Ed.Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro 2009
Síntese: Paolo Cugini
Digitação:
Carine Almeida Souza
A filosofia surge portanto em resposta a
essa realidade não filosófica que a precede, buscando torná-la inteligível de
modo adequado ao que estiver em questão na nossa experiência dela. Essa ideia
da filosofia com autônoma mais dependente percorre toda a obra de Ricoeur,
estabelecendo limites ao que a filosofia pode alcançar mas sem jamais denegrir
ou negar suas realizações. A compreensão que ele tem de filosofia implica,
portanto, que as questões filosóficas podem ser sempre reabertas e, também, que
podem existir nas obras de filósofos anteriores recursos não percebidos
passíveis de desenvolvimento. (p. 18)
Apoiando-se nas filosofias de Gabriel
Marcel, Martin Heidegger Karl Jaspers, ele vê que o modelo sujeito-objeto que
caracterizou o pensamento filosófico desde Descartes é problemático, pois acaba
não dando conta da nossa experiência de nós mesmos, dos outros nem do mundo em
que vivemos e atuamos. (p. 18)
Rotularei essa ênfase na singularidade da
existência individual, no seu caráter único – que Ricoeur posteriormente
chamará de nossa individualidade -, como o fio existencial de sua filosofia. Os
três pensadores do século 20 já mencionados, Marcel, Heidegger e Jaspers,
exercem todos uma influência na maneira como Ricoeur empreende essa crítica
existencialista de Descartes e questiona o modelo sujeito-objeto. (p. 21)
A coisa mais importante que Ricoeur toma
de Jaspers é a questão de como é possível pensar tal Transcendência, embora
Ricoeur esteja mais disposto que Jaspers a relacioná-la à ideia de Deus tal
como encontrada no judaísmo e no cristianismo. Podemos portanto dizer que, em
sua obra inicial e mesmo ao longo de todo o seu desenvolvimento subseqüente,
Ricoeur está à procura de uma abordagem filosófica dessa Transcendência, a
começar por sua relação com a liberdade e ação humanas. Um dos seus objetivos
filosóficos fundamentais, assim como de Jaspers, é dar sentido à Transcendência
sem transformá-la em um objeto ou sujeito de uma forma que recaia no modelo
cartesiano. (p. 22 e 23)
O que ele toma portanto de Husserl é a
compreensão da fenomenologia como uma forma de fazer filosofia baseada num
método descritivo que, para começar, não procura fazer suposições quanto à
efetiva existência ou não das coisas descritas, ainda que para Ricoeur esteja
fora de questão que há sempre um sentido de realidade mais ampla e complexa
operando nos limites do descrito, o que denominamos Transcendência não
filosófica para além do modelo sujeito objeto. (p. 25)
A pura descrição da reciprocidade do
voluntário e do involuntário também requer que se ponha de lado qualquer forma
patológica dos fenômenos em questão. É por isso que Ricoeur deixa para um
projetado segundo volume de seu projeto a questão do mal, no sentido de uma má
utilização da nossa liberdade. De forma semelhante, o que quer que responda ao
problema do mal – e que Ricoeur, na trilha de Jaspers, chama de transcendência
– fica para um pretendido terceiro volume, que deveria seguir a introdução do
problema do mal na discussão do problema geral da liberdade e da natureza. Mas,
como veremos, este volume jamais seria escrito. (p. 27)
O primeiro passo de Ricoeur é distinguir
entre o ato de decidir e o movimento voluntário. O que os separa não é um
intervalo temporal, mas conceitual. Aquilo sobre o que decidimos é um projeto,
embora tal projeto também precise ser colocado à prova de ser efetivamente
executado ou saber se pode sê-lo. Nesse sentido, decidir é uma capacidade,
noção que vai desempenhar papel muito mais amplo na obra posterior de Ricoeur,
quando ele ultrapassará a questão da liberdade para considerar o eu como o ser
humano capaz, em sentido bem mais abrangente, embora ainda estritamente ligado
à questão da ação. (p. 28 e 29)
À questão se “os motivos são de algum modo
as causas” tudo o que podemos responder é que eles inclinam sem obrigar. (p.
30)
Uma importante conclusão aqui é que,
enquanto afetividade, “a existência corpórea transcende a inteligibilidade
reivindicada pelas essências do cogito” (LN, 120). Portanto, qualquer tentativa
de pensar uma simples vontade de viver como constitutiva, em última análise, de
nossas vidas vai sempre esbarrar em dificuldades, quando nada porque mesmo os
valores orgânicos que consideramos são eles próprios sujeitos à mudança no
tempo e no espaço. “A vida, pelo menos no nível humano, é uma situação
complexa, não resolvida, um problema não resolvido cujos termos não são nem
claros nem consistentes” (LN, 120). Em outras palavras, o que a fenomenologia
do voluntário e do involuntário nos diz é por que temos que fazer opções, não
como fazê-las. Fazemos opções porque somos tanto sujeitos quanto objetos, sem
sermos capazes de reconciliar completamente essas duas maneiras de ser. Além
disso, também temos que admitir que tais opções situam-se no tempo e no espaço
e têm que ser entendidas de uma maneira que reconheça isso. (p. 33 e 34)
O homem falível se propõe a mostrar a
possibilidade do erro como racionalmente plausível através do conceito de
falibilidade. E o faz procurando mostrar que esse conceito “designa uma
característica da existência do homem”. (p. 44)
Se quisermos caracterizar O homem falível
dentro da história da filosofia, está mais próximo do estilo de reflexão
transcendental associado a Kant. (p. 45)
Essa dialética da perspectiva finita e
infinita depende portanto de uma dialética mais fundamental, a do falar
enquanto fazer e do perceber enquanto receber, que de novo traz à baila as
idéias da vontade que afirma e do consentimento às maneiras pelas quais as
coisas são ou podem ser conhecidas como existentes. Obviamente, a questão da
relação da verdade com a linguagem está implícita e é inevitável aqui, embora
não abordada em detalhe. A questão de Ricoeur, em vez disso, é sobre o terceiro
termo, o termo médio que se encontra entre os pólos dessas duas dialéticas, a
do finito/infinito e a do receber/fazer. Ele diz que esse termo médio não é
algo jamais dado em si mesmo, mas antes uma consciência que só é alcançável ao
referir-se à coisa afirmada: “aqui a consciência nada mais é que aquilo que
estipula que uma coisa só é uma coisa se estiver em acordo com essa
constituição sintética, se puder aparecer e ser expressa, se puder afetar-me em
minha finitude e emprestar-se ao discurso de qualquer ser racional” (p. 47 e
48)
A ideia de uma síntese transcendental,
portanto, não é plenamente adequada para explicar o que está em jogo na
desproporção constitutiva da condição da condição humana. Ela nos dá apenas
consciência em geral como uma possibilidade, mas, como tal, “permanece
deficiente face à substancial riqueza da qual o mito e a retórica dão uma
patética compreensão”. (p. 48)
A realidade da falha, erro ou falta não
pode portanto advir de sua possibilidade. No entanto, ninguém negaria que o
erro existe. Para tratar desse fato Ricoeur tem que fazer mais uma vez uma
mudança de método no livro seguinte do seu projeto sobre liberdade e natureza:
o simbolismo do mal. Essa mudança de método terá profunda influência e um
efeito duradouro em sua obra subseqüente. Primeiro, vai fornecer-lhe uma
maneira de abordar o problema do erro a partir dos mitos e símbolos que as
pessoas utilizam para falar dele, num esforço de surpreender a transição para a
sua existência “em ato com a ‘reencenação’ em nós mesmos da confissão dele pela
consciência religiosa”. Esse novo método, portanto, não é produto de uma teoria
plenamente elaborada da interpretação, embora Ricoeur já o chame de abordagem
hermenêutica, mas o fará reconhecer que precisa considerar a possibilidade de
uma tal teoria quando tentar construir sobre os resultados desse volume. Nem é
ainda algo que possamos chamar de filosofia do erro; é antes o caminho para
isso. Mas também não é um método que se desenvolverá a partir de uma doutrina
como a do pecado original do cristianismo. Ricoeur argumenta, ao contrário, que
temos que abandonar tais expressões reflexivas por outras mais espontâneas
subjacentes a toda essa especulação e a qualquer formulação desse tipo.
Continuamos, porém, no nível do uso da linguagem, embora seja acionada, uma vez
que se trata de um uso caracterizado por mitos símbolos, uma reflexão inicial
tão extensa sobre como construir essas categorias. (p. 53 e54)
Quanto à sua compreensão dos símbolos como
operantes nesse projeto, mais uma vez não se trata de considerar cada símbolo,
mas de encontrar critérios que nos permitam captar o que está em jogo em todos
eles. Um desses critérios é que os símbolos, enquanto operantes nos limites da
consciência, ocorrerem em três níveis: o aspecto cósmico das hierofanias ou
aparências do sagrado; o nível onírico dos sonhos; e o nível poético da
imaginação. Há um direcionamento implícito nessa lista. Primeiro lemos símbolos
no mundo, depois dentro de nós e, finalmente, através de nossa imaginação
poética. Em cada um desses níveis há algo em última análise inexaurível e
inerradicável nos símbolos envolvidos. Tudo o que o filósofo pode dizer a essa
altura é que isso se deve a que os símbolos estão intimamente ligados à própria
vida e dela dependem. (p. 54 e 55)
Mitos são a maneira como as pessoas usam a
linguagem para falar sobre tais símbolos e podemos, pois, acrescentar que os
mitos para Ricoeur também não são alegorias.
Como resultado dessas reflexões iniciais,
Ricoeur vê que se a filosofia quiser levar a sério a existência do erro, terá
que reconhecer algo que ele já chama de “plenitude” da linguagem, porque a
linguagem simbólica é encontrada em toda linguagem natural. Isso também terá
importantes consequências para sua obra posterior, ao se voltar dos símbolos per
se para uma reflexão mais geral sobre a linguagem e as implicações para sua
antropologia filosófica que se reduz a considerar a linguagem apenas em termos
do que pode ser expresso como proposições lógicas unívocas abstratas. (p. 55 e
56)
Se há alguma sensação de responsabilidade,
está mais intimamente ligada à de ter sido de algum modo vítima de um ato de
vingança do que à de ter perpetrado uma malfeitoria. Podemos mesmo pensar que
isso implica um senso de valor moral da parte da vítima inferior ao que
caracterizaria uma consciência culpada mais desenvolvida. É por isso que os
símbolos de degradação são mais freqüentemente associados a rituais de
purificação, ao simbolismo da limpeza ou lavagem, da purgação, e a um
vocabulário ligado à pureza e impureza. (p. 56)
Até aqui Ricoeur enfatizou como os
símbolos da falta ou erro estão amarrados à experiência. Seu passo seguinte é
considerar como essa experiência é mediada através da linguagem, especialmente
através da linguagem dos mitos referentes à origem e ao fim do mal. Admite que
as pessoas modernas não pensam mais de uma maneira que entrelaça mitos e
história, mas sustentada que ainda podemos tentar entender os mitos
simplesmente como tais, mitos: “Compreender o mito como mito é compreender o
que o mito, com seu tempo e espaço, seus eventos, personagens e drama, acrescenta
à função reveladora dos símbolos primários abordados acima”. Na verdade, ele
sugere que os mitos fazem três coisas: abraçam a humanidade numa história
ideal; narram um movimento do início ao fim para dar uma orientação, caráter e
tensão à nossa experiência; e tentam alcançar o enigma da existência humana, “a
saber, a discordância entre a realidade fundamental – o estado de inocência, a
condição de uma criatura, o ser essencial – e a modalidade efetiva do homem
como degradado, pecaminoso, culpado”. Em uma palavra, o mito tem uma carga
ontológica pelo fato de que aponta para a conexão entre nossa realidade
essencial e nossa existência histórica efetiva, como uma verdade universal de
caráter temporal e concreto cuja forma narrativa não pode ser reduzida a um
conceito. Nesse sentido, os mitos são reveladores sem ser científica ou
etiologicamente explicativos. São reveladores porque dão significado à condição
humana de que todos participamos e, como tais, podem ter um efeito
transformador sobre aqueles que os freqüentam, mesmo que nenhum mito jamais
seja plenamente adequado ao que significa. É por isso que há tantos mitos e se
questionará se é possível avaliá-los e classificá-los quanto à sua adequação
para dizer algo sobre a falta ou erro. (p. 59 e 60)
O imediatismo de nossa crença se perdeu,
mas podemos esperar o que eles têm de novo a dizer pela interpretação e assim
pretendermos uma segunda ingenuidade no e através do próprio processo de
reflexão e crítica. Isso, porém, exigirá o desenvolvimento de uma hermenêutica
filosófica – e já podemos ver de onde surgirão as obras subseqüentes de
Ricoeur. No momento, porém, isso parece apenas uma aposta da parte dele, uma
aposta de que dessa maneira podemos alcançar uma melhor compreensão da
existência humana e do vínculo entre o ser humano e o ser de todos os seres se seguirmos
as indicações do pensamento simbólico. Isso não será exatamente o equivalente a
uma Kantiana dedução transcendental do símbolo para tornar possível um domínio
da objetividade, nem será uma confirmação do cogito cartesiano. Na verdade,
levará Ricoeur a exigir uma segunda revolução coperniciana de volta ao objeto e
para além dele, nos moldes da própria volta kantiana ao sujeito, para mostrar
que o cogito está dentro do ser e não vice-versa. A tarefa será elaborar
conceitos existenciais, “quer dizer, não apenas estruturas de reflexão, mas
estruturas de existência” que se traduzem numa compreensão ampliada. (p. 62)
A hermenêutica e sua íntima relação com a
linguagem formam o cerne dessas investigações, embora em retrospectiva possamos
ver todos esses temas já antecipados em sua obra inicial. Os símbolos e mitos
abordados em O simbolismo do mal, por exemplo, já estavam no nível da linguagem
e já requeriam uma abordagem interpretativa. E mesmo sua fenomenologia da
polaridade do voluntário e do involuntário tinha assumido uma linguagem viável
para descrever esses fenômenos. O que o desafio levantado pelo estruturalismo
acrescenta é a necessidade de expressar essa compreensão da linguagem detalhadamente,
necessidade reforçada pelo fato de que o próprio estruturalismo depende de uma
certa teoria da linguagem. (p. 65)
O método que ele propõe usar para entender
Freud como um problema filosófico tem três desdobramentos. Vai focalizar “a
textura ou estrutura do discurso freudiano”, abordando-o primeiro como um
discurso que coloca um problema epistemológico (a natureza da interpretação em
psicanálise), depois um problema para a filosofia reflexiva (relacionado à nova
autocompreensão que se segue a essa interpretação) e, por fim, um problema
dialético (a saber: será que a interpretação freudiana exclui todas as outras?).
Dessa forma, o livro pega o problema que foi deixado sem solução no fim de O
simbolismo do mal: a relação entre uma hermenêutica dos símbolos e uma
filosofia de reflexão concreta. (p. 66)
“Símbolo” pode ser entendido de forma
ampla demais, de modo que tudo é símbolo, ou de forma estreita demais, de modo
que o símbolo só representa ele mesmo, como nos sistemas combinatórios formais da
lógica simbólica mais abstrata, ou de forma tal que a relação entre os dois
níveis de significado é considerada apenas analógica. O que Ricoeur diz agora é
que a analogia, de fato, é apenas uma das relações possíveis entre o sentido
manifesto e o significado latente de cada símbolo. Portanto o que realmente
precisa ser explorado é o fato de que há uma função significante em cada
símbolo, seja qual for a forma que ela possa assumir. O simbolismo do mal já
havia reconhecido a existência dessa função significante e o fato de que ela
funciona em termos de linguagem sobre o sagrado, os sonhos ou imaginação
poética. Isso permite a Ricoeur ver que o que Freud faz quanto à questão da
função simbólica é, primeiro, limitar o campo simbólico a apenas uma dessas
opções, a onírica. Também percebe que a questão dele, Ricoeur, é saber se a
função simbólica em geral pode eventualmente expressar uma relação “inocente”
ou se deve ser sempre uma espécie de distorção astuciosa.
Um outro desdobramento importante para sua
filosofia é que agora ele vê como a interpretação que propôs em O simbolismo do
mal não apenas segue de maneira nada crítica a tradição da exegese bíblica,
como adota um método deliberado demais. Se queremos falar criticamente de
interpretação, faz-se necessária uma teoria da interpretação. (p. 67)
O testemunho das convicções fundamentais
de alguém dá prova de uma fonte de significados apara além do próprio eu, em
que esse eu não é o sujeito imediato da reflexão descoberto no cogito. Essa
convicção fundamental é que mantém unidas a hermenêutica da suspeita e a da
disposição de ouvir e confiar que o significado é dado. Ambas perguntam: “Pode
a desapropriação da consciência em prol de outra fonte de significado ser
entendida como um ato de reflexão, como o primeiro gesto de reapropriação?”. A
possibilidade dessa reflexão concreta é a questão que Ricoeur traz a sua
interpretação de Fred. (p. 70)
Ricoeur propõe então sua própria resposta,
sua interpretação filosófica de Freud, na qual dois grandes objetivos estão em
jogo: 1) arbitrar o conflito entre duas hermenêuticas opostas, a da
desconfiança ou suspeita e a da confiança; e 2) encontrar uma maneira de
integrar a “reflexão filosófica” ao processo de interpretação. Ele agora
percebe que não basta dizer que os símbolos já carregam essas possibilidades em
si mesmos. Será necessário “atingir o nível de pensamento no qual essa síntese
possa ser entendida”. Para chegar lá, Ricoeur propõe três passos. O primeiro
retorna à questão epistemológica do lugar da explicação em psicanálise e seus
limites. Esse passo mostrará o lugar da psicanálise entre a psicologia
cientifica, de um lado, e a fenomenologia, de outro. Em seguida, Ricoeur
proporá que a teoria freudiana pode ser entendida como uma “arqueologia do
sujeito”, uma arqueologia que a reflexão concreta terá que aprender a
incorporar. Por fim, pensando na fenomenologia hegeliana, Ricoeur vai perguntar
se essa arqueologia não permanece abstrata, não concreta, enquanto não completa
por uma “teologia, com uma progressiva sintetização de figuras e categorias, em
que o significado de cada uma é esclarecido pelo significado de outras mais”.
Se assim for, então a regressão e a progressão podem ser entendidas como duas
direções de interpretação possíveis, opostas e no entanto também complementares
– respondendo à primeira questão mencionada acima. Mais tarde veremos,
argumenta Ricoeur, que essas duas direções podem ser unidas através de uma
dialética que localiza sua unidade na própria origem da nossa capacidade de
falar, de usar a linguagem de modo significativo. Restará somente considerar
então que consequência isso deve ter para uma teoria geral da interpretação.
(p. 73 e 74)
A psicanálise não é uma ciência de
observação lidando com fatos do comportamento. É “uma ciência de exegese que
lida com relações de significados entre objetivos substitutos e objetos
primordiais (e perdidos) dos instintos”. No entanto o que ela diz não se inclui
nem no discurso das ciências naturais nem no da fenomenologia. A psicanálise
fala mais de motivos que de causas, mas suas explicações assemelham-se às
explicações causais sem serem idênticas a elas. É por isso que Ricoeur
caracteriza a obra de Freud como uma semântica do desejo: “é um discurso misto
que escapa à alternativa motivo-causa”. (p. 74)
Fundamentalmente, Saussure argumentava que
a linguagem devia ser considerada em termos de sua estrutura básica, que
chamava de langue, ignorando-se o seu uso no discurso, que rotulava como
parole. Deveria a langue ser considerada sincronicamente, isto é, colocando-se
entre parênteses qualquer referência temporal de modo a isolar a estrutura
constitutiva da langue como um “sistema de signos”. O que era particularmente
inovador no que ele dizia sobre esse sistema é que o fundamental são as diferenças
entre os signos. Em outras palavras, os signos não têm significado exceto em
relação a todos os outros signos pelas diferenças para com eles. Esses signos
são eles próprios então analisáveis numa estrutura interna que combina
significante e significado, distinção que teria importantes consequências para
os movimentos pós-estruturalistas por não querer a ideia de uma referência
externa ao sistema dos signos. (p. 80)
O que Ricoeur primeiro critica nesse tipo
de abordagem é o fato de ela pôr de lado qualquer consideração sobre o tempo,
assim ignorando a questão de compreender tradições que podem mudar, mas
continuam a existir com o tempo, do mesmo modo que as formas sociais baseadas
nelas, tradições que se reconhecem vivas na história. Ligada a essa havia
também a preocupação de como lidar com mudanças de significado e, para além
disso, com a possibilidade de novos significados. Mas ao mesmo tempo Ricoeur
procura, de fato, encontrar uma maneira de reconhecer o valor de uma abordagem
estrutural na medida em que ela possa descobrir algo capaz de nos ajudar a
identificar as formas examinadas. O que rejeita, entretanto, é a subordinação
da diacronia – desenvolvimento no tempo – à sincronia, fatia atemporal do
sistema considerado. Ele acha que isso elimina qualquer possibilidade de
mudanças de significado, uma vez que as estruturas descobertas são tidas não só
como atemporais, mas também universais. Já o que Ricoeur enfatiza é o que
começava a chamar de compreensão hermenêutica, que acreditava ter que enfocar
as coisas exatamente da maneira oposta – isto é, para uma filosofia
hermenêutica a diacronia é mais importante que a sincronia. Sem esse
pressuposto não há como reconhecer a historicidade dos símbolos – e dos seus
significados. (p. 81 e 82)
O discurso, por fim, sempre ocorre como um
evento real no tempo, ao contrário das estruturas abstratas atemporais
descobertas pelo estruturalismo. Essas estruturas de fato persistem de algum
modo, no sentido de que podem ser identificadas a qualquer tempo (e, se mudam,
fazem-no apenas lentamente ao longo do tempo), mas os eventos do discurso são
passageiros. Pode-se dizer mesmo que eles desaparecem.
A alegação-chave de Ricoeur nesse ponto é
que, embora um evento do discurso desapareça, ao menos por se tornar passado,
seu significado pode perdurar. É isso que a teoria hermenêutica tem que
explicar, pois se os significados persistem quando o evento já passou, tais
significados podem ser “tomados” – apropriados vais virar o termo técnico
aplicável – por novos sujeitos em novas épocas e novos contextos. Essa
possibilidade de o significado assim perdurar, diz Ricoeur, pode ser confirmada
se mudarmos o foco de atenção do discurso falado para o discurso escrito (ou
que Ricoeur chama de escrito). Pois se o evento da fala some, os textos
permanecem e podem ser lidos por qualquer um que saiba ler. Na verdade, não é
sempre fácil, como se pode ver no caso dos textos da Antiguidade, sejam a
Bíblia, da Grécia ou de Roma, pois não apenas as línguas não são mais faladas,
como os contextos culturais que os produziram não mais existem na forma
original. Na verdade, a necessidade de superar essa distância histórica foi um
dos fatores que levaram ao desenvolvimento da moderna teoria hermenêutica de
que Ricoeur lança mão aqui. Ele já vê, por exemplo, que a necessidade de
aprender uma segunda língua e às vezes também de produzir traduções para
superar essa distância histórica sugere que hoje essa teoria hermenêutica pode
ser estendida para responder igualmente à distância cultural e temporal. É um
ponto que sua teoria hermenêutica em desenvolvimento irá cada vez mais
reconhecer. No fim da vida, percebeu que ela também exigia pensar mais no papel
que a tradução desempenha para se adquiri compreensão do que é estranho a nós.
(p. 85 e 86)
Outra importante consequência dessa
guinada lingüística de Ricoeur que vale a pena observar é que a noção de
símbolo vai desempenhar um papel menor na sua obra subseqüente, sem no entanto
jamais desaparecer por completo. O que tomará o seu lugar como noção central
para suas reflexões será o discurso figurativo – usos da língua que não podem
ser captados pelo modelo da proposição lógica. Pode-se ver essa mudança
ocorrendo nos ensaios “A hermenêutica dos símbolos e a reflexão filosófica” e
“O problema do duplo sentido como problema hermenêutico e como problema
semântico”, em O conflito de interpretações. O que ele diz é que algo do efeito
de duplo sentido encontrado nos símbolos pode também ser encontrado ma língua,
especialmente se atentarmos á sua plenitude e não nos limitarmos a sentenças
aparentemente unívocas com base numa comparação a proposições lógicas, que são
sempre verdadeiras ou falsas e cujo significado não muda à medida que
reaparecem numa argumentação. As línguas naturais contêm muitas sentenças
significativas que não se encaixam em tal rubrica. Um bom exemplo é a sentença
imperativa para pular no lago, que demos acima. Similarmente, também não é
verdadeira ou falsa a ordem “feche a porta” nem o pedido “feche a porta, por
favor”. No que Ricoeur estará sobremaneira interessado, portanto, são aquelas
instâncias de discurso e de discurso estendido que, como os símbolos,
significavam mais de uma coisa ao mesmo tempo – por exemplo, as imagens
poéticas. Isso vai levá-lo a examinar de perto o caso da metáfora, como veremos
no próximo capítulo. As metáforas são como os símbolos por conterem um
excedente de significado, que faz uso da ambigüidade de maneira produtiva. Por
isso, se pudermos melhor entender as metáforas, poderemos também melhor
entender os símbolos, problema que Ricoeur havia levantando no final de O
simbolismo do mal. (p. 88 e 89)
O que Husserl alegava ter descoberto era
um método capaz de levar a filosofia a um campo transcendental em que as coisas
aparecem a um sujeito transcendental e podem ser conhecidas como realmente são.
Mas Ricoeur viu que esse sujeito transcendental não era ninguém porque, como
conhecedor puro, era qualquer um. Pior, o método de Husserl não oferecia um
caminho de volta ao mundo da experiência e da subjetividade vividas, comuns.
Isso porque seu método radical funcionaria colocando de lado todo apelo à
experiência natural cotidiana através de uma redução que a isolaria com seus
pressupostos sobre o que o mundo realmente é, dessa forma abrindo caminho à
eventual percepção da essência verdadeira de quaisquer fenômenos. Mas Ricoeur,
repetindo Merleau-ponty, rejeitou essa alegação ao negar a possibilidade de uma
completa redução, o que hoje chamaríamos de um salto para uma “vista de lugar
nenhum”. Ele sustenta que, na verdade, se podemos questionar nossa experiência,
nunca podemos escapar completamente ao mundo da vida cotidiana, do qual sempre
partimos. Entretanto, isso não significa rejeitar completamente a fenomenologia
como uma abordagem descritiva útil que procura descrever as coisas tais como
parecem á consciência ou as maneiras pelas quais podemos ter consciência delas.
Mas significa rejeitar qualquer alegação de que podemos provar conclusivamente
o caráter exaustivo dessa abordagem da experiência vivida, uma vez que Ricoeur,
como já vimos por sua crítica do estruturalismo e sua persistente negação da
independência da filosofia, acredita que há sempre mais na experiência vivida
temporal do que qualquer teoria pode
captar, mesmo que tal teoria pressuponha sempre, ao tentar compreender essa
experiência, um excedente de significado disponível e a abrangente realidade a
que se refere. (p. 92)
A interpretação sempre se move de alguma
pré-compreensão ou pré-entendimento para a ideia de um entendimento ampliado. A
explicação é um meio aumentar tal entendimento por introduzir um momento
objetivo crítico. A relação entre entendimento e explicação, em outras
palavras, tem que ser concebida como dialética, com a explicação como termo
mediador entre dois polos do entendimento. (p. 93)
Ricoeur começa a discussão da metáfora com
um retorno a Aristóteles, que abordou o assunto em sua Poética e no seu livro
sobre retórica. Aristóteles considerava que o discurso retórico e o discurso
poético – até dado o uso que fazem de metáfora e outras formas figurativas –
sobrepunham-se à lógica por causa do apelo de ambos e algum tipo de argumento. (p.
94 e 95)
A metáfora, como uma forma de inovação
semântica, desempenha um papel tanto na retórica, considerada como uma teoria
de argumentação, quanto na poesia e no drama como as tragédias gregas, que
Aristóteles afirmava serem mais verdadeiras que a história porque nos mostram
não tanto como as coisas são, mas como devem ser.em ambos os casos de
linguagem, a metáfora trabalha com uma língua já existente na qual introduz uma
“distorção” ou desvio que a faz dizer algo novo; daí que a inovação semântica
mesma da metáfora depende do uso da língua ou, como define Ricoeur, do
discurso. Esse aspecto transgressivo ou transformativo da metáfora depende do
uso da língua ou, como define Ricoeur, do discurso. Esse aspecto transgressivo
ou transformativo da metáfora é o que a torna capaz de criar novo significado
ao perturbar a ordem lógica existente, ao mesmo tempo que o gera sob nova
forma. (p. 95)
Sua visão é de que a metáfora pertence ao
nível do discurso, portanto minimamente ao nível da sentença. Ou seja, tem que
ser entendida em termos de predicação, não simplesmente como substituição de um
termo por outro. Além disso, as metáforas vivas envolvem um tipo estranho de
predicação: elas dizem “é” e “não é” ao mesmo tempo! É por isso que não podem
ser traduzidas em proposições lógicas ou diretamente entendidas por meio de
técnicas aplicáveis àquelas asserções, em que uma sentença ou diz sim ou diz
não sobre alguma coisa. Numa metáfora viva há como que uma tensão entre o
sujeito e o predicado. Tal percepção leva a uma teoria interativa para a qual
nem um apelo à substituição nem uma explicação em termos comparativos é
adequada para explicitar plenamente essa tensão. Quando uma metáfora é viva,
não morta (como “a perna da cadeira”, por exemplo), o que ela diz não pode ser
imediatamente traduzido em conceitos já existentes. Requer um ajuste em nossa
compreensão e em nossa linguagem já existente, um ajuste que, como já dissera
Aristóteles, nos faz “ver” as coisas de forma diferente. (p. 96)
A teoria da narrativa é uma das mais
desenvolvidas e influentes contribuições de Ricoeur ao conhecimento. Estende-se
pelos três volumes de Tempo e narrativa, junto com um número de ensaios que
abordam partes do tema ou servem para preparar os alicerces desses volumes. A
narrativa interessa de início a Ricoeur não apenas como uma forma de discurso
estendido, mas também porque, como já vimos, o mito é uma forma de narrativa,
de modo que a passagem pela narrativa pode nos ajudar a aprender a pensar a
partir dos símbolos da falta (ou erro) e da Transcendência que são expressas em
mitos. Além disso, entretanto, Ricoeur agora argumenta também que é necessário
a uma filosofia baseada na plenitude da língua considerar o discurso narrativo
em si mesmo, porque esse uso da língua está intimamente ligado a questões sobre
o tempo e a história que ele afirmara não ser possível ao estruturalismo
equacionar. Sua tese é de que “o tempo se torna humano na medida em que é
organizado à maneira de uma narrativa; e a narrativa tem sentido, por sua vez,
na medida em que retrata os aspectos da experiência temporal”. Adianta essa
tese na primeira página de Tempo e narrativa, indicando assim que não quer que
a obra seja lida como uma longa argumentação que levará à descoberta de uma
conclusão final. Ao invés disso, como lança sua tese no início, os volumes
devem ser lidos como um apelo por essa tese, um pedido como os que se fazem nos
tribunais de um julgamento a favor ou contra por parte do leitor. Essa forma de
argumentação é necessária porque, como dirá Ricoeur no volume três da obra,
toda tentativa filosófica de entender o tempo acaba pagando o preço de novas
aporias, novas questões, por cada ganho obtido. Daí não poder haver nenhuma
resposta teórica final sobre o significado do tempo, só respostas práticas como
as que fazem uso da narrativa para contar a história da ação humana e do mundo
em que ocorre. (p. 99 e 100)
O que distingue a narrativa como a forma
de discurso é que ela sempre tem uma trama. Essa trama ou enredo produz o
seguinte: combina os episódios e a história como um todo num conjunto
significativo. E o faz pela capacidade da trama de reconfigurar em narrativa o
que já estava configurado na língua anteriormente, através da rede conceitual
que já nos permite falar significativamente sobre a ação humana. Essa rede
conceitual é muito heterogênea. Inclui conceitos tais como causa, razão,
motivo, ação e paixão, trabalho, agente, paciente, objetivo e assim por diante.
Tais conceitos podem já ser combinados em sentenças de ação com fim em aberto.
(p. 100)
É por isso que a língua corrente já pode
referir e falar de ação nesse nível. O que a narrativa faz é tomar tal discurso,
já mimético por significar ou “figurar” ação em linguagem, e a acrescentar-lhe
novas características discursivas que lhe dão novo significado ao torná-lo
história de “algum feito”. Ao mesmo tempo, a narrativa oferece a possibilidade
do discurso estendido sobre a ação, discurso que vai além do nível das
sentenças de ação individuais para falar de coisas que acontecem não apenas no
tempo, mas também ao longo do tempo, incluindo suas possíveis consequências a
longo prazo e mesmo desconhecidas anteriormente. A narrativa faz isso contando
uma história sobre a ação humana e seu significado. Tal história, por sua vez,
pode ser ouvida ou lida e, quando compreendida, contribui para reconfigurar
nosso entendimento da ação humana e suas possibilidades. Essa nova forma de
inovação semântica ocorre porque a narrativa enxerta novos elementos temporais
às configurações pré-narrativas da ação e, através deles, à nossa compreensão
tanto da ação humana quanto do próprio tempo. Será tarefa de uma hermenêutica
do discurso narrativo reconstruir e assim tornar inteligível toda essa
seqüência, da experiência vivida à narrativa e desta novamente de volta à
experiência. (100 e 101)
Em outras palavras, a trama constitutiva
da narrativa, extraindo uma configuração de uma seqüência de eventos
compreensível, combina uma dimensão cronológica e outra não cronológica num
todo significado. Essa configuração em seqüência leva finalmente ao que Frank
Kermode chamou de sentido concludente, em que emerge uma nova qualidade de
tempo, um tempo significativo que engloba tanto o tempo cósmico quanto o vivido
em um tempo humano marcado por uma espécie de concordância discordante. Há
discordância porque o que a narrativa diz, como tal, nunca se reduz
simplesmente a uma ideia atemporal, mas há concordância porque essa discórdia
temporal não é em última análise caótica. No discurso narrativo, portanto,
podemos encontrar um tempo reconfigurado que, na melhor das hipóteses, nos
ajuda a entender melhor o tempo comum de nossas vidas cotidianas, assim como
suas situações limites. Essa compreensão melhorada do tempo e da ação humana
pode subseqüentemente dar origem a novas formas de configurações narrativas.
(p. 102)
Em tempo e narrativa. Faz uma série de
observações distintas mas relacionadas em suas considerações sobre a história.
Um dos seus argumentos é de que a história, no sentido do que o historiador
produz – um livro de história -, depende de e visa a nossa compreensão
narrativa, nossa capacidade de produzir e entender narrativas. Esse é um ponto
importante porque por trás dele está a questão de saber se pode ou não existir
tal coisa como uma história não narrativa. Ricoeur situa essa discussão em
relação ao grupo de historiadores franceses conhecido como dos Anais (Annales),
que focavam suas investigações no que chamavam de fato histórico total e, na
prática, naqueles aspectos históricos que só mudam lentamente com o tempo ou
que se repetem, em contraste com os eventos históricos que consideravam menos
importantes, mais momentâneos no plano político. (p. 102 e 103)
Para eles, esse tempo era sempre um longo
espaço de tempo. Esse foco nos largos períodos de tempo permitia-lhes, por sua
vez, negar que estivessem produzindo o que chamavam uma simples história de
eventos. O argumento de Ricoeur em relação a esse tipo de história toma então
duas grandes direções. Primeiro, argumenta que toda história, no sentido de um
texto de história produzido por um historiador, é em última análise narrativa
e, portanto, derivada de alguma compreensão do tempo e da ação humana, mesmo
que o limite lance mão de algo parecido com uma quase-trama ou mesmo
quase-personagens ou atores históricos. (p. 103)
Os historiadores freqüentemente fazem uso
de uma forma de sentença narrativa ainda mais sofisticada quando dizem coisas
como “em 1717 nasceu o autor de O sobrinho de Rameau”. Ninguém em 1717 poderia
dizer ou saber isso. E, além do mais, a própria voz do narrador que profere
essa sentença adia o aparecimento do livro de Diderot. É como se uma presente
falasse de uma evento passado (um “agora”, no sentido de um ponto na linha do
tempo) em termos de um evento futuro (um outro “agora”, um outro ponto na linha
do tempo que vem após o primeiro) que se encontra ele mesmo no passado da voz
narrativa que fala desde o seu próprio “agora” (o mal se mostra como um
presente vivo de uma instância do discurso do discurso, além de ser também um
ponto no tempo). Uma importante implicação aqui para qualquer filosofia do
tempo é que as possíveis relações entre passado, presente e futuro não são
simplesmente as mesmas que há entre “antes” e “depois”. Outra importante
implicação é que a história no sentido do que os historiadores fazem depende,
ela mesma, de algum conhecimento dos acontecimentos subseqüentes. É por isso
que não há história do presente. Com efeito, uma vez que o tempo continua a
passar, assim também novos eventos subseqüentes continuam a ocorrer, e o
trabalho da explicação histórica é constantemente reaberto. Por isso temos que
dizer que o próprio conhecimento histórico é sempre sujeito à revisão e
extensão. (p. 105)
Quando a narrativa que está sendo contada
empaca ou começa a dar voltas sobre si mesma, esse é o momento em que os
historiadores introduzem formas mais explícitas de explicação, incluindo apelos
a regras gerais, a fim de fazer a história prosseguir. Mas, ao fazê-lo, temos
que reconhecer que sempre visam á verdade do que pode ser conhecido sobre o
passado. Na linguagem da fenomenologia, eles sempre tentam dizer-nos o que pode
ser conhecido sobre o que efetivamente aconteceu, mas uma perspectiva
hermenêutica isso será sempre uma interpretação do passado sujeita a possível
crítica e revisão. Com efeito, o historiador busca explicar mais a fim de
compreender melhor, o que reforça a alegação hermenêutica.
Ricoeur conclui ter mostrado que a história
efetivamente pertence ao campo narrativo enquanto definida por sua operação
configuradora. Mas não basta simplesmente equiparar a história com o gênero
“estória”: “a propriedade especificamente histórica da história é preservada
pelos laços, por mais tênues e bem escondidos, que continuam a ligar a
explicação histórica à nossa compreensão narrativa, a despeito da ruptura
epistemológica que separa a primeira da segunda. Podemos mesmos dizer que a
narrativa histórica nos mostra novas possibilidades para a compreensão
narrativa porque pode empurrar o modelo básico para a utilização de coisas como
um quase-enredo e quase-personagens quando escrevemos não diretamente sobre a
ação humana, mas sobre coisas como o mundo mediterrâneo durante um certo
período longo de tempo. (p. 106)
A ficção, como o outro grande tipo de
narrativa, nos dá mais percepção de como a narrativa configura e, em última
análise, reconfigura o tempo. Ricoeur considera vários pontos ao examinar a
ficção, mas sempre com vistas a dar suporte a sua tese básica sobre a relação
entre o tempo e narrativa. Antes de mais nada, analisa a questão específica do
tempo na narrativa ficcional, notando que a lista de possíveis gêneros
narrativos não está fechada. Isso é demonstrado pela descoberta (ou invenção)
do romance como uma nova forma de escrever ficção. O romance é notável por sua
variedade em se tratando de exemplos concretos, mas de modo mais geral Ricoeur
observa que, em comparação com formas anteriores, incluindo o drama, como na
tragédia grega, ele amplia a esfera social na qual se desenrola a ação ao dar
atenção a pessoas comuns. Também introduz uma ênfase maior nas personagens como
indivíduos nos quais devemos pensar como pessoas reais e não como meros tipos
ideais ou míticos como o herói ou o vilão. Com isso vem uma ênfase crescente na
complexidade social e psicológica, combinada com novas maneiras de conceber a
vida interior, culminando no século 20 com a corrente do romance de
consciência. “No entanto nada nessas sucessivas expansões do personagem em
detrimento do enredo escapa ao princípio formal da configuração e, portanto, ao
conceito de trama”. O que é mais importante sobre o romance, no entanto, é que
leva a novos desenvolvimentos da técnica narrativa por se tratar de um gênero
que constantemente luta para não ser reduzido a um conjunto fixo de convenções
ao mesmo tempo que confronta os leitores com a questão: estamos diante da
ilusão ou da semelhança com a realidade? A resposta de Ricoeur a essa questão
lava-o a abandonar o seu uso anterior da idade de “redescrição” para
caracterizar o que acontece com a metáfora viva, passando à ideia de
“reconfiguração” a fim de captar o que acontece através da narrativa quando é
ouvida ou lida e entendida. Isso porque, como toda narrativa, a ficção nos
apresenta um mundo de texto no qual se supõe o desenrolar da história e este é
um mundo que poderemos nós mesmos imaginar habitando. (p. 106 e 107)
A ficção torna-se uma forma de articular
novas experiências do tempo, experiências fictícias que têm o mundo do texto
como horizonte, um mundo que nos ajuda, nos melhores casos, a ter um
entendimento maior de nosso próprio mundo. Ricoeur demonstra isso examinando
três romances que podem ser considerados histórias sobre o tempo: A Sra.
Dalloway, de Virginia Woolf, A montanha mágica, de Thomas Mann, e Em busca do
tempo perdido, de Marcel Proust. No primeiro desses três grandes romances
encontramos, por exemplo, um conflito entre o tempo mortal e o tempo monumental,
o tempo das ocorrências diárias e o dos grandes acontecimentos políticos e do
poder. No segundo, a distância entre o tempo da narração e o tempo narrado é
esticada de modo que temos um relance de um tempo eterno, o da montanha mágica
que paira acima das peripécias cotidianas, mas não totalmente, uma vez que a
história termina com o começo do que o leitor identifica como o desencadear da
Primeira Guerra Mundial e a descida do herói da montanha. Finalmente, em
Proust, encontramos uma história que é ela mesma a narrativa de um acerto de
contas com o tempo pela descoberta final de como torná-lo história, uma
história que se move do tempo perdido e incompreendido para o tempo
reconquistado e compreendido, da experiência vivida para a experiência narrada.
Em nenhum desses casos, porém, são completamente abolidas as características
gerais da ficção e, através delas, da narrativa. “È por isso que o romance
tornou infinitamente mais complexos os problemas da trama”. Dizer é ainda uma
forma de fazer, “mesmo quando o dizer se refugia no discurso surdo de um
pensamento silencioso, o qual o romancista não hesita em narrar”.
A ficção e a história precisam em seguida
ser reunidas numa teoria que lhe dará direitos iguais, o que Ricoeur procura
fazer no terceiro volume de Tempo e narrativa. No entanto, a narrativa
ficcional é mais rica nas informações que nos dá sobre o tempo do que a
narrativa histórica, que também passa sempre alguma informação do tipo. As
compreensões fictícias do tempo, encontradas tanto na ficção quanto na
história, podem por sua vez estar relacionadas a maneiras de ser no mundo e à
ação humana, porque partem de compreensões já constituídas do mundo e da ação
tais como encontradas nas línguas corriqueiras existentes. Mas, pelo menos nos
melhores casos, também vão além dessa compreensão para a possibilidade de um
novo entendimento e de um novo significado não apenas no tocante ao mundo e à
ação humana, mas também em relação ao próprio tempo, sem com isso exaurir o seu
mistério. (p. 110 e 111)
Podemos portanto dizer que a história e a
ficção efetivamente se entrelaçam porque bebem uma na outra dentro do campo
mais largo do discurso narrativo. E o fazem de maneiras que têm explicações e
ressonâncias tanto epistemológicas quanto ontológicas. Ricoeur identifica nesse
ponto uma implicação que será importante para a sua obra subseqüente: a ideia
de identidade narrativa, no sentido de uma identidade pessoal ou comunitária
expressa e mesmo constituída através das narrativas que falam dela. (p. 113)
A questão da identidade pessoal ou
narrativa leva à questão do que significa ser um eu, embora essa questão não
esgote todas as possibilidades da identidade narrativa, que pode também
aplicar-se a sujeitos plurais tais como comunidades religiosas e políticas.
Ricoeur agora acha, no entanto, que tais identidades têm que ser entendidas em
relação à individualidade. (p. 123)
A individualidade é um fenômeno complexo
que envolve dois tipos de identidade, não redutíveis a uma única ideia. Com
efeito, o que Ricoeur agora chama de identidade ipse “não implica qualquer
asserção quanto a um núcleo imutável da personalidade”. É por isso que ela pode
referir a uma identidade narrativa que se desdobra ou muda com o tempo. (p.
123)
A abordagem de Ricoeur vai desenvolver o
que ele agora chama de hermenêutica do eu. Sua pretensão não é esgotar todas as
questões que possam surgir acerca da individualidade, por exemplo sobre sua
base fisiológica tal como estudada pelas ciências naturais. Sua hermenêutica do
eu é antes baseada numa espécie de discurso filosófico, que Ricoeur procura
estabelecer através de um argumento em três etapas. Começa com uma reflexão
sobre o que a filosofia analítica tem a oferecer sobre o assunto; em seguida,
examina a dialética da individualidade e da identidade implicada por esse
primeiro passo; e, por fim, volta-se para a dialética da individualidade e da
alteridade, na medida em que fornece maior compreensão da constituição do eu
como ser humano capaz, alguém que tem uma identidade mas que também pode agir
no mundo com e para os outros. É a pergunta “quem?” que amarra e une esses
estágios.
De maneira sucinta, podemos dizer que eles
se desdobram como segue. O primeiro passo é ver que a pergunta “quem?” envolve
mais que uma coisa geral, ou seja, uma pessoa. Esta é alguém que pode se
designar falando e agindo. É alguém que tem uma identidade pessoal e que se
posiciona e age em relação a outros, o que leva à consideração dos
determinantes éticos e morais de uma ação em relação a esse “quem” que responde
à pergunta “quem fez isso?” Por sim, surge de novo a questão da odontologia.
Que envolve as questões do que significa ser um agente e ser histórico, mas
também a da unidade desse agente histórico. Ricoeur é algo hesitante aqui; como
de hábito, procede bem cautelosamente ao considerar a ontologia. (p. 124 e 125)
O passo seguinte de Ricoeur é enfocar a
noção de indivíduo de modo tal a passar da ideia geral de indivíduo para o
indivíduo que cada um de nós é. Baseia-se aqui em Indivíduos, de Peter
Strawson, com sua ideia de “particulares básicos” que funcionam em casos de
referência identificadora. A distinção chave aqui é entre corpos físicos e
“pessoas”, onde a ideia de pessoa ainda não inclui a capacidade que a pessoa
tem de designar-se falando. Uma pessoa é ainda apenas uma das coisas do mundo
que podem ser identificadas e referidas pela língua em geral. Mas isso já
sugere que, quando ocorre, a autoidentificação tem lugar em situações de
interlocução em que pessoas falam uma à outra e também que recorrerá, para
expressar-se, ao uso de demonstrativos tais como pronomes pessoais e
possessivos. Mas o que importa aqui são os tipos de predicados que podem ser
atribuídos a esses particulares básicos. Uma pessoa é uma coisa, mas não apenas
uma coisa como as coisas em geral. As pessoas têm corpos, mas “o conceito de
pessoas não é menos primitivo que o de corpo”. O ponto aqui é que tanto
predicados físicos quanto mentais aplicam-se no caso das pessoas, de modo que
retorna com força a questão da corporeidade que já estava presente na obra
inicial de Ricoeur. O que ele vê agora é que há duas importantes questões aqui:
de que modo uma pessoa é um corpo do qual falamos e de que modo pode ser um
sujeito que se designa na primeira pessoa ao dirigir-se a uma segunda ou a
outras. Há ainda a dificuldade extra de compreender como uma terceira pessoa
pode ser alguém capaz de designar-se na primeira pessoa. (p. 126 e 127)
O passo seguinte de Ricoeur é deslocar sua
atenção para a ideia de que os atos de discurso são tipos de ação e estender
essa percepção a um exame mais amplo da ação em geral, a começar mais uma vez
pela semântica da ação. O que está em jogo aqui é uma rede conceitual que se
aplica tanto a agentes quanto a seus atos e que “partilha a mesma condição
transcendental do quadro de conceitos dos particulares básicos”. Nessa rede, o
significado decorre das respostas que ela pode dar a perguntas como: “quem”, “o
que”, “onde”, “como”, “quando” e assim por diante, todas de significados
entrelaçados. Mas a teoria semântica da ação tende a subestimar a importância
dos laços com a pergunta “quem” e sua aparente ligação com uma espécie de eu,
em prol de um foco nas perguntas “o que” e “por que”, tendendo assim mais uma
vez a sugerir que o eu deveria ser pensado como uma coisa ou evento determinado
do ponto de vista causal e, como tal, uma coisa anônima, ainda que essa teoria
da ação reconheça que a pergunta “quem” pode ser respondida de várias maneiras
diferentes, inclusive com pronomes pessoais. (p. 128 e 129)
Ricoeur sustenta que sua abordagem
fenomenológica com efeito permite uma abordagem explanatória da ação, mas que
há sempre mais na descrição fenomenológica, mais até o do que em qualquer
explicação teleológica. (p. 130)
O que é importante sobre a ideia da
atribuição é que ela se aplica a pessoas como um tipo de particular básico,
seja a própria pessoa ou uma outra. Tais pessoas são únicas no sentido de que
são os únicos particulares básicos aos quais se aplicam tanto predicados
mentais quanto físicos, de modo que não há necessidade de pressupor um dualismo
corpo-mente enquanto continuamos a examinar a ideia de individualidade; os eus
são mentes corporificadas. Como Aristóteles já havia observado, a ação depende
do agente. A questão é como entender essa dependência. Um ponto básico aqui,
que também já fora percebido por Aristóteles, é que distinguimos entre ações
deitas livremente pelo agente e aquelas feitas a despeito dele, ambos os tipos
podendo incluir ou depender de outros atos que são eles mesmos resultado de
deliberação anterior. Esta distinção permite-nos refinar a noção de atribuição
com a ideia correlata de crédito: creditamos atos a um agente que são
voluntários ou involuntários, mas que, em certo sentido, depende do agente,
como indicado pelo fato de que tal crédito-atribuição permite-nos responder à
pergunta “quem” sem ter que invocar uma legação de que o ato foi praticado
voluntariamente ou mesmos invocar
qualquer avaliação ética do que foi praticado. (p. 131)
O ponto central em sua argumentação sobre
a identidade narrativa é de que a relação entre individualidade e identidade
precisa ser entendida dialeticamente; isto é, precisamos ver que cada termo
requer o outro para adquirir significado e que a identidade narrativa repousa
em algum ponto entre os dois. O que a narrativa acrescenta aqui é a capacidade
de explorar esse nível médio, até e inclusive os intrigantes casos examinados
por Parfit. Além do mais, o campo prático revelado dessa forma é um campo que
liga a teoria da ação à teoria moral, porque a narrativa nunca é moralmente
neutra. Nesse sentido, ela pode propiciar o primeiro laboratório do juízo
moral. Isso porque a narrativa é constituída por meio de uma trama que, como já
havia mostrado Tempo e narrativa, configura o episódio e a história contada num
todo temporal tenso, que permite entender a ideia de permanência no tempo como
uma identidade dinâmica, assim como a que se aplica às personagens da história.
Elas podem mudar em função das peripécias do enredo, mas também permanecem
identificáveis como sendo as mesmas personagens. (p. 136)
Memória, histórica, esquecimento começa
pelo exame da memória como tópico isolado. O problema da continuidade e da
descontinuidade desempenha mais uma vez um papel central pelo fato de que uma
das questões de Ricoeur é saber em que medida os historiadores são dependentes
da memória e até que ponto a ultrapassam. Será que os historiadores, com sua
perspectiva crítica do passado, não têm afinal que ir além da memória? Essa
questão é reforçada se verificarmos que hoje os historiadores são capazes de
escrever uma história da memória, no sentido de uma história do que as pessoas
disseram sobre a memória ou de como a usaram para comemorar importantes
acontecimentos passados. O uso da memória comemorativa e seus possíveis abusos
levarão às reflexões finais de Ricoeur sobre o esquecimento. (p. 148)
Se o que a memória nos dá é uma imagem do
passado, surge então a questão de quão “fiel” é essa imagem em relação ao que
representa. A resposta que propõe Ricoeur é que o tipo de verdade envolvido
aqui depende tanto da ideia de veracidade quanto da ideia de uma
correspondência entre o que é lembrado e o que efetivamente aconteceu no
passado. Afinal é preciso apelar à aceitação de uma memória diferente para
refutar uma lembrança. (p. 149)
A recordação depende de uma específica
capacidade de lembrar, que é uma das capacidades constitutivas do ser humano
capaz, além das de falar, narrar e compreender narrativas. Em segundo lugar,
Ricoeur observa que distinguimos entre memória e hábito porque os hábitos são
ativos de uma maneira contínua no presente, ao contrário da memória e em
especial a recordação. (p. 149)
Uma razão pela qual a memória individual é
tão importante é que está intimamente ligada à interioridade que se associa à
individualidade e à experiência pessoal: estas são as minhas memórias, essa foi
a minha experiência, eu me lembro que eu estava lá. (p. 151)
Ao falar da operação historiográfica,
Ricoeur primeiro quer desenfatizar a ideia de que o historiador trabalha em
estágios discretos: primeiro coletando documentos, depois examinando-os e
criticando-os e, por fim, escrevendo o resultante texto histórico. Fazemos tais
distinções para ver como os historiadores trabalham, mas na verdade esses
estágios se sobrepõem de tal forma que não podemos entender nenhum deles
isolado dos outros. Como diz Ricoeur: “cada uma das três operações da operação
historiográfica funciona como uma base para as outras duas, na medida em que
servem sucessivamente como referentes umas das outras”. É o projeto de escrever
a história que percorre todas elas. É por isso que a principal questão de
Ricoeur é por que podemos confiar no que os historiadores dizem do passado.
Retorna aqui com força a questão da relação do historiador com a memória. (p. 154)
Se lançarmos deste ponto um olhar em
retrospecto à obra inicial de Ricoeur, podemos ver que a ideia de uma
antropologia filosófica e uma ontologia correspondente percorre todo o seu
trabalho e ganha profundidade e complexidade com o tempo. Ele havia começado
com a questão da atuação humana relativamente à liberdade e seus limites,
acrescentou a constatação de que tal liberdade pode ser mal utilizada, assim
antecipando sua posterior discussão da ética e de uma forma justa de existência
social, e depois conheceu cada vez mais que temos que considerar seriamente a
temporalidade e historicidade dessa existência, com suas implicações para a
ação no presente. Uma nova questão aqui é se essa antropologia deve também
incorporar a possibilidade de que nossa existência não apenas é histórica mas
essa historicidade pode de certa forma ser um fardo para nós, quando nada
porque, segundo Nietzsche, temos que perguntar de que forma a história
limitaria nossa liberdade e nossa ação no presente. Para responder a essa
pergunta é preciso examinar de modo mais profundo nossa própria existência
enquanto seres históricos e como entendemos a história. (p. 161)
Essencial na análise dessas questões por
Ricoeur é a analogia entre historiador e juiz. Ambos almejam a verdade e a
justiça. Ambos, em última análise, dependem do testemunho das partes
envolvidas. E ambos alegam chegar a uma conclusão justa com uma postura
imparcial. No entanto, na perspectiva da história e da ciência histórica contemporâneas,
ninguém pode pretender-se uma terceira parte absolutamente neutra. O que está
em questão ao compará-las tem portanto uma dimensão epistêmica e moral. E aí a
analogia entre juiz e historiador começa a bater pino, porque o processo de
julgamento é determinado por regras mais específicas e mesmo por um cenário
mais específico do que a pesquisa do historiador. Além do mais, o veredito do
juízo é mais definitivo, pois ele tem que decidir, enquanto os historiadores
podem prevaricar, introduzir termos qualificativos ou mesmo esperar e apelar a
pesquisa ulterior, porque reconhecem que o trabalho de “escrever história é uma
perpétua reescritura”.
Mas essa analogia não pode ser ignorada
hoje, acredita Ricoeur, porque os historiadores se vêem chamados a lidar com
coisas tidas como crimes e males numa escala até aqui desconhecida, crimes
terríveis contra povos inteiros, até contra a humanidade. Serão capazes de
escrever essa história? Ricoeur responde que são incapazes de escrever uma
história todo abrangente que “incluiria a história dos perpetradores, a
história das vítimas e a história das testemunhas”. Devem, ao invés disso,
almejar e podem alcançar um consenso parcial sobre o básico das histórias que
efetivamente escrevem, voltadas para um público que inclui não apenas os tipos
ideais de leitor – o historiador e o juiz -, mas também uma outra terceira
parte, o cidadão que é chamado a se apropriar dessa história para a sua
compreensão e ação futura. O preço disso, no entanto, é que os historiadores precisam
sempre estar prontos para começar seu trabalho se quiserem lidar de forma
adequada com esses assuntos à medida que o tempo continua a correr. (p. 162 e
163)
O perdão constitui o horizonte tanto da
memória quanto do esquecimento. “Ele apõe um selo de incompletude sobre toda a
empresa” porque não pode compensar a natureza imperdoável do mal moral, quer no
passado, quer no presente. É por isso que o perdão é difícil e não uma coisa
que se consegue com um simples gesto. Que é possível podemos ver se o
comparamos ao ato de prometer. Enquanto a promessa amarra o agente a sua ação,
o perdão liberta-o dela. Mas temos também que reconhecer uma diferença
importante entre as duas coisas porque no plano político não há possibilidade
autêntica de uma expressão institucional plenamente eficaz do perdão. O que se
pode comprovar pelo fracasso das anistias em alcançar seus propósitos
declarados, embora Ricoeur veja de fato alguma esperança no funcionamento de
comissões de investigação e reconciliação, como na África do Sul, embora mesmo
nesses casos muitos participantes tenham admitido que esses organismos não
conseguiram tudo que as pessoas esperavam deles. (p. 167)
Não é de surpreender que Ricoeur no final
da vida tenha adotado o conceito de reconhecimento, considerado a ênfase que
deu à questão da identidade pessoal e comunitária, a começar de tempo e
narrativa e prosseguindo com Eu enquanto Outro. A importância que vê em nossas
relações com os outros, tão central em sua ética menor, iria levá-lo nessa direção,
da mesma forma que a discussão contemporânea da “política da identidade”. Para
além dessas preocupações, no entanto, Ricoeur tem um outro alvo em mente, um
alvo mais amplo. Primeiro, como assinala no início mesmo de O caminho do
reconhecimento, é impressionante constatar que não há nenhuma grande filosofia
estabelecida do reconhecimento, ao contrário do que se pode dizer de outras
áreas em que os filósofos podem destacar obas marcantes, como a epistemologia,
a metafísica ou a ética. Além disso, as reflexões de Ricoeur levam-no a uma
distinção que ele diz não ter sido suficientemente bem enfatizada nas
discussões disponíveis sobre reconhecimento. Trata-se da distinção entre
reconhecimento recíproco e mútuo. Na verdade, se podemos encontrar uma
filosofia elaborada do reconhecimento na história do pensamento ocidental ou
nas atuais discussões sobre política da identidade, a ideia temática central
vem a ser, na melhor das hipóteses, a do reconhecimento recíproco e não a do
reconhecimento mútuo, pelo menos no sentido que Ricoeur quer dar a este último
fenômeno, isto é, o de algo que vai além do reconhecimento recíproco e não se
reduz a ele. (p. 169)
Examinando mais detalhadamente a
fenomenologia desse ser humano capaz, Ricoeur conclui que nossa capacidade de
agir envolve tanto atestação quanto reconhecimento, com uma diferença
fundamental entre as duas noções. Em termos do nosso uso da linguagem, a
atestação pertence ao campo do discurso testemunhal, enquanto o reconhecimento
está ligado mais aos processos de identificação e autoidentificação. Os dois
fazem intersecção, porém, na certeza e segurança com que dizemos “eu posso”.
Além disso, também dizemos e experimentamos que podemos imputar nossos atos ao
nosso eu e experimentamos que podemos imputar nossos atos ao nosso eu e assumir
responsabilidade por eles. Ademais, por distinguirmos entre nós e os outros ao
dizermos “eu”, já surge a questão do reconhecimento por parte dos outros que
imputam meus atos a mim. Isso pode virar a questão do reconhecimento mútuo
quando perguntamos em que medida nosso autoreconhecimento requer e mesmo
depende desse reconhecimento pelos outros. Tal reconhecimento alheio, sustenta
Ricoeur, é necessário para alcançar um sentido pleno de nós mesmos como
sujeitos responsáveis, mesmo que ele não seja sempre concedido e até se por
vezes é deliberadamente contido ou negado. (p. 173)
Se há um elemento de luta no
reconhecimento mútuo, é uma luta “contra o não reconhecimento dos outros e ao
mesmo tempo pelo reconhecimento de si mesmo por parte dos outros”. Esse não
reconhecimento – que percorre todo o espectro da desconsideração ao
desrespeito, do desprezo à negação mesma da humanidade alheia – é sempre
possível por causa da dissimetria fundamental entre si mesmo e os outros. Para
integrar a mutualidade nessa dissimetria, Ricoeur diz que devemos voltar ao
esquecimento. Se pudermos “esquecer” a dissimetria, podemos então ser capazes
de reconhecer a posição “intermediária” de nosso mútuo relacionamento. Aquilo
pelo qual trocamos esse espaço, no entanto, são presentes, não lugares, e isso
“protege a mutualidade dos dilemas de uma união fusional, quer de amor, amizade
ou fraternidade em nível comunitário ou cosmopolita”. O reconhecimento mútuo,
em outras palavras, estabelece uma distância justa entre nós e, com isso, um
excedente de significado no qual a alteridade é afirmada em dobro: “outro é
aquele que dá e aquele que recebe; outro é aquele que recebe e aquele que dá em
troca”. (177 e 178)
A ideia de uma distância justa leva-nos aos últimos ensaios de Ricoeur, publicados sob a rubrica geral do “justo”. O justo e reflexões sobre o justo são antes coletâneas e palestras e ensaios do que livros escritos para apresentar um argumento geral. Certo número de ensaios dedicam-se a outros pensadores – Rawls, Weber, Kant, Arendt, Walzer, entre outros – e mostram Ricoeur exercitando sua própria posição em relação a eles. Tais ensaios valem a pena ser lidos por si mesmos, como exemplos de como Ricoeur lê os trabalhos dos outros e procura antes pensar com eles do que contra eles. Pela nossa perspectiva, no entanto, é importante examinar dos dois temas que unem esses ensaios: a ideia de justiça e, para além dela, a ideia do justo. Ao fazê-lo, percebemos que podemos situar as reflexões de Ricoeur entre dois pólos. De um lado, a filosofia política em sentido amplo, mais especificamente uma preocupação com questões concernentes à lei e sua aplicação pelos tribunais. Por outro, uma reflexão filosófica mais ampla, que busca uma maneira de fazer justiça à justiça com o exame da categoria mais geral do justo. A questão do justo já estava naturalmente implicada na ética de Ricoeur para uma vida com os outros em instituições justas. (p. 178)
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