quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Mircea Eliade - Mito do Eterno Retorno

 



 

 

 

Síntese: Paolo Cugini

 

1. Arquétipos e Repetição

 

O problema

 

É obvio que os conceitos metafísicos do mundo arcaico nem sempre eram formulados em linguagem teórica; mas o símbolo, o mito e o ritual expressam, em planos diversos, e com os meios que lhes são apropriados, um complexo sistema de afirmações coerentes sobre a realidade final das coisas, um sistema que pode ser visto como aquele que constitui a metafísica. (pág.17)

 

Arquétipos celestiais de territórios, templos e cidades

 

As cidades também têm protótipos divinos. Todas as cidades babilônicas tinham seus arquétipos nas constelações. (pág.20)

Uma Jerusalém celestial foi criada por Deus antes que a cidade fosse construída pela mão do homem. (pág.20)

O mundo que nos rodeia, o mundo no qual são sentidas a presença e a ação do homem – as montanhas que ele escala, as regiões povoadas e cultivadas, os rios navegáveis, as cidades, os santuários -, tudo isso tem um arquétipo extraterreno, seja ele concebido como um plano, como uma forma, ou pura e simplesmente como uma “cópia”, que existe em um nível cósmico mais elevado. Mas nem tudo, no mundo que nos envolve, tem um protótipo dessa espécie. Por exemplo, as regiões desérticas habitadas por monstros, as terras não-cultivadas, os mares desconhecidos para onde os navegadores não se arriscam a ir, não comungam com a cidade da Babilônia, ou com as primitivas províncias egípcias, o privilégio de um protótipo diferenciado. (pág.21)

O homem constrói de acordo com um arquétipo. Sua cidade ou seu templo não se baseiam apenas em modelos celestiais; a mesma coisa se aplica a toda a região que ele habita, com os rios que estão banhando, os campos de plantação que lhe dão comida, etc. O mapa da Babilônia mostra a Cida no centro de um vasto território circular, limitado por um rio, do mesmo modo como os sumérios idealizavam o Paraíso. Essa participação num modelo arquétipo, por parte das culturas urbanas, é o que lhe dá sua realidade e sua validade. (pág.22)

Cada território ocupado, com a finalidade de ser habitado ou utilizado como Lebensraum, antes de mais nada tem de ser transformado, do caos para o Cosmo; isto é por meio do efeito do ritual, ele recebe uma “forma”, que faz com que se torne real. Evidentemente, para a mentalidade arcaica, a realidade manifesta-se como uma força, eficiência e duração. Daí que a realidade em destaque é a sagrada; porque apenas o que é sagrado existe de maneira absoluta, agindo com eficiência, criando coisas e fazendo com que elas perdurem. Os inúmeros gestos de consagração de partes de territórios, objetos, homens, etc. revelam a obsessão primitiva com o real, sua sede pelo ser. (pág.22 e 23)

 

O simbolismo do centro

 

O simbolismo arquitetônico do Centro pode ser formulado do seguinte modo:

1.      A montanha sagrada – onde o céu e a Terra se encontram – está localizada bem no Centro do mundo.

2.      Cada templo e palácio – e, por extensão, toda cidade sagrada ou residência real – é considerado como uma montanha sagrada, sendo visto, portanto, como um Centro.

3.      Em suma condição de axis mundi, considera-se a cidade ou templo sagrado como o ponto de encontro entre o céu, a terra e o inferno. (pág.23)

O ponto mais alto da montanha cósmica não é apenas o ponto mais elevado da Terra; é também o umbigo do mundo, o ponto em que começou a Criação. Podemos inclusive encontrar exemplos nos quais as tradições cosmológicas explicam o simbolismo do Centro em termos que poderiam muito bem ter sido tomado emprestados da embriologia. (pág.25)

 

A repetição da cosmogonia

 

Portanto, preeminentemente, o Centro é o âmbito do sagrado, a zona da realidade absoluta. De modo semelhante, todos os demais símbolos da realidade absoluta (árvores da vida e imortalidade, fontes da juventude, etc.) encontram-se também situados em lugares centrais. (pág.26 e 25)

A estrada é árdua, repleta de perigos, porque, na verdade, representa um ritual de passagem do âmbito profano para o sagrado, do efêmero e ilusório para a realidade e a eternidade, da morte para a vida, do homem para a divindade. Chegar ao centro equivale a uma consagração, uma iniciação; a existência profana e ilusória de ontem dá lugar a uma nova, a uma vida que é real, duradoura, eficiente.

Se o ato da Criação realiza a passagem daquilo que não é manifesto para que é manifesto, ou, falando cosmologicamente, do caos para o Cosmo; se a Criação teve lugar a partir de um centro; se, conseqüentemente, todas as variedades do ser, desde o inanimado até o vivente, podem alcançar a existência apenas numa área de domínio sagrado – tudo isso ilumina de uma forma maravilhosa para nós o simbolismo das cidades sagradas (centros do mundo), as teorias geométricas que orientam a fundação de cidades, os conceitos a justificar os rituais que acompanham sua construção. Nós estudamos esses rituais de construção, e as teorias que eles implicam, numa obra anterior[1], e a ela remetemos o leitor. Aqui pretendemos destacar apenas duas importantes propostas:

  1. Toda criação repete o ato cosmogônico pré-eminente, a criação do mundo.
  2. Conseqüentemente, qualquer coisa que é fundada tem sua fundação no centro do mundo (desde que, como sabemos, a própria Criação teve lugar a partir de um centro). (pág.27)

 

Modelos divinos de rituais

 

Cada ritual tem um modelo divino, um arquétipo. (pág.29)

O homem limita-se a repetir o ato da Criação; seu calendário religioso comemora, no espaço de um ano, todas as fases cosmogônicas que tiveram lugar ab origine. Na verdade, o ano sagrado repete a Criação de modo incessante; o homem é contemporâneo à cosmogonia e à antropogenia, porque o ritual o projeta para a época mítica do princípio de tudo. Por meio de seus rituais de orgia, uma bacante imita o drama do sofrimento de Dionísio; e, através de seu cerimonial de iniciação, o órfico também repete os gestos originais de Orfeu. (pág.30)

Arquétipo de atividades profanas

 

Podemos dizer que o mundo arcaico nada sabe a respeito de atividades “profanas”: todos os atos que possuem significado definido – a caça, a pesca, a agricultura; jogos, conflitos, sexualidade, - de algum modo participam do sagrado.

As únicas atividades profanas são aquelas que não possuem qualquer significado mítico, isto é, que carecem de modelos exemplares. Assim, podemos dizer que, para o mundo arcaico, qualquer atividade responsável, em busca de um propósito definido, era um ritual. Mas, como a maior parte dessas atividades passou por um longo processo de dessacralização, tende-se transformado em profanas nas sociedades modernas, achamos apropriado agrupá-las de maneira separada. (pág.33)

 

Mitos e história

 

Um objeto ou um ato torna-se real apenas enquanto serve para imitar ou repetir um arquétipo. Assim, a realidade é alcançada unicamente por intermédio da repetição ou da participação; tudo o que carece de um modelo exemplar é “insignificante”, isto é, está destituído de realidade. Desse modo, os homens demonstram uma tendência no sentido de se tornarem arquétipos e paradigmáticos. Essa tendência pode até parecer paradoxal, no sentido de que o homem de uma cultura tradicional se vê como uma pessoa real apenas até o ponto em que deixa de ser ele próprio (para um observador moderno), satisfazendo-se com a imitação e a repetição dos gestos de outro. Ou seja, ele se vê como uma pessoa real, isto é, como “ele próprio de verdade”, apenas e unicamente até o ponto em que deixa de ser isso. Daí, pode-se afirmar que essa ontologia “primitiva” tem uma estrutura platônica: e, neste caso. Platão poderia ser encarado como o destacado filósofo da “mentalidade primitiva”, isto é, como o pensador que conseguiu dar coerência e validade filosófica aos modos de vida e comportamento da humanidade arcaica. Obviamente, isso em nada diminui a originalidade de seu gênio filosófico; porque ele merece toda a nossa admiração por seus esforços visando justificar teoricamente essa visão da humanidade arcaica, através dos meios dialéticos que a espiritualidade de sua época colocava à sua disposição.

Porém nosso interesse aqui nada tem a ver com esse aspecto da filosofia platônica; está concentrado, isto sim, sobre a ontologia arcaica. O reconhecimento da estrutura platônica dessa ontologia não nos levaria muito longe. Não menos importante á a segunda conclusão, a ser tirada da análise dos fatos citados nas páginas precedentes – isto é, a abolição do tempo, por meio da imitação de arquétipos e da repetição de gestos paradigmáticos. Um sacrifício, por exemplo, não só reproduz com exatidão o sacrifício original, revelado por um deus ab origine, no principio dos tempos, mas também é realizado naquele mesmo momento místico primordial; em outras palavras, cada sacrifício realizado repete o sacrifício e coincide com ele. Todos os sacrifícios são levados a cabo no mesmo instante mítico do principio; por meio do paradoxo do rito, ficam suspensos o tempo e a duração profanos. E isso também vale para todas as repetições, isto é, todas as limitações dos arquétipos; por meio de uma tal imitação, o homem é projetado para a época mítica em que os arquétipos foram pela primeira vez relevados. Assim, descobrimos um segundo aspecto da ontologia primitiva: até o ponto em que um ato (ou um objeto) adquire uma determinada realidade, por intermédio da repetição de certos gestos paradigmáticos, e só assim consegue adquiri-la, verifica-se uma abolição implícita do tempo profano, da duração, da “história”, e aquele que reproduz o gesto exemplar vê-se desse modo transportado para a época mítica em que sua revelação teve lugar.

Naturalmente, a abolição do tempo profano e a projeção do indivíduo para o tempo mítico só acontecem nos períodos essenciais – isto é, naqueles em que o indivíduo de fato é ele próprio: por ocasião de rituais ou atos importantes (alimentação, geração, cerimônias, caça, pesca, guerra, trabalho). O restante de sua vida é passado em tempo profano, que carece de todo significado: na condição de “transformar-se”. (pág.37, 38 e 39)

“O mito é o último – e não o primeiro – estágio no desenvolvimento de um herói”[2]. Mas isso apenas confirma a conclusão a que chegaram diversos pesquisadores (Caraman, entre outros): a lembrança de um episódio histórico ou de um personagem real sobrevive na memória popular durante dois ou três séculos, no máximo. E isto porque a memória popular encontra dificuldade em guardar a imagem de acontecimentos individuais e figuras reais. As estruturas por meio das quais ela funciona são diferentes: ao invés de episódios, arquétipos, em lugar de personagens históricos. Um personagem histórico se confunde com seu modelo mítico (herói, etc.), enquanto que o evento acaba sendo identificado com a categoria de ações míticas (luta contra um monstro, irmãos inimigos, etc.). Nos casos em que alguns poemas épicos conservam o que se chama de “verdade histórica”, essa verdade quase nunca tem relação com pessoas e eventos específicos, mas sim com instituições, costumes, paisagens. Assim, por exemplo, como abertura Murko, os poemas épicos sérvios descrevem com bastante exatidão a vida na fronteira austro-turca e truca-veneziana, antes da paz de Karlowitz, em 1699[3]. Mas essas “verdades históricas” não estão preocupadas com personalidades ou acontecimentos, e sim com as formas tradicionais de vida social e política (cuja “transformação” é mais lenta do que a “transformação” do indivíduo) – em suma, com os arquétipos.

A memória da coletividade é aistórica. Essa afirmativa não implica uma origem popular para o folclore, nem uma criação de caráter coletivo para a poesia épica. (pág.43 e 44)

Nada mais pretendemos dizer, a não ser que – à parte da origem dos temas folclóricos e do maior ou menor grau de talento encontrado nos criadores da poesia épica – a memória dos eventos históricos é modificada, depois de dois ou três séculos, e de tal maneira que pode encaixar-se na matriz da mentalidade arcaica, a qual não consegue aceitar aquilo que é individual, preservando apenas o que é exemplar. (pág.44)

Poderíamos dizer que a memória popular devolve ao personagem histórico dos tempos modernos o seu significado como imitador do arquétipo, além de reprodutor dos gestos arquétipos – um significado sobre o qual os membros da sociedades arcaicas sempre estiveram e continuam conscientes (conforme demonstram os exemplos citados neste capítulo), mas que foram esquecidos por personagens como Dieudoné de Gozon ou Marko Kraljevic.

Algumas vezes, embora seja muito raro, um pesquisador esbarra casualmente na transformação de um episódio em mito. (pág.44)

 

2.A Regeneração do Tempo

Ano, Ano Novo, cosmogonia

 

Na maior parte das sociedades primitivas, o Ano Novo equivale ao levantamento do tabu sobre as novas colheitas, que são assim declaradas comestíveis e inócuas para toda a comunidade. Nos lugares onde diversos tipos de grão e frutas são cultivados, amadurecendo sucessivamente durante as diversas estações, algumas vezes encontramos a celebração de festivais do Ano Novo[4]. Isso significa que as divisões do tempo são determinadas pelos rituais que orientam a renovação das reservas alimentares; isto é, os rituais que garantem a continuidade da vida da comunidade por inteiro. (pág.55)

Para nós, o fato essencial é que em toda parte existe uma concepção de final e de começo de um período de tempo, baseada na observação dos ritmos cósmicos e que faz parte de um sistema mais abrangente – o sistema de purificações periódicas (cf. expurgos, jejum, confissão dos pecados, etc.) e de regeneração periódica da vida. Essa necessidade de uma regeneração periódica nos parece ser de considerável significado em si mesma. (pág.56)

O fato de essa “salvação” periódica do homem encontrar um correspondente imediato na garantia de alimento para o ano seguinte (consagração da nova colheita) não deve servir para nos hipnotizar a ponto de vermos neste ritual apenas os sinais de um primitivo festival agrícola. Realmente, por uma lado, a alimentação tinha um significado ritual em todas as sociedades arcaicas; aquilo que chamamos de “valores vitais” na verdade representava a expressão de uma ontologia em termos bíblicos; para o homem arcaico, a vida é uma realidade absoluta, e, como tal, é sagrada. (pág.61)

 

Periodicidade da Criação

 

A Criação do mundo é reproduzida todos os anos, Alah é aquele que efetua a criação, e que, portanto, a repete (Quar’ân, X, 4 f). Essa eterna repetição do ato cosmogônico, por intermédio da transformação do Ano Novo em inauguração de uma nova era, permite o retorno dos mortos à vida, e mantém acesa a chama da esperança dos fiéis na ressurreição do corpo. (pág.62)

 

Contínua regeneração do tempo

 

Quanto às sociedades primitivas que ainda vivem no paraíso dos arquétipos, e para as quais o tempo é registrado apenas biologicamente, sem permissão para transformar-se em “histórias” – isto é, sem que sua ação corrosiva possa manifestar-se sobre a consciência, revelando a irreversibilidade dos acontecimentos - , essas sociedades primitivas regeneram-se periodicamente, por intermédio da expulsão de “demônios” e pela confissão dos pecados. A necessidade que essas sociedades também sentem por uma regeneração periódica também é uma prova de que elas não podem manter permanentemente sua posição naquilo que acabamos de chamar de paraíso dos arquétipos, e de que sua memória é capaz (embora com muito menor intensidade do que o homem moderno) de revelar a irreversibilidade dos acontecimentos, ou seja, da história registrada.

Assim, também entre esses povos primitivos, a existência do homem no Cosmo é vista como uma queda. A vasta e monótona morfologia da confissão dos pecados, apropriadamente estudada por R. Pettazzoni, em La confessione dei peccati, mostra-nos que é intolerável, mesmo nas mais simples sociedades humanas, a memória “histórica”, isto é, a lembrança dos fatos que não se originam em qualquer arquétipo, a recordação de acontecimentos de caráter pessoal (“pecados”, na maior parte dos casos). Nós sabemos que o começo do reconhecimento dos pecados era uma idéia mágica de eliminação de uma falta, através de algum modo físico (o sangue, as palavras, e assim por diante). Mas não é o procedimento da confissão em si que nos interessa aqui – ele é dotado de uma estrutura mágica -, mas sim a necessidade do homem primitivo em libertar-se da recordação dos pecados, isto é, de uma sucessão de acontecimentos de caráter pessoal que, tomados em conjunto, constituem a história.

Assim podemos notar a imensa importância de que desfrutava a regeneração coletiva, através da repetição do ato cosmogônico, entre os povos que criaram a história. (pág.70)

Os rituais de construção pressupõem, igualmente, a imitação mais ou menos explícita do ato cosmogônico. Para o homem tradicional, a imitação de um modelo arquétipo é a reatualização do momento mítico em que o arquétipo teria sido revelado pela primeira vez. Conseqüentemente, também essas cerimônias, que não são periódicas nem coletivas, suspendem o fluxo do tempo profano de duração, e projetam o celebrante na direção de um tempo mítico, in illo tempore. (pág.71)

Os rituais imitam um arquétipo divino, e que sua contínua reatualização tem lugar num mesmo instante mítico atemporal. No entanto, os rituais de construção nos mostram algo além disso: a imitação, e portanto a reatualização, da cosmogonia. Uma “nova era” abre-se com a construção de cada casa. Cada uma das construções representa um começo absoluto; ou seja, tende a restaurar o instante inicial. Claro que os rituais de construção encontrados nos nossos dias são, na sua maioria, meros sobreviventes dos rituais originários, sendo muito difícil determinar até que ponto eles se fazem acompanhador de uma experiência na consciência das pessoas que os observam. Mas essa objeção racionalista é negligenciável. O que importa de fato é que o homem sentiu a necessidade de reproduzir a cosmogonia em suas construções, fosse qual fosse sua natureza; importa que essa reprodução o tornava contemporâneo do momento mítico do princípio do mundo, e que ele sentia a necessidade, de modo a ser regenerar.

Seria necessário um grau bastante incomum de perspicácia para que qualquer pessoa pudesse dizer até que ponto aqueles que, no mundo moderno, continuam a repetir os rituais de construção ainda comungam de seu significado e deu seu mistério. Sem dúvida alguma, suas experiências, tomadas como um todo, são profanas: o Ano Novo assinalado por uma construção traduz-se num novo estágio da vida daqueles que devem morar na casa. Mas a estrutura do mito e do ritual permanece inalterada por qualquer dessas coisas, mesmo que as experiências provocadas por sua atualização nada mais sejam além de profano: uma construção é uma nova organização do mundo e da vida. Tudo que se precisa é de uma nova organização do mundo e da vida. Tudo que se precisa é de um homem moderno dotado de sensibilidade menos fechada para o milagre da vida; e a experiência da renovação renasceria para ele quando construísse uma nova casa ou entrasse nela pela primeira vez (do mesmo modo que até no mundo moderno, o Ano Novo ainda preserva o prestigio do fim do passado e de um reinício, de uma nova vida).

Em muitos casos, os documentos disponíveis são suficientemente explícitos: a construção de um santuário ou altar de sacrifícios repete a cosmogonia, e não apenas pelo fato de o santuário representar o mundo, mas também porque ele encarna os diversos ciclos temporais. (pág.71 e 72)

Essa idéia de que a vida não pode ser restaurada, mas apenas recriada por meio da repetição da cosmogonia, é mostrada de maneira bastante clara nos rituais de cura. De fato, entre muitos povos primitivos, um elemento essencial de qualquer cura era a recitação do mito cosmogônico; isso é documentado, por exemplo, entre as mais arcaicas tribos da Índia, os bhils, os santals e os baigas[5].É por intermédio da atualização da criação cósmica, modelo exemplar de toda a vida, que se espera pela restauração da saúde física e integridade espiritual do paciente. Entre essas tribos, o mito cosmogônico também é recitado por ocasião dos casamentos, nascimentos e mortes; porque é sempre através de um retorno simbólico ao instante atemporal da plenitude primordial que se espera pela garantia da perfeita realização de cada uma dessas situações. (pág.74 e 75)

 O que tem importância capital para nós, nesses sistemas arcaicos, é a abolição do tempo concreto, e daí sua intenção anti-história. Essa recusa em preservar a memória do passado, mesmo do passado imediato, parece-nos indicar uma antropologia particular. Referindo-nos à recusa do homem arcaico no sentido de aceitar-se como ser histórico, sua recusa em dar valor à memória e, portanto, aos acontecimentos fora do comum (isto é, eventos que não contam com um modelo arquétipo), que, de fato, constituem a duração concreta. Em uma última análise, o que descobrimos em todos esses rituais e em todas essas atitudes é um desejo no sentido de desvalorizar o tempo. Levados a seu extremo, todos os rituais e padrões de comportamento que vimos até aqui poderiam ser englobados na seguinte afirmativa: “Se não dermos atenção a ele, o tempo não existe; além do mais, sempre que ele se torna perceptível – por causa dos “pecados” do homem, isto é, quando o homem se afasta do arquétipo e cai na duração -, o tempo pode ser anulado”.

Basicamente, vista a partir de sua perspectiva apropriada, a vida do homem arcaico (uma vida reduzida à repetição dos atos arquétipos, ou seja, a categorias e não a eventos, ao incessante ensaio dos mesmos mitos primordiais), muito embora ela aconteça no tempo, não carrega o peso do tempo, não registra a irreversibilidade do tempo; em outras palavras, ignora por completo aquilo que é especialmente característico e decisivo numa consciência do tempo. Assim como o místico, como o homem religioso em geral, os primitivos viviam num presente contínuo. (E é neste sentido que o homem religioso pode ser considerado como “primitivo”; ele repete os gestos de outro e, por meio dessa repetição, sempre vive num presente atemporal.).

O fato de, para os primitivos, a regeneração do tempo ser continuamente efetuada – isto é, também dentro do intervalo do “ano” – fica provado pela antiguidade e universalidade de certas crenças relativas à lua. A lua é a primeira das criaturas a morrer, mas também a primeira a reviver. (pág.77 e 78)

Na “perspectiva lunar”, a morte do indivíduo e a morte periódica da humanidade são necessárias, assim como são necessários os três dias de escuridão que precedem o “renascimento” da lua. A morte do indivíduo e a morte da humanidade são também necessárias para sua regeneração. Seja qual for a forma, pelo simples fato de existir como tal e de permanecer, ela necessariamente perde o vigor e se torna desgastada. Para recuperar o vigor, precisa ser reabsorvida pelo âmbito disforme, ainda que seja só por um instante; precisa ser restaurada à unidade primordial de onde teve origem; em outras palavras, deve retornar ao “caos” (no plano cósmico), à “orgia” (no plano social), à “escuridão” (para a semente), à “água” (batismo, no plano humano; Atlântida, no plano da história, e assim por diante).

Devemos observar que o fato que predomina em todas essas concepções lunares cósmico-mitológicas é a repetição cíclica daquilo que existiu antes, ou seja, o eterno retorno. Aqui, encontramos de novo o motivo da repetição de um gesto arquétipo, projetado sobre todos os planos – cósmico, biológico, histórico, humano. Mas também descobrimos a estrutura cíclica do tempo, que é regenerado a cada novo “nascimento”, em qualquer desses planos. Esse eterno retorno revela uma ontologia não contaminada pelo tempo e pela transformação. Do mesmo modo como faziam os gregos, em sua mitologia do eterno retorno, procurando satisfazer sua sede metafísica pelo “ôntico” e o estático (porque, a partir do ponto de vista do infinito, a transformação das coisas que revertem perpetuamente ao mesmo estado é, como resultado, anulada de modo implícito, jamais sendo possível afirmar que “o mundo está parado”)[6], também faziam os primitivos, conferindo ao tempo uma direção cíclica, anulando assim sua irreversibilidade. Tudo começa de novo, no princípio, a cada instante. O passado nada mais é do que uma prefiguração do futuro. Nenhum acontecimento é irreversível, e nenhuma transformação é final. Num certo sentido, é até possível dizer que nada de novo acontece no mundo, pois tudo não passa de uma repetição dos mesmos arquétipos primordiais; esta repetição, ao atualizar o momento, mítico em que o gesto arquétipo foi revelado, mantém constantemente o mundo no mesmo instante inaugural do princípio. O tempo só torna possível o aparecimento e a existência das coisas. Não exerce uma influência final sobre sua existência, já que, ele próprio, passa por uma constante regeneração.

Hegel afirmava que, na natureza, as coisas se repetem para sempre, e que “nada há de novo debaixo do sol”. Tudo o que demonstramos até aqui confirma a existência de uma idéia semelhante no homem das sociedades arcaicas: para ele, as coisas se repetem de maneira infinita, e nada de novo acontece debaixo do sol. Mas essa repetição tem um significado, como já vimos no capítulo anterior: só ela confere a realidade aos acontecimentos; os fatos se repetem porque imitam um arquétipo – o evento exemplar. Além de mais, apesar dessa repetição, o tempo fica suspenso, ou pelo menos tem sua virulência reduzida. Mas a observação de Hegel tem um grande significado por outro motivo: Hegel esforça-se no sentido de estabelecer uma filosofia da história no qual o acontecimento histórico, apesar de ser irreversível e autônomo, nunca pode ser colocado numa dialética que permanece aberta. Para Hegel, a história é “livre” e sempre “nova”, nunca se repete; no entanto, conforma-se com os planos da providência; daí ela tem um modelo (ideal, mas mesmo assim um modelo) na dialética do próprio espírito. Em oposição a essa história que não se repete, Hegel coloca a natureza, na qual as coisas são reproduzidas ad infinitum. Mas já vimos que, durante um considerável período, a humanidade opôs-se à história, por todos os meios possíveis e imagináveis. Por acaso poderíamos concluir de tudo isso que, durante esse período, a humanidade ainda estivesse dentro da natureza, que ela ainda não se havia separado da natureza? “Só os animais são de fato inocentes”, escreveu Hegel no começo de suas Lectures on the Philosophy of History. Os primitivos não se consideravam sempre inocentes, mas tentavam retornar à condição da inocência, confessando periodicamente os seus pecados. Será que podemos ver, nessa tendência para a purificação, uma nostalgia pelo paraíso perdido do animalismo? Ou será que, por causa do desejo do homem primitivo em não ser “memória”, em não registrar o tempo, em contentar-se com a mera tolerância em relação ao tempo como uma simples dimensão de sua existência, mas sem “interiorizá-lo”, em transformá-lo em consciência, será que deveríamos ver aí a sua sede pelo “ôntico”, sua vontade de ser, de ser do mesmo modo que os seres arquétipos, cujos gestos ele repete o tempo todo?

O problema é da maior importância,e claro que não esperamos poder discuti-lo em poucas linhas. Mas temos razões para acreditar que, entre os povos primitivos, a nostalgia pelo paraíso perdido exclui qualquer desejo de restaurar o “paraíso do animalismo”. Tudo o que sabemos sobre a memória mítica do “paraíso” nos confronta, pelo contrário, com a imagem de uma humanidade ideal, desfrutando de uma beatitude e plenitude espiritual jamais realizável na presente condição do “homem caído”. Na verdade, os mitos de muitos povos aludem a uma época distante, na qual os homens não conheciam a morte nem a luta ou o sofrimento, e tinham um estoque abundante de alimento, bastando estender a mão e apanhá-lo. In illo tempore, os deuses desciam à Terra e se misturavam aos homens; por sua vez, os homens podiam subir com toda facilidade aos céus. Como resultado de uma falha ritual, as comunicações entre o céu e a Terra foram interrompidas, e os deuses retiraram-se para o ponto mais alto dos céus. Desde então, os homens têm de trabalhar por seu alimento, e deixaram de ser imortais.

Assim, é mais provável que o desejo sentido pelo homem das sociedades tradicionais, no sentido de recusar a história, e de confiar-se a uma infinita repetição dos arquétipos, esteja nos dando o testemunho de sua sede pelo real, e seu terror pela “perda” de si mesmo, deixando-se dominar pela falta de significado da existência profana.

Pouco importa se as fórmulas e imagens através das quais o homem primitivo expressa a “realidade” pareçam infantis e até mesmo absurdas para nós. É o profundo significado do comportamento primitivo que consideramos revelador; esse comportamento é governado pela crença numa realidade absoluta, oposta ao mundo profano das “irrealidades”; em última análise, este último não constitui um “mundo”, propriamente falando: ele é o “irreal” par excellence, aquele que não foi criado, o não existente: o vazio.

Assim, consideramos junto falar de uma ontologia arcaica, e é apenas ao levar em consideração essa ontologia que seremos capazes de entender e de não desprezar com zombarias mesmo o mais extravagante comportamento de parte do mundo primitivo; na verdade, esse comportamento corresponde a um esforço desesperado no sentido de não perder contato com o ser. (pág.79, 80 e 81)

 

3. Infortúnio e História

 

Normalidade do sofrimento

 

Como já tivemos oportunidade de demonstrar, o homem antigo usava de todos os meios que tinha a seu alcance, procurando assim colocar-se em oposição à história, vista como uma sucessão de acontecimentos que eram irreversíveis, imprevisíveis e carregados de enorme valor. Ele se recusava a aceitá-la e a lhe dar valor como tal, como história - embora sem mostra-se sempre capaz de exorcizá-la; por exemplo, ele não dispunha de meios que lhe permitissem combater as catástrofes cósmicas, os desastres militares, as injustiças sociais montadas com a própria estrutura, seria interessante aprender como essa “história” era tolerada pelo homem antigo; isto é, como ele suportava as calamidades, os desastres e os “sofrimentos” que entravam na vida de cada indivíduo e de cada coletividade.

Qual seria o significado da vida para um homem que pertence a uma cultura tradicional? Acima de tudo, significa viver de acordo com modelos extra-humanos, de conformidade com determinados arquétipos. Assim, significa viver no coração do real, já que – conforme o primeiro capítulo enfatiza – nada existe de verdadeiramente real, a não ser os arquétipos. Vivem em conformidade com os arquétipos significava respeitar a “lei”, pois a lei era apenas uma hierofania primordial, a revelação in illo tempore das normas da existência, feita por uma divindade ou um ser místico. E se, por meio da repetição de gestos paradigmáticos e através de cerimônias periódicas o homem antigo conseguia, como já vimos, anular o tempo, ainda assim ele vivia em harmonia com os ritmos cósmicos. Podemos até dizer que ele entrava nesses ritmos (basta que lembremos como a noite e o dia são “reais” para ele, assim como as estações, os ciclos da lua, os solstícios).

No quadro de uma tal existência, qual seria o significado do sofrimento e da cor? Certamente não era uma experiência insignificante que o homem só podia “tolerar”, já que seria inevitável, do mesmo modo que ele tolerava, por exemplo, os rigores do clima. Fosse qual fosse a sua natureza e sua causa aparente, o sofrimento tinha um significado; embora nem sempre, o sofrimento correspondia a um protótipo, pelo menos a uma ordem cujo valor não era contestado. (pág.89 e 90)

Se era possível tolerar esses sofrimentos, é precisamente porque eles não pareciam ser gratuitos, nem arbitrários. Seria supérfluo citar exemplos; eles podem ser encontrados em toda parte. O homem primitivo que vê seus campos destruídos pela seca, seu gado dizimado pelas doenças, seu filho doente, ele próprio atacado pela febre ou muitas vezes sem sorte alguma na caça, sabe muito bem que nenhuma dessas contingências se deve à casualidade, mas sim a certas influências mágicas ou demoníacas, contra as quais o sacerdote ou o feiticeiro dispõe de algumas armas. Assim, ele faz a mesma coisa que toda a comunidade faz, em caso de uma catástrofe: recorre ao feiticeiro para livrar-se de um efeito mágico, ou ao sacerdote para obter os favores dos deuses. Se a intervenção do feiticeiro ou do sacerdote não dá resultado, as partes interessadas recordam-se da existência do Ser Supremo, que é quase esquecido em outros momentos, e oram a ele, oferecendo-lhes sacrifícios. (pág.90)

O sofrimento procede da ação mágica de um inimigo, da quebra de um tabu, da entrada numa zona proibida, da ira de um deus, ou – quando todas as outras hipóteses forem insuficientes – do desejo ou da ira do Ser Supremo. Os primitivos – e não só os primitivos, como vamos ver logo adiante – não conseguem conceber o sofrimento não provocado[7]; ele surge de uma falta pessoal (se eles tiverem convencidos de que se trata de falta religiosa), ou da maldade de um vizinho (nos casos em que o feiticeiro descobre que se acha envolvida a ação mágica); mas no fundo sempre se manifesta uma falta, ou, quando menos, uma causa, reconhecida na vontade do esquecido Supremo Deus, a quem o homem acaba se vendo forçado a recorrer. Em cada caso, o sofrimento torna-se inteligível, e, portanto, tolerável. Contra esse sofrimento, os primitivos lutam com todos os recursos mágicos –religiosos de que dispõem – mas o toleram moralmente porque ele não é absurdo. O momento crítico do sofrimento está no seu aparecimento; o sofrimento só é perturbador enquanto sua causa permanecer desconhecida. Assim que o feiticeiro ou o sacerdote descobre o que está fazendo com que as crianças ou os animais morram, que a seca continue, a chuva aumente, a caça desapareça, o sofrimento começa a se tornar tolerável; adquire um significado e uma causa, podendo assim ser encaixado dentro de um sistema e explicado.

O que acabamos de dizer em relação aos povos primitivos aplica-se, em grande parte, ao homem das culturas antiga. Naturalmente, os motivos que produzem uma justificativa para o sofrimento e a dor variam de povo para povo, mas a justificativa é encontrada em toda parte. Em geral, pode-se afirmar que o sofrimento é considerado como a conseqüência de um desvio em relação às “normas”. É desnecessário dizer que essas normas variam de povo para povo, e de civilização para civilização. Mas, o que é importante para nós aqui é que, em parte alguma – dentro do quadro das antigas civilizações -, o sofrimento e a dor são vistos como “egos” e sem significado. (pág.91)

Embora o mundo antigo não nos apresente em parte alguma uma fórmula tão explícita como a do carma para explicar a normalidade do sofrimento, em todo lugar encontramos nela uma tendência igual, no sentido de dar ao sofrimento e aos acontecimentos históricos um “significado normal”. Está fora de nosso alcance tratar aqui de todas as expressões dessa tendência. Em quase toda parte nos deparamos com i antigo conceito (predominante entre os povos primitivos) segundo o qual o sofrimento deve ser imputado à vontade divina, seja por intervenção direta para produzi-lo, ou permitindo que outras forças, demoníacas ou divinas, o provoquem. (pág.92 e 93)

 

A história vista como teofania

 

Pela primeira vez, encontramos afirmada e cada vez mais aceita a idéia de que os acontecimentos históricos têm um valor em si mesmos, enquanto são determinados pela vontade de Deus. Esse  Deus do povo judeu já deixara de ser uma divindade oriental, criadora de gestos arquétipos, e passara a ser uma personalidade que intervinha incessantemente na história, que revela sua vontade por intermédio dos acontecimentos (invasões, cercos, batalhas, e assim por diante). Desse modo, os fatos históricos se transformam em “situações” do homem em relação a Deus, e, como tal, eles adquiriram um valor religioso que nada, antes, tinha conseguido lhes conferir. Assim, pode-se dizer, com um fundo de verdade, que os hebreus foram os primeiros a descobrir o significado da história como epifania de Deus, e essa concepção, como seria de esperar, acabou sendo assimilada e ampliada pelo cristianismo.

Podemos até nos perguntar se o monoteísmo, baseado na revolução pessoal e direta da divindade, não subentenderia necessariamente a “salvação” do tempo, seu valor dentro do quadro da história. Sem dúvida alguma, a idéia da revelação é encontrada, de modo mais ou menos evidente, em todas as religiões, e, podemos até dizer, em todas as culturas. De fato (o leitor pode referir-se ao primeiro capítulo), os gestos arquétipos – finalmente reproduzidos pelo homem, numa sucessão infinita – eram, ao mesmo tempo, hierofanias ou teofanias. A primeira dança, o primeiro duelo, a primeira expedição de pesca, assim como a primeira cerimônia de casamento ou o primeiro ritual transformaram-se em exemplos para a humanidade, porque revelavam um modo de existência da divindade, do homem primordial, do herói civilizador. Mas, essas revelações ocorreram num tempo mítico, no instante extratemporal do princípio; assim, como já vimos no primeiro capítulo, tudo de um certo modo, coincidia com o princípio do mundo, com a cosmogonia. Tudo tinha acontecido e fora revelado naquele momento, in illo tempore: a criação do mundo, a do homem, e o estabelecimento do homem na situação criada para ele no Cosmo, até o último detalhe dessa situação (fisiologia, sociologia, cultura, e assim por diante).

A situação é completamente diferente no caso da revelação monoteísta. Esta acontece no tempo, numa duração histórica: Moisés recebe a Lei num certo lugar e numa determinada data. Claro que também podemos ver aqui a manifestação de alguns arquétipos, no sentido de que esses acontecimentos, elevados à condição de exemplos, serão repetidos; mas eles não serão repetidos enquanto os tempos não se completarem, isto é, a repetição só terá lugar num novo illud tempus. Por exemplo, conforme profecia de Isaías (11, 15-16), as miraculosas travessias do Mar Vermelho e do rio Jordão serão repetidas “naquele dia”. Independente disso, o momento da revelação feita por Deus a Moisés permanece como momento limitado, definidamente situado em algum lugar do tempo. E, como ele também representa uma teofania, adquire uma nova dimensão: transforma-se  em momento precioso, já que não é mais reversível, por ter-se transformando em acontecimento histórico. (pág.96 e 97)

 

Ciclos cósmicos e história

 

Quase todas essas teorias do “Grande Tempo” são encontradas em conjunto com o mito das eras sucessivas, a “era do ouro” sempre ocorrendo no princípio do ciclo, perto do illud tempus paradigmático. Nas duas doutrinas – a do tempo cíclico e a do tempo cíclico limitado – essa era de ouro é recuperável; em outras palavras, é possível repeti-la, uma quantidade infinita de vezes, segundo a primeira dessas duas doutrinas, e uma única vez, conforme a outra. Não estamos mencionando estes fatos por seu interesse intrínseco, por maior que ele seja, mas para esclarecer o significado da história, a partir do ponto de vista de qualquer das duas doutrinas. (pág.101)

Não precisamos aqui nos preocupar com os inúmeros problemas levantados pelas civilizações helenistas orientais. O único aspecto que nos interessa é o lugar que o homem dessas civilizações encontra para si mesmo em relação à história e, mais especificamente, ao se defrontar com a história contemporânea. É por essa razão que não devemos nos demorar muito na origem, na estrutura e na evolução dos diversos sistemas cosmológicos nos quais o antigo mito dos ciclos cósmicos é elaborado e explorado, nem nas suas conseqüências filosóficas. Devemos rever esses sistemas cosmológicos – a partir dos pré-socrátes até o neopitagóricos – apenas enquanto responderem à seguinte pergunta: qual é o significado da história, isto é, da totalidade das experiências humanas provocada pelas inevitáveis condições geográficas, estruturas sociais, conjunturas políticas, e assim por diante? Queremos observar, logo de saída, que esta questão tem significado apenas apara uma minoria muito pequena durante o período das civilizações helenistas orientais – ou seja, apenas para aqueles que se dissociam do horizonte da espiritualidade primitiva. A imensa maioria dos seus contemporâneos ainda vivia, especialmente no começo do período, sob a influência dos arquétipos; só muito mais tarde é que esse grupo conseguiu sair dela (e talvez nunca tenha sido por completo, como é o caso, por exemplo, das sociedades agrícolas), durante o decurso das poderosas tensões históricas provocadas por Alexandre, e que não terminaram sequer com a queda de Roma. Mas os mitos filosóficos e as cosmologias mais ou menos científicas, elaboradas por essa minoria que começa com os pré-socráticos, com o passar do tempo alcançaram uma disseminação bastante generalizada. Aquilo que, no quinto século a.C., era uma gnose acessível apenas com grandes dificuldades, quatro séculos mais tarde tornava-se uma doutrina que servia para confortar centenas de milhares de homens (como testemunham, por exemplo, o neopitagorismo e o neo-estoicismo, no mundo romano). Claro que é por causa do “sucesso” que obtiveram mais tarde, e não em conseqüência de seu valor intrínseco, que todas essas doutrinas gregas e greco-orientais, baseadas no mito dos ciclos cósmicos, representam tema de interesse para nós.

Este mito ainda podia ser encontrado nas primeiras especulações pré-socráticas. Anaximandro sabe que todas as coisas nascem e retornam ao apeíron. Empédocles concebe a supremacia alternada dos dois princípios opostos, philia e neikos, como explicação para as eternas criações e destruições do Cosmo (um ciclo no qual podemos distinguir quatros fases[8], mais ou menos conforme os quatros “incalculáveis” da doutrina budista). Como já vimos antes, a conflagração universal também é aceita por Heráclito. Quanto ao eterno retorno – a retomada periódica, por parte de todos os seres, de suas vidas anteriores -, representa um dos poucos dogmas que, como sabemos com alguma certeza, faziam parte do pitagorismo primitivo[9]. Finalmente, segundo pesquisas recentes, utilizadas e sintetizadas de modo admirável por Josep Bidez[10], parece cada vez mais provável que pelo menos determinados elementos do sistema platônico são de origem iranico-babilônica.

Logo diante deveremos retornar a essas possíveis influências orientais. Por ora, vamos fazer uma pequena pausa para considerar a interpretação de Platão sobre o mito do retorno cíclico, mais especialmente no texto fundamental, que ocorre na Política, 269c ss. Platão encontra a causa da regressão cósmica e das catástrofes cósmicas num duplo movimento do Universo: “...deste nosso Universo, a divindade ora orienta inteiramente sua revolução circular, ora o abandona a si próprio, uma vez que suas revoluções tenham alcançado a duração que combina com este Universo; e ele então começa a girar na direção oposta, com seus próprios movimentos...” Esta mudança de direção é acompanhada de gigantescos cataclismos: “a maior destruição ocorreu tanto entre os animais em geral como no seio da raça humana, da qual, como seria de esperar, só restavam alguns poucos representantes” (270c). Mas essa catástrofe foi seguida de uma paradoxal ‘regeneração”. Os homens começaram a ficar jovens de novo: “os cabelos brancos da idade escureceram”, enquanto aqueles que estavam na puberdade começaram a diminuir de estatura dia a dia, até voltarem ao tamanho dos bebês recém-nascidos; então, finalmente, “ainda continuando a definhar, eles deixaram de existir por completo”. Os corpos daqueles que morreram nesse momento “desapareceram completamente, sem deixar qualquer sinal, depois de alguns dias” (270c). Foi então que nasceu a raça dos “Filhos da Terra” (gegeneis), cuja memória foi preservada por nossos ancestrais. Durante essa era de Cronos, não existiam animais selvagens nem inimizade entre os animais (271e). Os homens daqueles dias não tinham mulheres nem filhos: “Ao se erguerem da terra, todos eles voltaram a viver, sem conservar qualquer lembrança de sua antiga condição de vida”. As árvores lhes davam frutos em abundância, e eles dormiam sem roupa, sobre o chão, porque todas as estações tinham bom clima (272a)

O mito do paraíso primordial, evocado por Platão, e que conseguimos discernir nas crenças indianas, era conhecido dos hebreus (por exemplo, o illud tempus messeânico em Isaías 11, 6, 8; 65,25) assim como dos iranianos (Dênkart, VII, 9, 3-5) e das tradições greco-latinas[11]. Além do mais, combina perfeitamente com a concepção arcaica (e talvez até universal) do “principio paradisíaco”, que encontramos em todas as avaliações do illud tempus primordial. Não se pode considerar de modo algum assombroso o fato de Platão reproduz essas visões tradicionais nos diálogos que datam de sua velhice; a evolução de seu próprio pensamento filosófico o obrigou a redescobrir as categorias mitológicas. A memória da idade de ouro sob Cronos, sem dúvida alguma estava disponível para ele na tradição grega (cf., por exemplo, as quatros eras, descritas por Hesíodo, Erga, 110 ss). No entanto, este fato não representa impedimento para reconhecemos que também existem certas influências babilônicas no Política; quando, por exemplo, Platão atribui os cataclismos periódicos às revoluções planetárias, uma explicação que certas pesquisas recentes[12] derivariam de especulações astronômicas babilônicas, mais tarde colocadas à disposição do mundo helênico por intermédio da Babyloniaca, de Berossus. Segundo o Timeu, catástrofes parciais eram causadas pelo desvio planetário (cf. Timeu, 22d e 23e, dilúvio mencionado pelo sacerdote de Saïs), enquanto que o momento de encontro de todos os planetas é o do “tempo perfeito” (Timeu, 39d), ou seja, o do final do Grande Ano. Como observa Joseph Bidez: “a idéia de que a conjunção de todos os planetas é suficiente para provar uma convulsão universal, sem dúvida alguma é de origem caldéia”[13]. Por outro lado, também parece que Platão tinha conhecimento da concepção iraniana segundo a qual o propósito dessas catástrofes seria a purificação da raça humana (Timeu, 22d).

Os estóicos, para suas próprias finalidades, também reviveram as especulações que dizem respeito aos ciclos cósmicos, dando ênfase à repetição eterna[14], ou ao cataclismo, ekpyrosis, por meio do qual os ciclos cósmicos alcançam seu fim[15]. Baseando-se em Heráclito, ou diretamente no gnosticismo oriental, o estoicismo propaga todas as idéias a respeito do Grande Ano e do fogo cósmico (ekpyrosis), que periodicamente coloca fim ao Universo, de modo a renove-lo. Com o tempo, esses motivos do eterno retorno e do fim do mundo passam a dominar toda a cultura greco-romana. Além do mais, a renovação periódica do mundo (metacosmesis) era uma doutrina favorita do neopitagorismo, a filosofia que, conforme Jéròme Carcopino demonstrou, dividia com o estoicismo a lealdade da sociedade romana no segundo e terceiro século a.C. Mas a aceitação do mito da “repetição eterna”, assim como a da apokatastasis (termo que entrou no mundo helênico depois de Alexandre Magno), são duas posições filosóficas nas quais podemos observar uma determinada atitude anti-histórica, juntamente com um desejo do homem em defender-se da história. Vamos discutir ambas as posições.

Já observamos, no capítulo anterior, que o mito da repetição eterna, segundo a interpretação que lhe dava a especulação grega, tem o significado de uma suprema tentativa no sentido de tornar “estática”, a transformação, buscando anular a irreversibilidade do tempo. Se todos os momentos e todas as situações do Cosmo são repetidos ad infinitum, seu desaparecimento, em última análise, é patente; sub specie infinitatis, todos os momentos e todas as situações mantêm-se estacionários, adquirindo assim a ontológica ordem do arquétipo. Portanto, entre todas as formas de transformação, a transformação histórica também está saturada do ser. A partir do ponto de vista da repetição eterna, os acontecimentos históricos são transformados em categorias, e portanto reconquistam a ordem ontológica que possuíam no horizonte da espiritualidade arcaica. Num certo sentido, pode-se até dizer que a teoria grega do eterno retorno é a variação final experimentada pelo mito da repetição de um gesto arquétipo, do mesmo modo que a doutrina platônica de idéias foi a versão final do conceito do arquétipo, além de ter sido a mais completamente elaborada. E vale a pena observar que essas duas doutrinas encontram sua mais perfeita expressão no ponto mais alto do pensamento filosófico grego.

Mas foi especialmente o mito da conflagração universal que alcançou extraordinário sucesso no mundo greco-romano. (pág.105, 106, 107 e 108)

Simplificando, poderíamos dizer que, entre os iranianos, do mesmo modo que entre os judeus e os cristãos, a “história” partilha pelo Universo é limitada, e que o fim do mundo coincide com a destruição dos pecadores, a ressurreição dos mortos e a vitória da eternidade sobre o tempo.  Mas, embora esta doutrina se torne cada vez mais popular durante o primeiro século a.C. e os séculos iniciais de nossa era, ela não consegue vencer de uma vez por todas a tradicional doutrina da regeneração do mundo, através da repetição anual da Criação. Já vimos no capítulo anterior que os vestígios desta última doutrina foram preservados entre os iranianos até à Idade Média. Igualmente dominante no judaísmo pré-messiânico, ela jamais foi eliminada por completo, pois os círculos rabínicos hesitaram em mostrar exatidão quanto à duração que Deus teria fixado para o Cosmo, limitando-se a declarar apenas que o illud tempus sem dúvida alguma chegaria um dia. No cristianismo, por outro lado, a própria tradição evangélica implica que a βoίλειa Тоû θεoû já está presente “entre” (εvró) aqueles que acreditam, e que, portanto, o illud tempus pertence eternamente ao momento presente, sendo acessível a qualquer pessoa, a qualquer instante, por intermédio da metanóia. Já que o que está envolvido aqui é uma experiência religiosa totalmente diferente da experiência tradicional, como o que sta envolvido é a fé, o cristianismo traduz a regeneração periódica do mundo em uma regeneração do indivíduo humano. Mas, para aquele que comunga desse nunc eterno do reino de Deus, a história cessa de maneira tão total como cessa para o homem das culturas antigas, que consegue aboli-la periodicamente. Como conseqüência, para o cristão, também, a História pode ser regenerada, por e através de cada cessará de uma vez por todas, para toda a Criação.

Uma discussão adequada da revolução que o cristianismo introduziu na dialética da abolição da história, e da fuga em relação à ascendência do tempo, nos levaria muito além dos limites deste ensaio. Assim, pretendemos apenas observar que, mesmo dentro do quadro das três grandes religiões – iraniana, judaica e cristã – que limitaram a duração total do Cosmo a algum número específico de milênios, afirmando que a história acabará de uma vez por todas in illo tempore, ainda sobrevivem alguns sinais da doutrina primitiva da periódica regeneração da história. Em outras palavras, a história pode ser abolida, e, conseqüentemente, renovada uma série de vezes, antes que o eschaton final se manifeste. De fato, o ano litúrgico cristão baseia-se numa periódica e real repetição do Nascimento, da Paixão, morte e Ressurreição de Jesus, com tudo o que esse drama místico implica para um cristão; isto é, a regeneração pessoal e cósmica através da reatualização in concreto do nascimento, morte e ressurreição do Salvador. (pág.111e 112)

 

Destino e história

 

No entanto, em virtude da diferença entre as possíveis posições do homem, elas mostravam uma característica comum: a história podia ser tolerada, não só porque tinha um significado, mas também porque, em última análise, era necessária. Para aqueles que acreditavam numa repetição de todo um ciclo cósmico, assim como para aqueles que acreditavam apenas num único que se aproximava do seu fim, o drama da história contemporânea era necessário e inevitável. Platão, mesmo em seus tempos e apesar de sua aceitação de alguns dos planos da astrologia caldéia, era profuso em seu sarcasmo contra aqueles que tinham-se deixado cair no fatalismo astrológico, ou que acreditavam numa eterna repetição no sentido estrito (estóico) da palavra (cf., por exemplo, República, VIII, 546 ss). Quanto aos filósofos cristãos, eles desenvolveram uma luta sem tréguas contra o  mesmo fatalismo astrológico[16], que tinha aumentado durante os últimos séculos do Império Romano. Como vamos ver logo adiante, Santo Agostinho defenderá a idéia de uma Roma perene, só para escapar da aceitação de um fatum determinado pelas teorias cíclicas. Porém é verdade que o próprio fatalismo astrológico explicava o curso dos acontecimentos históricos, ajudando assim os contemporâneos a compreendê-los e tolerá-los, com o mesmo sucesso que haviam tido os vários gnosticismos greco-orientais, o neo-estoicismo e o neopitagorismo. Por exemplo, independente de a história ser ou não governada pelos movimentos dos corpos celestes, pelo processo cósmico puro e simples, que tinha de exigir uma desintegração, inevitavelmente vinculada a uma integração original, independente, uma vez mais, de estar sujeita à vontade de Deus, uma vontade que os poetas tinham sido capazes de observar, o resultado era sempre o mesmo: nenhuma das catástrofes manifestadas na história era arbitrária. Os impérios cresciam e caíam; as guerras causavam sofrimentos incalculáveis; aumentavam a imoralidade, a devassidão, a injustiça social – porque tudo isso era necessário, isto é, tinha sido desejado pelo ritmo cósmico, pelo demiurgo, pelas constelações, ou pela vontade de Deus. (pág.114 e 115)

Em tudo isso, como podemos ver, existe um esforço supremo no sentido de libertar a história do seu destino astral, ou da lei dos ciclos cósmicos, e de retornar, por intermédio do mito da eterna renovação de Roma, ao mito arcaico da regeneração anual (e em particular não catastrófica!) do Cosmo, através de sua eterna recriação pelo soberano ou o sacerdote. Acima de tudo, é uma tentativa de dar valor à história, no plano cósmico; isto é, de considerar os acontecimentos históricos e as catástrofes como combustões ou dissoluções cósmicas genuínas, que precisam periodicamente pôr fim ao Universo, de modo a permitir sua regeneração. As guerras, a destruição, os sofrimentos da história já não representam sinais premonitórios da transição entre uma era e outra, mas eles próprios constituem a transição. Assim, em cada período de paz, a história se renova e, conseqüentemente, começa um novo mundo; em última análise (como já vimos no caso do mito construído ao redor de Augusto), o soberano repete a criação do Cosmo.

Nós nos utilizamos do exemplo de Roma para mostrar até que ponto os acontecimentos históricos podiam ser valorizados pelo expediente dos mitos examinados no presente capítulo. Adaptadas a uma teoria particular de mito (idade de Roma, Grande Ano), as catástrofes não só podiam ser toleradas, mas seus contemporâneos davam positivamente um valor a elas, logo depois do seu aparecimento. Claro que a era do ouro, inaugurada por Augusto, tinha conseguindo sobreviver apenas por meio do que havia criado na cultura latina. Augusto mal havia falecido quando a história passou a desmentir a era do ouro. Quando Roma foi ocupada por Alarico, pareci que o sinal das doze águias de Rômulo tinha triunfado: a cidade estava entrando no seu décimo segundo e último século de existência. Foi apenas Santo agostinho que tentou mostrar que ninguém poderia saber o momento em que Deus decidiria colocar um fim à história, e que, de qualquer modo, embora as cidades, por sua própria natureza, tenham uma duração limitada, sendo “eterna” apenas a cidade de Deus, nenhum destino astral pode decidir a vida ou a morte de uma nação. Deste modo, o pensamento cristão demonstrava a tendência no sentido de transcender, de uma vez por todas, os velhos temas da repetição eterna, da mesma forma que tinha decidido transcender todos os outros pontos de vista arcaicos, por meio da revelação da importância da experiência religiosa da fé, e do valor da personalidade humana. (pág.116 e 117)

 

4. O Terror da História

 

Sobrevivência do mito do eterno retorno

 

Em resumo, seria necessário confrontar o “homem histórico” (o homem moderno), que consciente e voluntariamente cria a história, com o homem das civilizações tradicionais que, conforme já tivemos oportunidade de ver, demonstrava uma atitude genuína em relação à história. Independente de aboli-la periodicamente, de desvalorizá-la por meio do encontro de modelos trans-históricos e arquétipos para ele ou, por fim de lhe dar um significado meta-histórico (teoria cíclica, significados escatológicos e assim por diante), o homem das civilizações tradicionais não atribuía qualquer valor ao acontecimento histórico em si; em outras palavras, ele não o considerava como uma categoria específica de seu próprio modo de existência. Agora, uma comparação desses dois tipos de humanidade implica uma análise de todos os “historicismos” modernos e uma tal análise, para ser de fato útil, acabaria nos levando para muito longe do tema principal deste estudo. (pág. 123)

As dificuldades do historicismo

 

O reaparecimento das teorias cíclicas no pensamento contemporâneo está repleto de significação. Incompetentes que somos para passar julgamento sobre sua validade, devemos nos limitar a observar que a formulação de um mito arcaico, em termos modernos, representa, quando menos, uma traição ao desejo de encontrar um significado e uma justificação trans-histórica para os acontecimentos históricos. Assim, encontramo-nos uma vez mais na posição pré-hegeliana, com a validade das soluções “historicistas”, de Hegel a Marx, sendo implicitamente questionada. A partir de Hegel em diante, todo esforço é concentrado no sentido de conservar e atribuir um valor ao acontecimento histórico como tal, o acontecimento em si mesmo e par si mesmo. Em seu estudo da Constituição alemã, Hegel escreveu que, se reconhecermos que as coisas são necessariamente como elas são, isto é, que elas não são arbitrárias e nem resultam da casualidade, teremos ao mesmo tempo de reconhecer que elas devem ser como são. Um século mais tarde, o conceito da necessidade histórica vai desfrutar de uma aplicação prática cada vez mais triunfante: na verdade, todas as crueldades, aberrações e tragédias da história têm sido, e ainda são, justificadas pelas necessidades do “momento histórico”. Hegel provavelmente não pretendia ir tão longe. Mas, como tinha decidido reconciliar-se com seu próprio momento histórico, considerou-se obrigado a ver em cada acontecimento a vontade do espírito Universal. Por isso é que ele considerava “a leitura dos jornais matinais como uma espécie de bênção realista da manhã”. Para ele, só o contato diário com os acontecimentos podia orientar a conduta do homem em suas relações com o mundo e com Deus.

Como podia Hegel saber o que era necessário na história, o que, conseqüentemente, tinha de ocorrer, do jeito que havia ocorrido? Hegel acreditava saber qual era o desejo do Espírito Universal. Não pretendemos insistir sobre a audácia de suas teses, que, afinal de contas servem para abolir precisamente aquilo que Hegel pretendia salvar na história – a liberdade humana. Mas existe um aspecto na filosofia da história defendida por Hegel que nos interessa muito, porque ainda preserva algo da concepção judeu-cristã: para Hegel, o acontecimento histórico era a manifestação do Espírito Universal. Agora, é possível encontrar um paralelo entre a filosofia da história, de Hegel, e a teologia da história defendida pelos profetas hebreus: para estes últimos, assim como para Hegel, um acontecimento é irreversível e válido em si mesmo enquanto é uma nova manifestação da vontade de Deus – uma proposta que, verdadeiramente, consideramos revolucionária, do ponto de vista da sociedade tradicionais, dominadas pela eterna repetição dos arquétipos. Portanto, na visão de Hegel, o destino de um povo ainda preservava um significado trans-histórico, porque toda a história revela uma nova e mais completa manifestação do Espírito Universal. Mas, com Max, a história lançou fora todo o seu significado transcendental; já não era coisa alguma, além da epifania da luta de classes. Até que ponto uma tal teoria justifica o sofrimento histórico? Pra obter uma resposta, precisamos apenas voltar, por exemplo, para a patética resistência de um Belinsky ou um Dostoyevski, que perguntavam a si mesmos como, a partir do ponto de vista das dialéticas hegeliana e marxista, seria possível redimir todos os dramas da opressão, dos sofrimentos coletivos, das deportações, humilhações e massacres que enchem a história universal.

No entanto, o marxismo preserva um significado da história. Para o marxismo, os acontecimentos não são uma sucessão de acidentes arbitrários; eles demonstram ter uma estrutura coerente, e, acima de tudo, levam a um propósito definido – à eliminação final do terror da história, à “salvação”. Desta maneira, no ponto final da filosofia marxista da história, encontramos a era de ouro das escatologias arcaicas. Neste sentido, é correto afirmar não apenas que Marx “trouxe a filosofia de Hegel de volta à terra”, mas também que ele reconfirmou, em um nível exclusivamente humano, o valor do mito primitivo da era de ouro, com a diferença de que coloca a era de ouro no final da história, ao invés de colocá-la também no seu ponto inicial. Para o militante marxista, é aqui que está o segredo do remédio para o terror da história: da mesma forma que os contemporâneos de uma “era obscura” consolavam-se, diante dos seus sofrimentos cada vez maiores, com o pensamento de que o agravamento do mal acelera a libertação final, os militantes marxistas dos nossos dias interpretaram o drama provocado pelas pressões da história como um mal necessário, um sintoma premonitório da aproximação da vitória, que colocará um fim permanente a todos os “males” históricos.

O terror da história torna-se cada vez mais intolerável a partir dos pontos de vista proporcionados pelas várias filosofias historicistas. Porque nelas, naturalmente, cada acontecimento histórico encontra seu único e total significado apenas em sua realização. Não precisamos aqui entrar nas dificuldades teóricas do historicismo, que já serviram para perturbar Rickert, Troeltsch, Dilthey e Simmel, e que os recentes esforços de Croce, de Karl Mannheim, ou de Ortega y Gasset conseguiram apenas parcialmente ultrapassar[17]. Este ensaio não exige que discutamos o valor filosófico do historicismo como tal, nem a possibilidade de estabelecimento de uma “filosofia da história” que definitivamente transcendesse ao relativismo. O próprio Dilthey, aos setenta anos de idade, reconheceu que “a relatividade de todos os conceitos humanos é a última palavra da visão histórica do mundo”. Em vão ele proclamou uma allgemeine Lebenserfahrung como meio final de transcender a esta relatividade. E foi também em vão que Meinecke invocou o “exame de consciência” como uma experiência transubjetiva, capaz de transcender à relatividade da vida histórica. Heidegger tinha se dado ao trabalho de mostrar que a historicidade da existência humana proíbe toda esperança de transcendermos  ao tempo e à história.

Para nossos propósitos, só uma questão deve nos preocupar: como pode o “terror da história” ser tolerado a partir do ponto de vista do historicismo? A justificação de um acontecimento histórico, pelo simples fato de ser um acontecimento histórico, em outras palavras, pelo simples fato de ter “acontecido dessa maneira”, não caminha no sentido de libertar a humanidade do terror que o acontecimento inspira. Deve-se compreender que não estamos aqui preocupados com o problema do mal, que, independente do ângulo a partir do qual possa ser visto, permanece como um problema filosófico e religioso; estamos preocupados, isto sim, com o problema da história, do “mal” que está limitado não pela condição do homem, mas pelo seu comportamento em relação aos outros. Deveríamos querer saber, por exemplo, como seria possível tolerar e justificar os sofrimentos e a aniquilação de tantas pessoas que sofrem e que são aniquiladas pela simples razão de que sua situação geográfica as coloca no caminho da história; por serem vizinhos de impérios que se encontram em estado de permanente expansão. Como justificar, por exemplo, o fato de o sudeste da Europa ter sofrido durante séculos – sendo portanto obrigado a renunciar a qualquer impulso no sentido de uma existência histórica mais elevada, na direção da criação espiritual no plano universal – pela única razão de que  estava no caminho dos invasores asiáticos e, mais tarde, vizinho do Império Otomano? E, em nossos dias, quando as pressões históricas já não permitem mais qualquer fuga, como pode o homem tolerar as catástrofes e horrores da história – desde as deportações e massacres coletivos até os bombardeios atômicos – se, além deles, não consegue ver qualquer sinal nem significado trans-histórico; se esses acontecimentos são apenas as jogadas cegas de forças econômicas, sócias ou políticas, ou, pior ainda, unicamente o resultado das “liberdades” que uma minoria toma e exercita de modo direto sobre o cenário da história universal? (pág.127, 128, 129 e 130)

Não é de modo algum inadmissível pensar numa época, e uma época não muito distante, na qual a humanidade , para garantir sua própria sobrevivência, verse-á reduzida a desistir de qualquer nova tentativa de “fazer’ a história, no sentido em que a começou a fazer a partir da criação dos primeiros impérios, limitar-se-á a repetir gestos arquétipos prescritos, esforçando-se no sentido de esquecer, por serem insignificativos e até perigosos, determinados gestos espontâneos que poderiam trazer consigo algumas conseqüências “históricas”. Seria até interessante comparar a solução a história das sociedades futuras com os mitos paradisíacos ou escatológicos da era dourada do princípio ou do fim do mundo. Mas, como nossa intenção é perseguir essas especulações em outra obra, devemos agora voltar ao nosso problema, ou seja, à posição do homem histórico em relação ao homem arcaico, e procurar compreender as objeções levantadas contra este último, com base na visão historicista. (pág.131 e 132)

 

Liberdade e história

 

A decantada liberdade do homem moderno no sentido de fazer história é ilusória, para a quase totalidade da raça humana. No máximo, o homem é deixado livre para escolher entre duas posições:1) opor-se à história que está sendo feita por uma pequena minoria (e, neste caso, ele tem liberdade para escolher entre o suicídio e a deportação);  2) buscar refúgio  numa existência subumana ou na fuga. A “liberdade” que a existência histórica implica era possível – e mesmo então dentro de determinados limites – no principio do período moderno, mas a tendência que demonstra é de tornar-se inacessível, ao mesmo tempo em que o período vai-se tornando mais histórico, ou, em outras palavras, mais alheio a qualquer modelo trans-histórico. É perfeitamente natural, por exemplo, que o marxismo e o fascismo devam levar ao estabelecimento de dois tipos de existência histórica: a do líder (o único homem “livre” de fato) e a dos seguidores, que encontram, na existência, mas o legislador dos gestos que lhe são provisoriamente permitidos. (pág.133 e 134)

 

 

Editora Mercuryo Ltda

Ano: 1992

 

 

 



[1] Comentarii la legenda Mesterului Manole (Bucareste, 1943).

[2] Chadwick, III, p. 762.

[3] Matthias Murko, La Poésie populaire épique em Yougoalavie ou début du XX e siècle (Paris, 1929), p. 29. Um exame dos elementos históricos  e míticos nas literaturas épicas alemã, celta escandinava e outras não seencaixa no âmbito deste estudo. Sobre esta tema, o leitor pode referir-se aos três volumes de Chadwick.

[4] Martin P. Nilson, Primitive Time Rechoning (acta Societatis Humaniorum Litterarum Lundensis, I, Lund, 1920), p. 270.

[5] Wilhelm Kippers, Die Bhil in Zentralindien (Horn, 1948), pp. 241 ss.

[6] Vide a excelente exposição de Henri-Charles Puech, “Gnosis and Time”, em Man and Time (Nova York e Londres, 1957), em especial pp. 40-41: “Dominados por um ideal de inteligibilidade, que encontra autêntica e total existência apenas naquilo que existe em si mesmo e permanece idêntico consigo mesmo, no eterno e imutável, os gregos consideravam o movimento e a mudança como graus inferiores da realidade, na qual, quando muito, a identidade pode ser apreendida na forma da permanência e perpetuidade, resultando na repetição. O movimento circular, que garante a sobrevivência das mesmas coisas através de sua repetição (daí aquilo que está mais perto do divino) da imobilidade absoluta no ponto mais alto da hierarquia. Segundo a famosa definição platônica, o tempo, que é determinado e medido pela revolução das esferas celestiais, é a imagem móvel da eternidade imóvel, que ele imita por meio de seu movimento num círculo. Conseqüentemente, tanto o processo cósmico total como o tempo de nosso mundo de geração e apodrecimento desenvolvem-se num círculo, ou de acordo com uma sucessão infinita de ciclos, no decurso da qual a mesma realidade é produzida, desfeita e refeita, de conformidade com uma lei imutável e com alternâncias determinadas. A mesma soma está sendo preservada; nada é criado e nada perdido; além do mais, certos pensamentos de muita antiguidade – pitagoristas, estóicas, platônicas – chegaram ao ponto de afirmar que, dentro de cada um desses ciclos do tempo, desses aiones, dessa aeva, repetem-se as mesmas situações que já ocorreram nos ciclos precedentes, e que ocorrerão nos ciclos subseqüentes – e assim por diante, ad infinitum. Nenhum acontecimento é único, nada acontece apenas uma vez (por exemplo, a condenação, de Sócrates); todo episódio já aconteceu, é repetido, e será reprisado de modo perpétuo; os mesmos indivíduos apareceram, aparecem e continuarão aparecendo, a cada giro do círculo. O tempo cósmico é uma repetição e anakuklosis, o eterno retorno”.

[7] Uma vez mais enfatizados que, do ponto de vista dos povos ou classes a – históricos, o “sofrimento” é equivale à “história”. Essa equivalência pode ser observada ainda hoje, nas civilizações camponesas da Europa.

[8] Cf. Ettore Bignone, Empedocle (Turim, 1916), pp. 548 ss.

 

[9] Dicaearchos, citado por Porfírio, Vita Pythagorae, 19.

 

[10] Éos, ou Platon et l’Orient (Bruxelas, 1945), que leva especialmente em consideração as pesquisas de Boll, Bezold, W. Gundel, W. Jaeger, A. Götze, J. Stenzel e até mesmo as interpretações de Reitzenstein, apesar das objeções que algumas delas provocaram.

[11] Cf. Jérôme Carcopino, Virgile et lê mystère de la IV églogue (ed. Ver. E aum., Paris, 1943), pp. 72 ss.; Franz Cumont, “La Fin du monde selon les mages occidentaux”, Révue de l’Histoire des Religions (Paris), Jan. Junho, 1931, pp. 89 ss.

[12] Bidez, p. 76.

[13] Ibid., p. 83.

[14] Por exemplo, Chrysippus, Fragmentos 623-627.

[15] Já em Zwno; vide Fragmentos 98 e 109 (H.F.A. von Arnim, Stoicorum veterum fragmenta, I, Leipzing, 1921).

[16] Entre muitas outras libertações, o cristianismo influenciou a libertação do destino astral: “Estamos acima do destino”, escreve Tatian (Oratio ad Graecos, 9), resumindo a doutrina cristã. “O sol e a lua foram feitos para nós; como posso adorar aquilo que foi feito para me servir?” (ibid., 4.). Cf. também Santo Agostinho, De civitate Dei, XII, caps. X-XIII; sobre as idéias de São Basílio, Origens, São Gregório e Santo Agostinho, e sobre sua oposição às teorias cíclicas, vide Pierre Duhem, Le Système du monde (Paris, 1913-1917), II, pp. 446ss. Vide também Henri-Charles Puech, “Gnosis and Time”, em Man and Time, pp. 38ss.

[17] Queremos dizer, antes de mais nada, que as palavras “historismo” e “historicismos”  compreendem muitas correntes e orientações filosóficas antagonistas e diferentes. Basta lembrar o relativismo vitalista de Dilthey , o storicismo de Crocre, o attualismo de Gentile e a “razão histórica” de Ortega, para compreender a multiplicidade de avaliações filosóficas aplicada à história durante a primeira metade do século XX. Pra uma análise da posição atual de Croce, vide sua obre La storia come pensiero e come azione (Bari, 1938; 7 ed. Ver., 1965). Também J. Ortega y Gasset, Historia como sistema (Madri, 1941); Karl Mannheim, Ideology and Utopia (Trad. Por Louis Wirth e Edward Shils, Nova York, 1936). Sobre o problema da história, vide também Pedro Lain Entralgo, Medicina y historia (Madri, 1941); e Karl Löwith, Meaning in HIstory (Chicago, 1949).

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