domingo, 23 de julho de 2023

O CUME DA VIDA ESPIRITUAL EM SANTO AGOSTINHO

 



 Paolo Cugini

 

 

O primado da vida contemplativa

 

Em muitas obras Agostinho fala deste assunto. Comentando texto da Bíblia, compara personagens bíblicos como Lia e Raquel, Marta e Maria, Pedro e João.

 

Raquel representa a esperança da contemplação eterna de Deus, esperança que já contem em si uma inteligência certa da verdade... Ninguém, então, uma vez liberado pela graça da remissão dos seus pecados, se dirige as obras da justiça se não para alcançar á quiete da contemplação da Palavra, que nos desvende o Principio, ou seja, Deus: amamos então o serviço por amor de Raquel, não de Lia. De fato, quem é que poderia amar o peso deste serviço e as inquietações que ele comporta, quem poderia amar aquela vida por si mesma? Por isso, muitos, de aguçada inteligência, almejam ao estudo e, apesar de ser em condições de governar, evitam toda atividade por causa das suas preocupações que provocam confusão, e se dedicam com toda a alma á busca da verdade[1]”.

 

“As obras de misericórdia nascem de uma necessidade imediata, a doçura da contemplação nasce do amor... Você poderia ser aliviado do peso da necessidade, enquanto é eterna a doçura da verdade. À Maria não será tirado aquilo que escolheu; não só isso, mas lhe será aumentado nesta vida e rendido perfeito na outra, nunca tirado”[2].

 

“De que se deleitava Maria? De que ela se alimentava, o que bebia o seu ávido coração? A justiça, a verdade. Se deleita a verdade: a almejava. Faminta se alimentava dela; sedenta a bebia e a verdade não diminuía... O verdadeiro gozo do coração humano é na luz da verdade, na superabundância da sabedoria: não existe prazer que possa comparar-se de alguma forma a este gozo do coração humano, para que o coração seja justo, santo[3].

 

O discurso agostiniano do primado á contemplação se reduz:

a. ao primado do amor da verdade, que é o primado do amor de Deus vivo e verdadeiro;

b. á eternidade da vida contemplativa a diferença daquela ativa, que dura só nesta vida, aonde existem os míseros que precisam da misericórdia;

c. á altura dos dons que a acompanham: é de fato ligada ao dom da sabedoria, que é o maior dos dons do Espírito Santo, e a bem-aventurança da paz, a maior entre as bem-aventuranças.

 

É inútil dizer que Agostinho apesar de defender o primado da vida contemplativa, insiste sobre a aceitação dos compromissos da vida ativa quando as necessidades da Igreja o exigem, ou seja sobre as exigências do amor. Por isso com feliz intuição e muita originalidade, ensina também através do seu exemplo a conciliar as escolhas da vida monástica e do sacerdócio.

 

O homem de Deus busque a alegrai do silencio, pregue só conforme a necessidade...; gozamos dos bens interiores, nos exteriores seja a necessidade e não a vontade a guiar-nos[4].

 

Ninguém mais do que eu amaria uma vida assim segura e tranqüila: nada de melhor, nada de mais doce que escrutar o divino tesouro longo do ruído do mundo; é algo de doce e bom. Pelo contrario, pregar, corrigir, chamar atenção, edificar, atender ás necessidades de cada um é um grande peso, uma grande fadiga. Quem na fugiria desta grande fadiga? Mas me espanta o Evangelho[5].

 

De verdade o atemorizava o Evangelho, que o convidava a pascer o rebanho de Cristo, que era uma tarefa de amor, mas um amor que o impedia a satisfazer como ele queria um outro amor.

 

Chamo Cristo como testemunho das minhas palavras que preferiria muito mais trabalhar com as minhas mãos cada dia em horas determinadas, como acontece nos mosteiros bem dirigidos, e ter as outras horas livres para ler e rezar ou estudar a Escritura, em vez de sofrer o tormento e a perplexidade dos questionamentos alhures... Mas somos membros da Igreja e servos sobretudos dos membros mais fracos dela[6].

 

 

Acesa rumo á contemplação

 

É cumprida e cansativa, pois supõe as duras fadigas da purificação.

 

Toda a nossa obra nessa vida consiste na purificação do olho do coração com o objetivo de ver a Deus[7].

 

 Isso comporta aquela assídua obra acética que serve não a mortificar mas sim a reordenar o amor.

 

 “Ninguém vos diz não amais. Nunca! Serieis preguiçosos, mortos, míseros se não amais. Amais, mas estais atentos aquilo que amais[8].

 

Arrumar o amor, então, recolocando ordem e paz dentro de nós. Por isso são necessárias as obras do ascetismo cristão, nas quais é preciso insistir, sobretudo nos primeiros passos da vida espiritual. Sobretudo são necessárias aquelas obras que Agostinho chama “as delicias” das almas consagradas:

 

 “A leitura- que quer dizer estudo, meditação, escuta da voz de Deus, dialogo com Deus-, a oração, os salmos, os bons pensamentos, o compromisso com as obras de bem, a espera da vida futura, a elevação do coração[9].

 

Destas obras nasce  silencio, o precioso silencio interior, que é por Agostinho -e não apenas para ele- a condição indispensável para o dialogo com Deus e para a contemplação cheia de amor da beleza divina.

 

A nossa alma precisa de solidão. Se a alma estiver atenta, Deus se deixa ver. A fola é barulhenta: pra ver a Deus é preciso o silencio”[10].

 

Por isso ele pede a Deus este silencio:

 

Liberta-me, o meu Deus –escreve na oração que encerra o De Trindade- liberta-me da multidão de palavras da qual sofro no interior da minha alma... de Fato, não cala o pensamento quanto cala a língua[11].

 

Fruto deste silencio, não vazio, mas sim repleto, é aquilo de recolher todas as potencias do nosso espírito em Deus.

 

O que fazemos quando nos esforçamos de sermos sábios se não recolher, por assim dizer, com o maior entusiasmo possível, toda a nossa alma naquilo que tocamos com a mente, e colocá-la ali, e fixá-la da maneira que não goze mais do seu bem privado (particular) com o qual se ligou as coisas que passam, mas despida-se de todos os afetos temporais e espaciais, agarre o Ser pois é uno e sempre o mesmo[12].

 

A contemplação

Se a acesa e longa e cansativa, pelo contrario a contemplação no seu maior degrau,é rápida e fulgurante, aparecida á uma intuição momentânea.

 

Uma visão que não se pode agüentar longamente[13].

 

Apesar da sua rapidez ela é ao mesmo tempo: “conhecimento e dileção do Ser eterno e imutável, Deus”. Um conhecimento experimental, ou seja, conhecimento amoroso e cheio de luz. Na contemplação, assim como Agostinho a descreve, tem dois elementos: o conhecimento e o amor; de fato importa um “conhecer as coisas divinas” e, ao mesmo tempo, “tocá-las” com a ponta do coração, um alcançar nelas todas as próprias faculdades e o próprio ser. É difícil expressar com palavras esta sublime experiência. Agostinho falou que o senhor as vezes o introduzia num sentimento interior conhecido, que se fosse crescido um pouco assim de ser pleno, esta vida não seria estada mais nunca esta vida. Não podemos, porem identificar esta doutrina como uma visão imediata de Deus. Agostinho o excluiu. A vida contemplativa é vivida aqui na terra  na fé, e só

 

 “poucos a vivem numa qualquer visão da verdade imutável, como num espelho, de forma confusa, imperfeitamente[14].

 

 

A recaída

 

Depois da rápida experiência contemplativa que faz gostar, por um momento, algo que não é desta vida, a volta ás ocupações corriqueiras, é percebido como uma descida, uma “recaída” rumo as coisas que, em comparação com o bem gostado, não se amam mais mas se agüentam em vista daquilo.

 

Quando voltei entre os objetos comuns, tinha comigo só uma lembrança amorosa e a saudade, por assim dizer, dos perfumes de uma comida que não podia ainda saborear[15].

 

A narração da celebre êxtase de Ostia encerra com estas palavras:

 

“... E descemos ao barulho das nossas bocas, aonde a palavra tem principio e fim[16].

 

Outra vês Agostinho escreve:

 

Enfim recai sob os pesos tormentosos da terra. As mesmas ocupações me reabsorvem, me seguram, e muito choro, mas muito me\seguram, tanto é considerável o peso do costume[17].

 

 

Os frutos

 

Em varias ocasiões Agostinho releva os frutos preciosos que derivam da experiência mística, apesar de ser breve e momentânea. Entre os primeiros frutos encontramos a percepção da vaidade das coisas terrenas, as quais se consideradas em si mesmas são admiráveis e belas, mas comparadas aos bens eternos, são como se não fossem. Existem também os frutos da ordem intelectual, aqueles que aumentam o olhar da mente e potenciam a ciência teológica.

 

Veremos, também, as mudanças da natureza corpórea que obedece á lei divina, e assim a mesma ressurreição, que alguns não acreditam, a consideraremos certa como o aparecer do dia depois do por do sol. Assim, também, não olharemos aqueles que menosprezam a Encarnação do Filho de Deus e o seu nascimento de uma virgem e os outros milagres da historia da salvação... O prazer que provamos na contemplação da verdade é tão grande, tão puro, tão sincero, e oferece tanta certeza da verdade, que aquele que o prova acha de não ter nunca sabido as coisas que antes acreditava de saber; e porque a alma possa aderir integralmente á Verdade total, não teme mais a morte... que antes temia[18].

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                         

 

 

 

 

 



[1] Contra Faustum 22, 52-56.

[2] Serm. 103, 4,5.

[3] Serm 179,5,6.

[4] Ps. 139,15.

[5] Serm. 339,4.

[6] De op.mon.29,37; Ep.126,9.

[7] Serm 88, 5.

[8] Ps. 31,s.2,5.

[9] De bono vid. 21,26.

[10] Com João 17,11.

[11] De Trin. 15,28,51.

[12] De lib.arb. 2,16,41.

[13] Serm. 52,16.

[14] De cons.Evang.1,5,8; 1 Cor 13,12.

[15] Confess. 7,17,23.

[16] Ivi 9,10,24.

[17] Ivi 10,40,65.

[18] De quant.an. 33,76.

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