quinta-feira, 3 de agosto de 2023

ÉTIENNE Gilson: Santo Agostinho

 




 São Paulo, Paulus,  2007

Digitação: Jaciara Souza Pereira

Sintese: Paolo Cugini

I. A BEATITUDE

da filosofia, sempre é confundida, por ele, com a beatitude. O que ele procura é um bem cuja posse satisfaz todo o desejo e, por conseqüência, confere a paz.

O problema da beatitude, portanto, consiste em saber o que o homem desejar para ser feliz como pode adquiri-lo.([6 De beata vita, II, 10; t. 32, col. 164-165. –Sobre a provável dependência deste tratado em relação ao Hortensius de Cícero, ver as considerações de P. ALFARIC, L´ évolution intellecttuelle de Saint Augustin, Paris, 1918, p. 429-432]). (p. -19-)

A posse da verdade absoluta é a condição necessária da beatitude. (p. -20-)

Eis o que é possuir a sabedoria: apoderar-se de Deus pelo pensamento, isto é, gozar dele. ([De beata vita, IV, 34; t. 32, col. 978.])

Resulta daí que, fora dessa posse de Deus, só existe a miséria para o homem. Viver  bem é, precisamente, esforçar-se para possuí-lo. Da fonte da verdade brota, por assim dizer, sem cessar, em nossa direção, uma espécie de apelo que nos rememora a lembrança de Deus, convida-nos a buscá-lo e nos faz sequiosos dele. É dessa verdade, ou seja, de Deus, que retiramos todas as nossas verdades, ainda que não ousemos, nem poderíamos, contemplá-la na sua essência. (p. -23-)

Há no homem um desejo sensível que também deve se voltar ao bem soberano submetendo-se á ordem da razão e permitindo-se, por isso mesmo, contemplá-lo melhor. ([ ²4 é nesse sentido que Agostinho interpreta Platão e é sobretudo por ter conhecido essa verdade que o elogia, De civitate  Dei, VIII,  8; t. 41, col. 233. Ademias observamos o desvelo que ele manifesta ao apresentar a apreensão da Verdade como fruição ao mesmo tempo que coloca a questão da verdade enquanto beatificante e, por conseqüência, a beatitude: “Num aliam putas esse sapientiam  nisi veritatem, in qua cernitur et tenetur summum bonum?” De lib. Arbit., II,8,26; t.32,col. 1254.-Cf.: “Ecce tibi est ipsa veritas: amplectere illam si potes, et fruere illa, et delectare in Domino, et dabit tibi petitiones cordis tui ;... et nos in amplexu ueritates beatos esse dubitabimus ?... et nos negabimus beatos esse, cum irrigamur pascimurque veritate ?... ’’ De lib. Arbitrio, II, 13,35 ; t. 32 col. 1260.- Imo vero quiniam in veritate cognoscitur et tenetur summum bonum eaque veritas sapientia est, cernamus in ea, teneamusque summum bonum, eoque perfruamur. Beatus est quippe qui fruitur summum, bono’’. Op. Cit., 36, col. 1260. Estas são evidentemente apenas metáforas ; não  se deve pensá-las em seu sentido material ; contudo, elas exprimem esse caráter de posse da verdade como bem, no qual santo Agostinho vê o elemento formal da beatitude. ]) (p. -25 e -26-)

III A LIBERDADE CRISTÃ

O papel da graça é concebido somente em função dos males para os quais ela é o remédio. Primeiro, há uma insuficiência radical; depois, uma desordem possibilitada por essa insuficiência; em resumo, há o mal.

1. O mal e o livre-arbítrio

O mal só pode ser a corrupção de uma das perfeições na natureza que se as possui. A natureza má é aquela em que medida, foram ou ordem estão correspondidas, e ela é má somente na exata proporção do grau de sua corrupção. Não corrompida, essa natureza seria toda ordem, forma e medida, quer dizer, boa; mesmo corrompida, ela permanece boa  enquanto. ([5  De natura boni, IV; t. 42, c. 553 e VI, c. 553-554.]) Essa relação do mal com o bem num sujeito  é exprimida ao se dizer que o mal  é uma privação. Com efeito, ele é a privação de um bem que um sujeito deveria possuir, uma falta de ser o que ele deveria ser e, por conseguinte, um puro nada. ([6 “... quia non noveram malum non esse nisi privationem boni esque ad quod omnino non est”. Conf., III, 7,12; ed. Labr., t. I. P. 54. “Quid est autem aliud quod malum dicitur, nisi privatio boni?”. Enchiridion, XI; t. 40, c. 236.]) (p. -273-274-)

Sendo nada por definição, o mal sequer pode ser concebido fora de um bem. Para que haja um mal, é necessário que haja privação; portanto, é necessário que haja uma coisa privada. Ora. Enquanto tal, essa coisa é boa e somente enquanto privada é má. O que não é não tem defeitos. Assim, cada vez que falamos do mal, supomos implicitamente a presença de um bem que, não sendo tudo que deveria ser, é, por isso, mau. O mal não é somente uma privação, é uma privação que reside num bem como em seu sujeito. ([7 “Natura humana, etsi mala est, quia vitiata est, non tamen malum est, quia natura est. Nula enim natura, in quantum natura est, malum est, sed prorsus bonum, sine quo Bono ullum esse non potest malum”. Op. Imperf. Cont. Julianum,  III, 206; t. 45, c. 1334. Por analogia, o erro é somente uma ausência de ser num pensamento que concebe as coisas diferentemente do que elas são. Logo, jamais há falsidade nas coisas; o verdadeiro é; o falso não é. Soliloq., II, 3,3; t. 32, c. 886-887. II, 4,5; col. 887. II, 5,8; c. 889. Conf., VII, 1521; Ed. Labr., t.I, p. 165.]) (p. -274-)

Se essas não são o que deveriam ser num ato determinado, entao, ele se ocorre imperfeito, portanto mau. Mas, aqui também, a malícia do ato está somente nisso de que ele se encontra privado; se ele fosse nada, não estaria privado de nada. Uma vontade má é, portanto, uma vontade que, enquanto tal,  é boa, mas á qual falta ser planejamento o que deveria ser; aqui, não mais do que em outros lugares, o mal não pode existir fora do bem ([8 “Poro mala voluntas, quamvis non sit secundum naturam, sed contra naturam, quia vitium est, tamem eius naturae est, cuius est vitium, quod nisi in natura non potest esse; sed in ea, quam creavit ex nihilo...” De civitate Dei, XIV, 11,1; t. 41,c. 418, “ut... bona temem sine malis esse possint, sicut Deus ipse verus et summus ...” mala vero sine bonis esse non possint, quoniam nature, in quibus sunt, in quantum naturae sunt, utique bonae sunt” . IBID., c. 418. De lib. Arb., II, 17, 46; t. 32, c. 1265- 1266]) (p. -274-)

Difícil problema: se a criação ex nihilo implicasse necessariamente o mal, não seria melhor nada criar? Para discutir essa última questão, é bom distinguir entre o mal natural e o mal moral. Então, ela se subdivide em duas outras: por que criar natureza corruptíveis? Por criar vontades falíveis. (p. -274- 274-)

Por mínima que seja a perfeição de cada coisa, isso se deve somente ao que ele tem de bom e ao que, segundo Deus, ela deve ter. foi ele também que dispôs todas as coisas de maneira que as fracas cedam lugar ás fortes, as menos fortes ás mais fortes e as coisas terrestres aos corpos celestes, que são superiores a elas. Enfim, ao sucederem-se umas ás outras, na medida em que desaparecem e se recolocam, as coisas engendram uma beleza de um gênero distinto do que se oferece aos nossos olhos no espaço. Trata-se, por assim dizer, de uma beleza que ocorre no tempo. Aquilo que morre ou cessa de ser o que era não enfeia nem desonra a ordem ou equilíbrio do universo. (p. -275-)

Quanto ao que concerne o mal moral, o problema parece mais difícil de ser resolvido. Se as ações dos homens não são sempre o que deveriam ser, sua vontade é a responsável.  (p. -276-)

A questão é, portanto, saber como um Deus perfeito pôde doar-nos o livre-arbítrio, ou seja, uma vontade capaz de fazer o mal. (p. -276-)

O uso do livre-arbítrio está á disposição do próprio livre-arbítrio. Fonte de toda ciência, a razão conhece a si mesma; conservadora de todas as lembranças, a memória lembra-se de si mesma; mestra de todas as coisas de que dispõe livremente, a vontade livre é igualmente mestra de si mesma. ([¹² “Noli ergo mirari si, caeteris per liberam voluntatem utimur, etiam ipsa, libera voluntate per eam ipsam UTI nos posse; ut quodammodo se ipsa utatur voluntas quae utitur caeteris, sicut seipsam conoscit ratio quae cognoscit et caetera.” De lib. Arb., II, 19, 51; t. 32, c. 1268.]) Logo, dela, e só depende o mau uso do bem que ela é. (p. -277-)

É assim, diríamos, mas como é possível que a vontade tenha optado pelo pecado?(p. -278-)

Ora, se esse movimento não vem de Deus, de onde vem? A única resposta sincera que podemos dar a essa questão é que nada sabemos; não se trata de ignorarmos onde se encontra o verdadeiro responsável, mas de não podermos conhecer o que não é nada. (p. -278-)

Todo bem vem de Deus; toda natureza é um certo bem; logo, toda natureza vem de Deus. Essa conclusão absoluta se aplica tanto ás coisas sensíveis como ás coisas inteligíveis. Vemos um ser em que se encontram medida, ordem e número, não hesitamos em reconhecer que Deus é seu autor. Despojamos, ao contrário, desse ser o que ele tem de medida, de ordem e de número; se os retiramos completamente, não restará absolutamente nada. Enquanto subsiste um rudimento de forma, por mais grosseira e imperfeito que possa ser, permanece um começo de bem que, como um tipo de matéria, poderá progressivamente ser conduzida á sua perfeição. Assim, um esboço de ser é um certo bem, a supressão total bem equivale por definição a uma supressão total de ser. A partir disso, então, torna-se contraditório imaginar uma causa positiva, tal como Deus, na origem do movimento de aversão pelo qual a vontade livre se desvia dele. Sem dúvida, Deus criou a vontade mestra de si mesma e capaz de se apegar ao soberano bem ou de se desviar deste; mas se a vontade assim criada poderia se desligar de Deus, ela não deveria; sua queda, uma vez que ocorreu, não foi queda natural e fatal de uma pedra que cai, mas a queda livre de uma vontade que se abandona. ([¹5 “De lib. Arb., III, 1,2; t. 32, c. 1271. De div. Quaest. 83, qu. I-IV; t. 40. C. 11-12.]) Simples defeito, falta de ordem e, por consequência, falta de ser, o movimento da queda original não tem outra origem a não ser o nada, ou seja, o não-ser. (p. -278-279)

Preenchido por seus dons, o homem tinha somente que perseverar para continuar a gozar deles, e nada  lhe era mais fácil que a presença. Embora Agostinho não diferencie expressamente o que hoje se chama de graça santificante do que nomeamos hoje de graça atual, ele atribui, sem nenhuma duvida possível, esta última ao homem tal qual Deus o criou. Adão gozava, para preservar no bem, uma graça tal e qual a que gozamos para nos liberar do mal. Sem qualquer luta interior, sem tentações internas e sem perturbação, ele vivia em paz no lugar de sua beatitude. ([²9 De correpttione et gratia, XI, 29; t. 44, col. 933-934.]) Portanto, o homem preferiu a si mesmo e, por isso, se desviou de Deus, essa queda deve ser considerada em razão de uma simples fraqueza do livre-arbítrio humano; Deus lhe dera tudo o que era necessário para levá-lo a evitar a queda.(p. -283- 284-)

Não é na dificuldade do preceito nem em alguma insubordinação do corpo humano que se encontra a origem do mal, mas somente na vontade do homem e especialmente em seu orgulho. Por sua vez, o que é o orgulho senão o desejo de uma posição de uma independência preservada? Querer elevar-se a uma dignidade que não é a sua: por parte do homem, foi essa confiança em si mesmo que lhe fez desertar o principio ao qual ele devia se apegar para se e, em certo sentido, para ser para si mesmo seu próprio princípio. (p. -284-)

O orgulho busca reportar a outrem o crime do qual é responsável; a transgressão voluntária da ordem acusa a si mesma no momento preciso em que ela tenta se desculpar. ([³³ De civ. Dei, XIV,14;t. 41, c.422.]) (p. -285-)

Tal é a razão pela qual Agostinho não pára de afirmar que o erro original foi um efeito do livre-arbítrio do homem e, portanto, deve ser imputado primeiramente á sua vontade. (p. -285-)

Ao nos desviarmos voluntariamente de Deus, ou seja, recusando querê-lo e  amá-lo, todos nós optamos em Adão mais pela avara e orgulhosa posse das criaturas do que pela submissão ao Bem universal, subvertemos a ordem divina ao preferir a obra ao Obreiro. Logo, eis o que é feito, ou melhor, defeito, pois o pecado nada produziu a não ser desordem; ([³5 “ Bona igitur voluntas opus est Dei: cum ae quippe ab illo factus est homo. Mala vero voluntas prima, quoniam omnia mala opera praecessit in homine, defectus potius fuit quidam ab opere Dei ad sua opera, quam opus ullum”.]) então, é necessário considerar sua conseqüência e seu remédio. (p.- 286-)

As duas conseqüências do erro original, ao qual Agostinho sempre associa ao mencioná-las, são a concupisscência a ignorância. ([ ³6 Os intérpretes de Agostinho discutem se a concupiscência é o pecado original ou somente uma acusação (reatus) desse pecado. O mesmo sentido da palavra “reatus” – acusação, e culpabilidade, ou somente culpabilidade – está implicado na discussão. É PORTALIÉ art. Cit., col. 2395, 3ª questão) sustenta que Agostinho não identificou o pecado original com a primeira concupiscência, que é somente o efeito dele. J.- B. KORS (op. Cit., p. 16, nota 7) declara não poder compreender como É.  Portalié pôde dizer algo parecido: “o santo doutor se exprime muito claramente sem sentido contrário”. Não obstante, é É. Portalié que tem a razão. Há para isso uma razão de principio: a concupiscência é uma desordem; se Deus criou o homem sujeito á concupiscência, não se vê diferença essencial entre o estado de natureza desejado por Deus e o estado de natureza decaído. Por outro lado, há textos formais que J.-B. kors deveria ter discutido antes de condenar a interpretação contrária. Agostinho diz explicitamente sobre Adão antes da queda: “ubi praesertim nondum volutati cupitidas resistebat, quod de poema transgressionais postea subsecutum est...” (ver p. 284, nota 30). Portanto, a concupiscência é um desregulamento consecutivo ao orgulho da vontade, que, este, é o pecado original em sua essência. Todos os textos alegados por J.-B.KORS, p. 16, explicam-se pelo fato de que, no estado de natureza caída, o pecado original não mais se distingui da punição que lhe tange: a concupiscência e a ignorância. É neste sentido que “peccatum originale sic peccatum est, ut ipsum sit et poena peccati”, como resulta do contexto (IBID., nota3]). (p. -286-)

O que sobra da natureza instituída por Deus depois de uma tal desordem? O mal, que tinha sido em Adão apenas um erro, propagando-se até nós, tornou-se o mal de uma natureza. Uma natureza viciada e viciosa a partir de então, substituiu uma natureza boa. ([³9 De div. Quaest. Ad. Simplic., I,1,11;t.40, col. 107]) (p. -287-)

A lei, portanto, não veio nem para introduzir o pecado no mundo, pois ele já estava aí, nem para extirpá-lo, pois somente a graça é capaz disso. Ela simplesmente veio para mostrar e dar ao homem, com o sentimento de sua culpa, o da necessidade da graça. O pecado, que permanecia secreto antes da proibição, quando se torna prevariacação brilha aos olhos. ([5¹ Op. Cit. I,1,2;col. 103.I,1,6,col. 105]) Mas, longe de conhecer a Lei a ser seguida, muito longe de suprimir a concupiscência, pode-se dizer que a lei agrava a concupiscência  ao fazer disso uma violação das prescrições divinas.([OP. CIT., I, 1,3; col. 103. I, 1, 105, col.108]) Aquele que só vive sob o reinado da lei permanece  escravo da concupiscência engendrada pelo pecado; ele sabe que ela o domina; sabe que lhe é interditada; sabe também que ela lhe é justamente interditada e, no entanto, cede a ela. ([5¹ De diversis quaets. Ad Simplic., I. 1,7-14;t. 40, col. 105-108]) Somente aqueles que são sustentados com a eficácia da graça podem mais do que conhecer a lei: realizá-la.

Para o homem, portanto, a aquisição da graça é uma condição necessária para a salvação. (p. -291-292-)

Se a graça precede as obras e seus méritos, isso equivale a dizer que ela não poderia resultar em nós de uma aquisição, segue-se que ela é o fruto de uma eleição. (p. -292)

A graça agostiniana, pode, portanto, ser irresistível sem ser constrangedora, pois ou ela se adapta á livre escolha daqueles que ela decidiu salvar, ou, transformando internamente a vontade á qual se aplica, a graça faz a vontade se deleitar livremente com isso que seria repugnante sem a graça. Logo, a predestinação divina não é senão a previsão infalível de suas obras futuras, pela qual Deus prepara as cirncunstâncias e as graças salutares aos eleitos. ([6¹ “Haec est praedestinatio sancttorum, nihil aliud: praescientia scilicet, et praeparatio beneficiorum Dei, quibus certissime liberantur, quicumque liberantur. Caeteri autem ubi nisi in massa perditionis justo divino judicio relinquuntur? Ubi Tyrii relicti et Sidonii, qui credere potuernunt, si mira illa Christi signa vidissent? Sed quoniam ut crederent, non erat eis datum, etiam unde crederent negatum. Ex quo apparet habere quosdam in ipso ingenio divinum naturaliter munus intellegentiae, quo moveantur ad fidem, si congrua suis mentibus, vel audiant verba, vel signa conspiciant: et temen si congrua suis judicio, a perditionis nis massa non sunt gratiae praedestinatione discreti, nec ipsa eis adhibentur vel dicta divina vel facta, per quae possent credere, si audirent utique talia vel viderent.” De dono perseverantiae, XIV, 35; t.45, col. 1014. Cf.: “Ista igitur sua dona quibuscumque Deus donat, procul dublio se donaturum esse praescivit, et in sua praescientia praeparavit. Quos ergo praedestinavit, ipsos et vocavit vocatione illa, quam me saepe commemorae non piget...Namque in sua quae falli mutarique non potest praescientia, opera sua futura disponere, id omnimo, nec aluid quidquam est paedestinare”. Op. Cit., XVII, 41; t. 45, col. 1018-1019. No tocante ao modo de ação da graça sobre a vontade, ver § III, A graça e a liberdade”. ]) (p. -295-296-)

3. A graça e a liberdade

Para santo Agostinho, querer é usar o livre-arbítrio, cuja definição sempre se confunde com a de vontade. ([68 Esse ponto foi muito bem marcado por J. MARTIN, S. August, 2ª ed., p. 176-179, onde encontramos todas as referências necessárias.]) p. -298-)

O que Agostinho se pergunta não é se amar Deus está ao alcance de nosso livre-arbítrio, mas se está em nosso poder. Ora, o poder de fazer o que escolhemos fazer é mais do que o livre-arbítrio, é a liberdade. Não há problema da graça e do livre-arbítrio em santo Agostinho, mas um problema da graça e da liberdade. Em que termos ele se coloca? (p. -299-)

A que conclusão a doutrina de Pelágio conduzia? Áquela em que a graça não tem que intervir antes do pecado para preveni-lo mas somente depois, para  cumpri-la. A que conclusão, ao contrário, conduz a experiência de Agostinho? A que, durante longos anos, ele via a lei sem poder cumpri-la. E não apenas viu a lei, mas viu a lei cumprida sob seus olhos por outros, enquanto, com toda sua alma desejando imitá-lo, foi necessário confessar-se incapaz. Somente são Paulo, através de sua luminosa doutrina do pecado e da graça, soube dissipar essa contradição interna na qual Agostinho se debatia em vão por anos. Posto que a vontade desejada o bem, então ela é por essência destinada a realizá-lo; não obstante, posto que ela é incapaz de realizar o bem que ela deseja, então há nela algo corrompido; nomeemos como causa dessa corrupção o pecado, e prescrevemos o remédio para ele, a Redenção do homem por Deus, desenvolvida com a graça de Jesus Cristo. A economia da vida moral, impenetrável para os filósofos, a partir de então torna-se transparente, porque essa doutrina é única que leva em conta todos os fatos e principalmente este: por mais tempo que uma vontade contar apenas consigo mesma para fazer o bem, ela permanece imponente. A solução do enigma, aqui como alhures, é que é necessário receber o que se quer ter quando se é incapaz de dá-lo a si mesmo. Graças ao sacrifício do Cristo, a partir de então, há um socorro divino sobrenatural pelo qual a lei se torna realizável pela vontade humana, e da qual a essência mesma do pelagianismo é desconhecer a necessidade. (p. -300-301-)

Á tese de Pelágio, Agostinho oporá constantemente a seguinte: “Nem o conhecimento da lei divina, nem a natureza, nem a única remissão dos pecados constituem a graça, mas  ela nos é dada por Jesus Cristo nosso Senhor, a fim de que, por ela, a lei seja cumprida, a natureza resgatada e o pecado vencido”. (p.-302-)

A diferença entre o homem que tem a graça e aquele que não tem não está na posse ou não posse de seu livre-arbítrio, mas em sua eficiência. Aqueles que não se aplicar em querer o bem ou, se eles querem, em serem incapazes de realizá-lo; ao contrário, aqueles que têm a graça querem fazer o bem e obtêm sucesso nisso. ([ 75 “Numquid non liberum arbitrium. Timothei est exhortatus Apostilus dicens: Contine te ipsu (1 Tm 5,22)? Et in hac re potestatem voluntatis ostendit, ubi ait: non habens necessitatem, postestatem autem habens suae voluntatis, ut servet virginem suam (1 Cor 7,37). Et tamem: non omnes capiunt verbum hoc sed quibus datum set. Quibus enim non est datum aut nolunt aut non implent quod volunt arbt., IV, 7 ; t. 44, c. 886. ‘’Valle enim inquit (Apostolus), adjacet mihi, perficere autem bonum non invenio. His verbis videtur non rect intelligentibus velut auferre liberum arbitrium. Sed quomodo aufert, cum dicat : Valle adiacet mihi ? certe enim ipsum velle in potestate est quoniam adjacet nobis : sed quod perficerre bonum non est in potestate, ad meritum pertinet originalis paccati’’. De div. Quaest. Ad Simplic., I 1, 11 ; t. 40, col. 107. Cf. Ibid., I, 1, 14 ; col. 108.]) Assim, a graça pode ser definida: o que confere á vontade seja a força para querer o bem, seja para realizá-lo. Ora, esta força dupla é a própria definição da liberdade. (p. -303-)

A graça de Deus não nos é dada segundo nossos méritos, já que não apenas não vemos boas ações ás quais possa ser atribuída, mas a vemos também a cada dia atribuída a ações manifestante mas. Ao contrário, a partir do momento em que a graça é dada, os méritos começam; se ela nos falta, nosso livre-arbítrio, sempre intacto, não faz senão ir de queda em queda. ([76 De grat. Et lib., V, 11-12; t. 44, c. 888-889; VI, 13; col. 889.]) Tal tese deve ser admitida em seu sentido mais absoluto. (p. -304-)

Não podemos oferecer a Deus o que ele exige a não ser que ele o tenha previamente dada. (p. -304-)

Sob essa estrita sujeição á graça, o que se torna a vontade humana? A resposta tem poucas palavras: ela conserva seu livre-arbítrio, ela alcança a liberdade.

Ela conserva a princípio seu livre-arbítrio, pois, mesmo ao admitir que a graça dá tudo ao livre-arbítrio, ainda é necessário que ele esteja presente para receber. (p. -305-)

Quando Deus dá á vontade o querer e a ajuda a fazer o que ele comanda, é, sem embargo, ela que quer e faz o que ele comanda: adjuvat ut faciat cui jubet. ([79 De grat. Et lib. Arb., XV, 31; t. 44, c. 899.]) Deus vem em ajuda do homem que age, não para dispensá-lo de agir, mas para permiti-lo; assim, é necessário que, mesmo sob a pressão vitoriosa da graça, o livre-arbítrio esteja sempre presente. ([8o “...gratiam Dei... qua voluntas humana non tollitur, sed ex mala muratur in bonam et, cum bona fuerit, adjuvatur;...” De grat. Et lib. Arb., XX, 41; t. 44, c. 905. “Neque enim voluntatis arbitrium ideo tollitur, qua juvatiur; sed ideo juvatur, quia non tollitur”. Epist. 157, I, 10; t. 33, c. 677.])

Contudo, ele permanece livre, se for verdade que Deus prepara sempre a graça, que é necessária para que a vontade daqueles que Deus quer salvar dê seu consentimento a ele? Deve-se responder pela afirmativa, em nome da psicologia da vontade tal como a descrevemos previamente. Por essência ela é amor ou, como diz também Agostinho, delectação. ([ 8¹ Ver anteriormente, p. 257, nota 29.]) (p. -305-)

Qual é o efeito produzido pela graça sobre a liberdade? Ela substitui na liberdade deleitação do mal pela do bem. Ao contrário, a lei, irrealizável pela vontade do homem decaído, torna-se ao contrário objeto de amor e de deleite para o homem em estado de graça. (p. -306-)

Ele ouve o chamado da graça; ela lhe aparece como um bem em certa medida desejável, mas a concupiscência lhe traz mais deleite e, como a deleitação é tão-somente o movimento mesmo da vontade para seu objeto, o homem em que a paixão domina prefere inevitavelmente o pecado á graça. Nesse sentido, é rigorosamente verdadeiro dizer que nós sempre faremos mecessariamente o que nos deleitar mais: quod enim amplius nos delectat, secundum id operemur necesse est. ([8³ “ Regnant autm ista bona (scil. Fructus Spiritus), si tantum delectant, ut ipsa teneant animum in tentationibus, ne in peccati consesionem ruat. Quod enim amplius nos delectat, secunum id operemur necesse est: ut verbi gratia occurrit forma speciosa feminae et movet ad delectationem fornicationis: sed si plus delectat pilchritudo illa intima et sincera species castitatis, per gratiam quae est in fide Christi, secundum hanc vivimus et secundum hanc operamur”. Epist ad Gal., 49; t. 35. Col. 2140-2141. “manifestum est certe secundum id nos vivere quod sectati fuerimus; sectabimur autem, quod dilexrimus: si tantumdem utrumque diligitur nihil oerum sectabimur; seda ut timore aut inviti trahemur in alterutram partem”. IBId.,54, col. 2142]) Mas seria um erro crer que a deleitação prevalente abolisse o livre-arbítrio, de que ela é apenas a manifestação. A deleitação do pecado que me tenta não é algo que se acrescenta a minha vontade para arrebatá-la para baixo, é espontaneidade mesma do meu pensamento no movimento que a arrebata ao mal; a deleitação do bem que a graça substitui pela primeira não é, pois, tampouco uma força que, de dentro, a violenta, mas o movimento espontâneo da vontade mudada e liberta, que então, tende toda para Deus; o homem é verdadeiramente livre quando age de sorte que o objeto de sua deleitação seja precisamente a liberdade. ([84  “Ecce unde libri, und condellectamur legi Dei: libertas enim delectat. Nam quandium timore facis quod justum est, non Deus te delectat, quandiu adhuc servus facis, te non delectat: delectat et, liber es”. In Joan. Evang., XLI, 8,10 ; t. 35, col. 1698. Jansenio (Augustinus, ed. Citada, v. III, p. 311) qualifica essa formula de “nobilisma fulgentissimaque”, e,  com efeito, ela é assim se for uma vez entidade exatamente. A liberdade plena só é obtida quando a alma age por amor pela deleitação libertadora que arranca do pecado.]) (p.-307-308-)

Quando nos perguntamos se o livre-arbítrio passa a ser capaz, por suas próprias forças, de amor Deus, nos perguntamos, portanto, se a vontade do homem basta para restabelecer a ordem criada pela onipotência divina. (p. -310-)

Através dessa identificação da liberdade com a graça, Agostinho não reconciliava simplesmente o livre-arbítrio com a vida sobrenatural, ele também resolvia a dificuldade com a qual concluiríamos nosso estudo sobre  a caridade cristã: como chegar á beatitude, que é Deus, se apenas se chega a ela através caridade, que igualmente é Deus? ([9¹ Ver capítulo precedente, p. -267-269-)

Precisamente, se a liberdade se reduz á graça, é também á graça que nos reconduz á caridade: Lex itaque libertatis, Lex charitatis. ([9² Epist. 167, VI, 19; t.33, c. 740. De lib. Arbit., II, 13,37;t. 32, c. 1261. Quanto á relação com a teoria do conhecimento : De vera religione, 31,58 ; t.34, c. 147-148.]) A caridade é o amor por Deus. ([9³ “Sed ut aliquid gustu accipias, Deus charitas est. Dicturus es mihi: putas quid est charitas? Charitas est diliginus. Quid diliginus ? Inffabile  bonum, bonum beneficium, bonum bonum omnium creatorem’’. Sermo 21, 2; t.38, c.143.]) Ora, esse amor é precisamente o que o pecado destruiu em nós, e o que a graça restaura. Assim, não há de se espantar que os pelagianos nos atribuam o mérito da caridade, com eles nos atribuem o da graça; mas em nenhuma outra parte o erro deles é mais profundo, precisamente porque, de todas as graças, a caridade é a mais elevada. Quem sobrepujar esse ponto, portanto, sobrepuja toda a doutrina da graça. ([94 De grat et lib arb., XVIII, 37; t. 44, c. 903-904; XIX, 40; t. 44, c. 905. Cf. Sermo 145, 4 ; t. 38, c. 793.]) Ora, segundo são João, a caridade é tão eminentemente um dom de Deus que ela é o próprio Deus. ([95 Charitas autem usque adeo donum Dei est, ut Deus dicatur”. Epist. 186, III, 7;t. 33. C. 818]) Por conseguinte, como sustentar que nós não a tenhamos recebido? Mas se, ao recebê-la, é Deus que recebemos, como se espantar que possamos possuir, aqui de baixo, os sinais de nossa beatitude futura? Por essa graça, Deus está em nós como está no céu; ([96 “Quisquis habet charitatem, utquid illum mittimus longe, ut videat Deum? Conscientiam suam attedat, et ibi videt Deum. Si charitas ibi non habitat, non ibi habitat Deus: si autem charitas ibi habitat, Deus ibi habitat. Vul illum forte videre sedentem in coelo ; habeat charitatem, et in eo habitat sicut in coelo’’. Ennari. In. Ps. 149, 4; t. 37, c. 1951.]) através dela ele nos dá um amor que nos faz desejar amá-lo ainda mais ([ 97 Cur ergo dictum est: diligamus invicem, quia dilectio ex Deo est; nisi quia praecepto admonitum  est liberum arbitrium, ut quaereret Dei donum? Quod quidem sine suo fructu prorsus admoneretur, nisi prius acciperet aliquid dilectionis, ut addi sibi quareret unde quod jubebatur impleret.” De gratia et lib arbítrio,  XVIII, 37; t. 44, c. 903-904.]), e nós só o amamos, enfim, porque ele nos amou primeiro: nos non diligeremus Dues, nisi nos prior ipse diligeret. ([98 De gratia et lib arbítrio, XVII, 38; t. 44, c.904. funda-se na palavra de João, I Jo 4, 19: “nos deliginus, qua ipse prior dilexit nos”. Seguem-se as impressionantes fórmula de são Bernardo que são somente um aprofundamento daquela: “Bonus es, Domine, animae queerenti te; quid ergo invenienti? Sed enim in hos est mirum quod Nemo quarere te valet nisi qui prius inventrit. Vis igitur inverini ut quaeraris, quaeri ut invenniaris. Potest quidem quaeri et inviniri, non tamem praeeveniri.” De deligendo Deo, cap. XII; Ed W.WWilliams, Cambridge, 1926, p. 41. Cf . AUGUSTIN, Confess., XI, 2,4; Ed.p  de labriolle, t. II, p. 299. Daí, enfim, a célebre frase de PASCAL, em Mystére de Jesus: Consola-te, não me buscarias se não me tivesses encontrado”. Pensées, Ed. L. bruschvicg, Ed Minor, p. 576.]).Nesse ponto, ainda mais do que alhures, é de dentro que Deus confere á alma o movimento e a vida: busquemos segundo qual lei e quais obras essa vida da alma vai se desenvolver. (p. -312-313-314-).


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