Etienne Gilson, A filosofia na idade media. São Paulo: Martin Fontes, 2020.
Síntese: Paolo Cugini
Desde século II da era cristã aparecem os padres Apologistas, ou Apologetas, assim chamados porque suas obras principais são apologias da religião cristã. No sentido técnico do termo, uma apologia era um arrazoado jurídico e essas obras são de fato, sustentações para obter dos imperadores romanos o reconhecimento do direito legal dos cristãos à existência num império oficialmente pagão. Encontra-se aí exposições parciais de fé cristã e algumas tentativas para justificá-la diante da filosofia grega.
1)
São Justino
Obra de São Justino, mártir,
é contemporânea do pastor de Hermas. Nascido
As preocupações religiosas
ocupavam então uma posição importante na própria especulação filosófica grega.
Converte-se ao cristianismo era, com freqüência, passar de uma filosofia
animada por um espírito religioso a uma religião capaz de vistas filosóficas.
O cristianismo oferecia uma
nova solução para problemas que os próprios filósofos tinham levantado. Uma
religião baseada na fé numa revelação divina mostrava-se capaz de resolver os
problemas filosóficos melhor que a própria filosofia; seus discípulos tinham,
portanto, o direito de reivindicar o título de filósofos e, como se tratava da
religião cristã, de declarar-se filósofos pelo simples fato de serem cristãos.
No entanto, essa pretensão
não estava ao abrigo de qualquer objeção, Antes de mais nada, se admitimos que
Deus revelou a verdade aos homens apenas através de Cristo não foram culpados
de tê-la ignorado. Havendo ele mesmo colocado esse problema na Primeira
Apologia, Justino empenhava-se em definir a natureza da revelação cristã e seu
lugar na história da humanidade. O princípio da solução que ele propõe é emprestado
do evangelho de São João. “Aprendemos”, ele declara, com efeito, que o verbo
ilumina todo homem que vem a esse mundo e que, por conseguinte, “ todo gênero
humano participa do verbo”. Há, pois, uma revelação universal do verbo divino,
anterior à que se produziu quanto ao mesmo verbo fez-se carne. Essa tese será
reexporta por Justino sem termos emprestados do estoicismo. Quando dirá,
3
Com o quer que um se exprima, o fato permanece o mesmo e, como
Cristo é o verbo feito carne, todos os homens que viveram segundo o verbo,
fossem judeus ou pagãos, viveram segundo Cristo, ao passo que aqueles que, por
seus vícios, vivera contra o verbo, também viveram contra Cristo. Houve, pois,
cristãos e anticristãos antes de Cristão; logo, também, méritos e deméritos.
Acrescentamos a isso que os filósofos gregos tomaram amiúde suas idéias
emprestadas dos livros do antigo testamento, e teremos o direito de concluir
que revelação cristã é o ponto culminante de uma revelação divina tão antiga
quanto o gênero humano.
Se assim é, o cristianismo
pode assumir a responsabilidade por toda história, mas ele também requer os
benefícios desta. Tudo o que se fez de mal fez-se contra o verbo. Ora, o verbo
é Cristo; logo, conclui Justino em nome dos cristãos: “tudo o que foi dito de
verdadeiro é nosso”. Essa afirmação justamente famosa da Segunda Apologia (cap.
XIII) justificava de antemão o uso que os pensadores cristãos do éculo
vindouros deviam fazer da filosofia grega. Vê-se, pelo menos, porque o próprio
Justino não se teria depreendido. Para ele, Heráclito e os estóicos não são
estranhos ao pensamento cristão; Sócrates conheceu “parcialmente” Cristo: de
fato, ele descobriu certas verdades pelo esforço da razão, que ela própria é
uma participação no verbo, e o verbo é Cristo; Sócrates pertence, pois, aos
discípulos de Cristo. Em resumo, pode-se dizer a mesma coisa de todos os
filósofos pagãos que, tendo pensado verdadeiro, tiveram os germes dessa verdade
plena que a revelação cristã nos oferece no estado perfeito.
Justino não faz mais que
tocar de passagem os pontos sobre os quais julga útil justificar a fé cristã, e
não podemos senão recolher essas indicações fragmentárias, agrupando-as sob
títulos que se quer são dele.
Deus é um ser único e
inominável; Justino dia “anônimo”. Chamá-lo de pai, criador, senhor ou mestre é
menos designar o que ele é em si do que o que ele é ou faz por nós. Esse Deus
oculto é Deus pai. Criador do mundo, ninguém nunca lhe falou, nunca o viu, mas
ele fez-se conhecer pelo homem enviando-lhe “um Deus outro que aquele que tudo
fez; digo outro quanto ao número, mas não quando à noção”. Esse outro Deus é o
verbo, que se fez ver por Moisés, assim como por outros patriarcas e de que
dissemos que ilumina todo homem que vem a este mundo. O verbo é o “primogênito”
de Deus, que o estabeleceu ou constituiu antes de qualquer criatura. Quando
tentar exprimir a relação entre o verbo e o pai, Justino emprega comparações
necessariamente deficientes, como a de um fogo que acende outro sem se diminuir,
ou a bem estóica do pensamento (verbo interior) que se exprime em palavras
(verbo proferido) sem, conduto, separa-se de si mesma. Essa geração do verbo
pelo pai produziu-se antes da criação do mundo. Um texto obscuro, traduzido
diversamente por diversos intérpretes, autorize uns a dizerem que, segundo
Justino, o verbo foi engendrado antes da criação, mas visando-a, e outros a não
lhe atribuírem essa doutrina da geração temporal do verbo. Como quer que seja,
Justino subordinou expressamente o verbo ao pai e criador de todas as coisas. O
Deus demiurgo, para falar com ele a linguagem do Timeu, ocupa o primeiro lugar,
o verbo, que ele engendrou segundo a sua vontade, é Deus também, mas em segundo
lugar.
4
Quanto ao Espírito Santo, terceira pessoa da trindade cristã, ele é
Deus em terceiro lugar. Aliás a maneira como Justino fala dele convida a pensar
que nunca lhe definiu claramente a natureza, o lugar e o papel.
Do homem, Justino só
considerou a alma. A passagem do diálogo com Trífon em que fala da sua natureza
é bastante obscura. Essa concepção tripartiti da natureza humana (corpo, alma e
espírito ou pneuma) é de origem paulina ou estóica, Justino não duvida que a
alma deva ser recompensada ou punida na outra vida de acordo com os seus
méritos ou seus deméritos. Aliás, nada é mais justo: Já que sua vontade é livre
e não submetida ao destino, como pretendem os estóicos, o homem é responsável
por seus atos, Justino insistiu tão fortemente sobre o livre arbítrio e falou
tão pouco e tão vagamente do pecado original, que não vimos direito como pôde
conceber o papel da graça. Justino não pensou claramente nem que suas obras o
salvariam sem Cristo o salvaria se suas obras, mas não vemos que ele tenha
sentido a necessidade de fundamentar essa dupla certeza em nenhuma especulação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário