Texto de Maurizio Marcheselli
Tradução: Paolo Cugini
João 6 é provavelmente o texto mais profundo sobre a
Eucaristia em todo o NT, sem negar que existem outras reflexões profundas; contudo,
uma reflexão tão complexa como a encontrada em João 6 não me parece ter iguais.
1. Introdução
1.1. Uma rede de relações envolve a Eucaristia
Em primeiro lugar, notamos que, em João 6, a
Eucaristia é falada dentro de uma rede de relações extremamente complexa e
muito significativa. É impossível falar da Eucaristia extrapolando-a a partir
de um conjunto de elementos que são aqueles que lhe dão sentido. Se você
extrapolar e torná-lo absoluto, não estará prestando um bom serviço, mas
empobrecendo-o; a consciência do que é empobrecida. A Eucaristia tem um
significado próprio dentro de uma determinada rede de relações e a primeira
intuição fundamental do QE é que, antes de falar da Eucaristia, precisamos
reunir alguns elementos, sem os quais não podemos compreender realmente o que
ela é. vida. Este é um primeiro ponto a ter em mente.
1.2. A imagem do pão
Uma segunda observação introdutória: João 6 é um
capítulo muito longo, o mais longo de todo o evangelho (71 vv.). Porém, está
bem unificado por uma imagem norteadora, que é a do pão: a imagem do pão e o
termo “pão”, que é o mais recorrente dentro do capítulo. Além disso, juntamente
com o termo “pão”, existe todo um conjunto de palavras que dizem “comer” (com
verbos diferentes), “comida” (com várias formas de indicar). Portanto, ao
contabilizarmos todos os termos que se referem a esta área, reconhecemos que
esta é verdadeiramente a pedra angular e que todo o capítulo se desenvolve em
torno deste tema. Portanto a imagem principal é a do “pão”. Além disso, Jesus
repete duas vezes uma frase crucial: “Eu sou o pão da vida” (v. 35,48);
portanto, há uma ligação entre o pão e a vida.
1.3. O uso do símbolo. Jesus usa o pão como imagem.
Jesus adorava falar em imagens. Certamente no QE há
discursos muito complexos, aos quais, na sua complexidade, nunca falta uma
certa riqueza de imagens. Sem dúvida esta era uma característica de Jesus: em
vez de falar em conceitos abstratos, ele adorava usar imagens. Isto é muito
interessante. Por que ele usou imagens? Quando falamos em imagens, podemos
usá-las de maneiras muito diferentes. Jesus favorece uma certa forma de
utilização das imagens que hoje se chama símbolo; então aqui precisamos fazer
um esforço para entender bem o que é um símbolo.
O termo “símbolo” deriva do grego sẏmbolon, ou syn-,
“com”, “junto”, combinado com bolón, que deriva do verbo bállo/bállein, que
significa “perseguir”, “grudar”, “aderir”. lançar” (tem uma conotação forte).
Neste caso significa “colocar”; portanto é: “juntar”.
Para que exista um símbolo, pelo menos dois elementos
devem estar presentes; caso contrário você não "montará" nada. O
primeiro elemento é um objeto comum ou uma situação de vida comum, que é
partilhada por todos e que todos conhecem; por exemplo “comer”. Mas isto não
basta, porque se trata apenas do elemento material, que ainda não é o símbolo.
Algo é necessário mais; isto é, o falante sobrecarrega aquele objeto de uso
comum (ou aquela situação da vida cotidiana) com um “extra” de significado. Vejamos
um exemplo simples: óculos. Os óculos podem ser descritos: seu formato, o
material de que são feitos, se estão na moda ou não; entretanto, tudo isso não
é um símbolo, mas a descrição de um objeto. Então você pode começar a dizer que
não se vê muito, que tem dificuldade para focar na realidade, que não consegue
distinguir os rostos das pessoas que estão à sua frente, se essa pessoa é homem
ou mulher, se eles têm cabelos curtos ou longos... Reclamamos que tateamos em
uma penumbra indistinta e que, portanto, precisamos de algo que nos ajude a nos
concentrar. Na verdade, se você não consegue focar, se não capta os contornos,
se fica confuso e, portanto, comete muitos erros de avaliação, então você realmente
precisa de um par de óculos para focar os contornos da realidade. É um exemplo
muito simples; isso é usar uma imagem como símbolo.
Obviamente, tomando o exemplo dos óculos, é necessário
que o ouvinte saiba o que são óculos; na verdade, se você estivesse falando
para uma população que não a conhece, o que você diria seria incompreensível.
Portanto, o objeto deve ser de uso comum para quem fala e quem ouve, ou seja,
para que todos conheçam sua materialidade, para que o ouvinte possa compreender
aquele “extra” de sentido com que o falante sobrecarrega aquele objeto
comumente usado.
Jesus adorava usar imagens como símbolos: pegava nas
situações da vida e sobrecarregava-as de significado. Na realidade, nada é um
símbolo em si: são apenas objetos ou situações. Porém, tudo pode se tornar
símbolo, pois o processo de simbolização é realizado pela pessoa, que pega um
objeto comum ou uma situação cotidiana e os lê em profundidade; e, lendo-os em
profundidade, ele lhes dá um “extra” de significado e, dessa forma, os
simboliza, os torna simbólicos. O símbolo é belo, porque pressupõe sempre que
permaneça uma certa materialidade: é necessário que o ouvinte conheça o objeto
ou situação na experiência cotidiana de sua própria vida. Se você não conhece o
objeto ou a situação, você não consegue entender. O símbolo precisa da dimensão
material, concreta, empírica, para não desaparecer.
Em João 6, o símbolo dominante é o pão. Jesus partilha a experiência de comer e de ter fome
com os seus interlocutores; portanto, saber o que é comida, o que é pão. E
precisa que os seus interlocutores conheçam e recordem bem a experiência
fundamental da alimentação, da necessidade de comida. Todos os seres humanos
precisam comer. Na sua experiência comum, a comida lembra-lhes a sua finitude;
a necessidade de alimentação lembra a cada pessoa - mesmo aquela que pode ser a
mais egocêntrica e a mais desinteressada por tudo e por todos - que deve contribuir
com algo de fora, portanto, que depende do ambiente externo e dos outros. A
comida nos lembra da finitude, dos limites. A comida lembra-nos que devemos
introduzir algo para viver: aqui está o “pão da vida”. Para viver, os seres
humanos precisam de se alimentar: esta é a experiência comum e básica, comum a
todos. A partir desta experiência muito simples, Jesus começa a falar de um
determinado alimento que nutre uma determinada vida. Partindo da experiência muito
simples partilhada por todos de que para viver é preciso comer, Jesus acaba
falando de uma determinada vida, que se alimenta de um determinado alimento.
1.4. Vida no Quarto Evangelho
No QE existem duas palavras diferentes para indicar
“vida”. A tradução portuguesa perde a distinção, pois vem em português sempre
traduzido como "vida". Em vez disso, o evangelista nunca confunde os
dois tipos de vida. Quando quer falar da vida humana concreta, utiliza um certo
termo grego, nomeadamente psyché, que não é “a alma”, mas “vida humana”. No
entanto, João fala com mais frequência sobre a vida usando outro termo,
nomeadamente zoé. Para o evangelista Zoé é vida; não a vida terrena, mas a vida
no sentido pleno. A vida terrena torna-se uma imagem da Vida em sentido pleno.
Para João (ou para Jesus, na visão do evangelista João), zoé é a vida tal
como Deus a possui. Obviamente é uma vida eterna; é uma vida no sentido
absoluto. Deus não tem vida de forma transitória ou passageira; Deus tem vida,
na verdade Deus é vida. Nele a vida é algo absolutamente estável, completamente
pleno. Ao longo do QE há um anúncio fundamental: a todos é dada a oportunidade
de receber – aqui e agora – a vida tal como Deus a possui. Este é o coração do
Evangelho segundo a concepção de João, em cuja visão a vida tal como Deus a
possui não precisa, para começar, que a vida terrena termine, como, pelo
contrário, às vezes se pensa de forma banal, ou seja, , que a vida eterna
começaria após o término da vida terrena. Isto é um disparate, fruto de uma má
catequese. A visão dos evangelhos é que a vida eterna começa aqui, nesta terra:
esta é precisamente a boa notícia, isto é, que Deus criou as condições sob as
quais, dentro da vida humana (que é uma vida transitória), ela pode ser
recebida – já aqui e agora – vida divina, vida tal como Deus a possui, vida em
sentido absoluto. Tal como a vida humana, a vida divina também precisa de
“alimento”. Se os seres humanos comem para permanecerem vivos, a vida divina
também precisa ser nutrida. Este é um ponto fundamental: a linguagem simbólica
é uma linguagem profundamente religiosa. O símbolo tem um poder evocativo
extraordinário: construir símbolos é pegar situações da vida cotidiana e
carregá-las de significado. Já foi dito que o símbolo é a protolinguagem da
experiência religiosa: é linda definição. O símbolo é a linguagem primordial da
experiência religiosa. Ao falar em símbolos, você consegue fazer seu
interlocutor compreender que a realidade não é pura materialidade; e isso é
muito importante. A linguagem simbólica vai além do materialismo com que as
pessoas costumam abordar a realidade que, muitas vezes, torna-se opaca,
tornando-se objetos e situações. Em vez disso, o olhar simbólico é capaz de ver
que tudo sempre tem potencialmente um acréscimo de significado dentro de si;
então é preciso soltá-lo, sem nos determos na materialidade do olhar habitual,
que só vê “coisas”. Devemos tentar ver os símbolos; e quando as coisas se
tornam símbolos, já estamos num horizonte religioso, espiritual.
2. Jesus dá pão (Jo 6,5-11)
«5Então Jesus olhou para cima e viu que uma grande
multidão se aproximava dele e disse a Filipe: «Onde podemos comprar pão para
esta gente comer?». 6Ele disse isso para testá-lo; na verdade, ele sabia bem o
que estava prestes a fazer. 7Filipe respondeu-lhe: “Duzentos denários de pão
não bastam nem para que todos recebam um pedaço”. 8Então um dos discípulos,
André, irmão de Simão Pedro, disse-lhe: 9“Está aqui um menino que tem cinco
pães de cevada e dois peixes; mas o que é isso para tanta gente?”. 10Jesus respondeu:
“Faça-os sentar”. Havia muita grama naquele lugar. Então eles se sentaram e
havia cerca de cinco mil homens. 11Então Jesus pegou os pães e, depois de dar
graças, distribuiu-os aos que estavam sentados, e fez o mesmo com os peixes,
desde que eles quisessem” (Jo 6,5-11).
O ponto em que nos concentramos é o fato de que Jesus
decide, de forma independente, distribuir pão à multidão. A história da multiplicação
dos pães é a que tem mais atestados nos evangelhos: são 6 histórias da
multiplicação dos pães (com Jo 6,1-14: Mt 14,13-21 e 15,32-38; Mc 6,30-44 e
8,1-10; Lucas 9.10-17). É uma das poucas histórias presentes em todos os
evangelhos. Nos sinópticos, são os discípulos que se preocupam e apontam a
Jesus que a multidão o segue há alguns dias; é melhor dispensá-la antes do
anoitecer, caso contrário as pessoas começarão a desmaiar; portanto, sugerem a
Jesus que os envie para algum lugar onde possam encontrar algo para comer; é
neste ponto que Jesus reage. Porém, no QE não acontece assim: no evangelho
segundo João não há pedido; ninguém pede nada a Jesus: nem os discípulos, nem a
multidão. Jesus faz tudo sozinho: é ele quem olha para a multidão e manda
alimentá-la. Este não é um detalhe menor, pois no QE isso acontece o tempo
todo. Um exemplo é a história do cego nascido em João 9: ninguém pede a Jesus
que o cure, nem mesmo o próprio cego. Não é como Bartimeu, que grita em Jericó
para atrair a atenção de Jesus (Mc 10,47); O cego de nascença de João não pede
nada. Nem mesmo os discípulos aqui não pedem nada; Jesus faz tudo sozinho; Por
quê? É uma questão crucial, que tem duas respostas.
1. Você não pode perguntar o que não sabe. Só é possível pedir algo que esteja dentro do
horizonte das próprias expectativas. Você não pode pedir o que você nem sabe
que existe; deve existir pelo menos na sua imaginação! Você não pode pedir
aquilo que não tem experiência. Os dons de Jesus ultrapassam qualquer
imaginação, portanto não podem ser objeto de pedido.
2. O presente se assemelha à pessoa que o dá. Isto também é verdade na nossa experiência cotidiana:
num presente há sempre algo sobre a pessoa que o dá (seja bonito ou feio!). O
presente traz indelevelmente a marca de quem o dá. Da mesma forma, todos
colocam a marca de quem são nos presentes que dão. Isto é verdade em Jesus até
o enésimo poder: pode-se dizer que os dons de Jesus se assemelham a ele de uma
forma incrível; Os dons de Jesus têm todas as características que lhe são
típicas.
Pergunta: Alguém perguntou por Jesus? Ou seja, Jesus é fruto de
um pedido que alguém fez a Deus? O evangelho mostra o contrário: foi Deus quem,
um dia, decidiu enviar o seu Filho. Ninguém lhe perguntou nada; Ele fez tudo. Com
efeito, podemos acrescentar: os homens nem sequer sabiam que existia um Filho
de Deus e, se não se pode perguntar o que não se sabe, certamente não o
poderiam pedir. Aqui está então a razão pela qual Jesus dá este pão. Ninguém
pergunta a ele; na verdade, ninguém lhe pode perguntar, porque Jesus está
impresso neste pão, que tem todas as características típicas de Jesus.
Gosto de um paralelo: «Então Jesus olhou para cima e
viu que uma grande multidão se aproximava dele e disse a Filipe: «Onde podemos
comprar pão para que esta gente possa comer?»». Jesus levanta os olhos, vê a
multidão, conhece as suas necessidades profundas de uma forma muito mais
profunda do que a própria multidão pode conhecê-las e decide dar àquela
multidão um pão que eles nem pediriam se não fosse ele quem o desse. para eles
der. É claro que isto equivale exatamente ao dia em que Deus, do alto do seu
céu, ergueu os olhos (na verdade, talvez os tenha baixado!), viu uma grande
multidão e pensou em dar-lhes o que essa multidão nunca poderia pediu, mas que
correspondeu ao que mais profundamente necessitava. Esse é o dia em que o Filho
se tornou carne. Um dia Deus voltou o seu olhar para o mundo, viu a multidão e
decidiu por iniciativa própria, sem que ninguém lhe pedisse nada, dar carne ao
seu Verbo. Há aqui um ponto crucial: aquele pão que Jesus vai dar é uma imagem
dele! Aquele pão tem todas as suas características, aquele pão representa-o: é
o Verbo que se fez carne, é o símbolo do Filho de Deus feito filho do homem, do
Verbo eterno feito filho de Maria. Então entendemos bem por que, quando pouco
depois de o evangelista descrever a refeição, ele escreve algo que faz sorrir
quem não entende a linguagem simbólica: o evangelho narra que Jesus distribui
ele mesmo o pão, não o dá aos discípulos (v. .11) . Em termos concretos parece
impossível: demoraria muito tempo a distribuir pão a 5.000 homens! Jesus tem
ajudantes; por que você não os usa?
Neste detalhe, João transmite um significado muito
profundo. Se aquele pão – como sugiro – se parece muito com Jesus, então este
pequeno detalhe significa que Jesus se dá, se entrega; ninguém toma este pão,
mas é ele quem se dá de si mesmo, é ele quem se dá para ser comido. Em João 10
Jesus diz: «Ninguém me tira a vida; Eu dou isso de mim mesmo. Tenho o poder de
dá-lo e o poder de recuperá-lo” (cf. 10,18). Isto é o que está indicado aqui:
este pão, que representa Jesus, é dado por Ele, outra pessoa não pode dá-lo.
Este é o sinal da liberdade absoluta com que o Senhor se deixa comer:
entrega-se. Este é o primeiro ponto: a multiplicação dos pães.
Agora vamos pegar os dois picos da discussão. Este
discurso é como uma cordilheira: é sempre muito alto, muito alto; mas existem
dois picos. Você está sempre em altitude; no entanto, existem dois picos que
são verdadeiramente os pináculos deste discurso de Jesus.
3. Pão de sabedoria (Jo 6,30-35)
A primeira citação é encontrada no v. 35, quando Jesus
diz: «Eu sou o pão da vida».
«30Então a multidão lhe disse: «Que sinal então
você dá para que possamos ver e acreditar em você? Que trabalho você faz?
31Nossos pais comeram o maná no deserto, como está escrito: Deu-lhes de comer pão
do céu." 32 Jesus respondeu-lhes: “Em verdade, em verdade vos digo: Moisés
não vos deu o pão do céu, mas meu Pai vos dá o verdadeiro pão do céu. 33O pão
de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo”. 34Então lhe disseram:
“Senhor, dá-nos sempre deste pão”. 35Jesus respondeu-lhes: «Eu sou o pão da
vida; quem vem a mim não terá mais fome, quem crê em mim não terá mais sede””
(Jo 6,30-35).
A multidão diz a Jesus que “nossos pais”, ou a geração
que saiu do Egito, “comeu maná no deserto”, e depois cita a Escritura: “Ele
lhes deu pão do céu para comer”; em vez disso, que sinal Jesus faz? Antes de
falar dos sinais (ou milagres), Jesus faz a exegese desta passagem da Escritura
e a faz como os rabinos faziam naquela época. A multidão citou uma frase:
“Deu-lhes a comer pão do céu”; então Jesus pergunta quem é o sujeito do verbo,
ou seja: quem foi que “deu”? E ele continua, alegando que eles pensam que ele é
Moisés. Mas não: era “meu Pai”; Jesus muda o sujeito do verbo. Além disso, o
tempo verbal também muda: não «deu» (passado), mas sim «dà» (presente). É assim
que Jesus exegeta a passagem. Enquanto a multidão pensa num acontecimento do
passado, do tempo de Moisés, Jesus responde que aquela passagem da Escritura
fala de um acontecimento que acontece no presente e que é realizado não por
Moisés, mas por Deus: «Meu Pai dá você pão do céu, o verdadeiro.” Poderia ter
sido traduzido “O pão de Deus é aquele que desce do céu”, respeitando assim
melhor o sentido do texto, porque Jesus não diz imediatamente que aquele pão é
uma pessoa; ele prefere deixá-los dar um passo de cada vez. Então ele diz antes
de tudo para não pensarmos no passado, mas no presente; nem pensar em Moisés,
mas em Deus: “Deus agora te dá o pão do céu, o verdadeiro”. O pão de Deus é
“aquilo”; A quem você está se referindo? Para “aquele pão” ou para “aquele
cara”? Jesus não diz isso imediatamente. «É ele quem desce do céu e dá vida ao
mundo», e a multidão «morde a isca»: «Senhor, dá-nos sempre este pão» do céu. É
só neste momento que Jesus revela que aquele pão é uma pessoa: «Eu sou o pão;
Eu sou o pão da vida"; é a frase que expliquei como premissa.
Partindo da experiência ordinária de que todos os
seres humanos necessitam de alimento para sustentar a sua vida na terra, Jesus
revela que agora desceu um pão celestial; este pão é capaz de nutrir não apenas
a vida física, e este pão é ele. Então o pão, antes de tudo, é ele, é uma
pessoa, é a sua pessoa. Esse pão é ele, o Verbo feito carne. Para explicar esse
ponto, vejamos as próximas duas frases: “Quem vem a mim nunca mais terá fome, e
quem crê em mim nunca mais terá sede”. É curioso que Jesus divida as imagens.
Até agora ele só falou em comer; agora ele fala também de “ter sede”. Jesus duplica
a imagem em comer e beber: “Quem vem a mim nunca mais terá fome, e quem crê em
mim nunca mais terá sede”. Por que você divide isso? Uma resposta poderia ser
que Jesus está pensando na Eucaristia; é uma solução possível.
No entanto, há uma razão primária e mais fundamental.
No Antigo Testamento (AT) há uma personagem importante que aparece em muitas
passagens: ela é a Sabedoria, que muitas vezes é personificada
como uma mulher. Em grego, o termo sophia é feminino, assim como o equivalente
hebraico; isso favoreceu a personificação com imagem feminina. Há um texto
muito bonito, que Jesus certamente tem em mente enquanto fala:
«9.1 A sabedoria construiu a sua casa ele esculpiu
suas sete colunas. 2Ele matou seu gado (eles comem), ele preparou seu próprio
vinho (você também bebe) e arrumou sua mesa. 3Ela enviou suas donzelas para
proclamar nos pontos mais altos da cidade: 4"Quem é inexperiente deveria
vir aqui." Para aqueles que não têm bom senso ela diz: 5“Venha, coma meu
pão, beba o vinho que preparei. 6Abandone a inexperiência e você viverá, siga
direto pelo caminho do entendimento"" (Provérbios 9,1-6).
Portanto, no banquete da Sabedoria comemos e bebemos;
é por esta razão que Jesus duplica a imagem. Mas o que você come? O que a
sabedoria lhe dá para comer? Ela alimenta seus sábios ensinamentos, ou seja,
ela se alimenta. Isto é o que se come no banquete da sabedoria. Este banquete é
para os ignorantes, para os tolos, para os tolos, para os inexperientes; e os
inexperientes vão comer experiência, sabedoria, inteligência: vão comer os
sábios ensinamentos da sabedoria, ou, em última análise, comê-los. Ele se dispensa,
assim como dispensa sabedoria. Tudo isto ajuda a compreender João 6, porque é
isto que Jesus diz, juntamente com toda a tradição sapiencial de Israel: “Vinde
a mim e comei”. O que você deve comer? Comemos sabedoria, educação,
inteligência, porque Jesus é a sabedoria feita carne, ele é a encarnação da
sabedoria. Há outro texto, menos utilizado, mas muito adequado.
«1Ó todos vocês que têm sede, venham à água
(bebemos), quem não tem dinheiro vem de qualquer jeito, compre e coma (você
come)".
Mas como comprar se “duzentos denários de pão não
seriam suficientes para lhe dar um pedacinho” (cf. 6.7)? Isaías continua:
«Compre sem dinheiro». Há precisamente uma semelhança com João 6: o tipo de
alimento que Jesus oferece não pode ser comprado, não tem preço, não pode ser
pago. É claro que estamos em outra ordem: esses alimentos só podem ser doados.
«Compre sem dinheiro e coma, sem despesas, vinho e
leite. 2Por que vocês gastam dinheiro porque não é pão, sua riqueza pelo que
não satisfaz?” «Venha, me escute, e você comerá coisas boas e você desfrutará
de comida suculenta. 3Aperte seu ouvido e venha até mim, escutai e vivereis”
(Isaías 55,1-3).
O texto diz: «Venha, escute-me, e você comerá coisas
boas e desfrutará de comidas suculentas». Diante desta frase, pensamos numa
situação como a seguinte: «Ouça-me, sei onde você pode comer bem, vou lhe dar o
endereço de um restaurante adequado. Ouça-me e vá comer onde eu lhe disser. Ao
pensar assim, ouvir é separado de comer; em vez disso, na tradição profética,
comemos enquanto ouvimos. O que você deve comer? A palavra é comida. O texto
quer dizer: «Vem, escuta-me e, ouvindo, comerás coisas boas», ou: «Se me
ouvires, comerás». É o tema da palavra como pão, da palavra como alimento. Esta
é a tradição profética de Israel: “O homem não vive só de pão, mas o homem vive
daquilo que sai da boca de Deus” (Dt 8,3), ou daquilo que Deus diz através dos
profetas. Jesus tinha esses textos na mente e no coração, assim como os seus
ouvintes, porque conheciam os textos bíblicos.
Agora é mais claro o que Jesus diz: “Eu sou o pão da
vida”; como você pode dizer aquilo? Em que sentido ele é? Reúne toda a tradição
de Israel e quer dizer: «Eu sou o pão da vida, porque dou sabedoria, porque te
comunico a sabedoria, porque te trago a palavra de Deus; na verdade, porque eu
sou a palavra de Deus que se fez carne e em tudo o que digo e faço é a palavra
de Deus que se manifesta a vocês”. Novamente: aqui os estudiosos notam um fato
estranho. Depois que a multidão citou uma passagem das Escrituras que diz:
“Deu-lhes pão do céu para comer”, Jesus começa a falar de pão, mas não usa mais
o verbo “comer”. Pareceria muito estranho; Em vez de faz todo o sentido. Jesus
não usa mais o verbo “comer”, porque usa outro. O verbo encontrado com mais
frequência nesta parte do discurso é acreditar. Então faz sentido: se ele é o
pão, esse pão se come crendo. O equivalente a mastigar, a comer, é acreditar.
Nesta descrição simbólica o equivalente a mastigar para assimilar é acreditar;
este pão se assimila crendo, este pão se come crendo. Fé é comer, fé é comer.
Então ele não fala em comer, mas fala em acreditar. Se uma pessoa deseja
nutrir-se e comer aquele pão que nutre nela aquela vida como Deus a possui,
então ela deve comer para nutrir essa vida; e você come acreditando. Fé é
comer, fé é alimentar-se deste pão que é o pão da sabedoria, que é o pão da
palavra. Ainda precisamos falar sobre a Eucaristia, embora comer e beber possa
ser uma lembrança da Eucaristia. Provavelmente existe esse aspecto também.
4. Pão de amor (Jo 6,48-51)
O segundo e definitivo pico é encontrado no v. 51: «O
pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo»; É uma frase famosa.
«48Eu sou o pão da vida. 49Seus pais comeram o maná
no deserto e morreram; 50Este é o pão que desce do céu, para que todo aquele
que dele comer não morra. 51Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Se alguém
comer deste pão viverá para sempre, e o pão que eu darei é a minha carne para a
vida do mundo” (Jo 6,48-51).
Jesus retoma o primeiro clímax, repetindo exatamente a
mesma frase: “Eu sou o pão da vida”. Ele retira isso, porque agora se torna um
trampolim a partir do qual ele se eleva. E o ponto, alcançado anteriormente, a
partir do qual partimos para uma nova subida final e para chegar ao cume. Por
isso reitera: “Eu sou o pão da vida”, e depois dá um salto em frente, que é
dado precisamente por aquela frase: “O pão que darei é a minha carne pela vida
do mundo”. Para compreendê-lo plenamente, devemos antes de tudo compreender que
esta frase é apenas uma forma de repetir o que já disse: “Eu sou o pão da
vida”; «O pão que darei é a minha carne para a vida do mundo». O “pão da vida”
torna-se “o pão dado para a vida do mundo”: é a mesma ideia. A declaração “Sou
eu” passa a ser: “Darei (…) a minha carne”. Este é o ponto crucial. Primeiro
disse: «Eu sou o pão que dá vida»; agora diz: «O pão que dá vida ao mundo é a
minha carne dada». O que significa a expressão: “minha carne dada por”? Provavelmente
estamos habituados a pensar nesta frase como uma frase eucarística; Mas isso
não! Em primeiro lugar, fala da morte de Jesus; é uma meditação na cruz, não na
Eucaristia. Pode ser que sim, mas a frase: “O pão que eu darei é a minha carne
pela vida do mundo” é uma meditação na cruz.
Na Bíblia, “carne” indica o ser humano como um todo,
na sua existência mortal. A “carne” é o homem como realidade transitória,
fugaz, finita, destinada a morrer. Então é a existência humana. Depois Jesus
diz que “o pão que eu darei, um pão que dá vida ao mundo” é “a minha carne”, é
“a minha existência de homem entregue”. Aqui há um eco do que Jesus afirma no
discurso do “bom pastor”, onde Jesus ensina que “o bom pastor dá a vida pelas
ovelhas” (Jo 10.11, CEI2008). Nesta frase, “vida” é psyché, ou seja, o bom
pastor dá a sua existência como homem, está disposto a morrer pelas ovelhas. É
a mesma ideia que está aqui: “Dar a própria carne”, a própria existência humana
por alguém. O ponto crucial é que isto é pão. Mas em que sentido é esse pão?
Por que a existência humana de Jesus, entregue à morte, é o pão que o mundo
mais necessita para viver?
A razão é relativamente simples: basta pensar na forma
como muitas vezes João, no QE, apresenta a morte de Jesus. O significado
fundamental que, para o evangelista, tem a morte de Jesus é o seguinte: «Antes
da festa de Páscoa Jesus, sabendo que era chegada a sua hora de passar deste
mundo para o Pai, tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim”
(Jo 13.1). Este “fim” é a morte, é a cruz. Para João a cruz é o ápice do amor:
“Ele os amou até o ápice”, que é – precisamente – a cruz. No QE se diz com
muita força que a morte de Jesus é o extremo do amor. Não há outra situação
como a da cruz em que vemos o amor de Jesus pelo mundo e o amor de Deus pelos
homens. Este é precisamente o pão que todas as pessoas necessitam mais
profundamente. O pão que cada pessoa realmente precisa é saber que nesta terra existe
alguém que a ama. Na verdade, quando você não come este pão, você morre; e isto
pode ser visto claramente, especialmente na sociedade ocidental, onde o menor
dos problemas (para muitos) é a disponibilidade de alimentos, mas onde o
problema da fome profunda não desapareceu. Quando não há pão de amor, de
sentir-se querido, ou, por algum desequilíbrio, ele deixa de ser percebido
(essas são as tragédias), a pessoa fica impossibilitada de viver. O pão de que
cada pessoa mais necessita é o pão de se sentir amado. Portanto, é um grande
pão pelo qual uma pessoa pode dizer: “Ele me amou a ponto de dar a vida por
mim”. Com a força desse tipo de alimento você pode continuar por toda a vida.
Quando uma pessoa pode dizer, no fundo de si mesma, que sabe que é objeto de
uma atenção tão profunda, isso é suficiente para fazê-la viver.
Portanto, para Jesus o pão é a palavra, é a sabedoria,
é a cruz, com o que significa: para Jesus a cruz é a revelação, é a
manifestação mais marcante da intensidade do amor de Deus pelo mundo e de seu
próprio amor pelo mundo. Quando você cura dê na cruz, entendendo o que é, bem
aí você pode comer, e também em abundância (!); ali se encontra um pão que
sustenta a vida da pessoa, tanto a vida física como a divina. Na verdade,
quando olhamos para a cruz como ela realmente é, naquele exato momento, nos
tornamos participantes da vida divina.
5. A Eucaristia: pão de sabedoria e pão de amor (Jo
6,53-55)
Até agora, Jesus falou indiretamente sobre a
Eucaristia, nunca falou dela explicitamente. Os últimos versículos tornam-se
explícitos, porque «53 Jesus disse-lhes: «Em verdade, em verdade vos digo
que, se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não
tereis vida em vós mesmos. 54Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a
vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. 55Pois a minha carne é a
verdadeira comida e o meu sangue é a verdadeira bebida”” (6,53-55).
São expressões de tipo eucarístico: no fundo está
certamente a liturgia eucarística, a celebração e a fração do pão, o comer a
carne e o beber o sangue do Filho do Homem. Não podemos falar da Eucaristia se
não a inserirmos no tecido de relações que procuramos extrair de João 6. Na
reflexão de João, a Eucaristia é fundamentalmente a representação contínua e
incessante daquele pão duplo que indicamos antes: o pão da sabedoria e o pão do
amor. Na visão do quarto evangelista, a Eucaristia é a contínua exposição aos
crentes – por parte de Deus e da Igreja – da encarnação e da cruz.
Continuamente na Eucaristia o crente é colocado novamente em contato com a
carne do Verbo, com a sabedoria, com o Verbo de Deus feito carne, e também com
a cruz de Jesus como manifestação máxima e extrema do amor de Deus. A dimensão
da sabedoria, da palavra, nunca pode ser separada da Eucaristia, porque
significaria esquecer que a carne de Jesus é o Verbo encarnado. A contemplação
da cruz como mistério do amor de Deus pelo mundo nunca pode ser separada da
Eucaristia. Quando a Eucaristia é celebrada desta forma, então ela é
compreendida e torna-se significativa; torna-se até capaz de ser um anúncio, de
anunciar algo, porque já não permanece um rito celebrado no seio de uma
congregação de pessoas, mais ou menos amigos, mas torna-se verdadeiramente o
anúncio daquela Palavra que Deus diz ao mundo e de que o amor que Deus
manifestou na cruz de Jesus.
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