São Paulo, Paulus, 2007
Digitação: Jaciara Souza
Pereira
Sintese: Paolo Cugini
I. A BEATITUDE
da
filosofia, sempre é confundida, por ele, com a beatitude. O que ele procura é
um bem cuja posse satisfaz todo o desejo e, por conseqüência, confere a paz.
O
problema da beatitude, portanto, consiste em saber o que o homem desejar para
ser feliz como pode adquiri-lo.([6 De beata vita, II, 10; t. 32, col. 164-165.
–Sobre a provável dependência deste tratado em relação ao Hortensius de Cícero,
ver as considerações de P. ALFARIC, L´ évolution intellecttuelle de Saint Augustin,
Paris, 1918, p. 429-432]). (p. -19-)
A
posse da verdade absoluta é a condição necessária da beatitude. (p. -20-)
Eis
o que é possuir a sabedoria: apoderar-se de Deus pelo pensamento, isto é, gozar
dele. ([De beata vita, IV, 34; t. 32, col. 978.])
Resulta
daí que, fora dessa posse de Deus, só existe a miséria para o homem. Viver bem é, precisamente, esforçar-se para
possuí-lo. Da fonte da verdade brota, por assim dizer, sem cessar, em nossa direção,
uma espécie de apelo que nos rememora a lembrança de Deus, convida-nos a
buscá-lo e nos faz sequiosos dele. É dessa verdade, ou seja, de Deus, que
retiramos todas as nossas verdades, ainda que não ousemos, nem poderíamos,
contemplá-la na sua essência. (p. -23-)
Há
no homem um desejo sensível que também deve se voltar ao bem soberano
submetendo-se á ordem da razão e permitindo-se, por isso mesmo, contemplá-lo
melhor. ([ ²4 é nesse sentido que Agostinho interpreta Platão e é sobretudo por
ter conhecido essa verdade que o elogia, De civitate Dei, VIII,
8; t. 41, col. 233. Ademias observamos o desvelo que ele manifesta ao
apresentar a apreensão da Verdade como fruição ao mesmo tempo que coloca a
questão da verdade enquanto beatificante e, por conseqüência, a beatitude: “Num
aliam putas esse sapientiam nisi
veritatem, in qua cernitur et tenetur summum bonum?” De lib. Arbit., II,8,26; t.32,col. 1254.-Cf.: “Ecce tibi
est ipsa veritas: amplectere illam si potes, et fruere illa, et delectare in
Domino, et dabit tibi petitiones cordis tui ;... et nos in amplexu
ueritates beatos esse dubitabimus ?... et nos negabimus beatos esse, cum
irrigamur pascimurque veritate ?... ’’ De lib. Arbitrio, II,
13,35 ; t. 32 col. 1260.- Imo vero quiniam in veritate cognoscitur et
tenetur summum bonum eaque veritas sapientia est, cernamus in ea, teneamusque
summum bonum, eoque perfruamur. Beatus est quippe qui fruitur summum, bono’’. Op.
Cit., 36, col. 1260. Estas são evidentemente apenas metáforas ; não se deve pensá-las em seu sentido
material ; contudo, elas exprimem esse caráter de posse da verdade como
bem, no qual santo Agostinho vê o elemento formal da beatitude. ]) (p. -25 e
-26-)
III A LIBERDADE CRISTÃ
O
papel da graça é concebido somente em função dos males para os quais ela é o
remédio. Primeiro, há uma insuficiência radical; depois, uma desordem
possibilitada por essa insuficiência; em resumo, há o mal.
1. O mal e o
livre-arbítrio
O
mal só pode ser a corrupção de uma das perfeições na natureza que se as possui.
A natureza má é aquela em que medida, foram ou ordem estão correspondidas, e
ela é má somente na exata proporção do grau de sua corrupção. Não corrompida,
essa natureza seria toda ordem, forma e medida, quer dizer, boa; mesmo
corrompida, ela permanece boa enquanto.
([5 De natura boni, IV; t. 42, c. 553 e
VI, c. 553-554.]) Essa relação do mal com o bem num sujeito é exprimida ao se dizer que o mal é uma privação. Com efeito, ele é a privação
de um bem que um sujeito deveria possuir, uma falta de ser o que ele deveria
ser e, por conseguinte, um puro nada. ([6
“... quia non noveram malum non esse nisi privationem boni esque ad quod omnino
non est”. Conf., III, 7,12; ed. Labr., t. I. P. 54. “Quid est autem aliud quod
malum dicitur, nisi privatio boni?”. Enchiridion, XI;
t. 40, c. 236.]) (p. -273-274-)
Sendo
nada por definição, o mal sequer pode ser concebido fora de um bem. Para que
haja um mal, é necessário que haja privação; portanto, é necessário que haja
uma coisa privada. Ora. Enquanto tal, essa coisa é boa e somente enquanto
privada é má. O que não é não tem defeitos. Assim, cada vez que falamos do mal,
supomos implicitamente a presença de um bem que, não sendo tudo que deveria
ser, é, por isso, mau. O mal não é somente uma privação, é uma privação que reside
num bem como em seu sujeito. ([7 “Natura humana, etsi mala est, quia vitiata
est, non tamen malum est, quia natura est. Nula enim natura, in quantum natura
est, malum est, sed prorsus bonum, sine quo Bono ullum esse non potest malum”.
Op. Imperf. Cont. Julianum, III, 206; t.
45, c. 1334. Por analogia, o erro é somente uma ausência de ser num pensamento
que concebe as coisas diferentemente do que elas são. Logo, jamais há falsidade
nas coisas; o verdadeiro é; o falso não é. Soliloq., II, 3,3; t. 32, c.
886-887. II, 4,5; col. 887. II, 5,8; c.
889. Conf., VII, 1521; Ed. Labr., t.I, p. 165.]) (p. -274-)
Se
essas não são o que deveriam ser num ato determinado, entao, ele se ocorre
imperfeito, portanto mau. Mas, aqui também, a malícia do ato está somente nisso
de que ele se encontra privado; se ele fosse nada, não estaria privado de nada.
Uma vontade má é, portanto, uma vontade que, enquanto tal, é boa, mas á qual falta ser planejamento o
que deveria ser; aqui, não mais do que em outros lugares, o mal não pode
existir fora do bem ([8 “Poro mala voluntas, quamvis non sit secundum naturam,
sed contra naturam, quia vitium est, tamem eius naturae est, cuius est vitium,
quod nisi in natura non potest esse; sed in ea, quam creavit ex nihilo...” De
civitate Dei, XIV, 11,1; t. 41,c. 418, “ut... bona temem sine malis esse
possint, sicut Deus ipse verus et summus ...” mala vero sine bonis esse non
possint, quoniam nature, in quibus sunt, in quantum naturae sunt, utique bonae
sunt” . IBID., c. 418. De lib. Arb., II, 17, 46; t. 32, c. 1265- 1266]) (p.
-274-)
Difícil
problema: se a criação ex nihilo implicasse necessariamente o mal, não seria
melhor nada criar? Para discutir essa última questão, é bom distinguir entre o
mal natural e o mal moral. Então, ela se subdivide em duas outras: por que
criar natureza corruptíveis? Por criar vontades falíveis. (p. -274- 274-)
Por
mínima que seja a perfeição de cada coisa, isso se deve somente ao que ele tem
de bom e ao que, segundo Deus, ela deve ter. foi ele também que dispôs todas as
coisas de maneira que as fracas cedam lugar ás fortes, as menos fortes ás mais
fortes e as coisas terrestres aos corpos celestes, que são superiores a elas.
Enfim, ao sucederem-se umas ás outras, na medida em que desaparecem e se
recolocam, as coisas engendram uma beleza de um gênero distinto do que se
oferece aos nossos olhos no espaço. Trata-se, por assim dizer, de uma beleza
que ocorre no tempo. Aquilo que morre ou cessa de ser o que era não enfeia nem
desonra a ordem ou equilíbrio do universo. (p. -275-)
Quanto
ao que concerne o mal moral, o problema parece mais difícil de ser resolvido.
Se as ações dos homens não são sempre o que deveriam ser, sua vontade é a
responsável. (p. -276-)
A
questão é, portanto, saber como um Deus perfeito pôde doar-nos o
livre-arbítrio, ou seja, uma vontade capaz de fazer o mal. (p. -276-)
O
uso do livre-arbítrio está á disposição do próprio livre-arbítrio. Fonte de
toda ciência, a razão conhece a si mesma; conservadora de todas as lembranças,
a memória lembra-se de si mesma; mestra de todas as coisas de que dispõe
livremente, a vontade livre é igualmente mestra de si mesma. ([¹² “Noli ergo
mirari si, caeteris per liberam voluntatem utimur, etiam ipsa, libera voluntate
per eam ipsam UTI nos posse; ut quodammodo se ipsa utatur voluntas quae utitur
caeteris, sicut seipsam conoscit ratio quae cognoscit et caetera.” De lib.
Arb., II, 19, 51; t. 32, c. 1268.]) Logo, dela, e só depende o mau uso do bem
que ela é. (p. -277-)
É
assim, diríamos, mas como é possível que a vontade tenha optado pelo pecado?(p.
-278-)
Ora,
se esse movimento não vem de Deus, de onde vem? A única resposta sincera que
podemos dar a essa questão é que nada sabemos; não se trata de ignorarmos onde
se encontra o verdadeiro responsável, mas de não podermos conhecer o que não é
nada. (p. -278-)
Todo
bem vem de Deus; toda natureza é um certo bem; logo, toda natureza vem de Deus.
Essa conclusão absoluta se aplica tanto ás coisas sensíveis como ás coisas
inteligíveis. Vemos um ser em que se encontram medida, ordem e número, não
hesitamos em reconhecer que Deus é seu autor. Despojamos, ao contrário, desse
ser o que ele tem de medida, de ordem e de número; se os retiramos
completamente, não restará absolutamente nada. Enquanto subsiste um rudimento
de forma, por mais grosseira e imperfeito que possa ser, permanece um começo de
bem que, como um tipo de matéria, poderá progressivamente ser conduzida á sua
perfeição. Assim, um esboço de ser é um certo bem, a supressão total bem
equivale por definição a uma supressão total de ser. A partir disso, então,
torna-se contraditório imaginar uma causa positiva, tal como Deus, na origem do
movimento de aversão pelo qual a vontade livre se desvia dele. Sem dúvida, Deus
criou a vontade mestra de si mesma e capaz de se apegar ao soberano bem ou de
se desviar deste; mas se a vontade assim criada poderia se desligar de Deus,
ela não deveria; sua queda, uma vez que ocorreu, não foi queda natural e fatal
de uma pedra que cai, mas a queda livre de uma vontade que se abandona. ([¹5
“De lib. Arb., III, 1,2; t. 32, c. 1271. De div. Quaest. 83, qu. I-IV; t. 40.
C. 11-12.]) Simples defeito, falta de ordem e, por consequência, falta de ser,
o movimento da queda original não tem outra origem a não ser o nada, ou seja, o
não-ser. (p. -278-279)
Preenchido
por seus dons, o homem tinha somente que perseverar para continuar a gozar
deles, e nada lhe era mais fácil que a
presença. Embora Agostinho não diferencie expressamente o que hoje se chama de
graça santificante do que nomeamos hoje de graça atual, ele atribui, sem
nenhuma duvida possível, esta última ao homem tal qual Deus o criou. Adão
gozava, para preservar no bem, uma graça tal e qual a que gozamos para nos
liberar do mal. Sem qualquer luta interior, sem tentações internas e sem
perturbação, ele vivia em paz no lugar de sua beatitude. ([²9 De correpttione
et gratia, XI, 29; t. 44, col. 933-934.]) Portanto, o homem preferiu a si mesmo
e, por isso, se desviou de Deus, essa queda deve ser considerada em razão de
uma simples fraqueza do livre-arbítrio humano; Deus lhe dera tudo o que era
necessário para levá-lo a evitar a queda.(p. -283- 284-)
Não
é na dificuldade do preceito nem em alguma insubordinação do corpo humano que
se encontra a origem do mal, mas somente na vontade do homem e especialmente em
seu orgulho. Por sua vez, o que é o orgulho senão o desejo de uma posição de
uma independência preservada? Querer elevar-se a uma dignidade que não é a sua:
por parte do homem, foi essa confiança em si mesmo que lhe fez desertar o
principio ao qual ele devia se apegar para se e, em certo sentido, para ser
para si mesmo seu próprio princípio. (p. -284-)
O
orgulho busca reportar a outrem o crime do qual é responsável; a transgressão
voluntária da ordem acusa a si mesma no momento preciso em que ela tenta se desculpar.
([³³ De civ. Dei, XIV,14;t. 41, c.422.]) (p. -285-)
Tal
é a razão pela qual Agostinho não pára de afirmar que o erro original foi um
efeito do livre-arbítrio do homem e, portanto, deve ser imputado primeiramente
á sua vontade. (p. -285-)
Ao
nos desviarmos voluntariamente de Deus, ou seja, recusando querê-lo e amá-lo, todos nós optamos em Adão mais pela
avara e orgulhosa posse das criaturas do que pela submissão ao Bem universal,
subvertemos a ordem divina ao preferir a obra ao Obreiro. Logo, eis o que é
feito, ou melhor, defeito, pois o pecado nada produziu a não ser desordem; ([³5
“ Bona igitur voluntas opus est Dei: cum ae quippe ab illo factus est homo.
Mala vero voluntas prima, quoniam omnia mala opera praecessit in homine,
defectus potius fuit quidam ab opere Dei ad sua opera, quam opus ullum”.])
então, é necessário considerar sua conseqüência e seu remédio. (p.- 286-)
As
duas conseqüências do erro original, ao qual Agostinho sempre associa ao
mencioná-las, são a concupisscência a ignorância. ([ ³6 Os intérpretes de
Agostinho discutem se a concupiscência é o pecado original ou somente uma
acusação (reatus) desse pecado. O mesmo sentido da palavra “reatus” – acusação,
e culpabilidade, ou somente culpabilidade – está implicado na discussão. É PORTALIÉ
art. Cit., col. 2395, 3ª questão) sustenta que Agostinho não identificou o
pecado original com a primeira concupiscência, que é somente o efeito dele. J.-
B. KORS (op. Cit., p. 16, nota 7) declara não poder compreender como É. Portalié pôde dizer algo parecido: “o santo
doutor se exprime muito claramente sem sentido contrário”. Não obstante, é É.
Portalié que tem a razão. Há para isso uma razão de principio: a concupiscência
é uma desordem; se Deus criou o homem sujeito á concupiscência, não se vê diferença
essencial entre o estado de natureza desejado por Deus e o estado de natureza
decaído. Por outro lado, há textos formais que J.-B. kors deveria ter discutido
antes de condenar a interpretação contrária. Agostinho diz explicitamente sobre
Adão antes da queda: “ubi praesertim nondum volutati cupitidas resistebat, quod
de poema transgressionais postea subsecutum est...” (ver p. 284, nota 30).
Portanto, a concupiscência é um desregulamento consecutivo ao orgulho da
vontade, que, este, é o pecado original em sua essência. Todos os textos
alegados por J.-B.KORS, p. 16, explicam-se pelo fato de que, no estado de
natureza caída, o pecado original não mais se distingui da punição que lhe
tange: a concupiscência e a ignorância. É neste sentido que “peccatum originale
sic peccatum est, ut ipsum sit et poena peccati”, como resulta do contexto
(IBID., nota3]). (p. -286-)
O
que sobra da natureza instituída por Deus depois de uma tal desordem? O mal,
que tinha sido em Adão apenas um erro, propagando-se até nós, tornou-se o mal
de uma natureza. Uma natureza viciada e viciosa a partir de então, substituiu
uma natureza boa. ([³9 De div. Quaest. Ad. Simplic., I,1,11;t.40, col. 107])
(p. -287-)
A
lei, portanto, não veio nem para introduzir o pecado no mundo, pois ele já estava
aí, nem para extirpá-lo, pois somente a graça é capaz disso. Ela simplesmente
veio para mostrar e dar ao homem, com o sentimento de sua culpa, o da
necessidade da graça. O pecado, que permanecia secreto antes da proibição,
quando se torna prevariacação brilha aos olhos. ([5¹ Op. Cit. I,1,2;col.
103.I,1,6,col. 105]) Mas, longe de conhecer a Lei a ser seguida, muito longe de
suprimir a concupiscência, pode-se dizer que a lei agrava a concupiscência ao fazer disso uma violação das prescrições
divinas.([OP. CIT., I, 1,3; col. 103. I, 1, 105, col.108]) Aquele que só vive
sob o reinado da lei permanece escravo
da concupiscência engendrada pelo pecado; ele sabe que ela o domina; sabe que
lhe é interditada; sabe também que ela lhe é justamente interditada e, no
entanto, cede a ela. ([5¹ De diversis quaets. Ad Simplic., I. 1,7-14;t. 40,
col. 105-108]) Somente aqueles que são sustentados com a eficácia da graça
podem mais do que conhecer a lei: realizá-la.
Para
o homem, portanto, a aquisição da graça é uma condição necessária para a
salvação. (p. -291-292-)
Se
a graça precede as obras e seus méritos, isso equivale a dizer que ela não
poderia resultar em nós de uma aquisição, segue-se que ela é o fruto de uma eleição.
(p. -292)
A
graça agostiniana, pode, portanto, ser irresistível sem ser constrangedora,
pois ou ela se adapta á livre escolha daqueles que ela decidiu salvar, ou,
transformando internamente a vontade á qual se aplica, a graça faz a vontade se
deleitar livremente com isso que seria repugnante sem a graça. Logo, a
predestinação divina não é senão a previsão infalível de suas obras futuras,
pela qual Deus prepara as cirncunstâncias e as graças salutares aos eleitos.
([6¹ “Haec est praedestinatio sancttorum, nihil aliud: praescientia scilicet,
et praeparatio beneficiorum Dei, quibus certissime liberantur, quicumque
liberantur. Caeteri autem ubi nisi in massa
perditionis justo divino judicio relinquuntur? Ubi Tyrii relicti et Sidonii,
qui credere potuernunt, si mira illa Christi signa vidissent? Sed quoniam ut
crederent, non erat eis datum, etiam unde crederent negatum. Ex quo apparet
habere quosdam in ipso ingenio divinum naturaliter munus intellegentiae, quo
moveantur ad fidem, si congrua suis mentibus, vel audiant verba, vel signa
conspiciant: et temen si congrua suis judicio, a perditionis nis massa non sunt
gratiae praedestinatione discreti, nec ipsa eis adhibentur vel dicta divina vel
facta, per quae possent credere, si audirent utique talia vel viderent.” De
dono perseverantiae, XIV, 35; t.45, col. 1014. Cf.:
“Ista igitur sua dona quibuscumque Deus donat, procul dublio se donaturum esse
praescivit, et in sua praescientia praeparavit. Quos ergo praedestinavit, ipsos
et vocavit vocatione illa, quam me saepe commemorae non piget...Namque in sua
quae falli mutarique non potest praescientia, opera sua futura disponere, id
omnimo, nec aluid quidquam est paedestinare”. Op. Cit., XVII, 41; t. 45, col.
1018-1019. No tocante ao modo de ação da graça sobre a vontade, ver § III, A graça
e a liberdade”. ]) (p. -295-296-)
3. A graça e a liberdade
Para
santo Agostinho, querer é usar o livre-arbítrio, cuja definição sempre se
confunde com a de vontade. ([68 Esse ponto foi muito bem marcado por J. MARTIN,
S. August, 2ª ed., p. 176-179, onde encontramos todas as referências
necessárias.]) p. -298-)
O
que Agostinho se pergunta não é se amar Deus está ao alcance de nosso
livre-arbítrio, mas se está em nosso poder. Ora, o poder de fazer o que
escolhemos fazer é mais do que o livre-arbítrio, é a liberdade. Não há problema
da graça e do livre-arbítrio em santo Agostinho, mas um problema da graça e da
liberdade. Em que termos ele se coloca? (p. -299-)
A
que conclusão a doutrina de Pelágio conduzia? Áquela em que a graça não tem que
intervir antes do pecado para preveni-lo mas somente depois, para cumpri-la. A que conclusão, ao contrário,
conduz a experiência de Agostinho? A que, durante longos anos, ele via a lei
sem poder cumpri-la. E não apenas viu a lei, mas viu a lei cumprida sob seus
olhos por outros, enquanto, com toda sua alma desejando imitá-lo, foi
necessário confessar-se incapaz. Somente são Paulo, através de sua luminosa
doutrina do pecado e da graça, soube dissipar essa contradição interna na qual
Agostinho se debatia em vão por anos. Posto que a vontade desejada o bem, então
ela é por essência destinada a realizá-lo; não obstante, posto que ela é
incapaz de realizar o bem que ela deseja, então há nela algo corrompido;
nomeemos como causa dessa corrupção o pecado, e prescrevemos o remédio para
ele, a Redenção do homem por Deus, desenvolvida com a graça de Jesus Cristo. A
economia da vida moral, impenetrável para os filósofos, a partir de então
torna-se transparente, porque essa doutrina é única que leva em conta todos os
fatos e principalmente este: por mais tempo que uma vontade contar apenas
consigo mesma para fazer o bem, ela permanece imponente. A solução do enigma,
aqui como alhures, é que é necessário receber o que se quer ter quando se é
incapaz de dá-lo a si mesmo. Graças ao sacrifício do Cristo, a partir de então,
há um socorro divino sobrenatural pelo qual a lei se torna realizável pela
vontade humana, e da qual a essência mesma do pelagianismo é desconhecer a
necessidade. (p. -300-301-)
Á
tese de Pelágio, Agostinho oporá constantemente a seguinte: “Nem o conhecimento
da lei divina, nem a natureza, nem a única remissão dos pecados constituem a
graça, mas ela nos é dada por Jesus
Cristo nosso Senhor, a fim de que, por ela, a lei seja cumprida, a natureza
resgatada e o pecado vencido”. (p.-302-)
A
diferença entre o homem que tem a graça e aquele que não tem não está na posse
ou não posse de seu livre-arbítrio, mas em sua eficiência. Aqueles que não se
aplicar em querer o bem ou, se eles querem, em serem incapazes de realizá-lo;
ao contrário, aqueles que têm a graça querem fazer o bem e obtêm sucesso nisso.
([ 75 “Numquid non liberum arbitrium. Timothei est exhortatus Apostilus dicens:
Contine te ipsu (1 Tm 5,22)? Et in hac re potestatem voluntatis ostendit, ubi
ait: non habens necessitatem, postestatem autem habens suae voluntatis, ut
servet virginem suam (1 Cor 7,37). Et
tamem: non omnes capiunt verbum hoc sed quibus datum set. Quibus enim non est
datum aut nolunt aut non implent quod volunt arbt., IV, 7 ; t. 44, c. 886.
‘’Valle enim inquit (Apostolus), adjacet mihi, perficere autem bonum non
invenio. His verbis videtur non rect intelligentibus velut auferre liberum
arbitrium. Sed quomodo aufert, cum dicat : Valle adiacet mihi ? certe
enim ipsum velle in potestate est quoniam adjacet nobis : sed quod perficerre
bonum non est in potestate, ad meritum pertinet originalis paccati’’. De div. Quaest. Ad Simplic., I 1, 11 ; t. 40, col.
107. Cf. Ibid., I, 1, 14 ; col. 108.])
Assim, a graça pode ser definida: o que confere á vontade seja a força para
querer o bem, seja para realizá-lo. Ora, esta força dupla é a própria definição
da liberdade. (p. -303-)
A
graça de Deus não nos é dada segundo nossos méritos, já que não apenas não
vemos boas ações ás quais possa ser atribuída, mas a vemos também a cada dia
atribuída a ações manifestante mas. Ao contrário, a partir do momento em que a
graça é dada, os méritos começam; se ela nos falta, nosso livre-arbítrio,
sempre intacto, não faz senão ir de queda em queda. ([76 De grat. Et lib., V,
11-12; t. 44, c. 888-889; VI, 13; col. 889.]) Tal tese deve ser admitida em seu
sentido mais absoluto. (p. -304-)
Não
podemos oferecer a Deus o que ele exige a não ser que ele o tenha previamente
dada. (p. -304-)
Sob
essa estrita sujeição á graça, o que se torna a vontade humana? A resposta tem
poucas palavras: ela conserva seu livre-arbítrio, ela alcança a liberdade.
Ela
conserva a princípio seu livre-arbítrio, pois, mesmo ao admitir que a graça dá
tudo ao livre-arbítrio, ainda é necessário que ele esteja presente para
receber. (p. -305-)
Quando
Deus dá á vontade o querer e a ajuda a fazer o que ele comanda, é, sem embargo,
ela que quer e faz o que ele comanda: adjuvat ut faciat cui jubet. ([79 De
grat. Et lib. Arb., XV, 31; t. 44, c. 899.]) Deus vem em ajuda do homem que
age, não para dispensá-lo de agir, mas para permiti-lo; assim, é necessário
que, mesmo sob a pressão vitoriosa da graça, o livre-arbítrio esteja sempre
presente. ([8o “...gratiam Dei... qua voluntas humana non tollitur, sed ex mala
muratur in bonam et, cum bona fuerit, adjuvatur;...” De grat. Et lib. Arb., XX,
41; t. 44, c. 905. “Neque enim voluntatis arbitrium ideo tollitur, qua
juvatiur; sed ideo juvatur, quia non tollitur”. Epist. 157, I, 10; t. 33, c.
677.])
Contudo,
ele permanece livre, se for verdade que Deus prepara sempre a graça, que é
necessária para que a vontade daqueles que Deus quer salvar dê seu
consentimento a ele? Deve-se responder pela afirmativa, em nome da psicologia
da vontade tal como a descrevemos previamente. Por essência ela é amor ou, como
diz também Agostinho, delectação. ([ 8¹ Ver anteriormente, p. 257, nota 29.])
(p. -305-)
Qual
é o efeito produzido pela graça sobre a liberdade? Ela substitui na liberdade
deleitação do mal pela do bem. Ao contrário, a lei, irrealizável pela vontade
do homem decaído, torna-se ao contrário objeto de amor e de deleite para o
homem em estado de graça. (p. -306-)
Ele
ouve o chamado da graça; ela lhe aparece como um bem em certa medida desejável,
mas a concupiscência lhe traz mais deleite e, como a deleitação é tão-somente o
movimento mesmo da vontade para seu objeto, o homem em que a paixão domina
prefere inevitavelmente o pecado á graça. Nesse sentido, é rigorosamente
verdadeiro dizer que nós sempre faremos mecessariamente o que nos deleitar
mais: quod enim amplius nos delectat, secundum id operemur necesse est. ([8³ “
Regnant autm ista bona (scil. Fructus Spiritus), si tantum delectant, ut ipsa
teneant animum in tentationibus, ne in peccati consesionem ruat. Quod enim
amplius nos delectat, secunum id operemur necesse est: ut verbi gratia occurrit
forma speciosa feminae et movet ad delectationem fornicationis: sed si plus
delectat pilchritudo illa intima et sincera species castitatis, per gratiam
quae est in fide Christi, secundum hanc vivimus et secundum hanc operamur”.
Epist ad Gal., 49; t. 35. Col. 2140-2141. “manifestum est certe secundum id nos
vivere quod sectati fuerimus; sectabimur autem, quod dilexrimus: si tantumdem
utrumque diligitur nihil oerum sectabimur; seda ut timore aut inviti trahemur
in alterutram partem”. IBId.,54, col. 2142]) Mas seria um erro crer que a
deleitação prevalente abolisse o livre-arbítrio, de que ela é apenas a
manifestação. A deleitação do pecado que me tenta não é algo que se acrescenta
a minha vontade para arrebatá-la para baixo, é espontaneidade mesma do meu
pensamento no movimento que a arrebata ao mal; a deleitação do bem que a graça
substitui pela primeira não é, pois, tampouco uma força que, de dentro, a
violenta, mas o movimento espontâneo da vontade mudada e liberta, que então,
tende toda para Deus; o homem é verdadeiramente livre quando age de sorte que o
objeto de sua deleitação seja precisamente a liberdade. ([84 “Ecce unde
libri, und condellectamur legi Dei: libertas enim delectat. Nam quandium timore facis quod justum est, non Deus te
delectat, quandiu adhuc servus facis, te non delectat: delectat et, liber es”. In Joan. Evang., XLI, 8,10 ; t. 35, col. 1698.
Jansenio (Augustinus, ed. Citada, v. III, p. 311)
qualifica essa formula de “nobilisma fulgentissimaque”, e, com efeito, ela é assim se for uma vez
entidade exatamente. A liberdade plena só é obtida quando a alma age por amor
pela deleitação libertadora que arranca do pecado.]) (p.-307-308-)
Quando
nos perguntamos se o livre-arbítrio passa a ser capaz, por suas próprias
forças, de amor Deus, nos perguntamos, portanto, se a vontade do homem basta
para restabelecer a ordem criada pela onipotência divina. (p. -310-)
Através
dessa identificação da liberdade com a graça, Agostinho não reconciliava
simplesmente o livre-arbítrio com a vida sobrenatural, ele também resolvia a
dificuldade com a qual concluiríamos nosso estudo sobre a caridade cristã: como chegar á beatitude,
que é Deus, se apenas se chega a ela através caridade, que igualmente é Deus?
([9¹ Ver capítulo precedente, p. -267-269-)
Precisamente,
se a liberdade se reduz á graça, é também á graça que nos reconduz á caridade:
Lex itaque libertatis, Lex charitatis. ([9² Epist. 167, VI, 19; t.33, c. 740. De lib. Arbit., II, 13,37;t. 32, c.
1261. Quanto á relação com a teoria do
conhecimento : De vera religione, 31,58 ; t.34, c. 147-148.]) A
caridade é o amor por Deus. ([9³
“Sed ut aliquid gustu accipias, Deus charitas est. Dicturus es mihi: putas quid
est charitas? Charitas est diliginus. Quid
diliginus ? Inffabile bonum, bonum beneficium,
bonum bonum omnium creatorem’’. Sermo 21, 2; t.38, c.143.]) Ora, esse amor é
precisamente o que o pecado destruiu em nós, e o que a graça restaura. Assim,
não há de se espantar que os pelagianos nos atribuam o mérito da caridade, com
eles nos atribuem o da graça; mas em nenhuma outra parte o erro deles é mais
profundo, precisamente porque, de todas as graças, a caridade é a mais elevada.
Quem sobrepujar esse ponto, portanto, sobrepuja toda a doutrina da graça. ([94 De grat et lib arb., XVIII, 37; t. 44, c. 903-904;
XIX, 40; t. 44, c. 905. Cf. Sermo 145, 4 ;
t. 38, c. 793.]) Ora, segundo são João, a caridade é tão eminentemente um dom
de Deus que ela é o próprio Deus. ([95 Charitas autem usque adeo donum Dei est,
ut Deus dicatur”. Epist. 186, III, 7;t. 33. C. 818]) Por conseguinte, como
sustentar que nós não a tenhamos recebido? Mas se, ao recebê-la, é Deus que
recebemos, como se espantar que possamos possuir, aqui de baixo, os sinais de
nossa beatitude futura? Por essa graça, Deus está em nós como está no céu; ([96
“Quisquis habet charitatem, utquid illum mittimus longe, ut videat Deum? Conscientiam suam attedat, et ibi videt Deum. Si charitas
ibi non habitat, non ibi habitat Deus: si autem charitas ibi habitat, Deus ibi
habitat. Vul illum forte videre sedentem in
coelo ; habeat charitatem, et in eo habitat sicut in coelo’’. Ennari.
In. Ps. 149, 4; t. 37, c. 1951.]) através dela ele nos dá um amor que nos faz
desejar amá-lo ainda mais ([ 97 Cur ergo dictum est: diligamus invicem, quia
dilectio ex Deo est; nisi quia praecepto admonitum est liberum arbitrium, ut quaereret Dei
donum? Quod quidem sine suo fructu prorsus admoneretur, nisi prius acciperet
aliquid dilectionis, ut addi sibi quareret unde quod jubebatur impleret.” De
gratia et lib arbítrio, XVIII, 37; t.
44, c. 903-904.]), e nós só o amamos, enfim, porque ele nos amou primeiro: nos
non diligeremus Dues, nisi nos prior ipse diligeret. ([98 De gratia et lib
arbítrio, XVII, 38; t. 44, c.904. funda-se na palavra de João, I Jo 4, 19: “nos
deliginus, qua ipse prior dilexit nos”. Seguem-se as impressionantes fórmula de
são Bernardo que são somente um aprofundamento daquela: “Bonus es, Domine,
animae queerenti te; quid ergo invenienti? Sed enim in hos est mirum quod Nemo
quarere te valet nisi qui prius inventrit. Vis igitur inverini ut quaeraris,
quaeri ut invenniaris. Potest quidem quaeri et inviniri, non tamem
praeeveniri.” De deligendo Deo, cap. XII; Ed W.WWilliams, Cambridge, 1926, p.
41. Cf . AUGUSTIN, Confess., XI, 2,4; Ed.p
de labriolle, t. II, p. 299. Daí, enfim, a célebre frase de PASCAL, em
Mystére de Jesus: Consola-te, não me buscarias se não me tivesses encontrado”.
Pensées, Ed. L. bruschvicg, Ed Minor, p. 576.]).Nesse ponto, ainda mais do que
alhures, é de dentro que Deus confere á alma o movimento e a vida: busquemos
segundo qual lei e quais obras essa vida da alma vai se desenvolver. (p.
-312-313-314-).
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