O Vestígio Do Vestígio*
Síntese:
pe Paolo Cugini
Gianni
Vattimo
Baseando-nos
sobretudo em considerações como estas, parece preferível a hipótese segundo a
qual o reaparecimento, a volta da religião em nossa experiência, não é um fato
puramente acidental, a ser posto de lado para simplesmente nos concentramos nos
conteúdos que desse modo retornam. Podemos, ao contrário, supor legitimamente
que o retorno seja um aspecto (ou o aspecto) essencial da experiência
religiosa.
Mas o que será
preciso observar para considerar as atuais modalidades concretas do retorno do
religioso? Essas modalidades parecem ser principalmente de dois tipos, que são
permitam o estabelecimento de uma ligação imediata, ao menos à primeira vista.
De um lado, com presença mais patente na cultura comum, o retorno do religioso
(com exigência, como nova vitalidade de igrejas, seitas, como busca de
doutrinas e práticas outras – a “moda” das religiões orientais, etc.) é antes
de mais nada motivado pela premência de riscos globais que nos parecem
inéditos, sem precedentes na história da humanidade. (pág.92)
A queda dos
interditos filosóficos contra a religião, já que é justamente disso que se
trata, coincide com a dissolução dos grandes sistemas que acompanharam o
desenvolvimento da ciência, da técnica e da organização social modernas; e,
portanto, com o desaparecimento de qualquer fundacionalismo – em outras
palavras, daquilo que a consciência comum parece buscar em sua volta à
religião. (pág.93)
O problema que
assim se coloca é se a religião seria inseparável da metafísica no sentido
heideggeriano da palavra; isto é, se é possível pensar-se Deus apenas como o
fundamento imóvel da história, do qual tudo parte e ao qual tudo deve retornar
– com a conseqüência dificuldade de designação de um sentido qualquer a esse
enorme vaivém.
Diante dessa
contradição – que não é só aparente – entre a necessidade de fundamentos que se
expressa no retorno da religião na consciência comum, e a própria redescoberta
da (plausibilidade da) religião em decorrência da dissolução das metanarrações
metafísicas, a filosofia parece ter de procurar reconhecer e trazer à tona as
raízes comuns das duas formas do “retorno”. (pág.94)
A raiz comum da
necessidade religiosa disseminada em nossa sociedade e do retorno da
(plausibilidade da) religião na filosofia de hoje é constituída pela referência
à modernidade como época da ciência e da técnica ou, na expressão de Heidegger,
como época da concepção do mundo. Se a reflexão crítica quer se apresentar como
uma interpretação autêntica da necessidade religiosa da consciência comum, tem
de mostrar que essa necessidade não se satisfaz adequadamente como uma pura e
simples retomada da religiosidade “metafísica”, isto é, com uma fuga do
potencial de confusão da modernização e da Babel da sociedade secularizada em
função de um renovado fundacionalismo. Uma tal “demonstração” seria possível? A
pergunta simplesmente traduz a questão fundamental da filosofia heideggeriano,
mas também pode ser lida como variação do projeto nietzscheano do
“super-humano”, que deveria ser o homem capaz de se elevar ao nível de suas
novas possibilidades de domínio do mundo. Reagir ao caráter problemático e
caótico do mundo moderno tardio por meio de uma volta a Deus como fundamento
metafísico significa, em termos Nietzsche considera inevitável para todos os
que, justamente, não aceitaram tal desafio. (pág.94 e 95)
É (só) porque as
metanarrações metafísicas se dissolveram que a filosofia redescobriu a
plausibilidade da religião e pode, por conseguinte, olhar para a necessidade
religiosa da consciência comum fora dos esquemas da crítica iluminista. (pág.96)
Dizer, porém,
que a figura do retorno, portanto a historicidade, seja essencial e não
acidental para a experiência religiosa à qual queremos voltar tenha de se
configurar como qualificada por seu pertencer à época do fim da metafísica;
antes de mais nada, o que a filosofia
extrai da experiência da essencialidade da figura do retorno é uma
identificação geral da religião com a positividade, no sentido de factualidade,
eventualidade. (pág.97)
Aliás, de modo
geral, parece essencial que a possibilidade de repensar filosoficamente a
religião depende do elo entre os dois sentidos da positividade: aquele segundo
o qual é determinante para o próprio conteúdo da experiência religiosa
reencontrada o fato de que seu retorno se dê nas precisas condições históricas
de nossa existência na modernidade tardia, qualificando-se portanto em relação a
essa existência não somente como um aparecimento casual; e, em segundo lugar,
que o próprio retorno indique como caráter constitutivo da religião a sua
positividade como dependência de uma factualidade originária, eventualmente
legível como dimensão criatural, dependência (quem sabe no sentido de
Schleiermacher).
Sermos juntos
com o significado da experiência do retorno implica, antes de mais nada,
mantermo-nos no horizonte desse duplo sentido da positividade: criatividade
como historicidade concreta e mais que determinada, mas também, ao contrário,
historicidade como proveniência de uma origem que, enquanto não estrutural ou
essencial do ponto de vista metafísico, também tem todos os traços da
eventualidade e da liberdade. (pág.97 e 98)
Se é verdade que
a religião hoje se nos reapresenta como uma exigência profunda e também
filosoficamente plausível, isto se deve, também e primeiramente, a uma
dissolução generalizada das certezas racionalistas das quais o sujeito moderno
se alimentou; exatamente aquele sujeito para o qual o sentimento de culpa e a
“inexplicabilidade” do mal são elementos tão centrais e decisivos. O mal e a
culpa são menos “escandalosos” se o sujeito não se levar tão dramaticamente a
sério como pretende a mentalidade metafísica, explícita ou implicitamente
racionalista. (pág.100)
Mas novamente:
esses “conteúdos” positivos, caracteristicamente positivos, da experiência do
retorno em que se dá, para nós, o religioso, também são positivos, sobretudo no
sentido de que não os encontramos numa reflexão abstrata sobre nós mesmos, como
êxitos do aprofundamento de uma autoconsciência humana em geral. São, ao
contrário, dados já numa linguagem determinada, que, em termos mais ou menos
literais, é a linguagem da tradição judaico-cristã, da Bíblia. Seria mais
justo, então, falarmos do retorno à letra dos textos sagrados, Antigo e Novo
Testamento? Por quê, por exemplo, insistir na necessidade de perdão em vez de,
pura e simplesmente, no pecado original, na promessa da redenção, no relato da
encarnação, paixão e morte de Jesus? Mas o retorno que experimentamos é
realmente um retorno à verdade da Escritura? Poderíamos ser justos com a
experiência do retorno ao concebê-lo como um movimento que diz respeito somente
a nós, que estaríamos reencontrando um objeto esquecido, a Sagrada Escritura
que permaneceu intacta em algum lugar esperando que – por algum motivo
misterioso – nós (a nossa cultura, o mundo contemporâneo, etc.) a
redescobríssemos? Se, como aqui nos parece, a hermenêutica como filosofia da
interpretação só podia surgir no âmbito da tradição judaico-cristão,[1]
também é verdade que esta tradição permanece profundamente marcada por ela. (pág.1001)
A partir de
Santo Agostinho e de sua reflexão sobre a Trindade, a teologia cristã é, desde
as suas bases mais profundas, uma teologia cristã é, desde as suas bases mais
profundas, uma teologia hermenêutica: a estrutura interpretativa, a
transmissão, a mediação e, talvez, a deiettività não concernem somente ao
anúncio, à comunicação de Deus, que exatamente por isso não pode ser pensada
nos termos da plenitude metafísica imutável. (pág.102)
A experiência
religiosa como experiência da positividade no sentido que apontamos parece
antes levar a um questionamento radical de toda figura tradicional da relação
entre filosofia e religião. O retorno do religioso que vivemos no senso comum
e, em termos diferentes, no discurso filosófico (onde caem as interdições
metafísicas, científicas ou historicistas contra a religião) apresenta-se como
uma descoberta da positividade que, em seu sentido, nos parece idêntica ao
pensamento da eventualidade do ser, ao qual a filosofia chega a partir da
meditação de Heidegger. A constatação desta identidade, se deseja corresponder
radicalmente ao seu próprio conteúdo, não pode permanecer como simples
constatação. É justamente o pensamento da eventualidade do ser a excluir que
aqui possa se tratar de uma mesma estrutura metafísica experimentada por dois
diferentes modos de pensamento. A positividade ou eventualidade chama a atenção
sobre a procedência. A filosofia que se coloca diante do problema da superação da
metafísica é a mesma que descobre a positividade na experiência na experiência
religiosa; mas essa descoberta significa justamente a consciência da
procedência. Pode ou deve uma tal consciência resolver-se num retorno à própria
origem? Em outros termos: a filosofia que se descobre procedente de teologia
judaico-cristã é, por isso mesmo, chamada a deixar de lado a própria figura
“derivada” para a recuperação da original? Assim seria se o próprio conteúdo da
teologia que aqui descobrimos como origem; ou seja, se aquela teologia não
fosse uma teologia trinitária. Que a proveniência, como tal, seja tão central
em nossa experiência religiosa, aliás, é um traço constitutivo do retorno do
religioso, e é quer um êxito da filosofia já não metafísica, quer um “conteúdo”
da própria tradição religiosa que assim se redescobre: o Deus trinitário não é
alguém que nos chama para o retorno ao fundamento no sentido metafísico da
palavra, mas, segundo a expressão evangélica, chama-nos antes a ler os sinais
dos tempos. Vale, em suma, embora termos diferentes, tanto para filosofia como
para a religião que aquela reencontra, a máxima radical de Nietzsche: o
conhecimento progressivo da origem aumenta a insignificância da origem; uma
expressão que, nem tão paradoxalmente, pode ser apontada como um eco extremo da
teologia trinitária cristã.
Para a
filosofia, a reencontrada consciência da proveniência da religião não se
resolver, então, num salto para trás, como que querendo recuperar a própria
linguagem autêntica; e isso justamente para não contradizer o sentido do que se
reencontrou. Mas poderia significar, então, um simples permanecer nos limites
daquele processo ao qual descobrimos pertencer, sem que a consciência da proveniência
implique algo mais do que um fortalecimento desse mesmo pertencer? Mas – como
mostra a contraditoriedade de todo o historicismo radical – este tipo de
postura acabaria apenas atribuindo ao processo o mesmo valor peremptório e
cogente do óntos ón, do fundamento metafísico. (pág.103 e 104)
Aquela
eventualidade radical do ser que o pensamento pós-metafísico encontra no seu
esforço de se libertar da constrição do simplesmente presente não é
compreensível apenas à luz da criaturalidade que permanece no horizonte de uma
religiosidade “natural”, estrutural, elaborada em termos existencialista. Para
a filosofia, uma concepção de si próprio como leitura dos sinais dos tempos,
sem que isso se reduza a puro registro passivo do curso dos tempos, só parece ser
possível à luz da doutrina cristã da encarnação do filho de Deus. “À luz” da
Encarnação, mais uma vez, é uma expressão que procura entender uma relação cuja
problematicidade irresolvida constitui o próprio cerne da experiência da
eventualidade: a encarnação de Deus, de que aqui se trata, não é apenas um modo
de expressar em termos míticos o que a filosofia finalmente descobre como
resultado de uma busca racional. Tampouco a Encarnação é a verdade última,
desmistificada e reconduzida ao seu sentido próprio das enunciações da
filosofia. Como já apareceu em diversos modos nas páginas anteriores, essa
relação problemática entre filosofia e revelação religiosa é o próprio sentido
da Encarnação. Deus encarna, isto é, revela-se, num primeiro momento, na
anunciação bíblica que, no final, “dá lugar” ao pensamento pós-metafísico da
eventualidade do ser. Só na medida em que reencontra a própria proveniência
neotestamentária é que esse pensamento pós-metafísico pode se configurar como
um pensamento da eventualidade do ser, não reduzindo à pura aceitação do
existente, ao puro relativismo histórico e cultural. Ou ainda: é o fato da
Encarnação a conferir à história o sentido de uma revelação redentora, e não
somente de um confuso acúmulo de acontecimentos que perturbam a estruturalidade
pura do verdadeiro ser. Que a história tenha um sentido redentor (ou, em
linguagem filosófica, emancipativo) – ainda que seja, ou justamente por ser
história de anúncios e respostas, de interpretações, e não de “descobertas” ou
da imposição de presenças “verdadeiras” – é algo que só se torna imaginável á
luz da doutrina da Encarnação. (pág.105 e 106)
Essa renúncia à presença confere à filosofia pós-metafísica, e principalmente à hermenêutica, um inevitável caráter deiettivo. A superação da metafísica, em outras palavras, só pode acontecer como niilismo. O sentido do niilismo, porém, se não deve, por sua vez, resolver-se numa metafísica do nada – como aconteceria se imaginássemos um processo em que, no final, o ser não é, e o não-ser, o nada, é – só pode ser pensado como um processo indefinido de redução, de adelgaçamento, de enfraquecimento. Seria imaginável um pensamento destes fora do horizonte da Encarnação? Talvez seja esta a pergunta decisiva à qual a hermenêutica de hoje, se quiser realmente prosseguir pelo caminho que o apelo de Heidegger abriu, apelo à rememoração do ser (isto é, do Ereignis), deve procurar responder. (pág.106 e 107)
[1] Remeto aqui às hipóteses ilustradas no ensaio “Storia della
salvezza, storia dell’interpretazione”, in Micromega, 3 (1992), p. 105-112.
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