Olavo de Carvalho
Transcrição
de intervenção na mesa-redonda
em torno do pensamento de René Girard, realiza no
anfiteatro da UniverCidade (Rio de Janeiro), 17 novembro
Digitação:
Jaciara Souza Pereira
Articulação: Paolo Cugini
Depois do que o Prof. Girard nos ensinou, não temos mais o direito de ser
ingênuos sobre nossas crenças, sobre a ética, o bem e o mal etc. O Brasil há
mais de dez anos está envolvido numa espécie de discurso ético purgativo,
segundo o qual acredita-se que com a punição dos corruptos tudo ficará bem. E
isso está tão evidentemente relacionado com o rito sacrificial do bode
expiatório que eu gostaria de sugerir que aproveitássemos a presença do Prof. Girard
entre nós como uma oportunidade para meditarmos a onda moralizante brasileira à
luz dos seus ensinamentos: não estaríamos procurando apenas mais um pretexto
edificante para a violência e a perseguição?
Mas eu desejaria também colocar um outro problema, de ordem teórica, que me
atormenta desde que li alguns dos livros do Prof. Girard. É o seguinte:
evidentemente, existe nas religiões essa constante que ele assinalou desde o
início das suas investigações, que é o elemento sacrificial, porém há também
outras constantes. Uma delas é a presença da linguagem simbólica. Não houve
nenhuma religião que viesse ao mundo inicialmente sob a forma de uma doutrina
logicamente exposta, de um sistema lógico-doutrinal. Ao contrário, pode-se
desenvolver um sistema lógico-doutrinal ao longo do tempo, mas a forma inicial
de representação da religião é sempre uma narrativa ou um poema simbólico, seja
composto de elementos fictícios ou de acontecimentos reais -- como a vida de
Nosso Senhor Jesus Cristo -- fortemente carregados de simbolismo. O que
caracteriza esse elemento simbólico é o fato de ele poder ser compreendido em
diferentes níveis, que guardam entre si uma ligação analógica. Quando tomamos o
conjunto das narrativas e símbolos de uma religião, podemos ver ali ou o
esquema da ordem da sociedade ou o esquema da ordem da alma, do mundo interior
do indivíduo humano. Nesta última hipótese, temos a perspectiva que se
aproximaria mais da mística ou do “esoterismo”, e na primeira, temos uma
perspectiva legalística, “exotérica”, da autoridade religiosa, das regras
morais e da construção do Estado. Ora, conforme encaramos esse conjunto sob um
aspecto ou sob o outro, obtemos, às vezes, sentidos inversos. Por exemplo, num
aspecto místico, de busca de uma perfeição espiritual pelo indivíduo, aquilo
que corresponde à ascese ou à alquimia interior, seria exatamente aquilo que no
plano social, no plano coletivo, corresponderia justamente à matança, ao
genocídio. Isto é muito nítido no Baghavad-Gitâ, ou na narrativa bíblica
das guerras judaicas: o que, na ordem dos fatos exteriores, é violência e
morticínio, na ordem interior é ascese, autodomínio espiritual, vitória sobre
as paixões violentas. Na religião islâmica, há uma série de práticas interiores
das ordens místicas, que têm pouco a ver com as obrigações legais e rituais da
religião coletiva, mas se destinam a utilizar a substância das paixões mais
inferiores, mais violentas, como matéria-prima que, queimada no forno, no altar
da prática mística, se converterá em virtude, em conhecimento espiritual,
naquele sentido em que é possível dizer, com Sto. Agostinho, que as virtudes
são feitas da mesma matéria dos vícios: partindo dos vícios, tomando-os como
matéria-prima e queimando-os no forno da meditação e da concentração, o pecado
se substitui pela graça. Quando abandonamos esse nível interior e rebatemos
isso para o plano da sociedade, aí entramos em plena matança dos inocentes, em
plena perseguição do bode expiatório.
Para colocar esse problema de maneira mais clara, eu vou sugerir a leitura
comparativa de dois livros: um é do próprio Prof. Girard, que é O Teatro da
Inveja, o qual interpreta toda a obra de Shakespeare à luz da teoria do
desejo mimético, da inveja e do bode expiatório; o outro livro, que interpreta
a obra de Shakespeare no sentido interior e místico, é o de Martins Lings, que
se chama The Secret of Shakespeare. São as duas melhores obras que já se
escreveram sobre Shakespeare. As interpretações que elas nos apresentam são
radicalmente diferentes e se colocam em planos distintos, mas pessoalmente não
vejo antagonismo entre elas. Vejo uma complementaridade justamente quando,
passando do nível interior para o nível exterior, coletivo ou político, saímos
do espírito que vivifica para a letra que mata, isto é, passamos da abordagem
místico-ascética (Lings) para a abordagem ritualístico-sacrificial (Girard). É
justamente o aspecto da letra exterior que corresponde ao território abrangido
por este esplêndido estudo do Prof. Girard, A perseguição. O que eu gostaria
de saber é como é que ele articula esses dois planos, se é que essa comparação
já lhe ocorreu. O tema, em si, é de importância extraordinária e nos lança no
núcleo mais vivo, mais explosivo do problema da interpretação das criações
culturais: como é que aquilo que de um lado significa a matança dos inocentes
pode, por outro lado, significar o sacrifício do eu, do egoísmo e
das paixões violentas? O próprio Prof. Girard insinua uma solução ao dizer que
o coletivo é assassino por natureza, afirmação que devemos articular com a
lição de Sto. Agostinho, de que a verdade que salva habita no interior do
homem. Essa articulação abre perspectivas para a compreensão do caráter
intrinsecamente anti-espiritual e homicida de todo coletivismo, eternamente em
guerra contra o reino interior, o reino de Cristo. Pois o reino de Cristo é,
essencial e inseparavelmente, o resgate da vítima sacrificial e a afirmação do
primado da interioridade.
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