domingo, 15 de outubro de 2023

David Pellauer - COMPREENDER RICOEUR

 





Ed.Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro 2009

Síntese: Paolo Cugini

Digitação: Carine Almeida Souza

     A filosofia surge portanto em resposta a essa realidade não filosófica que a precede, buscando torná-la inteligível de modo adequado ao que estiver em questão na nossa experiência dela. Essa ideia da filosofia com autônoma mais dependente percorre toda a obra de Ricoeur, estabelecendo limites ao que a filosofia pode alcançar mas sem jamais denegrir ou negar suas realizações. A compreensão que ele tem de filosofia implica, portanto, que as questões filosóficas podem ser sempre reabertas e, também, que podem existir nas obras de filósofos anteriores recursos não percebidos passíveis de desenvolvimento. (p. 18)

     Apoiando-se nas filosofias de Gabriel Marcel, Martin Heidegger Karl Jaspers, ele vê que o modelo sujeito-objeto que caracterizou o pensamento filosófico desde Descartes é problemático, pois acaba não dando conta da nossa experiência de nós mesmos, dos outros nem do mundo em que vivemos e atuamos. (p. 18)

     Rotularei essa ênfase na singularidade da existência individual, no seu caráter único – que Ricoeur posteriormente chamará de nossa individualidade -, como o fio existencial de sua filosofia. Os três pensadores do século 20 já mencionados, Marcel, Heidegger e Jaspers, exercem todos uma influência na maneira como Ricoeur empreende essa crítica existencialista de Descartes e questiona o modelo sujeito-objeto. (p. 21)

     A coisa mais importante que Ricoeur toma de Jaspers é a questão de como é possível pensar tal Transcendência, embora Ricoeur esteja mais disposto que Jaspers a relacioná-la à ideia de Deus tal como encontrada no judaísmo e no cristianismo. Podemos portanto dizer que, em sua obra inicial e mesmo ao longo de todo o seu desenvolvimento subseqüente, Ricoeur está à procura de uma abordagem filosófica dessa Transcendência, a começar por sua relação com a liberdade e ação humanas. Um dos seus objetivos filosóficos fundamentais, assim como de Jaspers, é dar sentido à Transcendência sem transformá-la em um objeto ou sujeito de uma forma que recaia no modelo cartesiano. (p. 22 e 23)

     O que ele toma portanto de Husserl é a compreensão da fenomenologia como uma forma de fazer filosofia baseada num método descritivo que, para começar, não procura fazer suposições quanto à efetiva existência ou não das coisas descritas, ainda que para Ricoeur esteja fora de questão que há sempre um sentido de realidade mais ampla e complexa operando nos limites do descrito, o que denominamos Transcendência não filosófica para além do modelo sujeito objeto. (p. 25)

     A pura descrição da reciprocidade do voluntário e do involuntário também requer que se ponha de lado qualquer forma patológica dos fenômenos em questão. É por isso que Ricoeur deixa para um projetado segundo volume de seu projeto a questão do mal, no sentido de uma má utilização da nossa liberdade. De forma semelhante, o que quer que responda ao problema do mal – e que Ricoeur, na trilha de Jaspers, chama de transcendência – fica para um pretendido terceiro volume, que deveria seguir a introdução do problema do mal na discussão do problema geral da liberdade e da natureza. Mas, como veremos, este volume jamais seria escrito. (p. 27)

     O primeiro passo de Ricoeur é distinguir entre o ato de decidir e o movimento voluntário. O que os separa não é um intervalo temporal, mas conceitual. Aquilo sobre o que decidimos é um projeto, embora tal projeto também precise ser colocado à prova de ser efetivamente executado ou saber se pode sê-lo. Nesse sentido, decidir é uma capacidade, noção que vai desempenhar papel muito mais amplo na obra posterior de Ricoeur, quando ele ultrapassará a questão da liberdade para considerar o eu como o ser humano capaz, em sentido bem mais abrangente, embora ainda estritamente ligado à questão da ação. (p. 28 e 29)

     À questão se “os motivos são de algum modo as causas” tudo o que podemos responder é que eles inclinam sem obrigar. (p. 30)

     Uma importante conclusão aqui é que, enquanto afetividade, “a existência corpórea transcende a inteligibilidade reivindicada pelas essências do cogito” (LN, 120). Portanto, qualquer tentativa de pensar uma simples vontade de viver como constitutiva, em última análise, de nossas vidas vai sempre esbarrar em dificuldades, quando nada porque mesmo os valores orgânicos que consideramos são eles próprios sujeitos à mudança no tempo e no espaço. “A vida, pelo menos no nível humano, é uma situação complexa, não resolvida, um problema não resolvido cujos termos não são nem claros nem consistentes” (LN, 120). Em outras palavras, o que a fenomenologia do voluntário e do involuntário nos diz é por que temos que fazer opções, não como fazê-las. Fazemos opções porque somos tanto sujeitos quanto objetos, sem sermos capazes de reconciliar completamente essas duas maneiras de ser. Além disso, também temos que admitir que tais opções situam-se no tempo e no espaço e têm que ser entendidas de uma maneira que reconheça isso. (p. 33 e 34)

     O homem falível se propõe a mostrar a possibilidade do erro como racionalmente plausível através do conceito de falibilidade. E o faz procurando mostrar que esse conceito “designa uma característica da existência do homem”. (p. 44)

     Se quisermos caracterizar O homem falível dentro da história da filosofia, está mais próximo do estilo de reflexão transcendental associado a Kant. (p. 45)

     Essa dialética da perspectiva finita e infinita depende portanto de uma dialética mais fundamental, a do falar enquanto fazer e do perceber enquanto receber, que de novo traz à baila as idéias da vontade que afirma e do consentimento às maneiras pelas quais as coisas são ou podem ser conhecidas como existentes. Obviamente, a questão da relação da verdade com a linguagem está implícita e é inevitável aqui, embora não abordada em detalhe. A questão de Ricoeur, em vez disso, é sobre o terceiro termo, o termo médio que se encontra entre os pólos dessas duas dialéticas, a do finito/infinito e a do receber/fazer. Ele diz que esse termo médio não é algo jamais dado em si mesmo, mas antes uma consciência que só é alcançável ao referir-se à coisa afirmada: “aqui a consciência nada mais é que aquilo que estipula que uma coisa só é uma coisa se estiver em acordo com essa constituição sintética, se puder aparecer e ser expressa, se puder afetar-me em minha finitude e emprestar-se ao discurso de qualquer ser racional” (p. 47 e 48)

     A ideia de uma síntese transcendental, portanto, não é plenamente adequada para explicar o que está em jogo na desproporção constitutiva da condição da condição humana. Ela nos dá apenas consciência em geral como uma possibilidade, mas, como tal, “permanece deficiente face à substancial riqueza da qual o mito e a retórica dão uma patética compreensão”. (p. 48)

     A realidade da falha, erro ou falta não pode portanto advir de sua possibilidade. No entanto, ninguém negaria que o erro existe. Para tratar desse fato Ricoeur tem que fazer mais uma vez uma mudança de método no livro seguinte do seu projeto sobre liberdade e natureza: o simbolismo do mal. Essa mudança de método terá profunda influência e um efeito duradouro em sua obra subseqüente. Primeiro, vai fornecer-lhe uma maneira de abordar o problema do erro a partir dos mitos e símbolos que as pessoas utilizam para falar dele, num esforço de surpreender a transição para a sua existência “em ato com a ‘reencenação’ em nós mesmos da confissão dele pela consciência religiosa”. Esse novo método, portanto, não é produto de uma teoria plenamente elaborada da interpretação, embora Ricoeur já o chame de abordagem hermenêutica, mas o fará reconhecer que precisa considerar a possibilidade de uma tal teoria quando tentar construir sobre os resultados desse volume. Nem é ainda algo que possamos chamar de filosofia do erro; é antes o caminho para isso. Mas também não é um método que se desenvolverá a partir de uma doutrina como a do pecado original do cristianismo. Ricoeur argumenta, ao contrário, que temos que abandonar tais expressões reflexivas por outras mais espontâneas subjacentes a toda essa especulação e a qualquer formulação desse tipo. Continuamos, porém, no nível do uso da linguagem, embora seja acionada, uma vez que se trata de um uso caracterizado por mitos símbolos, uma reflexão inicial tão extensa sobre como construir essas categorias. (p. 53 e54)

     Quanto à sua compreensão dos símbolos como operantes nesse projeto, mais uma vez não se trata de considerar cada símbolo, mas de encontrar critérios que nos permitam captar o que está em jogo em todos eles. Um desses critérios é que os símbolos, enquanto operantes nos limites da consciência, ocorrerem em três níveis: o aspecto cósmico das hierofanias ou aparências do sagrado; o nível onírico dos sonhos; e o nível poético da imaginação. Há um direcionamento implícito nessa lista. Primeiro lemos símbolos no mundo, depois dentro de nós e, finalmente, através de nossa imaginação poética. Em cada um desses níveis há algo em última análise inexaurível e inerradicável nos símbolos envolvidos. Tudo o que o filósofo pode dizer a essa altura é que isso se deve a que os símbolos estão intimamente ligados à própria vida e dela dependem. (p. 54 e 55)

     Mitos são a maneira como as pessoas usam a linguagem para falar sobre tais símbolos e podemos, pois, acrescentar que os mitos para Ricoeur também não são alegorias.   

 Como resultado dessas reflexões iniciais, Ricoeur vê que se a filosofia quiser levar a sério a existência do erro, terá que reconhecer algo que ele já chama de “plenitude” da linguagem, porque a linguagem simbólica é encontrada em toda linguagem natural. Isso também terá importantes consequências para sua obra posterior, ao se voltar dos símbolos per se para uma reflexão mais geral sobre a linguagem e as implicações para sua antropologia filosófica que se reduz a considerar a linguagem apenas em termos do que pode ser expresso como proposições lógicas unívocas abstratas. (p. 55 e 56)

     Se há alguma sensação de responsabilidade, está mais intimamente ligada à de ter sido de algum modo vítima de um ato de vingança do que à de ter perpetrado uma malfeitoria. Podemos mesmo pensar que isso implica um senso de valor moral da parte da vítima inferior ao que caracterizaria uma consciência culpada mais desenvolvida. É por isso que os símbolos de degradação são mais freqüentemente associados a rituais de purificação, ao simbolismo da limpeza ou lavagem, da purgação, e a um vocabulário ligado à pureza e impureza. (p. 56)

     Até aqui Ricoeur enfatizou como os símbolos da falta ou erro estão amarrados à experiência. Seu passo seguinte é considerar como essa experiência é mediada através da linguagem, especialmente através da linguagem dos mitos referentes à origem e ao fim do mal. Admite que as pessoas modernas não pensam mais de uma maneira que entrelaça mitos e história, mas sustentada que ainda podemos tentar entender os mitos simplesmente como tais, mitos: “Compreender o mito como mito é compreender o que o mito, com seu tempo e espaço, seus eventos, personagens e drama, acrescenta à função reveladora dos símbolos primários abordados acima”. Na verdade, ele sugere que os mitos fazem três coisas: abraçam a humanidade numa história ideal; narram um movimento do início ao fim para dar uma orientação, caráter e tensão à nossa experiência; e tentam alcançar o enigma da existência humana, “a saber, a discordância entre a realidade fundamental – o estado de inocência, a condição de uma criatura, o ser essencial – e a modalidade efetiva do homem como degradado, pecaminoso, culpado”. Em uma palavra, o mito tem uma carga ontológica pelo fato de que aponta para a conexão entre nossa realidade essencial e nossa existência histórica efetiva, como uma verdade universal de caráter temporal e concreto cuja forma narrativa não pode ser reduzida a um conceito. Nesse sentido, os mitos são reveladores sem ser científica ou etiologicamente explicativos. São reveladores porque dão significado à condição humana de que todos participamos e, como tais, podem ter um efeito transformador sobre aqueles que os freqüentam, mesmo que nenhum mito jamais seja plenamente adequado ao que significa. É por isso que há tantos mitos e se questionará se é possível avaliá-los e classificá-los quanto à sua adequação para dizer algo sobre a falta ou erro. (p. 59 e 60)

    O imediatismo de nossa crença se perdeu, mas podemos esperar o que eles têm de novo a dizer pela interpretação e assim pretendermos uma segunda ingenuidade no e através do próprio processo de reflexão e crítica. Isso, porém, exigirá o desenvolvimento de uma hermenêutica filosófica – e já podemos ver de onde surgirão as obras subseqüentes de Ricoeur. No momento, porém, isso parece apenas uma aposta da parte dele, uma aposta de que dessa maneira podemos alcançar uma melhor compreensão da existência humana e do vínculo entre o ser humano e o ser de todos os seres se seguirmos as indicações do pensamento simbólico. Isso não será exatamente o equivalente a uma Kantiana dedução transcendental do símbolo para tornar possível um domínio da objetividade, nem será uma confirmação do cogito cartesiano. Na verdade, levará Ricoeur a exigir uma segunda revolução coperniciana de volta ao objeto e para além dele, nos moldes da própria volta kantiana ao sujeito, para mostrar que o cogito está dentro do ser e não vice-versa. A tarefa será elaborar conceitos existenciais, “quer dizer, não apenas estruturas de reflexão, mas estruturas de existência” que se traduzem numa compreensão ampliada. (p. 62)

     A hermenêutica e sua íntima relação com a linguagem formam o cerne dessas investigações, embora em retrospectiva possamos ver todos esses temas já antecipados em sua obra inicial. Os símbolos e mitos abordados em O simbolismo do mal, por exemplo, já estavam no nível da linguagem e já requeriam uma abordagem interpretativa. E mesmo sua fenomenologia da polaridade do voluntário e do involuntário tinha assumido uma linguagem viável para descrever esses fenômenos. O que o desafio levantado pelo estruturalismo acrescenta é a necessidade de expressar essa compreensão da linguagem detalhadamente, necessidade reforçada pelo fato de que o próprio estruturalismo depende de uma certa teoria da linguagem. (p. 65)

     O método que ele propõe usar para entender Freud como um problema filosófico tem três desdobramentos. Vai focalizar “a textura ou estrutura do discurso freudiano”, abordando-o primeiro como um discurso que coloca um problema epistemológico (a natureza da interpretação em psicanálise), depois um problema para a filosofia reflexiva (relacionado à nova autocompreensão que se segue a essa interpretação) e, por fim, um problema dialético (a saber: será que a interpretação freudiana exclui todas as outras?). Dessa forma, o livro pega o problema que foi deixado sem solução no fim de O simbolismo do mal: a relação entre uma hermenêutica dos símbolos e uma filosofia de reflexão concreta. (p. 66)

     “Símbolo” pode ser entendido de forma ampla demais, de modo que tudo é símbolo, ou de forma estreita demais, de modo que o símbolo só representa ele mesmo, como nos sistemas combinatórios formais da lógica simbólica mais abstrata, ou de forma tal que a relação entre os dois níveis de significado é considerada apenas analógica. O que Ricoeur diz agora é que a analogia, de fato, é apenas uma das relações possíveis entre o sentido manifesto e o significado latente de cada símbolo. Portanto o que realmente precisa ser explorado é o fato de que há uma função significante em cada símbolo, seja qual for a forma que ela possa assumir. O simbolismo do mal já havia reconhecido a existência dessa função significante e o fato de que ela funciona em termos de linguagem sobre o sagrado, os sonhos ou imaginação poética. Isso permite a Ricoeur ver que o que Freud faz quanto à questão da função simbólica é, primeiro, limitar o campo simbólico a apenas uma dessas opções, a onírica. Também percebe que a questão dele, Ricoeur, é saber se a função simbólica em geral pode eventualmente expressar uma relação “inocente” ou se deve ser sempre uma espécie de distorção astuciosa.

     Um outro desdobramento importante para sua filosofia é que agora ele vê como a interpretação que propôs em O simbolismo do mal não apenas segue de maneira nada crítica a tradição da exegese bíblica, como adota um método deliberado demais. Se queremos falar criticamente de interpretação, faz-se necessária uma teoria da interpretação. (p. 67)

     O testemunho das convicções fundamentais de alguém dá prova de uma fonte de significados apara além do próprio eu, em que esse eu não é o sujeito imediato da reflexão descoberto no cogito. Essa convicção fundamental é que mantém unidas a hermenêutica da suspeita e a da disposição de ouvir e confiar que o significado é dado. Ambas perguntam: “Pode a desapropriação da consciência em prol de outra fonte de significado ser entendida como um ato de reflexão, como o primeiro gesto de reapropriação?”. A possibilidade dessa reflexão concreta é a questão que Ricoeur traz a sua interpretação de Fred. (p. 70)

     Ricoeur propõe então sua própria resposta, sua interpretação filosófica de Freud, na qual dois grandes objetivos estão em jogo: 1) arbitrar o conflito entre duas hermenêuticas opostas, a da desconfiança ou suspeita e a da confiança; e 2) encontrar uma maneira de integrar a “reflexão filosófica” ao processo de interpretação. Ele agora percebe que não basta dizer que os símbolos já carregam essas possibilidades em si mesmos. Será necessário “atingir o nível de pensamento no qual essa síntese possa ser entendida”. Para chegar lá, Ricoeur propõe três passos. O primeiro retorna à questão epistemológica do lugar da explicação em psicanálise e seus limites. Esse passo mostrará o lugar da psicanálise entre a psicologia cientifica, de um lado, e a fenomenologia, de outro. Em seguida, Ricoeur proporá que a teoria freudiana pode ser entendida como uma “arqueologia do sujeito”, uma arqueologia que a reflexão concreta terá que aprender a incorporar. Por fim, pensando na fenomenologia hegeliana, Ricoeur vai perguntar se essa arqueologia não permanece abstrata, não concreta, enquanto não completa por uma “teologia, com uma progressiva sintetização de figuras e categorias, em que o significado de cada uma é esclarecido pelo significado de outras mais”. Se assim for, então a regressão e a progressão podem ser entendidas como duas direções de interpretação possíveis, opostas e no entanto também complementares – respondendo à primeira questão mencionada acima. Mais tarde veremos, argumenta Ricoeur, que essas duas direções podem ser unidas através de uma dialética que localiza sua unidade na própria origem da nossa capacidade de falar, de usar a linguagem de modo significativo. Restará somente considerar então que consequência isso deve ter para uma teoria geral da interpretação. (p. 73 e 74)

     A psicanálise não é uma ciência de observação lidando com fatos do comportamento. É “uma ciência de exegese que lida com relações de significados entre objetivos substitutos e objetos primordiais (e perdidos) dos instintos”. No entanto o que ela diz não se inclui nem no discurso das ciências naturais nem no da fenomenologia. A psicanálise fala mais de motivos que de causas, mas suas explicações assemelham-se às explicações causais sem serem idênticas a elas. É por isso que Ricoeur caracteriza a obra de Freud como uma semântica do desejo: “é um discurso misto que escapa à alternativa motivo-causa”. (p. 74)

     Fundamentalmente, Saussure argumentava que a linguagem devia ser considerada em termos de sua estrutura básica, que chamava de langue, ignorando-se o seu uso no discurso, que rotulava como parole. Deveria a langue ser considerada sincronicamente, isto é, colocando-se entre parênteses qualquer referência temporal de modo a isolar a estrutura constitutiva da langue como um “sistema de signos”. O que era particularmente inovador no que ele dizia sobre esse sistema é que o fundamental são as diferenças entre os signos. Em outras palavras, os signos não têm significado exceto em relação a todos os outros signos pelas diferenças para com eles. Esses signos são eles próprios então analisáveis numa estrutura interna que combina significante e significado, distinção que teria importantes consequências para os movimentos pós-estruturalistas por não querer a ideia de uma referência externa ao sistema dos signos. (p. 80)

     O que Ricoeur primeiro critica nesse tipo de abordagem é o fato de ela pôr de lado qualquer consideração sobre o tempo, assim ignorando a questão de compreender tradições que podem mudar, mas continuam a existir com o tempo, do mesmo modo que as formas sociais baseadas nelas, tradições que se reconhecem vivas na história. Ligada a essa havia também a preocupação de como lidar com mudanças de significado e, para além disso, com a possibilidade de novos significados. Mas ao mesmo tempo Ricoeur procura, de fato, encontrar uma maneira de reconhecer o valor de uma abordagem estrutural na medida em que ela possa descobrir algo capaz de nos ajudar a identificar as formas examinadas. O que rejeita, entretanto, é a subordinação da diacronia – desenvolvimento no tempo – à sincronia, fatia atemporal do sistema considerado. Ele acha que isso elimina qualquer possibilidade de mudanças de significado, uma vez que as estruturas descobertas são tidas não só como atemporais, mas também universais. Já o que Ricoeur enfatiza é o que começava a chamar de compreensão hermenêutica, que acreditava ter que enfocar as coisas exatamente da maneira oposta – isto é, para uma filosofia hermenêutica a diacronia é mais importante que a sincronia. Sem esse pressuposto não há como reconhecer a historicidade dos símbolos – e dos seus significados. (p. 81 e 82)

     O discurso, por fim, sempre ocorre como um evento real no tempo, ao contrário das estruturas abstratas atemporais descobertas pelo estruturalismo. Essas estruturas de fato persistem de algum modo, no sentido de que podem ser identificadas a qualquer tempo (e, se mudam, fazem-no apenas lentamente ao longo do tempo), mas os eventos do discurso são passageiros. Pode-se dizer mesmo que eles desaparecem.

     A alegação-chave de Ricoeur nesse ponto é que, embora um evento do discurso desapareça, ao menos por se tornar passado, seu significado pode perdurar. É isso que a teoria hermenêutica tem que explicar, pois se os significados persistem quando o evento já passou, tais significados podem ser “tomados” – apropriados vais virar o termo técnico aplicável – por novos sujeitos em novas épocas e novos contextos. Essa possibilidade de o significado assim perdurar, diz Ricoeur, pode ser confirmada se mudarmos o foco de atenção do discurso falado para o discurso escrito (ou que Ricoeur chama de escrito). Pois se o evento da fala some, os textos permanecem e podem ser lidos por qualquer um que saiba ler. Na verdade, não é sempre fácil, como se pode ver no caso dos textos da Antiguidade, sejam a Bíblia, da Grécia ou de Roma, pois não apenas as línguas não são mais faladas, como os contextos culturais que os produziram não mais existem na forma original. Na verdade, a necessidade de superar essa distância histórica foi um dos fatores que levaram ao desenvolvimento da moderna teoria hermenêutica de que Ricoeur lança mão aqui. Ele já vê, por exemplo, que a necessidade de aprender uma segunda língua e às vezes também de produzir traduções para superar essa distância histórica sugere que hoje essa teoria hermenêutica pode ser estendida para responder igualmente à distância cultural e temporal. É um ponto que sua teoria hermenêutica em desenvolvimento irá cada vez mais reconhecer. No fim da vida, percebeu que ela também exigia pensar mais no papel que a tradução desempenha para se adquiri compreensão do que é estranho a nós. (p. 85 e 86)

     Outra importante consequência dessa guinada lingüística de Ricoeur que vale a pena observar é que a noção de símbolo vai desempenhar um papel menor na sua obra subseqüente, sem no entanto jamais desaparecer por completo. O que tomará o seu lugar como noção central para suas reflexões será o discurso figurativo – usos da língua que não podem ser captados pelo modelo da proposição lógica. Pode-se ver essa mudança ocorrendo nos ensaios “A hermenêutica dos símbolos e a reflexão filosófica” e “O problema do duplo sentido como problema hermenêutico e como problema semântico”, em O conflito de interpretações. O que ele diz é que algo do efeito de duplo sentido encontrado nos símbolos pode também ser encontrado ma língua, especialmente se atentarmos á sua plenitude e não nos limitarmos a sentenças aparentemente unívocas com base numa comparação a proposições lógicas, que são sempre verdadeiras ou falsas e cujo significado não muda à medida que reaparecem numa argumentação. As línguas naturais contêm muitas sentenças significativas que não se encaixam em tal rubrica. Um bom exemplo é a sentença imperativa para pular no lago, que demos acima. Similarmente, também não é verdadeira ou falsa a ordem “feche a porta” nem o pedido “feche a porta, por favor”. No que Ricoeur estará sobremaneira interessado, portanto, são aquelas instâncias de discurso e de discurso estendido que, como os símbolos, significavam mais de uma coisa ao mesmo tempo – por exemplo, as imagens poéticas. Isso vai levá-lo a examinar de perto o caso da metáfora, como veremos no próximo capítulo. As metáforas são como os símbolos por conterem um excedente de significado, que faz uso da ambigüidade de maneira produtiva. Por isso, se pudermos melhor entender as metáforas, poderemos também melhor entender os símbolos, problema que Ricoeur havia levantando no final de O simbolismo do mal. (p. 88 e 89)

     O que Husserl alegava ter descoberto era um método capaz de levar a filosofia a um campo transcendental em que as coisas aparecem a um sujeito transcendental e podem ser conhecidas como realmente são. Mas Ricoeur viu que esse sujeito transcendental não era ninguém porque, como conhecedor puro, era qualquer um. Pior, o método de Husserl não oferecia um caminho de volta ao mundo da experiência e da subjetividade vividas, comuns. Isso porque seu método radical funcionaria colocando de lado todo apelo à experiência natural cotidiana através de uma redução que a isolaria com seus pressupostos sobre o que o mundo realmente é, dessa forma abrindo caminho à eventual percepção da essência verdadeira de quaisquer fenômenos. Mas Ricoeur, repetindo Merleau-ponty, rejeitou essa alegação ao negar a possibilidade de uma completa redução, o que hoje chamaríamos de um salto para uma “vista de lugar nenhum”. Ele sustenta que, na verdade, se podemos questionar nossa experiência, nunca podemos escapar completamente ao mundo da vida cotidiana, do qual sempre partimos. Entretanto, isso não significa rejeitar completamente a fenomenologia como uma abordagem descritiva útil que procura descrever as coisas tais como parecem á consciência ou as maneiras pelas quais podemos ter consciência delas. Mas significa rejeitar qualquer alegação de que podemos provar conclusivamente o caráter exaustivo dessa abordagem da experiência vivida, uma vez que Ricoeur, como já vimos por sua crítica do estruturalismo e sua persistente negação da independência da filosofia, acredita que há sempre mais na experiência vivida temporal do que qualquer teoria  pode captar, mesmo que tal teoria pressuponha sempre, ao tentar compreender essa experiência, um excedente de significado disponível e a abrangente realidade a que se refere. (p. 92)

     A interpretação sempre se move de alguma pré-compreensão ou pré-entendimento para a ideia de um entendimento ampliado. A explicação é um meio aumentar tal entendimento por introduzir um momento objetivo crítico. A relação entre entendimento e explicação, em outras palavras, tem que ser concebida como dialética, com a explicação como termo mediador entre dois polos do entendimento. (p. 93)

     Ricoeur começa a discussão da metáfora com um retorno a Aristóteles, que abordou o assunto em sua Poética e no seu livro sobre retórica. Aristóteles considerava que o discurso retórico e o discurso poético – até dado o uso que fazem de metáfora e outras formas figurativas – sobrepunham-se à lógica por causa do apelo de ambos e algum tipo de argumento. (p. 94 e 95)

     A metáfora, como uma forma de inovação semântica, desempenha um papel tanto na retórica, considerada como uma teoria de argumentação, quanto na poesia e no drama como as tragédias gregas, que Aristóteles afirmava serem mais verdadeiras que a história porque nos mostram não tanto como as coisas são, mas como devem ser.em ambos os casos de linguagem, a metáfora trabalha com uma língua já existente na qual introduz uma “distorção” ou desvio que a faz dizer algo novo; daí que a inovação semântica mesma da metáfora depende do uso da língua ou, como define Ricoeur, do discurso. Esse aspecto transgressivo ou transformativo da metáfora depende do uso da língua ou, como define Ricoeur, do discurso. Esse aspecto transgressivo ou transformativo da metáfora é o que a torna capaz de criar novo significado ao perturbar a ordem lógica existente, ao mesmo tempo que o gera sob nova forma. (p. 95)

     Sua visão é de que a metáfora pertence ao nível do discurso, portanto minimamente ao nível da sentença. Ou seja, tem que ser entendida em termos de predicação, não simplesmente como substituição de um termo por outro. Além disso, as metáforas vivas envolvem um tipo estranho de predicação: elas dizem “é” e “não é” ao mesmo tempo! É por isso que não podem ser traduzidas em proposições lógicas ou diretamente entendidas por meio de técnicas aplicáveis àquelas asserções, em que uma sentença ou diz sim ou diz não sobre alguma coisa. Numa metáfora viva há como que uma tensão entre o sujeito e o predicado. Tal percepção leva a uma teoria interativa para a qual nem um apelo à substituição nem uma explicação em termos comparativos é adequada para explicitar plenamente essa tensão. Quando uma metáfora é viva, não morta (como “a perna da cadeira”, por exemplo), o que ela diz não pode ser imediatamente traduzido em conceitos já existentes. Requer um ajuste em nossa compreensão e em nossa linguagem já existente, um ajuste que, como já dissera Aristóteles, nos faz “ver” as coisas de forma diferente. (p. 96)

     A teoria da narrativa é uma das mais desenvolvidas e influentes contribuições de Ricoeur ao conhecimento. Estende-se pelos três volumes de Tempo e narrativa, junto com um número de ensaios que abordam partes do tema ou servem para preparar os alicerces desses volumes. A narrativa interessa de início a Ricoeur não apenas como uma forma de discurso estendido, mas também porque, como já vimos, o mito é uma forma de narrativa, de modo que a passagem pela narrativa pode nos ajudar a aprender a pensar a partir dos símbolos da falta (ou erro) e da Transcendência que são expressas em mitos. Além disso, entretanto, Ricoeur agora argumenta também que é necessário a uma filosofia baseada na plenitude da língua considerar o discurso narrativo em si mesmo, porque esse uso da língua está intimamente ligado a questões sobre o tempo e a história que ele afirmara não ser possível ao estruturalismo equacionar. Sua tese é de que “o tempo se torna humano na medida em que é organizado à maneira de uma narrativa; e a narrativa tem sentido, por sua vez, na medida em que retrata os aspectos da experiência temporal”. Adianta essa tese na primeira página de Tempo e narrativa, indicando assim que não quer que a obra seja lida como uma longa argumentação que levará à descoberta de uma conclusão final. Ao invés disso, como lança sua tese no início, os volumes devem ser lidos como um apelo por essa tese, um pedido como os que se fazem nos tribunais de um julgamento a favor ou contra por parte do leitor. Essa forma de argumentação é necessária porque, como dirá Ricoeur no volume três da obra, toda tentativa filosófica de entender o tempo acaba pagando o preço de novas aporias, novas questões, por cada ganho obtido. Daí não poder haver nenhuma resposta teórica final sobre o significado do tempo, só respostas práticas como as que fazem uso da narrativa para contar a história da ação humana e do mundo em que ocorre. (p. 99 e 100)

     O que distingue a narrativa como a forma de discurso é que ela sempre tem uma trama. Essa trama ou enredo produz o seguinte: combina os episódios e a história como um todo num conjunto significativo. E o faz pela capacidade da trama de reconfigurar em narrativa o que já estava configurado na língua anteriormente, através da rede conceitual que já nos permite falar significativamente sobre a ação humana. Essa rede conceitual é muito heterogênea. Inclui conceitos tais como causa, razão, motivo, ação e paixão, trabalho, agente, paciente, objetivo e assim por diante. Tais conceitos podem já ser combinados em sentenças de ação com fim em aberto. (p. 100)

     É por isso que a língua corrente já pode referir e falar de ação nesse nível. O que a narrativa faz é tomar tal discurso, já mimético por significar ou “figurar” ação em linguagem, e a acrescentar-lhe novas características discursivas que lhe dão novo significado ao torná-lo história de “algum feito”. Ao mesmo tempo, a narrativa oferece a possibilidade do discurso estendido sobre a ação, discurso que vai além do nível das sentenças de ação individuais para falar de coisas que acontecem não apenas no tempo, mas também ao longo do tempo, incluindo suas possíveis consequências a longo prazo e mesmo desconhecidas anteriormente. A narrativa faz isso contando uma história sobre a ação humana e seu significado. Tal história, por sua vez, pode ser ouvida ou lida e, quando compreendida, contribui para reconfigurar nosso entendimento da ação humana e suas possibilidades. Essa nova forma de inovação semântica ocorre porque a narrativa enxerta novos elementos temporais às configurações pré-narrativas da ação e, através deles, à nossa compreensão tanto da ação humana quanto do próprio tempo. Será tarefa de uma hermenêutica do discurso narrativo reconstruir e assim tornar inteligível toda essa seqüência, da experiência vivida à narrativa e desta novamente de volta à experiência. (100 e 101)

     Em outras palavras, a trama constitutiva da narrativa, extraindo uma configuração de uma seqüência de eventos compreensível, combina uma dimensão cronológica e outra não cronológica num todo significado. Essa configuração em seqüência leva finalmente ao que Frank Kermode chamou de sentido concludente, em que emerge uma nova qualidade de tempo, um tempo significativo que engloba tanto o tempo cósmico quanto o vivido em um tempo humano marcado por uma espécie de concordância discordante. Há discordância porque o que a narrativa diz, como tal, nunca se reduz simplesmente a uma ideia atemporal, mas há concordância porque essa discórdia temporal não é em última análise caótica. No discurso narrativo, portanto, podemos encontrar um tempo reconfigurado que, na melhor das hipóteses, nos ajuda a entender melhor o tempo comum de nossas vidas cotidianas, assim como suas situações limites. Essa compreensão melhorada do tempo e da ação humana pode subseqüentemente dar origem a novas formas de configurações narrativas. (p. 102)

     Em tempo e narrativa. Faz uma série de observações distintas mas relacionadas em suas considerações sobre a história. Um dos seus argumentos é de que a história, no sentido do que o historiador produz – um livro de história -, depende de e visa a nossa compreensão narrativa, nossa capacidade de produzir e entender narrativas. Esse é um ponto importante porque por trás dele está a questão de saber se pode ou não existir tal coisa como uma história não narrativa. Ricoeur situa essa discussão em relação ao grupo de historiadores franceses conhecido como dos Anais (Annales), que focavam suas investigações no que chamavam de fato histórico total e, na prática, naqueles aspectos históricos que só mudam lentamente com o tempo ou que se repetem, em contraste com os eventos históricos que consideravam menos importantes, mais momentâneos no plano político. (p. 102 e 103)

     Para eles, esse tempo era sempre um longo espaço de tempo. Esse foco nos largos períodos de tempo permitia-lhes, por sua vez, negar que estivessem produzindo o que chamavam uma simples história de eventos. O argumento de Ricoeur em relação a esse tipo de história toma então duas grandes direções. Primeiro, argumenta que toda história, no sentido de um texto de história produzido por um historiador, é em última análise narrativa e, portanto, derivada de alguma compreensão do tempo e da ação humana, mesmo que o limite lance mão de algo parecido com uma quase-trama ou mesmo quase-personagens ou atores históricos. (p. 103)

     Os historiadores freqüentemente fazem uso de uma forma de sentença narrativa ainda mais sofisticada quando dizem coisas como “em 1717 nasceu o autor de O sobrinho de Rameau”. Ninguém em 1717 poderia dizer ou saber isso. E, além do mais, a própria voz do narrador que profere essa sentença adia o aparecimento do livro de Diderot. É como se uma presente falasse de uma evento passado (um “agora”, no sentido de um ponto na linha do tempo) em termos de um evento futuro (um outro “agora”, um outro ponto na linha do tempo que vem após o primeiro) que se encontra ele mesmo no passado da voz narrativa que fala desde o seu próprio “agora” (o mal se mostra como um presente vivo de uma instância do discurso do discurso, além de ser também um ponto no tempo). Uma importante implicação aqui para qualquer filosofia do tempo é que as possíveis relações entre passado, presente e futuro não são simplesmente as mesmas que há entre “antes” e “depois”. Outra importante implicação é que a história no sentido do que os historiadores fazem depende, ela mesma, de algum conhecimento dos acontecimentos subseqüentes. É por isso que não há história do presente. Com efeito, uma vez que o tempo continua a passar, assim também novos eventos subseqüentes continuam a ocorrer, e o trabalho da explicação histórica é constantemente reaberto. Por isso temos que dizer que o próprio conhecimento histórico é sempre sujeito à revisão e extensão. (p. 105)

    Quando a narrativa que está sendo contada empaca ou começa a dar voltas sobre si mesma, esse é o momento em que os historiadores introduzem formas mais explícitas de explicação, incluindo apelos a regras gerais, a fim de fazer a história prosseguir. Mas, ao fazê-lo, temos que reconhecer que sempre visam á verdade do que pode ser conhecido sobre o passado. Na linguagem da fenomenologia, eles sempre tentam dizer-nos o que pode ser conhecido sobre o que efetivamente aconteceu, mas uma perspectiva hermenêutica isso será sempre uma interpretação do passado sujeita a possível crítica e revisão. Com efeito, o historiador busca explicar mais a fim de compreender melhor, o que reforça a alegação hermenêutica.

     Ricoeur conclui ter mostrado que a história efetivamente pertence ao campo narrativo enquanto definida por sua operação configuradora. Mas não basta simplesmente equiparar a história com o gênero “estória”: “a propriedade especificamente histórica da história é preservada pelos laços, por mais tênues e bem escondidos, que continuam a ligar a explicação histórica à nossa compreensão narrativa, a despeito da ruptura epistemológica que separa a primeira da segunda. Podemos mesmos dizer que a narrativa histórica nos mostra novas possibilidades para a compreensão narrativa porque pode empurrar o modelo básico para a utilização de coisas como um quase-enredo e quase-personagens quando escrevemos não diretamente sobre a ação humana, mas sobre coisas como o mundo mediterrâneo durante um certo período longo de tempo. (p. 106)

       A ficção, como o outro grande tipo de narrativa, nos dá mais percepção de como a narrativa configura e, em última análise, reconfigura o tempo. Ricoeur considera vários pontos ao examinar a ficção, mas sempre com vistas a dar suporte a sua tese básica sobre a relação entre o tempo e narrativa. Antes de mais nada, analisa a questão específica do tempo na narrativa ficcional, notando que a lista de possíveis gêneros narrativos não está fechada. Isso é demonstrado pela descoberta (ou invenção) do romance como uma nova forma de escrever ficção. O romance é notável por sua variedade em se tratando de exemplos concretos, mas de modo mais geral Ricoeur observa que, em comparação com formas anteriores, incluindo o drama, como na tragédia grega, ele amplia a esfera social na qual se desenrola a ação ao dar atenção a pessoas comuns. Também introduz uma ênfase maior nas personagens como indivíduos nos quais devemos pensar como pessoas reais e não como meros tipos ideais ou míticos como o herói ou o vilão. Com isso vem uma ênfase crescente na complexidade social e psicológica, combinada com novas maneiras de conceber a vida interior, culminando no século 20 com a corrente do romance de consciência. “No entanto nada nessas sucessivas expansões do personagem em detrimento do enredo escapa ao princípio formal da configuração e, portanto, ao conceito de trama”. O que é mais importante sobre o romance, no entanto, é que leva a novos desenvolvimentos da técnica narrativa por se tratar de um gênero que constantemente luta para não ser reduzido a um conjunto fixo de convenções ao mesmo tempo que confronta os leitores com a questão: estamos diante da ilusão ou da semelhança com a realidade? A resposta de Ricoeur a essa questão lava-o a abandonar o seu uso anterior da idade de “redescrição” para caracterizar o que acontece com a metáfora viva, passando à ideia de “reconfiguração” a fim de captar o que acontece através da narrativa quando é ouvida ou lida e entendida. Isso porque, como toda narrativa, a ficção nos apresenta um mundo de texto no qual se supõe o desenrolar da história e este é um mundo que poderemos nós mesmos imaginar habitando. (p. 106 e 107)

     A ficção torna-se uma forma de articular novas experiências do tempo, experiências fictícias que têm o mundo do texto como horizonte, um mundo que nos ajuda, nos melhores casos, a ter um entendimento maior de nosso próprio mundo. Ricoeur demonstra isso examinando três romances que podem ser considerados histórias sobre o tempo: A Sra. Dalloway, de Virginia Woolf, A montanha mágica, de Thomas Mann, e Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. No primeiro desses três grandes romances encontramos, por exemplo, um conflito entre o tempo mortal e o tempo monumental, o tempo das ocorrências diárias e o dos grandes acontecimentos políticos e do poder. No segundo, a distância entre o tempo da narração e o tempo narrado é esticada de modo que temos um relance de um tempo eterno, o da montanha mágica que paira acima das peripécias cotidianas, mas não totalmente, uma vez que a história termina com o começo do que o leitor identifica como o desencadear da Primeira Guerra Mundial e a descida do herói da montanha. Finalmente, em Proust, encontramos uma história que é ela mesma a narrativa de um acerto de contas com o tempo pela descoberta final de como torná-lo história, uma história que se move do tempo perdido e incompreendido para o tempo reconquistado e compreendido, da experiência vivida para a experiência narrada. Em nenhum desses casos, porém, são completamente abolidas as características gerais da ficção e, através delas, da narrativa. “È por isso que o romance tornou infinitamente mais complexos os problemas da trama”. Dizer é ainda uma forma de fazer, “mesmo quando o dizer se refugia no discurso surdo de um pensamento silencioso, o qual o romancista não hesita em narrar”.

     A ficção e a história precisam em seguida ser reunidas numa teoria que lhe dará direitos iguais, o que Ricoeur procura fazer no terceiro volume de Tempo e narrativa. No entanto, a narrativa ficcional é mais rica nas informações que nos dá sobre o tempo do que a narrativa histórica, que também passa sempre alguma informação do tipo. As compreensões fictícias do tempo, encontradas tanto na ficção quanto na história, podem por sua vez estar relacionadas a maneiras de ser no mundo e à ação humana, porque partem de compreensões já constituídas do mundo e da ação tais como encontradas nas línguas corriqueiras existentes. Mas, pelo menos nos melhores casos, também vão além dessa compreensão para a possibilidade de um novo entendimento e de um novo significado não apenas no tocante ao mundo e à ação humana, mas também em relação ao próprio tempo, sem com isso exaurir o seu mistério. (p. 110 e 111)

     Podemos portanto dizer que a história e a ficção efetivamente se entrelaçam porque bebem uma na outra dentro do campo mais largo do discurso narrativo. E o fazem de maneiras que têm explicações e ressonâncias tanto epistemológicas quanto ontológicas. Ricoeur identifica nesse ponto uma implicação que será importante para a sua obra subseqüente: a ideia de identidade narrativa, no sentido de uma identidade pessoal ou comunitária expressa e mesmo constituída através das narrativas que falam dela. (p. 113)

     A questão da identidade pessoal ou narrativa leva à questão do que significa ser um eu, embora essa questão não esgote todas as possibilidades da identidade narrativa, que pode também aplicar-se a sujeitos plurais tais como comunidades religiosas e políticas. Ricoeur agora acha, no entanto, que tais identidades têm que ser entendidas em relação à individualidade. (p. 123)

     A individualidade é um fenômeno complexo que envolve dois tipos de identidade, não redutíveis a uma única ideia. Com efeito, o que Ricoeur agora chama de identidade ipse “não implica qualquer asserção quanto a um núcleo imutável da personalidade”. É por isso que ela pode referir a uma identidade narrativa que se desdobra ou muda com o tempo. (p. 123)

     A abordagem de Ricoeur vai desenvolver o que ele agora chama de hermenêutica do eu. Sua pretensão não é esgotar todas as questões que possam surgir acerca da individualidade, por exemplo sobre sua base fisiológica tal como estudada pelas ciências naturais. Sua hermenêutica do eu é antes baseada numa espécie de discurso filosófico, que Ricoeur procura estabelecer através de um argumento em três etapas. Começa com uma reflexão sobre o que a filosofia analítica tem a oferecer sobre o assunto; em seguida, examina a dialética da individualidade e da identidade implicada por esse primeiro passo; e, por fim, volta-se para a dialética da individualidade e da alteridade, na medida em que fornece maior compreensão da constituição do eu como ser humano capaz, alguém que tem uma identidade mas que também pode agir no mundo com e para os outros. É a pergunta “quem?” que amarra e une esses estágios.

     De maneira sucinta, podemos dizer que eles se desdobram como segue. O primeiro passo é ver que a pergunta “quem?” envolve mais que uma coisa geral, ou seja, uma pessoa. Esta é alguém que pode se designar falando e agindo. É alguém que tem uma identidade pessoal e que se posiciona e age em relação a outros, o que leva à consideração dos determinantes éticos e morais de uma ação em relação a esse “quem” que responde à pergunta “quem fez isso?” Por sim, surge de novo a questão da odontologia. Que envolve as questões do que significa ser um agente e ser histórico, mas também a da unidade desse agente histórico. Ricoeur é algo hesitante aqui; como de hábito, procede bem cautelosamente ao considerar a ontologia. (p. 124 e 125)

     O passo seguinte de Ricoeur é enfocar a noção de indivíduo de modo tal a passar da ideia geral de indivíduo para o indivíduo que cada um de nós é. Baseia-se aqui em Indivíduos, de Peter Strawson, com sua ideia de “particulares básicos” que funcionam em casos de referência identificadora. A distinção chave aqui é entre corpos físicos e “pessoas”, onde a ideia de pessoa ainda não inclui a capacidade que a pessoa tem de designar-se falando. Uma pessoa é ainda apenas uma das coisas do mundo que podem ser identificadas e referidas pela língua em geral. Mas isso já sugere que, quando ocorre, a autoidentificação tem lugar em situações de interlocução em que pessoas falam uma à outra e também que recorrerá, para expressar-se, ao uso de demonstrativos tais como pronomes pessoais e possessivos. Mas o que importa aqui são os tipos de predicados que podem ser atribuídos a esses particulares básicos. Uma pessoa é uma coisa, mas não apenas uma coisa como as coisas em geral. As pessoas têm corpos, mas “o conceito de pessoas não é menos primitivo que o de corpo”. O ponto aqui é que tanto predicados físicos quanto mentais aplicam-se no caso das pessoas, de modo que retorna com força a questão da corporeidade que já estava presente na obra inicial de Ricoeur. O que ele vê agora é que há duas importantes questões aqui: de que modo uma pessoa é um corpo do qual falamos e de que modo pode ser um sujeito que se designa na primeira pessoa ao dirigir-se a uma segunda ou a outras. Há ainda a dificuldade extra de compreender como uma terceira pessoa pode ser alguém capaz de designar-se na primeira pessoa. (p. 126 e 127)

     O passo seguinte de Ricoeur é deslocar sua atenção para a ideia de que os atos de discurso são tipos de ação e estender essa percepção a um exame mais amplo da ação em geral, a começar mais uma vez pela semântica da ação. O que está em jogo aqui é uma rede conceitual que se aplica tanto a agentes quanto a seus atos e que “partilha a mesma condição transcendental do quadro de conceitos dos particulares básicos”. Nessa rede, o significado decorre das respostas que ela pode dar a perguntas como: “quem”, “o que”, “onde”, “como”, “quando” e assim por diante, todas de significados entrelaçados. Mas a teoria semântica da ação tende a subestimar a importância dos laços com a pergunta “quem” e sua aparente ligação com uma espécie de eu, em prol de um foco nas perguntas “o que” e “por que”, tendendo assim mais uma vez a sugerir que o eu deveria ser pensado como uma coisa ou evento determinado do ponto de vista causal e, como tal, uma coisa anônima, ainda que essa teoria da ação reconheça que a pergunta “quem” pode ser respondida de várias maneiras diferentes, inclusive com pronomes pessoais. (p. 128 e 129)

     Ricoeur sustenta que sua abordagem fenomenológica com efeito permite uma abordagem explanatória da ação, mas que há sempre mais na descrição fenomenológica, mais até o do que em qualquer explicação teleológica. (p. 130)

     O que é importante sobre a ideia da atribuição é que ela se aplica a pessoas como um tipo de particular básico, seja a própria pessoa ou uma outra. Tais pessoas são únicas no sentido de que são os únicos particulares básicos aos quais se aplicam tanto predicados mentais quanto físicos, de modo que não há necessidade de pressupor um dualismo corpo-mente enquanto continuamos a examinar a ideia de individualidade; os eus são mentes corporificadas. Como Aristóteles já havia observado, a ação depende do agente. A questão é como entender essa dependência. Um ponto básico aqui, que também já fora percebido por Aristóteles, é que distinguimos entre ações deitas livremente pelo agente e aquelas feitas a despeito dele, ambos os tipos podendo incluir ou depender de outros atos que são eles mesmos resultado de deliberação anterior. Esta distinção permite-nos refinar a noção de atribuição com a ideia correlata de crédito: creditamos atos a um agente que são voluntários ou involuntários, mas que, em certo sentido, depende do agente, como indicado pelo fato de que tal crédito-atribuição permite-nos responder à pergunta “quem” sem ter que invocar uma legação de que o ato foi praticado voluntariamente  ou mesmos invocar qualquer avaliação ética do que foi praticado. (p. 131)

     O ponto central em sua argumentação sobre a identidade narrativa é de que a relação entre individualidade e identidade precisa ser entendida dialeticamente; isto é, precisamos ver que cada termo requer o outro para adquirir significado e que a identidade narrativa repousa em algum ponto entre os dois. O que a narrativa acrescenta aqui é a capacidade de explorar esse nível médio, até e inclusive os intrigantes casos examinados por Parfit. Além do mais, o campo prático revelado dessa forma é um campo que liga a teoria da ação à teoria moral, porque a narrativa nunca é moralmente neutra. Nesse sentido, ela pode propiciar o primeiro laboratório do juízo moral. Isso porque a narrativa é constituída por meio de uma trama que, como já havia mostrado Tempo e narrativa, configura o episódio e a história contada num todo temporal tenso, que permite entender a ideia de permanência no tempo como uma identidade dinâmica, assim como a que se aplica às personagens da história. Elas podem mudar em função das peripécias do enredo, mas também permanecem identificáveis como sendo as mesmas personagens. (p. 136)

     Memória, histórica, esquecimento começa pelo exame da memória como tópico isolado. O problema da continuidade e da descontinuidade desempenha mais uma vez um papel central pelo fato de que uma das questões de Ricoeur é saber em que medida os historiadores são dependentes da memória e até que ponto a ultrapassam. Será que os historiadores, com sua perspectiva crítica do passado, não têm afinal que ir além da memória? Essa questão é reforçada se verificarmos que hoje os historiadores são capazes de escrever uma história da memória, no sentido de uma história do que as pessoas disseram sobre a memória ou de como a usaram para comemorar importantes acontecimentos passados. O uso da memória comemorativa e seus possíveis abusos levarão às reflexões finais de Ricoeur sobre o esquecimento. (p. 148)

     Se o que a memória nos dá é uma imagem do passado, surge então a questão de quão “fiel” é essa imagem em relação ao que representa. A resposta que propõe Ricoeur é que o tipo de verdade envolvido aqui depende tanto da ideia de veracidade quanto da ideia de uma correspondência entre o que é lembrado e o que efetivamente aconteceu no passado. Afinal é preciso apelar à aceitação de uma memória diferente para refutar uma lembrança. (p. 149)

     A recordação depende de uma específica capacidade de lembrar, que é uma das capacidades constitutivas do ser humano capaz, além das de falar, narrar e compreender narrativas. Em segundo lugar, Ricoeur observa que distinguimos entre memória e hábito porque os hábitos são ativos de uma maneira contínua no presente, ao contrário da memória e em especial a recordação. (p. 149)

     Uma razão pela qual a memória individual é tão importante é que está intimamente ligada à interioridade que se associa à individualidade e à experiência pessoal: estas são as minhas memórias, essa foi a minha experiência, eu me lembro que eu estava lá. (p. 151)

     Ao falar da operação historiográfica, Ricoeur primeiro quer desenfatizar a ideia de que o historiador trabalha em estágios discretos: primeiro coletando documentos, depois examinando-os e criticando-os e, por fim, escrevendo o resultante texto histórico. Fazemos tais distinções para ver como os historiadores trabalham, mas na verdade esses estágios se sobrepõem de tal forma que não podemos entender nenhum deles isolado dos outros. Como diz Ricoeur: “cada uma das três operações da operação historiográfica funciona como uma base para as outras duas, na medida em que servem sucessivamente como referentes umas das outras”. É o projeto de escrever a história que percorre todas elas. É por isso que a principal questão de Ricoeur é por que podemos confiar no que os historiadores dizem do passado. Retorna aqui com força a questão da relação do historiador com a memória. (p. 154) 

     Se lançarmos deste ponto um olhar em retrospecto à obra inicial de Ricoeur, podemos ver que a ideia de uma antropologia filosófica e uma ontologia correspondente percorre todo o seu trabalho e ganha profundidade e complexidade com o tempo. Ele havia começado com a questão da atuação humana relativamente à liberdade e seus limites, acrescentou a constatação de que tal liberdade pode ser mal utilizada, assim antecipando sua posterior discussão da ética e de uma forma justa de existência social, e depois conheceu cada vez mais que temos que considerar seriamente a temporalidade e historicidade dessa existência, com suas implicações para a ação no presente. Uma nova questão aqui é se essa antropologia deve também incorporar a possibilidade de que nossa existência não apenas é histórica mas essa historicidade pode de certa forma ser um fardo para nós, quando nada porque, segundo Nietzsche, temos que perguntar de que forma a história limitaria nossa liberdade e nossa ação no presente. Para responder a essa pergunta é preciso examinar de modo mais profundo nossa própria existência enquanto seres históricos e como entendemos a história. (p. 161)

     Essencial na análise dessas questões por Ricoeur é a analogia entre historiador e juiz. Ambos almejam a verdade e a justiça. Ambos, em última análise, dependem do testemunho das partes envolvidas. E ambos alegam chegar a uma conclusão justa com uma postura imparcial. No entanto, na perspectiva da história e da ciência histórica contemporâneas, ninguém pode pretender-se uma terceira parte absolutamente neutra. O que está em questão ao compará-las tem portanto uma dimensão epistêmica e moral. E aí a analogia entre juiz e historiador começa a bater pino, porque o processo de julgamento é determinado por regras mais específicas e mesmo por um cenário mais específico do que a pesquisa do historiador. Além do mais, o veredito do juízo é mais definitivo, pois ele tem que decidir, enquanto os historiadores podem prevaricar, introduzir termos qualificativos ou mesmo esperar e apelar a pesquisa ulterior, porque reconhecem que o trabalho de “escrever história é uma perpétua reescritura”.

     Mas essa analogia não pode ser ignorada hoje, acredita Ricoeur, porque os historiadores se vêem chamados a lidar com coisas tidas como crimes e males numa escala até aqui desconhecida, crimes terríveis contra povos inteiros, até contra a humanidade. Serão capazes de escrever essa história? Ricoeur responde que são incapazes de escrever uma história todo abrangente que “incluiria a história dos perpetradores, a história das vítimas e a história das testemunhas”. Devem, ao invés disso, almejar e podem alcançar um consenso parcial sobre o básico das histórias que efetivamente escrevem, voltadas para um público que inclui não apenas os tipos ideais de leitor – o historiador e o juiz -, mas também uma outra terceira parte, o cidadão que é chamado a se apropriar dessa história para a sua compreensão e ação futura. O preço disso, no entanto, é que os historiadores precisam sempre estar prontos para começar seu trabalho se quiserem lidar de forma adequada com esses assuntos à medida que o tempo continua a correr. (p. 162 e 163)

     O perdão constitui o horizonte tanto da memória quanto do esquecimento. “Ele apõe um selo de incompletude sobre toda a empresa” porque não pode compensar a natureza imperdoável do mal moral, quer no passado, quer no presente. É por isso que o perdão é difícil e não uma coisa que se consegue com um simples gesto. Que é possível podemos ver se o comparamos ao ato de prometer. Enquanto a promessa amarra o agente a sua ação, o perdão liberta-o dela. Mas temos também que reconhecer uma diferença importante entre as duas coisas porque no plano político não há possibilidade autêntica de uma expressão institucional plenamente eficaz do perdão. O que se pode comprovar pelo fracasso das anistias em alcançar seus propósitos declarados, embora Ricoeur veja de fato alguma esperança no funcionamento de comissões de investigação e reconciliação, como na África do Sul, embora mesmo nesses casos muitos participantes tenham admitido que esses organismos não conseguiram tudo que as pessoas esperavam deles. (p. 167)

     Não é de surpreender que Ricoeur no final da vida tenha adotado o conceito de reconhecimento, considerado a ênfase que deu à questão da identidade pessoal e comunitária, a começar de tempo e narrativa e prosseguindo com Eu enquanto Outro. A importância que vê em nossas relações com os outros, tão central em sua ética menor, iria levá-lo nessa direção, da mesma forma que a discussão contemporânea da “política da identidade”. Para além dessas preocupações, no entanto, Ricoeur tem um outro alvo em mente, um alvo mais amplo. Primeiro, como assinala no início mesmo de O caminho do reconhecimento, é impressionante constatar que não há nenhuma grande filosofia estabelecida do reconhecimento, ao contrário do que se pode dizer de outras áreas em que os filósofos podem destacar obas marcantes, como a epistemologia, a metafísica ou a ética. Além disso, as reflexões de Ricoeur levam-no a uma distinção que ele diz não ter sido suficientemente bem enfatizada nas discussões disponíveis sobre reconhecimento. Trata-se da distinção entre reconhecimento recíproco e mútuo. Na verdade, se podemos encontrar uma filosofia elaborada do reconhecimento na história do pensamento ocidental ou nas atuais discussões sobre política da identidade, a ideia temática central vem a ser, na melhor das hipóteses, a do reconhecimento recíproco e não a do reconhecimento mútuo, pelo menos no sentido que Ricoeur quer dar a este último fenômeno, isto é, o de algo que vai além do reconhecimento recíproco e não se reduz a ele. (p. 169)

     Examinando mais detalhadamente a fenomenologia desse ser humano capaz, Ricoeur conclui que nossa capacidade de agir envolve tanto atestação quanto reconhecimento, com uma diferença fundamental entre as duas noções. Em termos do nosso uso da linguagem, a atestação pertence ao campo do discurso testemunhal, enquanto o reconhecimento está ligado mais aos processos de identificação e autoidentificação. Os dois fazem intersecção, porém, na certeza e segurança com que dizemos “eu posso”. Além disso, também dizemos e experimentamos que podemos imputar nossos atos ao nosso eu e experimentamos que podemos imputar nossos atos ao nosso eu e assumir responsabilidade por eles. Ademais, por distinguirmos entre nós e os outros ao dizermos “eu”, já surge a questão do reconhecimento por parte dos outros que imputam meus atos a mim. Isso pode virar a questão do reconhecimento mútuo quando perguntamos em que medida nosso autoreconhecimento requer e mesmo depende desse reconhecimento pelos outros. Tal reconhecimento alheio, sustenta Ricoeur, é necessário para alcançar um sentido pleno de nós mesmos como sujeitos responsáveis, mesmo que ele não seja sempre concedido e até se por vezes é deliberadamente contido ou negado. (p. 173)

     Se há um elemento de luta no reconhecimento mútuo, é uma luta “contra o não reconhecimento dos outros e ao mesmo tempo pelo reconhecimento de si mesmo por parte dos outros”. Esse não reconhecimento – que percorre todo o espectro da desconsideração ao desrespeito, do desprezo à negação mesma da humanidade alheia – é sempre possível por causa da dissimetria fundamental entre si mesmo e os outros. Para integrar a mutualidade nessa dissimetria, Ricoeur diz que devemos voltar ao esquecimento. Se pudermos “esquecer” a dissimetria, podemos então ser capazes de reconhecer a posição “intermediária” de nosso mútuo relacionamento. Aquilo pelo qual trocamos esse espaço, no entanto, são presentes, não lugares, e isso “protege a mutualidade dos dilemas de uma união fusional, quer de amor, amizade ou fraternidade em nível comunitário ou cosmopolita”. O reconhecimento mútuo, em outras palavras, estabelece uma distância justa entre nós e, com isso, um excedente de significado no qual a alteridade é afirmada em dobro: “outro é aquele que dá e aquele que recebe; outro é aquele que recebe e aquele que dá em troca”. (177 e 178)

     A ideia de uma distância justa leva-nos aos últimos ensaios de Ricoeur, publicados sob a rubrica geral do “justo”. O justo e reflexões sobre o justo são antes coletâneas e palestras e ensaios do que livros escritos para apresentar um argumento geral. Certo número de ensaios dedicam-se a outros pensadores – Rawls, Weber, Kant, Arendt, Walzer, entre outros – e mostram Ricoeur exercitando sua própria posição em relação a eles. Tais ensaios valem a pena ser lidos por si mesmos, como exemplos de como Ricoeur lê os trabalhos dos outros e procura antes pensar com eles do que contra eles. Pela nossa perspectiva, no entanto, é importante examinar dos dois temas que unem esses ensaios: a ideia de justiça e, para além dela, a ideia do justo. Ao fazê-lo, percebemos que podemos situar as reflexões de Ricoeur entre dois pólos. De um lado, a filosofia política em sentido amplo, mais especificamente uma preocupação com questões concernentes à lei e sua aplicação pelos tribunais. Por outro, uma reflexão filosófica mais ampla, que busca uma maneira de fazer justiça à justiça com o exame da categoria mais geral do justo. A questão do justo já estava naturalmente implicada na ética de Ricoeur para uma vida com os outros em instituições justas. (p. 178)

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