Paolo Cugini
O primado da vida contemplativa
Em muitas obras
Agostinho fala deste assunto. Comentando texto da Bíblia, compara personagens
bíblicos como Lia e Raquel, Marta e Maria, Pedro e João.
“Raquel representa a esperança da
contemplação eterna de Deus, esperança que já contem em si uma inteligência
certa da verdade... Ninguém, então, uma vez liberado pela graça da remissão dos
seus pecados, se dirige as obras da justiça se não para alcançar á quiete da
contemplação da Palavra, que nos desvende o Principio, ou seja, Deus: amamos
então o serviço por amor de Raquel, não de Lia. De fato, quem é que poderia
amar o peso deste serviço e as inquietações que ele comporta, quem poderia amar
aquela vida por si mesma? Por isso, muitos, de aguçada inteligência, almejam ao
estudo e, apesar de ser em condições de governar, evitam toda atividade por
causa das suas preocupações que provocam confusão, e se dedicam com toda a alma
á busca da verdade[1]”.
“As obras de misericórdia nascem de uma
necessidade imediata, a doçura da contemplação nasce do amor... Você poderia
ser aliviado do peso da necessidade, enquanto é eterna a doçura da verdade. À
Maria não será tirado aquilo que escolheu; não só isso, mas lhe será aumentado
nesta vida e rendido perfeito na outra, nunca tirado”[2].
“De que se deleitava Maria? De que ela se
alimentava, o que bebia o seu ávido coração? A justiça, a verdade. Se deleita a
verdade: a almejava. Faminta se alimentava dela; sedenta a bebia e a verdade
não diminuía... O verdadeiro gozo do coração humano é na luz da verdade, na
superabundância da sabedoria: não existe prazer que possa comparar-se de alguma
forma a este gozo do coração humano, para que o coração seja justo, santo”[3].
O discurso
agostiniano do primado á contemplação se reduz:
a. ao primado do
amor da verdade, que é o primado do amor de Deus vivo e verdadeiro;
b. á eternidade
da vida contemplativa a diferença daquela ativa, que dura só nesta vida, aonde
existem os míseros que precisam da misericórdia;
c. á altura dos
dons que a acompanham: é de fato ligada ao dom da sabedoria, que é o maior dos
dons do Espírito Santo, e a bem-aventurança da paz, a maior entre as
bem-aventuranças.
É inútil dizer
que Agostinho apesar de defender o primado da vida contemplativa, insiste sobre
a aceitação dos compromissos da vida ativa quando as necessidades da Igreja o
exigem, ou seja sobre as exigências do amor. Por isso com feliz intuição e
muita originalidade, ensina também através do seu exemplo a conciliar as
escolhas da vida monástica e do sacerdócio.
“O homem de Deus busque a alegrai do
silencio, pregue só conforme a necessidade...; gozamos dos bens interiores, nos
exteriores seja a necessidade e não a vontade a guiar-nos”[4].
“Ninguém mais do que eu amaria uma vida assim
segura e tranqüila: nada de melhor, nada de mais doce que escrutar o divino
tesouro longo do ruído do mundo; é algo de doce e bom. Pelo contrario, pregar,
corrigir, chamar atenção, edificar, atender ás necessidades de cada um é um
grande peso, uma grande fadiga. Quem na fugiria desta grande fadiga? Mas me
espanta o Evangelho”[5].
De verdade o
atemorizava o Evangelho, que o convidava a pascer o rebanho de Cristo, que era
uma tarefa de amor, mas um amor que o impedia a satisfazer como ele queria um
outro amor.
“Chamo Cristo como testemunho das minhas
palavras que preferiria muito mais trabalhar com as minhas mãos cada dia em
horas determinadas, como acontece nos mosteiros bem dirigidos, e ter as outras
horas livres para ler e rezar ou estudar a Escritura, em vez de sofrer o
tormento e a perplexidade dos questionamentos alhures... Mas somos membros da
Igreja e servos sobretudos dos membros mais fracos dela”[6].
Acesa rumo á contemplação
É cumprida e
cansativa, pois supõe as duras fadigas da purificação.
“Toda a nossa obra nessa vida consiste na
purificação do olho do coração com o objetivo de ver a Deus”[7].
Isso comporta aquela assídua obra acética que
serve não a mortificar mas sim a reordenar o amor.
“Ninguém
vos diz não amais. Nunca! Serieis preguiçosos, mortos, míseros se não amais.
Amais, mas estais atentos aquilo que amais”[8].
Arrumar o amor,
então, recolocando ordem e paz dentro de nós. Por isso são necessárias as obras
do ascetismo cristão, nas quais é preciso insistir, sobretudo nos primeiros
passos da vida espiritual. Sobretudo são necessárias aquelas obras que
Agostinho chama “as delicias” das almas consagradas:
“A
leitura- que quer dizer estudo, meditação, escuta da voz de Deus, dialogo com
Deus-, a oração, os salmos, os bons pensamentos, o compromisso com as obras de
bem, a espera da vida futura, a elevação do coração”[9].
Destas obras
nasce silencio, o precioso silencio
interior, que é por Agostinho -e não apenas para ele- a condição indispensável
para o dialogo com Deus e para a contemplação cheia de amor da beleza divina.
“A nossa alma precisa de solidão. Se a alma
estiver atenta, Deus se deixa ver. A fola é barulhenta: pra ver a Deus é
preciso o silencio”[10].
Por isso ele
pede a Deus este silencio:
“Liberta-me, o meu Deus –escreve na oração
que encerra o De Trindade- liberta-me da multidão de palavras da qual sofro no
interior da minha alma... de Fato, não cala o pensamento quanto cala a língua”[11].
Fruto deste
silencio, não vazio, mas sim repleto, é aquilo de recolher todas as potencias
do nosso espírito em Deus.
“O que fazemos quando nos esforçamos de sermos sábios se não recolher, por assim dizer, com o maior entusiasmo possível, toda a nossa alma naquilo que tocamos com a mente, e colocá-la ali, e fixá-la da maneira que não goze mais do seu bem privado (particular) com o qual se ligou as coisas que passam, mas despida-se de todos os afetos temporais e espaciais, agarre o Ser pois é uno e sempre o mesmo”[12].
A contemplação
Se a acesa e
longa e cansativa, pelo contrario a contemplação no seu maior degrau,é rápida e
fulgurante, aparecida á uma intuição momentânea.
“Uma visão que não se pode agüentar
longamente”[13].
Apesar da sua
rapidez ela é ao mesmo tempo: “conhecimento
e dileção do Ser eterno e imutável, Deus”. Um conhecimento experimental, ou
seja, conhecimento amoroso e cheio de luz. Na contemplação, assim como
Agostinho a descreve, tem dois elementos: o conhecimento e o amor; de fato
importa um “conhecer as coisas divinas”
e, ao mesmo tempo, “tocá-las” com a
ponta do coração, um alcançar nelas todas as próprias faculdades e o próprio
ser. É difícil expressar com palavras esta sublime experiência. Agostinho falou
que o senhor as vezes o introduzia num sentimento interior conhecido, que se
fosse crescido um pouco assim de ser pleno, esta vida não seria estada mais
nunca esta vida. Não podemos, porem identificar esta doutrina como uma visão
imediata de Deus. Agostinho o excluiu. A vida contemplativa é vivida aqui na
terra na fé, e só
“poucos
a vivem numa qualquer visão da verdade imutável, como num espelho, de forma
confusa, imperfeitamente”[14].
A recaída
Depois da rápida
experiência contemplativa que faz gostar, por um momento, algo que não é desta
vida, a volta ás ocupações corriqueiras, é percebido como uma descida, uma “recaída” rumo as coisas que, em
comparação com o bem gostado, não se amam mais mas se agüentam em vista
daquilo.
“Quando voltei entre os objetos comuns, tinha
comigo só uma lembrança amorosa e a saudade, por assim dizer, dos perfumes de
uma comida que não podia ainda saborear”[15].
A narração da
celebre êxtase de Ostia encerra com estas palavras:
“... E descemos ao barulho das nossas bocas,
aonde a palavra tem principio e fim”[16].
Outra vês
Agostinho escreve:
“Enfim recai sob os pesos tormentosos da
terra. As mesmas ocupações me reabsorvem, me seguram, e muito choro, mas muito
me\seguram, tanto é considerável o peso do costume”[17].
Os frutos
Em varias
ocasiões Agostinho releva os frutos preciosos que derivam da experiência
mística, apesar de ser breve e momentânea. Entre os primeiros frutos
encontramos a percepção da vaidade das coisas terrenas, as quais se
consideradas em si mesmas são admiráveis e belas, mas comparadas aos bens
eternos, são como se não fossem. Existem também os frutos da ordem intelectual,
aqueles que aumentam o olhar da mente e potenciam a ciência teológica.
“Veremos, também, as mudanças da natureza
corpórea que obedece á lei divina, e assim a mesma ressurreição, que alguns não
acreditam, a consideraremos certa como o aparecer do dia depois do por do sol.
Assim, também, não olharemos aqueles que menosprezam a Encarnação do Filho de
Deus e o seu nascimento de uma virgem e os outros milagres da historia da
salvação... O prazer que provamos na contemplação da verdade é tão grande, tão
puro, tão sincero, e oferece tanta certeza da verdade, que aquele que o prova
acha de não ter nunca sabido as coisas que antes acreditava de saber; e porque
a alma possa aderir integralmente á Verdade total, não teme mais a morte... que
antes temia”[18].
[1] Contra
Faustum 22, 52-56.
[2] Serm.
103, 4,5.
[3] Serm
179,5,6.
[4] Ps.
139,15.
[5] Serm.
339,4.
[6] De
op.mon.29,37; Ep.126,9.
[7] Serm 88,
5.
[8] Ps.
31,s.2,5.
[9] De bono
vid. 21,26.
[10] Com
João 17,11.
[11] De
Trin. 15,28,51.
[12] De
lib.arb. 2,16,41.
[13] Serm.
52,16.
[14] De
cons.Evang.1,5,8; 1 Cor 13,12.
[15]
Confess. 7,17,23.
[16] Ivi
9,10,24.
[17] Ivi
10,40,65.
[18] De
quant.an. 33,76.
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