Síntese:
Paolo Cugini
1. Arquétipos e Repetição
O
problema
É obvio que os
conceitos metafísicos do mundo arcaico nem sempre eram formulados em linguagem
teórica; mas o símbolo, o mito e o ritual expressam, em planos diversos, e com
os meios que lhes são apropriados, um complexo sistema de afirmações coerentes
sobre a realidade final das coisas, um sistema que pode ser visto como aquele
que constitui a metafísica. (pág.17)
Arquétipos
celestiais de territórios, templos e cidades
As cidades
também têm protótipos divinos. Todas as cidades babilônicas tinham seus
arquétipos nas constelações. (pág.20)
Uma Jerusalém
celestial foi criada por Deus antes que a cidade fosse construída pela mão do
homem. (pág.20)
O mundo que nos
rodeia, o mundo no qual são sentidas a presença e a ação do homem – as
montanhas que ele escala, as regiões povoadas e cultivadas, os rios navegáveis,
as cidades, os santuários -, tudo isso tem um arquétipo extraterreno, seja ele
concebido como um plano, como uma forma, ou pura e simplesmente como uma
“cópia”, que existe em um nível cósmico mais elevado. Mas nem tudo, no mundo
que nos envolve, tem um protótipo dessa espécie. Por exemplo, as regiões
desérticas habitadas por monstros, as terras não-cultivadas, os mares
desconhecidos para onde os navegadores não se arriscam a ir, não comungam com a
cidade da Babilônia, ou com as primitivas províncias egípcias, o privilégio de
um protótipo diferenciado. (pág.21)
O homem constrói
de acordo com um arquétipo. Sua cidade ou seu templo não se baseiam apenas em
modelos celestiais; a mesma coisa se aplica a toda a região que ele habita, com
os rios que estão banhando, os campos de plantação que lhe dão comida, etc. O
mapa da Babilônia mostra a Cida no centro de um vasto território circular,
limitado por um rio, do mesmo modo como os sumérios idealizavam o Paraíso. Essa
participação num modelo arquétipo, por parte das culturas urbanas, é o que lhe
dá sua realidade e sua validade. (pág.22)
Cada território
ocupado, com a finalidade de ser habitado ou utilizado como Lebensraum, antes
de mais nada tem de ser transformado, do caos para o Cosmo; isto é por meio do
efeito do ritual, ele recebe uma “forma”, que faz com que se torne real.
Evidentemente, para a mentalidade arcaica, a realidade manifesta-se como uma
força, eficiência e duração. Daí que a realidade em destaque é a sagrada;
porque apenas o que é sagrado existe de maneira absoluta, agindo com
eficiência, criando coisas e fazendo com que elas perdurem. Os inúmeros gestos
de consagração de partes de territórios, objetos, homens, etc. revelam a
obsessão primitiva com o real, sua sede pelo ser. (pág.22 e 23)
O simbolismo do centro
O simbolismo
arquitetônico do Centro pode ser formulado do seguinte modo:
1.
A montanha sagrada – onde o céu
e a Terra se encontram – está localizada bem no Centro do mundo.
2.
Cada templo e palácio – e, por
extensão, toda cidade sagrada ou residência real – é considerado como uma
montanha sagrada, sendo visto, portanto, como um Centro.
3.
Em suma condição de axis mundi,
considera-se a cidade ou templo sagrado como o ponto de encontro entre o céu, a
terra e o inferno. (pág.23)
O ponto mais
alto da montanha cósmica não é apenas o ponto mais elevado da Terra; é também o
umbigo do mundo, o ponto em que começou a Criação. Podemos inclusive encontrar
exemplos nos quais as tradições cosmológicas explicam o simbolismo do Centro em
termos que poderiam muito bem ter sido tomado emprestados da embriologia.
(pág.25)
A repetição da cosmogonia
Portanto, preeminentemente,
o Centro é o âmbito do sagrado, a zona da realidade absoluta. De modo
semelhante, todos os demais símbolos da realidade absoluta (árvores da vida e
imortalidade, fontes da juventude, etc.) encontram-se também situados em
lugares centrais. (pág.26 e 25)
A estrada é
árdua, repleta de perigos, porque, na verdade, representa um ritual de passagem
do âmbito profano para o sagrado, do efêmero e ilusório para a realidade e a
eternidade, da morte para a vida, do homem para a divindade. Chegar ao centro equivale
a uma consagração, uma iniciação; a existência profana e ilusória de ontem dá
lugar a uma nova, a uma vida que é real, duradoura, eficiente.
Se o ato da
Criação realiza a passagem daquilo que não é manifesto para que é manifesto,
ou, falando cosmologicamente, do caos para o Cosmo; se a Criação teve lugar a
partir de um centro; se, conseqüentemente, todas as variedades do ser, desde o
inanimado até o vivente, podem alcançar a existência apenas numa área de
domínio sagrado – tudo isso ilumina de uma forma maravilhosa para nós o
simbolismo das cidades sagradas (centros do mundo), as teorias geométricas que
orientam a fundação de cidades, os conceitos a justificar os rituais que
acompanham sua construção. Nós estudamos esses rituais de construção, e as teorias
que eles implicam, numa obra anterior[1],
e a ela remetemos o leitor. Aqui pretendemos destacar apenas duas importantes
propostas:
- Toda criação repete o ato
cosmogônico pré-eminente, a criação do mundo.
- Conseqüentemente, qualquer coisa
que é fundada tem sua fundação no centro do mundo (desde que, como
sabemos, a própria Criação teve lugar a partir de um centro). (pág.27)
Modelos divinos de rituais
Cada ritual tem
um modelo divino, um arquétipo. (pág.29)
O homem
limita-se a repetir o ato da Criação; seu calendário religioso comemora, no
espaço de um ano, todas as fases cosmogônicas que tiveram lugar ab origine. Na
verdade, o ano sagrado repete a Criação de modo incessante; o homem é
contemporâneo à cosmogonia e à antropogenia, porque o ritual o projeta para a
época mítica do princípio de tudo. Por meio de seus rituais de orgia, uma
bacante imita o drama do sofrimento de Dionísio; e, através de seu cerimonial
de iniciação, o órfico também repete os gestos originais de Orfeu. (pág.30)
Arquétipo de atividades profanas
Podemos dizer
que o mundo arcaico nada sabe a respeito de atividades “profanas”: todos os
atos que possuem significado definido – a caça, a pesca, a agricultura; jogos,
conflitos, sexualidade, - de algum modo participam do sagrado.
As únicas
atividades profanas são aquelas que não possuem qualquer significado mítico,
isto é, que carecem de modelos exemplares. Assim, podemos dizer que, para o
mundo arcaico, qualquer atividade responsável, em busca de um propósito
definido, era um ritual. Mas, como a maior parte dessas atividades passou por
um longo processo de dessacralização, tende-se transformado em profanas nas
sociedades modernas, achamos apropriado agrupá-las de maneira separada.
(pág.33)
Mitos e história
Um objeto ou um
ato torna-se real apenas enquanto serve para imitar ou repetir um arquétipo.
Assim, a realidade é alcançada unicamente por intermédio da repetição ou da
participação; tudo o que carece de um modelo exemplar é “insignificante”, isto
é, está destituído de realidade. Desse modo, os homens demonstram uma tendência
no sentido de se tornarem arquétipos e paradigmáticos. Essa tendência pode até
parecer paradoxal, no sentido de que o homem de uma cultura tradicional se vê
como uma pessoa real apenas até o ponto em que deixa de ser ele próprio (para
um observador moderno), satisfazendo-se com a imitação e a repetição dos gestos
de outro. Ou seja, ele se vê como uma pessoa real, isto é, como “ele próprio de
verdade”, apenas e unicamente até o ponto em que deixa de ser isso. Daí, pode-se
afirmar que essa ontologia “primitiva” tem uma estrutura platônica: e, neste
caso. Platão poderia ser encarado como o destacado filósofo da “mentalidade
primitiva”, isto é, como o pensador que conseguiu dar coerência e validade
filosófica aos modos de vida e comportamento da humanidade arcaica. Obviamente,
isso em nada diminui a originalidade de seu gênio filosófico; porque ele merece
toda a nossa admiração por seus esforços visando justificar teoricamente essa
visão da humanidade arcaica, através dos meios dialéticos que a espiritualidade
de sua época colocava à sua disposição.
Porém nosso
interesse aqui nada tem a ver com esse aspecto da filosofia platônica; está
concentrado, isto sim, sobre a ontologia arcaica. O reconhecimento da estrutura
platônica dessa ontologia não nos levaria muito longe. Não menos importante á a
segunda conclusão, a ser tirada da análise dos fatos citados nas páginas
precedentes – isto é, a abolição do tempo, por meio da imitação de arquétipos e
da repetição de gestos paradigmáticos. Um sacrifício, por exemplo, não só
reproduz com exatidão o sacrifício original, revelado por um deus ab origine,
no principio dos tempos, mas também é realizado naquele mesmo momento místico
primordial; em outras palavras, cada sacrifício realizado repete o sacrifício e
coincide com ele. Todos os sacrifícios são levados a cabo no mesmo instante
mítico do principio; por meio do paradoxo do rito, ficam suspensos o tempo e a
duração profanos. E isso também vale para todas as repetições, isto é, todas as
limitações dos arquétipos; por meio de uma tal imitação, o homem é projetado
para a época mítica em que os arquétipos foram pela primeira vez relevados.
Assim, descobrimos um segundo aspecto da ontologia primitiva: até o ponto em
que um ato (ou um objeto) adquire uma determinada realidade, por intermédio da
repetição de certos gestos paradigmáticos, e só assim consegue adquiri-la,
verifica-se uma abolição implícita do tempo profano, da duração, da “história”,
e aquele que reproduz o gesto exemplar vê-se desse modo transportado para a
época mítica em que sua revelação teve lugar.
Naturalmente, a
abolição do tempo profano e a projeção do indivíduo para o tempo mítico só
acontecem nos períodos essenciais – isto é, naqueles em que o indivíduo de fato
é ele próprio: por ocasião de rituais ou atos importantes (alimentação,
geração, cerimônias, caça, pesca, guerra, trabalho). O restante de sua vida é
passado em tempo profano, que carece de todo significado: na condição de
“transformar-se”. (pág.37, 38 e 39)
“O mito é o
último – e não o primeiro – estágio no desenvolvimento de um herói”[2].
Mas isso apenas confirma a conclusão a que chegaram diversos pesquisadores
(Caraman, entre outros): a lembrança de um episódio histórico ou de um
personagem real sobrevive na memória popular durante dois ou três séculos, no
máximo. E isto porque a memória popular encontra dificuldade em guardar a
imagem de acontecimentos individuais e figuras reais. As estruturas por meio
das quais ela funciona são diferentes: ao invés de episódios, arquétipos, em
lugar de personagens históricos. Um personagem histórico se confunde com seu
modelo mítico (herói, etc.), enquanto que o evento acaba sendo identificado com
a categoria de ações míticas (luta contra um monstro, irmãos inimigos, etc.).
Nos casos em que alguns poemas épicos conservam o que se chama de “verdade
histórica”, essa verdade quase nunca tem relação com pessoas e eventos
específicos, mas sim com instituições, costumes, paisagens. Assim, por exemplo,
como abertura Murko, os poemas épicos sérvios descrevem com bastante exatidão a
vida na fronteira austro-turca e truca-veneziana, antes da paz de Karlowitz, em
1699[3].
Mas essas “verdades históricas” não estão preocupadas com personalidades ou
acontecimentos, e sim com as formas tradicionais de vida social e política
(cuja “transformação” é mais lenta do que a “transformação” do indivíduo) – em
suma, com os arquétipos.
A memória da
coletividade é aistórica. Essa afirmativa não implica uma origem popular para o
folclore, nem uma criação de caráter coletivo para a poesia épica. (pág.43 e
44)
Nada mais
pretendemos dizer, a não ser que – à parte da origem dos temas folclóricos e do
maior ou menor grau de talento encontrado nos criadores da poesia épica – a
memória dos eventos históricos é modificada, depois de dois ou três séculos, e
de tal maneira que pode encaixar-se na matriz da mentalidade arcaica, a qual
não consegue aceitar aquilo que é individual, preservando apenas o que é
exemplar. (pág.44)
Poderíamos dizer
que a memória popular devolve ao personagem histórico dos tempos modernos o seu
significado como imitador do arquétipo, além de reprodutor dos gestos
arquétipos – um significado sobre o qual os membros da sociedades arcaicas
sempre estiveram e continuam conscientes (conforme demonstram os exemplos
citados neste capítulo), mas que foram esquecidos por personagens como Dieudoné
de Gozon ou Marko Kraljevic.
Algumas vezes,
embora seja muito raro, um pesquisador esbarra casualmente na transformação de
um episódio em mito. (pág.44)
2.A Regeneração do Tempo
Ano, Ano Novo, cosmogonia
Na maior parte
das sociedades primitivas, o Ano Novo equivale ao levantamento do tabu sobre as
novas colheitas, que são assim declaradas comestíveis e inócuas para toda a
comunidade. Nos lugares onde diversos tipos de grão e frutas são cultivados,
amadurecendo sucessivamente durante as diversas estações, algumas vezes
encontramos a celebração de festivais do Ano Novo[4].
Isso significa que as divisões do tempo são determinadas pelos rituais que
orientam a renovação das reservas alimentares; isto é, os rituais que garantem
a continuidade da vida da comunidade por inteiro. (pág.55)
Para nós, o fato
essencial é que em toda parte existe uma concepção de final e de começo de um
período de tempo, baseada na observação dos ritmos cósmicos e que faz parte de
um sistema mais abrangente – o sistema de purificações periódicas (cf.
expurgos, jejum, confissão dos pecados, etc.) e de regeneração periódica da
vida. Essa necessidade de uma regeneração periódica nos parece ser de considerável
significado em si mesma. (pág.56)
O fato de essa
“salvação” periódica do homem encontrar um correspondente imediato na garantia
de alimento para o ano seguinte (consagração da nova colheita) não deve servir
para nos hipnotizar a ponto de vermos neste ritual apenas os sinais de um
primitivo festival agrícola. Realmente, por uma lado, a alimentação tinha um
significado ritual em todas as sociedades arcaicas; aquilo que chamamos de
“valores vitais” na verdade representava a expressão de uma ontologia em termos
bíblicos; para o homem arcaico, a vida é uma realidade absoluta, e, como tal, é
sagrada. (pág.61)
Periodicidade da Criação
A Criação do
mundo é reproduzida todos os anos, Alah é aquele que efetua a criação, e que,
portanto, a repete (Quar’ân, X, 4 f). Essa eterna repetição do ato cosmogônico,
por intermédio da transformação do Ano Novo em inauguração de uma nova era,
permite o retorno dos mortos à vida, e mantém acesa a chama da esperança dos
fiéis na ressurreição do corpo. (pág.62)
Contínua regeneração do tempo
Quanto às
sociedades primitivas que ainda vivem no paraíso dos arquétipos, e para as
quais o tempo é registrado apenas biologicamente, sem permissão para
transformar-se em “histórias” – isto é, sem que sua ação corrosiva possa
manifestar-se sobre a consciência, revelando a irreversibilidade dos
acontecimentos - , essas sociedades primitivas regeneram-se periodicamente, por
intermédio da expulsão de “demônios” e pela confissão dos pecados. A
necessidade que essas sociedades também sentem por uma regeneração periódica
também é uma prova de que elas não podem manter permanentemente sua posição
naquilo que acabamos de chamar de paraíso dos arquétipos, e de que sua memória
é capaz (embora com muito menor intensidade do que o homem moderno) de revelar
a irreversibilidade dos acontecimentos, ou seja, da história registrada.
Assim, também
entre esses povos primitivos, a existência do homem no Cosmo é vista como uma
queda. A vasta e monótona morfologia da confissão dos pecados, apropriadamente
estudada por R. Pettazzoni, em La confessione dei peccati, mostra-nos que é
intolerável, mesmo nas mais simples sociedades humanas, a memória “histórica”,
isto é, a lembrança dos fatos que não se originam em qualquer arquétipo, a
recordação de acontecimentos de caráter pessoal (“pecados”, na maior parte dos
casos). Nós sabemos que o começo do reconhecimento dos pecados era uma idéia
mágica de eliminação de uma falta, através de algum modo físico (o sangue, as
palavras, e assim por diante). Mas não é o procedimento da confissão em si que
nos interessa aqui – ele é dotado de uma estrutura mágica -, mas sim a
necessidade do homem primitivo em libertar-se da recordação dos pecados, isto
é, de uma sucessão de acontecimentos de caráter pessoal que, tomados em
conjunto, constituem a história.
Assim podemos
notar a imensa importância de que desfrutava a regeneração coletiva, através da
repetição do ato cosmogônico, entre os povos que criaram a história. (pág.70)
Os rituais de
construção pressupõem, igualmente, a imitação mais ou menos explícita do ato
cosmogônico. Para o homem tradicional, a imitação de um modelo arquétipo é a
reatualização do momento mítico em que o arquétipo teria sido revelado pela
primeira vez. Conseqüentemente, também essas cerimônias, que não são periódicas
nem coletivas, suspendem o fluxo do tempo profano de duração, e projetam o
celebrante na direção de um tempo mítico, in illo tempore. (pág.71)
Os rituais
imitam um arquétipo divino, e que sua contínua reatualização tem lugar num
mesmo instante mítico atemporal. No entanto, os rituais de construção nos
mostram algo além disso: a imitação, e portanto a reatualização, da cosmogonia.
Uma “nova era” abre-se com a construção de cada casa. Cada uma das construções
representa um começo absoluto; ou seja, tende a restaurar o instante inicial.
Claro que os rituais de construção encontrados nos nossos dias são, na sua
maioria, meros sobreviventes dos rituais originários, sendo muito difícil
determinar até que ponto eles se fazem acompanhador de uma experiência na consciência
das pessoas que os observam. Mas essa objeção racionalista é negligenciável. O
que importa de fato é que o homem sentiu a necessidade de reproduzir a
cosmogonia em suas construções, fosse qual fosse sua natureza; importa que essa
reprodução o tornava contemporâneo do momento mítico do princípio do mundo, e
que ele sentia a necessidade, de modo a ser regenerar.
Seria necessário
um grau bastante incomum de perspicácia para que qualquer pessoa pudesse dizer
até que ponto aqueles que, no mundo moderno, continuam a repetir os rituais de
construção ainda comungam de seu significado e deu seu mistério. Sem dúvida
alguma, suas experiências, tomadas como um todo, são profanas: o Ano Novo
assinalado por uma construção traduz-se num novo estágio da vida daqueles que
devem morar na casa. Mas a estrutura do mito e do ritual permanece inalterada
por qualquer dessas coisas, mesmo que as experiências provocadas por sua
atualização nada mais sejam além de profano: uma construção é uma nova
organização do mundo e da vida. Tudo que se precisa é de uma nova organização
do mundo e da vida. Tudo que se precisa é de um homem moderno dotado de
sensibilidade menos fechada para o milagre da vida; e a experiência da
renovação renasceria para ele quando construísse uma nova casa ou entrasse nela
pela primeira vez (do mesmo modo que até no mundo moderno, o Ano Novo ainda
preserva o prestigio do fim do passado e de um reinício, de uma nova vida).
Em muitos casos,
os documentos disponíveis são suficientemente explícitos: a construção de um
santuário ou altar de sacrifícios repete a cosmogonia, e não apenas pelo fato
de o santuário representar o mundo, mas também porque ele encarna os diversos
ciclos temporais. (pág.71 e 72)
Essa idéia de
que a vida não pode ser restaurada, mas apenas recriada por meio da repetição
da cosmogonia, é mostrada de maneira bastante clara nos rituais de cura. De
fato, entre muitos povos primitivos, um elemento essencial de qualquer cura era
a recitação do mito cosmogônico; isso é documentado, por exemplo, entre as mais
arcaicas tribos da Índia, os bhils, os santals e os baigas[5].É
por intermédio da atualização da criação cósmica, modelo exemplar de toda a
vida, que se espera pela restauração da saúde física e integridade espiritual
do paciente. Entre essas tribos, o mito cosmogônico também é recitado por
ocasião dos casamentos, nascimentos e mortes; porque é sempre através de um
retorno simbólico ao instante atemporal da plenitude primordial que se espera
pela garantia da perfeita realização de cada uma dessas situações. (pág.74 e
75)
O que tem importância capital para nós, nesses
sistemas arcaicos, é a abolição do tempo concreto, e daí sua intenção
anti-história. Essa recusa em preservar a memória do passado, mesmo do passado
imediato, parece-nos indicar uma antropologia particular. Referindo-nos à
recusa do homem arcaico no sentido de aceitar-se como ser histórico, sua recusa
em dar valor à memória e, portanto, aos acontecimentos fora do comum (isto é,
eventos que não contam com um modelo arquétipo), que, de fato, constituem a
duração concreta. Em uma última análise, o que descobrimos em todos esses
rituais e em todas essas atitudes é um desejo no sentido de desvalorizar o
tempo. Levados a seu extremo, todos os rituais e padrões de comportamento que
vimos até aqui poderiam ser englobados na seguinte afirmativa: “Se não dermos
atenção a ele, o tempo não existe; além do mais, sempre que ele se torna
perceptível – por causa dos “pecados” do homem, isto é, quando o homem se
afasta do arquétipo e cai na duração -, o tempo pode ser anulado”.
Basicamente,
vista a partir de sua perspectiva apropriada, a vida do homem arcaico (uma vida
reduzida à repetição dos atos arquétipos, ou seja, a categorias e não a
eventos, ao incessante ensaio dos mesmos mitos primordiais), muito embora ela
aconteça no tempo, não carrega o peso do tempo, não registra a
irreversibilidade do tempo; em outras palavras, ignora por completo aquilo que
é especialmente característico e decisivo numa consciência do tempo. Assim como
o místico, como o homem religioso em geral, os primitivos viviam num presente
contínuo. (E é neste sentido que o homem religioso pode ser considerado como
“primitivo”; ele repete os gestos de outro e, por meio dessa repetição, sempre
vive num presente atemporal.).
O fato de, para
os primitivos, a regeneração do tempo ser continuamente efetuada – isto é,
também dentro do intervalo do “ano” – fica provado pela antiguidade e
universalidade de certas crenças relativas à lua. A lua é a primeira das
criaturas a morrer, mas também a primeira a reviver. (pág.77 e 78)
Na “perspectiva
lunar”, a morte do indivíduo e a morte periódica da humanidade são necessárias,
assim como são necessários os três dias de escuridão que precedem o
“renascimento” da lua. A morte do indivíduo e a morte da humanidade são também
necessárias para sua regeneração. Seja qual for a forma, pelo simples fato de
existir como tal e de permanecer, ela necessariamente perde o vigor e se torna
desgastada. Para recuperar o vigor, precisa ser reabsorvida pelo âmbito disforme,
ainda que seja só por um instante; precisa ser restaurada à unidade primordial
de onde teve origem; em outras palavras, deve retornar ao “caos” (no plano
cósmico), à “orgia” (no plano social), à “escuridão” (para a semente), à “água”
(batismo, no plano humano; Atlântida, no plano da história, e assim por
diante).
Devemos observar
que o fato que predomina em todas essas concepções lunares cósmico-mitológicas
é a repetição cíclica daquilo que existiu antes, ou seja, o eterno retorno.
Aqui, encontramos de novo o motivo da repetição de um gesto arquétipo,
projetado sobre todos os planos – cósmico, biológico, histórico, humano. Mas
também descobrimos a estrutura cíclica do tempo, que é regenerado a cada novo
“nascimento”, em qualquer desses planos. Esse eterno retorno revela uma
ontologia não contaminada pelo tempo e pela transformação. Do mesmo modo como
faziam os gregos, em sua mitologia do eterno retorno, procurando satisfazer sua
sede metafísica pelo “ôntico” e o estático (porque, a partir do ponto de vista
do infinito, a transformação das coisas que revertem perpetuamente ao mesmo
estado é, como resultado, anulada de modo implícito, jamais sendo possível
afirmar que “o mundo está parado”)[6],
também faziam os primitivos, conferindo ao tempo uma direção cíclica, anulando
assim sua irreversibilidade. Tudo começa de novo, no princípio, a cada
instante. O passado nada mais é do que uma prefiguração do futuro. Nenhum
acontecimento é irreversível, e nenhuma transformação é final. Num certo
sentido, é até possível dizer que nada de novo acontece no mundo, pois tudo não
passa de uma repetição dos mesmos arquétipos primordiais; esta repetição, ao
atualizar o momento, mítico em que o gesto arquétipo foi revelado, mantém
constantemente o mundo no mesmo instante inaugural do princípio. O tempo só
torna possível o aparecimento e a existência das coisas. Não exerce uma
influência final sobre sua existência, já que, ele próprio, passa por uma
constante regeneração.
Hegel afirmava
que, na natureza, as coisas se repetem para sempre, e que “nada há de novo
debaixo do sol”. Tudo o que demonstramos até aqui confirma a existência de uma
idéia semelhante no homem das sociedades arcaicas: para ele, as coisas se
repetem de maneira infinita, e nada de novo acontece debaixo do sol. Mas essa
repetição tem um significado, como já vimos no capítulo anterior: só ela
confere a realidade aos acontecimentos; os fatos se repetem porque imitam um
arquétipo – o evento exemplar. Além de mais, apesar dessa repetição, o tempo
fica suspenso, ou pelo menos tem sua virulência reduzida. Mas a observação de
Hegel tem um grande significado por outro motivo: Hegel esforça-se no sentido
de estabelecer uma filosofia da história no qual o acontecimento histórico,
apesar de ser irreversível e autônomo, nunca pode ser colocado numa dialética
que permanece aberta. Para Hegel, a história é “livre” e sempre “nova”, nunca
se repete; no entanto, conforma-se com os planos da providência; daí ela tem um
modelo (ideal, mas mesmo assim um modelo) na dialética do próprio espírito. Em
oposição a essa história que não se repete, Hegel coloca a natureza, na qual as
coisas são reproduzidas ad infinitum. Mas já vimos que, durante um considerável
período, a humanidade opôs-se à história, por todos os meios possíveis e
imagináveis. Por acaso poderíamos concluir de tudo isso que, durante esse
período, a humanidade ainda estivesse dentro da natureza, que ela ainda não se
havia separado da natureza? “Só os animais são de fato inocentes”, escreveu
Hegel no começo de suas Lectures on the Philosophy of History. Os primitivos
não se consideravam sempre inocentes, mas tentavam retornar à condição da
inocência, confessando periodicamente os seus pecados. Será que podemos ver,
nessa tendência para a purificação, uma nostalgia pelo paraíso perdido do
animalismo? Ou será que, por causa do desejo do homem primitivo em não ser
“memória”, em não registrar o tempo, em contentar-se com a mera tolerância em
relação ao tempo como uma simples dimensão de sua existência, mas sem
“interiorizá-lo”, em transformá-lo em consciência, será que deveríamos ver aí a
sua sede pelo “ôntico”, sua vontade de ser, de ser do mesmo modo que os seres
arquétipos, cujos gestos ele repete o tempo todo?
O problema é da
maior importância,e claro que não esperamos poder discuti-lo em poucas linhas.
Mas temos razões para acreditar que, entre os povos primitivos, a nostalgia
pelo paraíso perdido exclui qualquer desejo de restaurar o “paraíso do
animalismo”. Tudo o que sabemos sobre a memória mítica do “paraíso” nos
confronta, pelo contrário, com a imagem de uma humanidade ideal, desfrutando de
uma beatitude e plenitude espiritual jamais realizável na presente condição do
“homem caído”. Na verdade, os mitos de muitos povos aludem a uma época
distante, na qual os homens não conheciam a morte nem a luta ou o sofrimento, e
tinham um estoque abundante de alimento, bastando estender a mão e apanhá-lo.
In illo tempore, os deuses desciam à Terra e se misturavam aos homens; por sua
vez, os homens podiam subir com toda facilidade aos céus. Como resultado de uma
falha ritual, as comunicações entre o céu e a Terra foram interrompidas, e os
deuses retiraram-se para o ponto mais alto dos céus. Desde então, os homens têm
de trabalhar por seu alimento, e deixaram de ser imortais.
Assim, é mais
provável que o desejo sentido pelo homem das sociedades tradicionais, no
sentido de recusar a história, e de confiar-se a uma infinita repetição dos
arquétipos, esteja nos dando o testemunho de sua sede pelo real, e seu terror
pela “perda” de si mesmo, deixando-se dominar pela falta de significado da
existência profana.
Pouco importa se
as fórmulas e imagens através das quais o homem primitivo expressa a
“realidade” pareçam infantis e até mesmo absurdas para nós. É o profundo
significado do comportamento primitivo que consideramos revelador; esse
comportamento é governado pela crença numa realidade absoluta, oposta ao mundo
profano das “irrealidades”; em última análise, este último não constitui um
“mundo”, propriamente falando: ele é o “irreal” par excellence, aquele que não
foi criado, o não existente: o vazio.
Assim,
consideramos junto falar de uma ontologia arcaica, e é apenas ao levar em
consideração essa ontologia que seremos capazes de entender e de não desprezar
com zombarias mesmo o mais extravagante comportamento de parte do mundo
primitivo; na verdade, esse comportamento corresponde a um esforço desesperado
no sentido de não perder contato com o ser. (pág.79, 80 e 81)
3. Infortúnio e História
Normalidade do sofrimento
Como já tivemos
oportunidade de demonstrar, o homem antigo usava de todos os meios que tinha a
seu alcance, procurando assim colocar-se em oposição à história, vista como uma
sucessão de acontecimentos que eram irreversíveis, imprevisíveis e carregados
de enorme valor. Ele se recusava a aceitá-la e a lhe dar valor como tal, como
história - embora sem mostra-se sempre capaz de exorcizá-la; por exemplo, ele
não dispunha de meios que lhe permitissem combater as catástrofes cósmicas, os
desastres militares, as injustiças sociais montadas com a própria estrutura,
seria interessante aprender como essa “história” era tolerada pelo homem
antigo; isto é, como ele suportava as calamidades, os desastres e os
“sofrimentos” que entravam na vida de cada indivíduo e de cada coletividade.
Qual seria o
significado da vida para um homem que pertence a uma cultura tradicional? Acima
de tudo, significa viver de acordo com modelos extra-humanos, de conformidade
com determinados arquétipos. Assim, significa viver no coração do real, já que
– conforme o primeiro capítulo enfatiza – nada existe de verdadeiramente real,
a não ser os arquétipos. Vivem em conformidade com os arquétipos significava
respeitar a “lei”, pois a lei era apenas uma hierofania primordial, a revelação
in illo tempore das normas da existência, feita por uma divindade ou um ser
místico. E se, por meio da repetição de gestos paradigmáticos e através de
cerimônias periódicas o homem antigo conseguia, como já vimos, anular o tempo,
ainda assim ele vivia em harmonia com os ritmos cósmicos. Podemos até dizer que
ele entrava nesses ritmos (basta que lembremos como a noite e o dia são “reais”
para ele, assim como as estações, os ciclos da lua, os solstícios).
No quadro de uma
tal existência, qual seria o significado do sofrimento e da cor? Certamente não
era uma experiência insignificante que o homem só podia “tolerar”, já que seria
inevitável, do mesmo modo que ele tolerava, por exemplo, os rigores do clima.
Fosse qual fosse a sua natureza e sua causa aparente, o sofrimento tinha um
significado; embora nem sempre, o sofrimento correspondia a um protótipo, pelo
menos a uma ordem cujo valor não era contestado. (pág.89 e 90)
Se era possível
tolerar esses sofrimentos, é precisamente porque eles não pareciam ser
gratuitos, nem arbitrários. Seria supérfluo citar exemplos; eles podem ser
encontrados em toda parte. O homem primitivo que vê seus campos destruídos pela
seca, seu gado dizimado pelas doenças, seu filho doente, ele próprio atacado
pela febre ou muitas vezes sem sorte alguma na caça, sabe muito bem que nenhuma
dessas contingências se deve à casualidade, mas sim a certas influências
mágicas ou demoníacas, contra as quais o sacerdote ou o feiticeiro dispõe de
algumas armas. Assim, ele faz a mesma coisa que toda a comunidade faz, em caso
de uma catástrofe: recorre ao feiticeiro para livrar-se de um efeito mágico, ou
ao sacerdote para obter os favores dos deuses. Se a intervenção do feiticeiro
ou do sacerdote não dá resultado, as partes interessadas recordam-se da
existência do Ser Supremo, que é quase esquecido em outros momentos, e oram a
ele, oferecendo-lhes sacrifícios. (pág.90)
O sofrimento
procede da ação mágica de um inimigo, da quebra de um tabu, da entrada numa
zona proibida, da ira de um deus, ou – quando todas as outras hipóteses forem
insuficientes – do desejo ou da ira do Ser Supremo. Os primitivos – e não só os
primitivos, como vamos ver logo adiante – não conseguem conceber o sofrimento
não provocado[7];
ele surge de uma falta pessoal (se eles tiverem convencidos de que se trata de
falta religiosa), ou da maldade de um vizinho (nos casos em que o feiticeiro
descobre que se acha envolvida a ação mágica); mas no fundo sempre se manifesta
uma falta, ou, quando menos, uma causa, reconhecida na vontade do esquecido
Supremo Deus, a quem o homem acaba se vendo forçado a recorrer. Em cada caso, o
sofrimento torna-se inteligível, e, portanto, tolerável. Contra esse
sofrimento, os primitivos lutam com todos os recursos mágicos –religiosos de
que dispõem – mas o toleram moralmente porque ele não é absurdo. O momento
crítico do sofrimento está no seu aparecimento; o sofrimento só é perturbador
enquanto sua causa permanecer desconhecida. Assim que o feiticeiro ou o
sacerdote descobre o que está fazendo com que as crianças ou os animais morram,
que a seca continue, a chuva aumente, a caça desapareça, o sofrimento começa a
se tornar tolerável; adquire um significado e uma causa, podendo assim ser
encaixado dentro de um sistema e explicado.
O que acabamos
de dizer em relação aos povos primitivos aplica-se, em grande parte, ao homem
das culturas antiga. Naturalmente, os motivos que produzem uma justificativa
para o sofrimento e a dor variam de povo para povo, mas a justificativa é
encontrada em toda parte. Em geral, pode-se afirmar que o sofrimento é
considerado como a conseqüência de um desvio em relação às “normas”. É
desnecessário dizer que essas normas variam de povo para povo, e de civilização
para civilização. Mas, o que é importante para nós aqui é que, em parte alguma
– dentro do quadro das antigas civilizações -, o sofrimento e a dor são vistos
como “egos” e sem significado. (pág.91)
Embora o mundo
antigo não nos apresente em parte alguma uma fórmula tão explícita como a do
carma para explicar a normalidade do sofrimento, em todo lugar encontramos nela
uma tendência igual, no sentido de dar ao sofrimento e aos acontecimentos
históricos um “significado normal”. Está fora de nosso alcance tratar aqui de
todas as expressões dessa tendência. Em quase toda parte nos deparamos com i
antigo conceito (predominante entre os povos primitivos) segundo o qual o
sofrimento deve ser imputado à vontade divina, seja por intervenção direta para
produzi-lo, ou permitindo que outras forças, demoníacas ou divinas, o
provoquem. (pág.92 e 93)
A história vista como teofania
Pela primeira
vez, encontramos afirmada e cada vez mais aceita a idéia de que os
acontecimentos históricos têm um valor em si mesmos, enquanto são determinados
pela vontade de Deus. Esse Deus do povo
judeu já deixara de ser uma divindade oriental, criadora de gestos arquétipos,
e passara a ser uma personalidade que intervinha incessantemente na história,
que revela sua vontade por intermédio dos acontecimentos (invasões, cercos,
batalhas, e assim por diante). Desse modo, os fatos históricos se transformam
em “situações” do homem em relação a Deus, e, como tal, eles adquiriram um
valor religioso que nada, antes, tinha conseguido lhes conferir. Assim, pode-se
dizer, com um fundo de verdade, que os hebreus foram os primeiros a descobrir o
significado da história como epifania de Deus, e essa concepção, como seria de
esperar, acabou sendo assimilada e ampliada pelo cristianismo.
Podemos até nos
perguntar se o monoteísmo, baseado na revolução pessoal e direta da divindade,
não subentenderia necessariamente a “salvação” do tempo, seu valor dentro do
quadro da história. Sem dúvida alguma, a idéia da revelação é encontrada, de
modo mais ou menos evidente, em todas as religiões, e, podemos até dizer, em
todas as culturas. De fato (o leitor pode referir-se ao primeiro capítulo), os
gestos arquétipos – finalmente reproduzidos pelo homem, numa sucessão infinita
– eram, ao mesmo tempo, hierofanias ou teofanias. A primeira dança, o primeiro
duelo, a primeira expedição de pesca, assim como a primeira cerimônia de
casamento ou o primeiro ritual transformaram-se em exemplos para a humanidade,
porque revelavam um modo de existência da divindade, do homem primordial, do
herói civilizador. Mas, essas revelações ocorreram num tempo mítico, no
instante extratemporal do princípio; assim, como já vimos no primeiro capítulo,
tudo de um certo modo, coincidia com o princípio do mundo, com a cosmogonia.
Tudo tinha acontecido e fora revelado naquele momento, in illo tempore: a
criação do mundo, a do homem, e o estabelecimento do homem na situação criada
para ele no Cosmo, até o último detalhe dessa situação (fisiologia, sociologia,
cultura, e assim por diante).
A situação é
completamente diferente no caso da revelação monoteísta. Esta acontece no
tempo, numa duração histórica: Moisés recebe a Lei num certo lugar e numa
determinada data. Claro que também podemos ver aqui a manifestação de alguns
arquétipos, no sentido de que esses acontecimentos, elevados à condição de
exemplos, serão repetidos; mas eles não serão repetidos enquanto os tempos não
se completarem, isto é, a repetição só terá lugar num novo illud tempus. Por
exemplo, conforme profecia de Isaías (11, 15-16), as miraculosas travessias do
Mar Vermelho e do rio Jordão serão repetidas “naquele dia”. Independente disso,
o momento da revelação feita por Deus a Moisés permanece como momento limitado,
definidamente situado em algum lugar do tempo. E, como ele também representa
uma teofania, adquire uma nova dimensão: transforma-se em momento precioso, já que não é mais
reversível, por ter-se transformando em acontecimento histórico. (pág.96 e 97)
Ciclos cósmicos e história
Quase todas
essas teorias do “Grande Tempo” são encontradas em conjunto com o mito das eras
sucessivas, a “era do ouro” sempre ocorrendo no princípio do ciclo, perto do
illud tempus paradigmático. Nas duas doutrinas – a do tempo cíclico e a do
tempo cíclico limitado – essa era de ouro é recuperável; em outras palavras, é
possível repeti-la, uma quantidade infinita de vezes, segundo a primeira dessas
duas doutrinas, e uma única vez, conforme a outra. Não estamos mencionando
estes fatos por seu interesse intrínseco, por maior que ele seja, mas para
esclarecer o significado da história, a partir do ponto de vista de qualquer
das duas doutrinas. (pág.101)
Não precisamos
aqui nos preocupar com os inúmeros problemas levantados pelas civilizações
helenistas orientais. O único aspecto que nos interessa é o lugar que o homem
dessas civilizações encontra para si mesmo em relação à história e, mais
especificamente, ao se defrontar com a história contemporânea. É por essa razão
que não devemos nos demorar muito na origem, na estrutura e na evolução dos
diversos sistemas cosmológicos nos quais o antigo mito dos ciclos cósmicos é
elaborado e explorado, nem nas suas conseqüências filosóficas. Devemos rever
esses sistemas cosmológicos – a partir dos pré-socrátes até o neopitagóricos –
apenas enquanto responderem à seguinte pergunta: qual é o significado da
história, isto é, da totalidade das experiências humanas provocada pelas
inevitáveis condições geográficas, estruturas sociais, conjunturas políticas, e
assim por diante? Queremos observar, logo de saída, que esta questão tem
significado apenas apara uma minoria muito pequena durante o período das
civilizações helenistas orientais – ou seja, apenas para aqueles que se
dissociam do horizonte da espiritualidade primitiva. A imensa maioria dos seus
contemporâneos ainda vivia, especialmente no começo do período, sob a
influência dos arquétipos; só muito mais tarde é que esse grupo conseguiu sair
dela (e talvez nunca tenha sido por completo, como é o caso, por exemplo, das
sociedades agrícolas), durante o decurso das poderosas tensões históricas
provocadas por Alexandre, e que não terminaram sequer com a queda de Roma. Mas
os mitos filosóficos e as cosmologias mais ou menos científicas, elaboradas por
essa minoria que começa com os pré-socráticos, com o passar do tempo alcançaram
uma disseminação bastante generalizada. Aquilo que, no quinto século a.C., era
uma gnose acessível apenas com grandes dificuldades, quatro séculos mais tarde
tornava-se uma doutrina que servia para confortar centenas de milhares de
homens (como testemunham, por exemplo, o neopitagorismo e o neo-estoicismo, no
mundo romano). Claro que é por causa do “sucesso” que obtiveram mais tarde, e
não em conseqüência de seu valor intrínseco, que todas essas doutrinas gregas e
greco-orientais, baseadas no mito dos ciclos cósmicos, representam tema de
interesse para nós.
Este mito ainda
podia ser encontrado nas primeiras especulações pré-socráticas. Anaximandro
sabe que todas as coisas nascem e retornam ao apeíron. Empédocles concebe a
supremacia alternada dos dois princípios opostos, philia e neikos, como
explicação para as eternas criações e destruições do Cosmo (um ciclo no qual
podemos distinguir quatros fases[8],
mais ou menos conforme os quatros “incalculáveis” da doutrina budista). Como já
vimos antes, a conflagração universal também é aceita por Heráclito. Quanto ao
eterno retorno – a retomada periódica, por parte de todos os seres, de suas
vidas anteriores -, representa um dos poucos dogmas que, como sabemos com
alguma certeza, faziam parte do pitagorismo primitivo[9].
Finalmente, segundo pesquisas recentes, utilizadas e sintetizadas de modo
admirável por Josep Bidez[10],
parece cada vez mais provável que pelo menos determinados elementos do sistema
platônico são de origem iranico-babilônica.
Logo diante
deveremos retornar a essas possíveis influências orientais. Por ora, vamos
fazer uma pequena pausa para considerar a interpretação de Platão sobre o mito
do retorno cíclico, mais especialmente no texto fundamental, que ocorre na
Política, 269c ss. Platão encontra a causa da regressão cósmica e das
catástrofes cósmicas num duplo movimento do Universo: “...deste nosso Universo,
a divindade ora orienta inteiramente sua revolução circular, ora o abandona a
si próprio, uma vez que suas revoluções tenham alcançado a duração que combina
com este Universo; e ele então começa a girar na direção oposta, com seus
próprios movimentos...” Esta mudança de direção é acompanhada de gigantescos
cataclismos: “a maior destruição ocorreu tanto entre os animais em geral como
no seio da raça humana, da qual, como seria de esperar, só restavam alguns
poucos representantes” (270c). Mas essa catástrofe foi seguida de uma paradoxal
‘regeneração”. Os homens começaram a ficar jovens de novo: “os cabelos brancos
da idade escureceram”, enquanto aqueles que estavam na puberdade começaram a
diminuir de estatura dia a dia, até voltarem ao tamanho dos bebês
recém-nascidos; então, finalmente, “ainda continuando a definhar, eles deixaram
de existir por completo”. Os corpos daqueles que morreram nesse momento
“desapareceram completamente, sem deixar qualquer sinal, depois de alguns dias”
(270c). Foi então que nasceu a raça dos “Filhos da Terra” (gegeneis), cuja
memória foi preservada por nossos ancestrais. Durante essa era de Cronos, não
existiam animais selvagens nem inimizade entre os animais (271e). Os homens
daqueles dias não tinham mulheres nem filhos: “Ao se erguerem da terra, todos
eles voltaram a viver, sem conservar qualquer lembrança de sua antiga condição
de vida”. As árvores lhes davam frutos em abundância, e eles dormiam sem roupa,
sobre o chão, porque todas as estações tinham bom clima (272a)
O mito do
paraíso primordial, evocado por Platão, e que conseguimos discernir nas crenças
indianas, era conhecido dos hebreus (por exemplo, o illud tempus messeânico em
Isaías 11, 6, 8; 65,25) assim como dos iranianos (Dênkart, VII, 9, 3-5) e das
tradições greco-latinas[11].
Além do mais, combina perfeitamente com a concepção arcaica (e talvez até
universal) do “principio paradisíaco”, que encontramos em todas as avaliações
do illud tempus primordial. Não se pode considerar de modo algum assombroso o
fato de Platão reproduz essas visões tradicionais nos diálogos que datam de sua
velhice; a evolução de seu próprio pensamento filosófico o obrigou a
redescobrir as categorias mitológicas. A memória da idade de ouro sob Cronos,
sem dúvida alguma estava disponível para ele na tradição grega (cf., por exemplo,
as quatros eras, descritas por Hesíodo, Erga, 110 ss). No entanto, este fato
não representa impedimento para reconhecemos que também existem certas
influências babilônicas no Política; quando, por exemplo, Platão atribui os
cataclismos periódicos às revoluções planetárias, uma explicação que certas
pesquisas recentes[12]
derivariam de especulações astronômicas babilônicas, mais tarde colocadas à
disposição do mundo helênico por intermédio da Babyloniaca, de Berossus.
Segundo o Timeu, catástrofes parciais eram causadas pelo desvio planetário (cf.
Timeu, 22d e 23e, dilúvio mencionado pelo sacerdote de Saïs), enquanto que o
momento de encontro de todos os planetas é o do “tempo perfeito” (Timeu, 39d),
ou seja, o do final do Grande Ano. Como observa Joseph Bidez: “a idéia de que a
conjunção de todos os planetas é suficiente para provar uma convulsão
universal, sem dúvida alguma é de origem caldéia”[13].
Por outro lado, também parece que Platão tinha conhecimento da concepção
iraniana segundo a qual o propósito dessas catástrofes seria a purificação da
raça humana (Timeu, 22d).
Os estóicos,
para suas próprias finalidades, também reviveram as especulações que dizem
respeito aos ciclos cósmicos, dando ênfase à repetição eterna[14],
ou ao cataclismo, ekpyrosis, por meio do qual os ciclos cósmicos alcançam seu
fim[15].
Baseando-se em Heráclito, ou diretamente no gnosticismo oriental, o estoicismo
propaga todas as idéias a respeito do Grande Ano e do fogo cósmico (ekpyrosis),
que periodicamente coloca fim ao Universo, de modo a renove-lo. Com o tempo,
esses motivos do eterno retorno e do fim do mundo passam a dominar toda a
cultura greco-romana. Além do mais, a renovação periódica do mundo
(metacosmesis) era uma doutrina favorita do neopitagorismo, a filosofia que,
conforme Jéròme Carcopino demonstrou, dividia com o estoicismo a lealdade da
sociedade romana no segundo e terceiro século a.C. Mas a aceitação do mito da
“repetição eterna”, assim como a da apokatastasis (termo que entrou no mundo
helênico depois de Alexandre Magno), são duas posições filosóficas nas quais
podemos observar uma determinada atitude anti-histórica, juntamente com um
desejo do homem em defender-se da história. Vamos discutir ambas as posições.
Já observamos,
no capítulo anterior, que o mito da repetição eterna, segundo a interpretação
que lhe dava a especulação grega, tem o significado de uma suprema tentativa no
sentido de tornar “estática”, a transformação, buscando anular a
irreversibilidade do tempo. Se todos os momentos e todas as situações do Cosmo
são repetidos ad infinitum, seu desaparecimento, em última análise, é patente;
sub specie infinitatis, todos os momentos e todas as situações mantêm-se
estacionários, adquirindo assim a ontológica ordem do arquétipo. Portanto,
entre todas as formas de transformação, a transformação histórica também está
saturada do ser. A partir do ponto de vista da repetição eterna, os
acontecimentos históricos são transformados em categorias, e portanto
reconquistam a ordem ontológica que possuíam no horizonte da espiritualidade
arcaica. Num certo sentido, pode-se até dizer que a teoria grega do eterno
retorno é a variação final experimentada pelo mito da repetição de um gesto
arquétipo, do mesmo modo que a doutrina platônica de idéias foi a versão final
do conceito do arquétipo, além de ter sido a mais completamente elaborada. E
vale a pena observar que essas duas doutrinas encontram sua mais perfeita
expressão no ponto mais alto do pensamento filosófico grego.
Mas foi
especialmente o mito da conflagração universal que alcançou extraordinário
sucesso no mundo greco-romano. (pág.105, 106, 107 e 108)
Simplificando,
poderíamos dizer que, entre os iranianos, do mesmo modo que entre os judeus e
os cristãos, a “história” partilha pelo Universo é limitada, e que o fim do
mundo coincide com a destruição dos pecadores, a ressurreição dos mortos e a
vitória da eternidade sobre o tempo.
Mas, embora esta doutrina se torne cada vez mais popular durante o
primeiro século a.C. e os séculos iniciais de nossa era, ela não consegue
vencer de uma vez por todas a tradicional doutrina da regeneração do mundo,
através da repetição anual da Criação. Já vimos no capítulo anterior que os
vestígios desta última doutrina foram preservados entre os iranianos até à
Idade Média. Igualmente dominante no judaísmo pré-messiânico, ela jamais foi
eliminada por completo, pois os círculos rabínicos hesitaram em mostrar
exatidão quanto à duração que Deus teria fixado para o Cosmo, limitando-se a
declarar apenas que o illud tempus sem dúvida alguma chegaria um dia. No
cristianismo, por outro lado, a própria tradição evangélica implica que a βoίλειa
Тоû θεoû já está presente “entre” (εvró) aqueles que acreditam, e que,
portanto, o illud tempus pertence eternamente ao momento presente, sendo
acessível a qualquer pessoa, a qualquer instante, por intermédio da metanóia.
Já que o que está envolvido aqui é uma experiência religiosa totalmente
diferente da experiência tradicional, como o que sta envolvido é a fé, o
cristianismo traduz a regeneração periódica do mundo em uma regeneração do
indivíduo humano. Mas, para aquele que comunga desse nunc eterno do reino de
Deus, a história cessa de maneira tão total como cessa para o homem das
culturas antigas, que consegue aboli-la periodicamente. Como conseqüência, para
o cristão, também, a História pode ser regenerada, por e através de cada
cessará de uma vez por todas, para toda a Criação.
Uma discussão
adequada da revolução que o cristianismo introduziu na dialética da abolição da
história, e da fuga em relação à ascendência do tempo, nos levaria muito além
dos limites deste ensaio. Assim, pretendemos apenas observar que, mesmo dentro
do quadro das três grandes religiões – iraniana, judaica e cristã – que
limitaram a duração total do Cosmo a algum número específico de milênios, afirmando
que a história acabará de uma vez por todas in illo tempore, ainda sobrevivem
alguns sinais da doutrina primitiva da periódica regeneração da história. Em
outras palavras, a história pode ser abolida, e, conseqüentemente, renovada uma
série de vezes, antes que o eschaton final se manifeste. De fato, o ano
litúrgico cristão baseia-se numa periódica e real repetição do Nascimento, da
Paixão, morte e Ressurreição de Jesus, com tudo o que esse drama místico
implica para um cristão; isto é, a regeneração pessoal e cósmica através da
reatualização in concreto do nascimento, morte e ressurreição do Salvador.
(pág.111e 112)
Destino e história
No entanto, em
virtude da diferença entre as possíveis posições do homem, elas mostravam uma
característica comum: a história podia ser tolerada, não só porque tinha um
significado, mas também porque, em última análise, era necessária. Para aqueles
que acreditavam numa repetição de todo um ciclo cósmico, assim como para
aqueles que acreditavam apenas num único que se aproximava do seu fim, o drama
da história contemporânea era necessário e inevitável. Platão, mesmo em seus
tempos e apesar de sua aceitação de alguns dos planos da astrologia caldéia,
era profuso em seu sarcasmo contra aqueles que tinham-se deixado cair no
fatalismo astrológico, ou que acreditavam numa eterna repetição no sentido
estrito (estóico) da palavra (cf., por exemplo, República, VIII, 546 ss).
Quanto aos filósofos cristãos, eles desenvolveram uma luta sem tréguas contra o mesmo fatalismo astrológico[16],
que tinha aumentado durante os últimos séculos do Império Romano. Como vamos
ver logo adiante, Santo Agostinho defenderá a idéia de uma Roma perene, só para
escapar da aceitação de um fatum determinado pelas teorias cíclicas. Porém é
verdade que o próprio fatalismo astrológico explicava o curso dos
acontecimentos históricos, ajudando assim os contemporâneos a compreendê-los e
tolerá-los, com o mesmo sucesso que haviam tido os vários gnosticismos
greco-orientais, o neo-estoicismo e o neopitagorismo. Por exemplo, independente
de a história ser ou não governada pelos movimentos dos corpos celestes, pelo
processo cósmico puro e simples, que tinha de exigir uma desintegração,
inevitavelmente vinculada a uma integração original, independente, uma vez
mais, de estar sujeita à vontade de Deus, uma vontade que os poetas tinham sido
capazes de observar, o resultado era sempre o mesmo: nenhuma das catástrofes
manifestadas na história era arbitrária. Os impérios cresciam e caíam; as
guerras causavam sofrimentos incalculáveis; aumentavam a imoralidade, a
devassidão, a injustiça social – porque tudo isso era necessário, isto é, tinha
sido desejado pelo ritmo cósmico, pelo demiurgo, pelas constelações, ou pela
vontade de Deus. (pág.114 e 115)
Em tudo isso,
como podemos ver, existe um esforço supremo no sentido de libertar a história
do seu destino astral, ou da lei dos ciclos cósmicos, e de retornar, por
intermédio do mito da eterna renovação de Roma, ao mito arcaico da regeneração
anual (e em particular não catastrófica!) do Cosmo, através de sua eterna
recriação pelo soberano ou o sacerdote. Acima de tudo, é uma tentativa de dar
valor à história, no plano cósmico; isto é, de considerar os acontecimentos
históricos e as catástrofes como combustões ou dissoluções cósmicas genuínas,
que precisam periodicamente pôr fim ao Universo, de modo a permitir sua
regeneração. As guerras, a destruição, os sofrimentos da história já não
representam sinais premonitórios da transição entre uma era e outra, mas eles
próprios constituem a transição. Assim, em cada período de paz, a história se
renova e, conseqüentemente, começa um novo mundo; em última análise (como já
vimos no caso do mito construído ao redor de Augusto), o soberano repete a
criação do Cosmo.
Nós nos
utilizamos do exemplo de Roma para mostrar até que ponto os acontecimentos
históricos podiam ser valorizados pelo expediente dos mitos examinados no
presente capítulo. Adaptadas a uma teoria particular de mito (idade de Roma,
Grande Ano), as catástrofes não só podiam ser toleradas, mas seus
contemporâneos davam positivamente um valor a elas, logo depois do seu
aparecimento. Claro que a era do ouro, inaugurada por Augusto, tinha
conseguindo sobreviver apenas por meio do que havia criado na cultura latina.
Augusto mal havia falecido quando a história passou a desmentir a era do ouro.
Quando Roma foi ocupada por Alarico, pareci que o sinal das doze águias de
Rômulo tinha triunfado: a cidade estava entrando no seu décimo segundo e último
século de existência. Foi apenas Santo agostinho que tentou mostrar que ninguém
poderia saber o momento em que Deus decidiria colocar um fim à história, e que,
de qualquer modo, embora as cidades, por sua própria natureza, tenham uma
duração limitada, sendo “eterna” apenas a cidade de Deus, nenhum destino astral
pode decidir a vida ou a morte de uma nação. Deste modo, o pensamento cristão
demonstrava a tendência no sentido de transcender, de uma vez por todas, os
velhos temas da repetição eterna, da mesma forma que tinha decidido transcender
todos os outros pontos de vista arcaicos, por meio da revelação da importância
da experiência religiosa da fé, e do valor da personalidade humana. (pág.116 e
117)
4. O Terror da História
Sobrevivência do mito do eterno retorno
Em resumo, seria
necessário confrontar o “homem histórico” (o homem moderno), que consciente e
voluntariamente cria a história, com o homem das civilizações tradicionais que,
conforme já tivemos oportunidade de ver, demonstrava uma atitude genuína em
relação à história. Independente de aboli-la periodicamente, de desvalorizá-la
por meio do encontro de modelos trans-históricos e arquétipos para ele ou, por
fim de lhe dar um significado meta-histórico (teoria cíclica, significados
escatológicos e assim por diante), o homem das civilizações tradicionais não
atribuía qualquer valor ao acontecimento histórico em si; em outras palavras,
ele não o considerava como uma categoria específica de seu próprio modo de
existência. Agora, uma comparação desses dois tipos de humanidade implica uma
análise de todos os “historicismos” modernos e uma tal análise, para ser de
fato útil, acabaria nos levando para muito longe do tema principal deste
estudo. (pág. 123)
As dificuldades do historicismo
O reaparecimento
das teorias cíclicas no pensamento contemporâneo está repleto de significação.
Incompetentes que somos para passar julgamento sobre sua validade, devemos nos
limitar a observar que a formulação de um mito arcaico, em termos modernos,
representa, quando menos, uma traição ao desejo de encontrar um significado e
uma justificação trans-histórica para os acontecimentos históricos. Assim,
encontramo-nos uma vez mais na posição pré-hegeliana, com a validade das
soluções “historicistas”, de Hegel a Marx, sendo implicitamente questionada. A
partir de Hegel em diante, todo esforço é concentrado no sentido de conservar e
atribuir um valor ao acontecimento histórico como tal, o acontecimento em si
mesmo e par si mesmo. Em seu estudo da Constituição alemã, Hegel escreveu que,
se reconhecermos que as coisas são necessariamente como elas são, isto é, que
elas não são arbitrárias e nem resultam da casualidade, teremos ao mesmo tempo
de reconhecer que elas devem ser como são. Um século mais tarde, o conceito da
necessidade histórica vai desfrutar de uma aplicação prática cada vez mais
triunfante: na verdade, todas as crueldades, aberrações e tragédias da história
têm sido, e ainda são, justificadas pelas necessidades do “momento histórico”.
Hegel provavelmente não pretendia ir tão longe. Mas, como tinha decidido
reconciliar-se com seu próprio momento histórico, considerou-se obrigado a ver
em cada acontecimento a vontade do espírito Universal. Por isso é que ele
considerava “a leitura dos jornais matinais como uma espécie de bênção realista
da manhã”. Para ele, só o contato diário com os acontecimentos podia orientar a
conduta do homem em suas relações com o mundo e com Deus.
Como podia Hegel
saber o que era necessário na história, o que, conseqüentemente, tinha de
ocorrer, do jeito que havia ocorrido? Hegel acreditava saber qual era o desejo
do Espírito Universal. Não pretendemos insistir sobre a audácia de suas teses,
que, afinal de contas servem para abolir precisamente aquilo que Hegel
pretendia salvar na história – a liberdade humana. Mas existe um aspecto na
filosofia da história defendida por Hegel que nos interessa muito, porque ainda
preserva algo da concepção judeu-cristã: para Hegel, o acontecimento histórico
era a manifestação do Espírito Universal. Agora, é possível encontrar um
paralelo entre a filosofia da história, de Hegel, e a teologia da história
defendida pelos profetas hebreus: para estes últimos, assim como para Hegel, um
acontecimento é irreversível e válido em si mesmo enquanto é uma nova
manifestação da vontade de Deus – uma proposta que, verdadeiramente,
consideramos revolucionária, do ponto de vista da sociedade tradicionais,
dominadas pela eterna repetição dos arquétipos. Portanto, na visão de Hegel, o
destino de um povo ainda preservava um significado trans-histórico, porque toda
a história revela uma nova e mais completa manifestação do Espírito Universal.
Mas, com Max, a história lançou fora todo o seu significado transcendental; já
não era coisa alguma, além da epifania da luta de classes. Até que ponto uma
tal teoria justifica o sofrimento histórico? Pra obter uma resposta, precisamos
apenas voltar, por exemplo, para a patética resistência de um Belinsky ou um
Dostoyevski, que perguntavam a si mesmos como, a partir do ponto de vista das
dialéticas hegeliana e marxista, seria possível redimir todos os dramas da
opressão, dos sofrimentos coletivos, das deportações, humilhações e massacres
que enchem a história universal.
No entanto, o
marxismo preserva um significado da história. Para o marxismo, os
acontecimentos não são uma sucessão de acidentes arbitrários; eles demonstram
ter uma estrutura coerente, e, acima de tudo, levam a um propósito definido – à
eliminação final do terror da história, à “salvação”. Desta maneira, no ponto
final da filosofia marxista da história, encontramos a era de ouro das escatologias
arcaicas. Neste sentido, é correto afirmar não apenas que Marx “trouxe a
filosofia de Hegel de volta à terra”, mas também que ele reconfirmou, em um
nível exclusivamente humano, o valor do mito primitivo da era de ouro, com a
diferença de que coloca a era de ouro no final da história, ao invés de
colocá-la também no seu ponto inicial. Para o militante marxista, é aqui que
está o segredo do remédio para o terror da história: da mesma forma que os
contemporâneos de uma “era obscura” consolavam-se, diante dos seus sofrimentos
cada vez maiores, com o pensamento de que o agravamento do mal acelera a
libertação final, os militantes marxistas dos nossos dias interpretaram o drama
provocado pelas pressões da história como um mal necessário, um sintoma premonitório
da aproximação da vitória, que colocará um fim permanente a todos os “males”
históricos.
O terror da
história torna-se cada vez mais intolerável a partir dos pontos de vista
proporcionados pelas várias filosofias historicistas. Porque nelas, naturalmente,
cada acontecimento histórico encontra seu único e total significado apenas em
sua realização. Não precisamos aqui entrar nas dificuldades teóricas do
historicismo, que já serviram para perturbar Rickert, Troeltsch, Dilthey e
Simmel, e que os recentes esforços de Croce, de Karl Mannheim, ou de Ortega y
Gasset conseguiram apenas parcialmente ultrapassar[17].
Este ensaio não exige que discutamos o valor filosófico do historicismo como
tal, nem a possibilidade de estabelecimento de uma “filosofia da história” que
definitivamente transcendesse ao relativismo. O próprio Dilthey, aos setenta
anos de idade, reconheceu que “a relatividade de todos os conceitos humanos é a
última palavra da visão histórica do mundo”. Em vão ele proclamou uma
allgemeine Lebenserfahrung como meio final de transcender a esta relatividade.
E foi também em vão que Meinecke invocou o “exame de consciência” como uma
experiência transubjetiva, capaz de transcender à relatividade da vida
histórica. Heidegger tinha se dado ao trabalho de mostrar que a historicidade
da existência humana proíbe toda esperança de transcendermos ao tempo e à história.
Para nossos
propósitos, só uma questão deve nos preocupar: como pode o “terror da história”
ser tolerado a partir do ponto de vista do historicismo? A justificação de um
acontecimento histórico, pelo simples fato de ser um acontecimento histórico,
em outras palavras, pelo simples fato de ter “acontecido dessa maneira”, não
caminha no sentido de libertar a humanidade do terror que o acontecimento inspira.
Deve-se compreender que não estamos aqui preocupados com o problema do mal,
que, independente do ângulo a partir do qual possa ser visto, permanece como um
problema filosófico e religioso; estamos preocupados, isto sim, com o problema
da história, do “mal” que está limitado não pela condição do homem, mas pelo
seu comportamento em relação aos outros. Deveríamos querer saber, por exemplo,
como seria possível tolerar e justificar os sofrimentos e a aniquilação de
tantas pessoas que sofrem e que são aniquiladas pela simples razão de que sua
situação geográfica as coloca no caminho da história; por serem vizinhos de
impérios que se encontram em estado de permanente expansão. Como justificar,
por exemplo, o fato de o sudeste da Europa ter sofrido durante séculos – sendo
portanto obrigado a renunciar a qualquer impulso no sentido de uma existência
histórica mais elevada, na direção da criação espiritual no plano universal –
pela única razão de que estava no
caminho dos invasores asiáticos e, mais tarde, vizinho do Império Otomano? E,
em nossos dias, quando as pressões históricas já não permitem mais qualquer
fuga, como pode o homem tolerar as catástrofes e horrores da história – desde
as deportações e massacres coletivos até os bombardeios atômicos – se, além
deles, não consegue ver qualquer sinal nem significado trans-histórico; se
esses acontecimentos são apenas as jogadas cegas de forças econômicas, sócias
ou políticas, ou, pior ainda, unicamente o resultado das “liberdades” que uma
minoria toma e exercita de modo direto sobre o cenário da história universal?
(pág.127, 128, 129 e 130)
Não é de modo
algum inadmissível pensar numa época, e uma época não muito distante, na qual a
humanidade , para garantir sua própria sobrevivência, verse-á reduzida a
desistir de qualquer nova tentativa de “fazer’ a história, no sentido em que a
começou a fazer a partir da criação dos primeiros impérios, limitar-se-á a
repetir gestos arquétipos prescritos, esforçando-se no sentido de esquecer, por
serem insignificativos e até perigosos, determinados gestos espontâneos que
poderiam trazer consigo algumas conseqüências “históricas”. Seria até
interessante comparar a solução a história das sociedades futuras com os mitos
paradisíacos ou escatológicos da era dourada do princípio ou do fim do mundo.
Mas, como nossa intenção é perseguir essas especulações em outra obra, devemos
agora voltar ao nosso problema, ou seja, à posição do homem histórico em
relação ao homem arcaico, e procurar compreender as objeções levantadas contra
este último, com base na visão historicista. (pág.131 e 132)
Liberdade e história
A decantada
liberdade do homem moderno no sentido de fazer história é ilusória, para a
quase totalidade da raça humana. No máximo, o homem é deixado livre para
escolher entre duas posições:1) opor-se à história que está sendo feita por uma
pequena minoria (e, neste caso, ele tem liberdade para escolher entre o
suicídio e a deportação); 2) buscar
refúgio numa existência subumana ou na
fuga. A “liberdade” que a existência histórica implica era possível – e mesmo
então dentro de determinados limites – no principio do período moderno, mas a
tendência que demonstra é de tornar-se inacessível, ao mesmo tempo em que o
período vai-se tornando mais histórico, ou, em outras palavras, mais alheio a
qualquer modelo trans-histórico. É perfeitamente natural, por exemplo, que o
marxismo e o fascismo devam levar ao estabelecimento de dois tipos de
existência histórica: a do líder (o único homem “livre” de fato) e a dos
seguidores, que encontram, na existência, mas o legislador dos gestos que lhe
são provisoriamente permitidos. (pág.133 e 134)
Editora Mercuryo Ltda
Ano: 1992
[1] Comentarii la legenda Mesterului Manole (Bucareste, 1943).
[2] Chadwick, III, p. 762.
[3] Matthias Murko, La Poésie populaire épique em Yougoalavie ou début
du XX e siècle (Paris, 1929), p. 29. Um exame dos elementos históricos e míticos nas literaturas épicas alemã, celta
escandinava e outras não seencaixa no âmbito deste estudo. Sobre esta tema, o
leitor pode referir-se aos três volumes de Chadwick.
[4] Martin P. Nilson, Primitive Time Rechoning (acta Societatis
Humaniorum Litterarum Lundensis, I, Lund, 1920), p. 270.
[5] Wilhelm Kippers, Die Bhil in Zentralindien
(Horn, 1948), pp. 241 ss.
[6] Vide a excelente exposição de Henri-Charles Puech, “Gnosis and
Time”, em Man and Time (Nova York e Londres, 1957), em especial pp. 40-41:
“Dominados por um ideal de inteligibilidade, que encontra autêntica e total
existência apenas naquilo que existe em si mesmo e permanece idêntico consigo mesmo,
no eterno e imutável, os gregos consideravam o movimento e a mudança como graus
inferiores da realidade, na qual, quando muito, a identidade pode ser
apreendida na forma da permanência e perpetuidade, resultando na repetição. O
movimento circular, que garante a sobrevivência das mesmas coisas através de
sua repetição (daí aquilo que está mais perto do divino) da imobilidade
absoluta no ponto mais alto da hierarquia. Segundo a famosa definição
platônica, o tempo, que é determinado e medido pela revolução das esferas
celestiais, é a imagem móvel da eternidade imóvel, que ele imita por meio de
seu movimento num círculo. Conseqüentemente, tanto o processo cósmico total
como o tempo de nosso mundo de geração e apodrecimento desenvolvem-se num
círculo, ou de acordo com uma sucessão infinita de ciclos, no decurso da qual a
mesma realidade é produzida, desfeita e refeita, de conformidade com uma lei
imutável e com alternâncias determinadas. A mesma soma está sendo preservada;
nada é criado e nada perdido; além do mais, certos pensamentos de muita
antiguidade – pitagoristas, estóicas, platônicas – chegaram ao ponto de afirmar
que, dentro de cada um desses ciclos do tempo, desses aiones, dessa aeva,
repetem-se as mesmas situações que já ocorreram nos ciclos precedentes, e que
ocorrerão nos ciclos subseqüentes – e assim por diante, ad infinitum. Nenhum
acontecimento é único, nada acontece apenas uma vez (por exemplo, a condenação,
de Sócrates); todo episódio já aconteceu, é repetido, e será reprisado de modo
perpétuo; os mesmos indivíduos apareceram, aparecem e continuarão aparecendo, a
cada giro do círculo. O tempo cósmico é uma repetição e anakuklosis, o eterno
retorno”.
[7] Uma vez mais enfatizados que, do ponto de vista dos povos ou
classes a – históricos, o “sofrimento” é equivale à “história”. Essa
equivalência pode ser observada ainda hoje, nas civilizações camponesas da
Europa.
[8] Cf. Ettore Bignone, Empedocle
(Turim, 1916), pp. 548 ss.
[9] Dicaearchos, citado por Porfírio, Vita Pythagorae, 19.
[10] Éos, ou Platon et l’Orient (Bruxelas, 1945), que leva especialmente
em consideração as pesquisas de Boll, Bezold, W. Gundel, W. Jaeger, A. Götze,
J. Stenzel e até mesmo as interpretações de Reitzenstein, apesar das objeções
que algumas delas provocaram.
[11] Cf. Jérôme Carcopino, Virgile et lê mystère de la IV églogue (ed.
Ver. E aum., Paris, 1943), pp. 72 ss.; Franz Cumont, “La Fin du monde selon les
mages occidentaux”, Révue de l’Histoire des Religions (Paris), Jan. Junho,
1931, pp. 89 ss.
[12] Bidez, p. 76.
[13] Ibid., p. 83.
[14] Por exemplo, Chrysippus, Fragmentos 623-627.
[15] Já em Zwno; vide Fragmentos 98 e 109 (H.F.A. von Arnim, Stoicorum
veterum fragmenta, I, Leipzing, 1921).
[16] Entre muitas outras libertações, o cristianismo influenciou a
libertação do destino astral: “Estamos acima do destino”, escreve Tatian
(Oratio ad Graecos, 9), resumindo a doutrina cristã. “O sol e a lua foram
feitos para nós; como posso adorar aquilo que foi feito para me servir?”
(ibid., 4.). Cf. também Santo Agostinho, De civitate Dei, XII, caps. X-XIII;
sobre as idéias de São Basílio, Origens, São Gregório e Santo Agostinho, e
sobre sua oposição às teorias cíclicas, vide Pierre Duhem, Le Système du monde
(Paris, 1913-1917), II, pp. 446ss. Vide também Henri-Charles Puech, “Gnosis and Time”, em Man and Time, pp.
38ss.
[17] Queremos dizer, antes de mais nada, que as palavras “historismo” e
“historicismos” compreendem muitas
correntes e orientações filosóficas antagonistas e diferentes. Basta lembrar o
relativismo vitalista de Dilthey , o storicismo de Crocre, o attualismo de
Gentile e a “razão histórica” de Ortega, para compreender a multiplicidade de
avaliações filosóficas aplicada à história durante a primeira metade do século
XX. Pra uma análise da posição atual de Croce, vide sua obre La storia come pensiero
e come azione (Bari, 1938; 7 ed. Ver., 1965). Também J. Ortega y Gasset,
Historia como sistema (Madri, 1941); Karl Mannheim, Ideology and Utopia (Trad.
Por Louis Wirth e Edward Shils, Nova York, 1936). Sobre o problema da história,
vide também Pedro Lain Entralgo, Medicina y historia (Madri, 1941); e Karl
Löwith, Meaning in HIstory (Chicago, 1949).
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