identificação geral da religião com a positividade, no sentido de factualidade, eventualidade. (pág.97)

Aliás, de modo geral, parece essencial que a possibilidade de repensar filosoficamente a religião depende do elo entre os dois sentidos da positividade: aquele segundo o qual é determinante para o próprio conteúdo da experiência religiosa reencontrada o fato de que seu retorno se dê nas precisas condições históricas de nossa existência na modernidade tardia, qualificando-se portanto em relação a essa existência não somente como um aparecimento casual; e, em segundo lugar, que o próprio retorno indique como caráter constitutivo da religião a sua positividade como dependência de uma factualidade originária, eventualmente legível como dimensão criatural, dependência (quem sabe no sentido de Schleiermacher).

Sermos juntos com o significado da experiência do retorno implica, antes de mais nada, mantermo-nos no horizonte desse duplo sentido da positividade: criatividade como historicidade concreta e mais que determinada, mas também, ao contrário, historicidade como proveniência de uma origem que, enquanto não estrutural ou essencial do ponto de vista metafísico, também tem todos os traços da eventualidade e da liberdade. (pág.97 e 98)

Se é verdade que a religião hoje se nos reapresenta como uma exigência profunda e também filosoficamente plausível, isto se deve, também e primeiramente, a uma dissolução generalizada das certezas racionalistas das quais o sujeito moderno se alimentou; exatamente aquele sujeito para o qual o sentimento de culpa e a “inexplicabilidade” do mal são elementos tão centrais e decisivos. O mal e a culpa são menos “escandalosos” se o sujeito não se levar tão dramaticamente a sério como pretende a mentalidade metafísica, explícita ou implicitamente racionalista. (pág.100)

Mas novamente: esses “conteúdos” positivos, caracteristicamente positivos, da experiência do retorno em que se dá, para nós, o religioso, também são positivos, sobretudo no sentido de que não os encontramos numa reflexão abstrata sobre nós mesmos, como êxitos do aprofundamento de uma autoconsciência humana em geral. São, ao contrário, dados já numa linguagem determinada, que, em termos mais ou menos literais, é a linguagem da tradição judaico-cristã, da Bíblia. Seria mais justo, então, falarmos do retorno à letra dos textos sagrados, Antigo e Novo Testamento? Por quê, por exemplo, insistir na necessidade de perdão em vez de, pura e simplesmente, no pecado original, na promessa da redenção, no relato da encarnação, paixão e morte de Jesus? Mas o retorno que experimentamos é realmente um retorno à verdade da Escritura? Poderíamos ser justos com a experiência do retorno ao concebê-lo como um movimento que diz respeito somente a nós, que estaríamos reencontrando um objeto esquecido, a Sagrada Escritura que permaneceu intacta em algum lugar esperando que – por algum motivo misterioso – nós (a nossa cultura, o mundo contemporâneo, etc.) a redescobríssemos? Se, como aqui nos parece, a hermenêutica como filosofia da interpretação só podia surgir no âmbito da tradição judaico-cristão,[1] também é verdade que esta tradição permanece profundamente marcada por ela. (pág.1001)

A partir de Santo Agostinho e de sua reflexão sobre a Trindade, a teologia cristã é, desde as suas bases mais profundas, uma teologia cristã é, desde as suas bases mais profundas, uma teologia hermenêutica: a estrutura interpretativa, a transmissão, a mediação e, talvez, a deiettività não concernem somente ao anúncio, à comunicação de Deus, que exatamente por isso não pode ser pensada nos termos da plenitude metafísica imutável. (pág.102)

A experiência religiosa como experiência da positividade no sentido que apontamos parece antes levar a um questionamento radical de toda figura tradicional da relação entre filosofia e religião. O retorno do religioso que vivemos no senso comum e, em termos diferentes, no discurso filosófico (onde caem as interdições metafísicas, científicas ou historicistas contra a religião) apresenta-se como uma descoberta da positividade que, em seu sentido, nos parece idêntica ao pensamento da eventualidade do ser, ao qual a filosofia chega a partir da meditação de Heidegger. A constatação desta identidade, se deseja corresponder radicalmente ao seu próprio conteúdo, não pode permanecer como simples constatação. É justamente o pensamento da eventualidade do ser a excluir que aqui possa se tratar de uma mesma estrutura metafísica experimentada por dois diferentes modos de pensamento. A positividade ou eventualidade chama a atenção sobre a procedência. A filosofia que se coloca diante do problema da superação da metafísica é a mesma que descobre a positividade na experiência na experiência religiosa; mas essa descoberta significa justamente a consciência da procedência. Pode ou deve uma tal consciência resolver-se num retorno à própria origem? Em outros termos: a filosofia que se descobre procedente de teologia judaico-cristã é, por isso mesmo, chamada a deixar de lado a própria figura “derivada” para a recuperação da original? Assim seria se o próprio conteúdo da teologia que aqui descobrimos como origem; ou seja, se aquela teologia não fosse uma teologia trinitária. Que a proveniência, como tal, seja tão central em nossa experiência religiosa, aliás, é um traço constitutivo do retorno do religioso, e é quer um êxito da filosofia já não metafísica, quer um “conteúdo” da própria tradição religiosa que assim se redescobre: o Deus trinitário não é alguém que nos chama para o retorno ao fundamento no sentido metafísico da palavra, mas, segundo a expressão evangélica, chama-nos antes a ler os sinais dos tempos. Vale, em suma, embora termos diferentes, tanto para filosofia como para a religião que aquela reencontra, a máxima radical de Nietzsche: o conhecimento progressivo da origem aumenta a insignificância da origem; uma expressão que, nem tão paradoxalmente, pode ser apontada como um eco extremo da teologia trinitária cristã.

Para a filosofia, a reencontrada consciência da proveniência da religião não se resolver, então, num salto para trás, como que querendo recuperar a própria linguagem autêntica; e isso justamente para não contradizer o sentido do que se reencontrou. Mas poderia significar, então, um simples permanecer nos limites daquele processo ao qual descobrimos pertencer, sem que a consciência da proveniência implique algo mais do que um fortalecimento desse mesmo pertencer? Mas – como mostra a contraditoriedade de todo o historicismo radical – este tipo de postura acabaria apenas atribuindo ao processo o mesmo valor peremptório e cogente do óntos ón, do fundamento metafísico. (pág.103 e 104)

Aquela eventualidade radical do ser que o pensamento pós-metafísico encontra no seu esforço de se libertar da constrição do simplesmente presente não é compreensível apenas à luz da criaturalidade que permanece no horizonte de uma religiosidade “natural”, estrutural, elaborada em termos existencialista. Para a filosofia, uma concepção de si próprio como leitura dos sinais dos tempos, sem que isso se reduza a puro registro passivo do curso dos tempos, só parece ser possível à luz da doutrina cristã da encarnação do filho de Deus. “À luz” da Encarnação, mais uma vez, é uma expressão que procura entender uma relação cuja problematicidade irresolvida constitui o próprio cerne da experiência da eventualidade: a encarnação de Deus, de que aqui se trata, não é apenas um modo de expressar em termos míticos o que a filosofia finalmente descobre como resultado de uma busca racional. Tampouco a Encarnação é a verdade última, desmistificada e reconduzida ao seu sentido próprio das enunciações da filosofia. Como já apareceu em diversos modos nas páginas anteriores, essa relação problemática entre filosofia e revelação religiosa é o próprio sentido da Encarnação. Deus encarna, isto é, revela-se, num primeiro momento, na anunciação bíblica que, no final, “dá lugar” ao pensamento pós-metafísico da eventualidade do ser. Só na medida em que reencontra a própria proveniência neotestamentária é que esse pensamento pós-metafísico pode se configurar como um pensamento da eventualidade do ser, não reduzindo à pura aceitação do existente, ao puro relativismo histórico e cultural. Ou ainda: é o fato da Encarnação a conferir à história o sentido de uma revelação redentora, e não somente de um confuso acúmulo de acontecimentos que perturbam a estruturalidade pura do verdadeiro ser. Que a história tenha um sentido redentor (ou, em linguagem filosófica, emancipativo) – ainda que seja, ou justamente por ser história de anúncios e respostas, de interpretações, e não de “descobertas” ou da imposição de presenças “verdadeiras” – é algo que só se torna imaginável á luz da doutrina da Encarnação. (pág.105 e 106)

Essa renúncia à presença confere à filosofia pós-metafísica, e principalmente à hermenêutica, um inevitável caráter deiettivo. A superação da metafísica, em outras palavras, só pode acontecer como niilismo. O sentido do niilismo, porém, se não deve, por sua vez, resolver-se numa metafísica do nada – como aconteceria se imaginássemos um processo em que, no final, o ser não é, e o não-ser, o nada, é – só pode ser pensado como um processo indefinido de redução, de adelgaçamento, de enfraquecimento. Seria imaginável um pensamento destes fora do horizonte da Encarnação? Talvez seja esta a pergunta decisiva à qual a hermenêutica de hoje, se quiser realmente prosseguir pelo caminho que o apelo de Heidegger abriu, apelo à rememoração do ser (isto é, do Ereignis), deve procurar responder.  (pág.106 e 107)

 



[1] Remeto aqui às hipóteses ilustradas no ensaio “Storia della salvezza, storia dell’interpretazione”, in Micromega, 3 (1992), p. 105-112.

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