quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA E O REINO DO HOMEM LIVRO II

 




Francis Bacon, Novum Organum

 

 I Engendrar e introduzir nova natureza ou novas naturezas em um corpo dado, tal é a obra e o fito do poder humano. E a obra e o fito da ciência humana é descobrir a forma de uma natureza dada ou a sua verdadeira diferença ou natureza naturante ou fonte de emanação (estes são os vocábulos de que dispomos mais adequados para os fatos que apresentamos). A estas empresas primárias subordinam-se duas outras secundárias e de cunho inferior. A primeira é a transformação de corpos concretos de um em outro, nos limites do possível; a segunda, a descoberta de toda geração e movimento do processo latente, contínuo, a partir do agente manifesto até a forma implícita e descobrir, também, o esquematismo latente dos corpos quiescentes e não em movimento.

II A infeliz situação em que se encontra a ciência humana transparece até nas manifestações do vulgo. Afirma-se corretamente que o verdadeiro saber é o saber pelas causas. E, não indevidamente, estabelecem-se quatro coisas: a matéria, a forma, a causa eficiente, a causa final. Destas, a causa final longe está de fazer avançar as ciências, pois na verdade as corrompe; mas pode ser de interesse para as ações humanas. A descoberta da forma tem-se como impossível.  E a causa eficiente e a causa material (tal como são investigadas e admitidas, isto é, como remotas e sem o processo latente no sentido da forma) são perfunctórias e superficiais, em nada beneficiando a ciência verdadeira e ativa. Não nos esquecemos, porém, de antes ter notado e procurado sanar o erro da mente humana que consiste em atribuir à forma o afirmado da essência. Ainda que na natureza, de fato, nada mais exista que corpos individuais que produzem atos puros individuais, segundo uma lei, na ciência é essa mesma lei, bem assim a sua investigação, na descoberta e explicação, que se constitui no fundamento para o saber e para a prática. Pelo nome de forma entendemos essa lei e seus parágrafos, mormente porque tal vocábulo é de uso comum e se tornou familiar.

III Quem conhece a causa de alguma natureza (como a da brancura ou do calor), somente em determinados sujeitos, possui uma ciência imperfeita, que pode produzir um efeito em apenas determinadas matérias (entre as que são suscetíveis), esse possui igualmente um poder imperfeito. E quem conhece apenas a causa eficiente e a causa material (que são causas instáveis e não mais que veículos que em certos casos provocam a forma), esse pode chegar a novas descobertas em matéria algo semelhante e para isso preparada, mas não conseguir mudar os limites mais profundos e estáveis das coisas. Mas o que conhece as formas abarca a unidade da natureza nas suas mais dissímeis matérias e, em vista disso, pode descobrir e provocar o que até agora não se produziu, nem pelas vicissitudes naturais, nem pela atividade experimental, nem pelo próprio acaso e nem sequer chegou a ser cogitado pela mente humana. Assim é que da descoberta das formas resultam a verdade na investigação e a liberdade na operação.

IV Ainda que as vias que levam ao humano poder e à humana ciência estejam muito ligadas e sejam quase coincidentes, apesar do pernicioso e inveterado hábito de se propender para as abstrações, é muito mais seguro urdir e derivar as ciências dos mesmos fundamentos apropriados para o lado prático e deixar que esta designe e determine o lado contemplativo. Em vista disso, para se gerar ou introduzir em um corpo dado uma certa natureza, é necessário se considere devidamente o preceito ou direção ou dedução que deve ser escolhido, e isso deve ser feito em termos claros e não abstrusos. Por exemplo, se alguém se propõe a dotar a prata da cor amarela do ouro ou aumentar-lhe o peso (observando as leis da matéria) ou tornar transparente uma pedra não transparente, ou dar resistência ao vidro, ou vegetação a um corpo não vegetal, deve averiguar a regra ou a dedução mais conveniente para o caso. Com tal propósito, em primeiro lugar, estará, sem dúvida, interessado em um procedimento que não frustre a empresa, nem leve ao malogro o experimento. Em segundo lugar, estará igualmente interessado em um procedimento que não o constranja nem o force ao uso de certos meios e modos particulares de proceder. Pois pode ocorrer que não disponha de tais meios ou não tenha possibilidade ou condições de consegui-los. E se há outros meios ou modos para reproduzir a natureza desejada (além daqueles preceitos), eles poderiam estar ao alcance do operador. E este poderia, pela rigidez dos preceitos, anular os resultados. Em terceiro lugar, desejará que lhe seja indicado algo que não seja tão difícil quanto a própria operação investigada, mas que seja mais próximo da prática. A regra verdadeira e perfeita para o operar pode ser assim enunciada: que seja certa, livre e predisposta ou que esteja ordenada para a ação. O mesmo deve ser levado em conta para a descoberta da forma. Pois a forma de uma natureza dada é tal que, uma vez estabelecida, infalivelmente se segue a natureza. Está presente sempre que essa natureza também o esteja, universalmente a afirma e é constantemente inerente a ela. E essa mesma forma é de tal ordem que, se se afasta, a natureza infalivelmente se desvanece; que sempre que está ausente está ausente a natureza, quando totalmente a nega, por só nela estar presente. Finalmente, a verdadeira forma é tal que deduz a natureza de algum princípio de essência que é inerente a muitas naturezas e é mais conhecido (como se diz) na ordem natural que a própria forma. Por conseguinte, o enunciado e a regra do verdadeiro e perfeito axioma do saber: que se descubra outra natureza que seja conversível à natureza dada e que ainda seja a limitação de uma natureza mais geral, à maneira de um verdadeiro gênero. Estes dois enunciados, um ativo e outro contemplativo, são a mesma coisa, pois o que é mais útil na prática é mais verdadeiro no saber.

 V A regra 2 0 ou axioma para a transformação dos corpos é de duas espécies. A primeira considera o corpo como um conjunto ou conjugação de naturezas simples. Veja-se, no ouro estão reunidas as seguintes características: ser amarelo, ter um determinado peso, ser maleável e dúctil até determinado limite, não ser volátil ou perder a sua quantidade sob a ação do fogo, liquefazer-se com determinada fluidez, separar-se e solver-se por determinados meios, e outras naturezas semelhantes que se encontram no ouro. Desse modo, tal axioma deduz a coisa das formas das naturezas simples. Quem conhecer as formas e os modos de se introduzir o amarelo, o peso, a ductilidade, a fixidez, a fluidez, a solução, etc., e suas graduações e modos, saberá como proceder para conjugar em um único corpo essas qualidades, para conduzi-las à transformação em ouro. Essa espécie de operação pertence à ação primária. Pois o método de se produzir uma única natureza simples é o mesmo que o de muitas; apenas o homem se sente mais limitado e tolhido nas suas operações, quando se trata de várias, em vista da dificuldade de coordenar essas naturezas que não se unem tão facilmente, como pelas trilhas ordinárias do mundo natural. Contudo, deve ser lembrado que tal método de opera que distingue as naturezas é constante, eterno e universal, e abre amplas vias ao poder humano, e isso a um ponto tal que, no estado atual das coisas, a mente humana pode sequer cogitar ou representar. A segunda espécie de axiomas (a que depende da descoberta do processo latente) não procede das naturezas simples, mas dos corpos concretos, tal como se encontram na natureza em seu curso ordinário. Por exemplo, se se trata de investigar, a partir de sua origem, o modo e o processo de formação do ouro ou de qualquer outro metal ou a pedra, a partir de seus primeiros mênstruos ou de seus rudimentos até o estado acabado de mineral; ou apreender o processo pelo qual se gera a erva, a partir das primeiras concreções do suco na terra ou a partir da semente até a planta formada, acompanhando toda a sucessão de movimentos e todos os diversos e continuados esforços da natureza; igualmente, investigar a geração dos animais, discernindo a partir do coito até o parto. E proceder da mesma forma em relação aos demais corpos. Mas, na verdade, essa investigação não se restringe à geração dos corpos, mas se estende aos outros movimentos e operações da natureza. Assim, por exemplo, se se trata de investigar a série completa e contínua da ação da nutrição, a partir da ingestão inicial do alimento até a sua perfeita assimilação; ou o movimento involuntário dos animais, a partir da primeira impressão da imaginação e dos continuados esforços do espírito até as flexões e movimentos dos membros; ou os distintos movimentos da língua, dos lábios e dos demais instrumentos até a emissão de vozes articuladas, tudo isso, com efeito, também respeita às naturezas concretas ou coligadas e conjugadas. Estas podem ser consideradas como modos de ser habituais, particulares e especiais da natureza e não como leis fundamentais e comuns que constituem as formas. Não obstante, deve-se reconhecer que este segundo procedimento é mais expedito, mais disponível e oferece mais esperanças que o primeiro. E da mesma forma, a parte operativa, que corresponde a esta especulativa, estende e promove a operação, a partir do que ordinariamente se descobre na natureza, indo para as mais próximas, até as que se não distanciam muito destas. Mas as operações mais profundas e mais radicais na natureza dependem sempre dos primeiros axiomas. Em vista disso, onde não é dada ao homem a faculdade de operar, mas apenas de saber, como em relação às coisas celestes — pois não é possível ao homem agir sobre as coisas celestes, para mudá-las ou transformálas —, a investigação do próprio fato ou da verdade da coisa, bem como o conhecimento das causas e dos consensos, refere-se tão somente àqueles axiomas primários e universais, relativos às naturezas simples (como os relacionados à natureza da rotação espontânea, da atração ou virtude magnética e de muitas outras coisas, ainda mais comuns que os próprios corpos celestes). E que ninguém espere resolver a questão de que se o movimento diurno é da terra ou do céu antes de haver compreendido a natureza da rotação espontânea.

VI O processo latente de que falamos está longe daquilo que pode ocorrer à mente dos homens, com as preocupações a que ora se entregam. Não o entendemos, de fato, como medidas, ou signos ou escalas dos processos visíveis dos corpos, mas como um processo continuado, que na maior parte escapa aos sentidos. Por exemplo, em toda geração ou transformação de corpos, e necessário investigar o que se perde e volatiliza; o que permanece ou se acrescenta; o que se dilata e o que se contrai; o que se une e o que se separa; o que continua e o que se divide; o que impele e o que retarda; o que domina e o que sucumbe; e muitas outras coisas. E essa investigação não se deve limitar à geração e às transformações dos corpos, mas deve estender-se, igualmente, ao que antecede e ao que sucede; ao que é mais veloz e ao que é mais lento; ao que produz e ao que regula o movimento; e assim por diante. Todas essas coisas são desconhecidas e deixadas intactas pelas ciências, de textura grosseira e inábil, como as que se professam. De vez que toda ação natural se cumpre em mínimos graus, ou pelo menos em proporções que não chegam a ferir os sentidos, ninguém poderá governar ou transformar a natureza antes de havê-lo devidamente notado e compreendido.

VII A investigação e a descoberta do esquematismo latente é igualmente coisa nova, à semelhança da descoberta do processo latente e da forma. Ainda nos encontramos nos átrios da natureza e não estamos preparados para adentrar lhe os íntimos recessos. E nenhum corpo pode ser dotado de uma nova natureza, ou ser transformado, com acerto e sucesso, em outro corpo, sem um completo conhecimento do corpo que se quer alterar ou transformar. Sem o que, acabarão sendo usados procedimentos vãos, ou pelo menos difíceis e penosos e impróprios para a natureza do corpo em que se opera. Daí ser necessária a nova via, adequadamente provida. Na anatomia dos corpos orgânicos (como os do homem e dos animais) foram adotados procedimentos bastante acertados e fecundos; trata-se de tarefa delicada e que efetua um ótimo escrutínio da natureza. Mas esse gênero de anatomia dependendo do visível e dos sentidos, em geral, só vige para os corpos orgânicos. E isso é, aliás, algo óbvio e pronto, em comparação com a verdadeira anatomia do esquematismo latente dos corpos tidos por similares, especialmente das coisas específicas e de suas partes, como o ferro e a pedra, nas partes similares da planta e do animal, como a raiz, a folha, a flor, a carne, o sangue, o osso, etc. E é de se notar que mesmo nesse gênero não se interrompeu a indústria humana. Assim o indica a separação dos corpos similares pela destilação, bem como outros modos de separação, que procuram fazer aparecer a dessemelhança interna, congregando as partes homogêneas, e isso que é usual atende também ao que buscamos; conquanto seja algo falaz, uma vez que muitas naturezas são imputadas e atribuídas à separação, como se antes existissem no composto, na verdade foram estabelecidas e superinduzidas recentemente 30 pelo fogo, e pelo calor e por outros métodos de separação. Mas, ademais, esta é uma pequena parte do trabalho de descoberta do verdadeiro esquematismo do composto, uma vez que o esquematismo é algo tão sutil e preciso que a ação do fogo mais confunde que elucida. Em vista disso, a separação e solução dos corpos não devem ser feitas pelo fogo, mas pela razão e pela verdadeira indução, com auxílio de experimentos; e por meio da comparação com outros corpos e pela redução a naturezas simples e a suas formas que se juntam e combinam no composto. Enfim, deve-se deixar Vulcano por Minerva, se se almeja trazer à luz as verdadeiras contexturas dos corpos e os seus esquematismos, de que dependem todas as propriedades ocultas e, como se costumam chamar, propriedades e virtudes específicas das coisas e donde, também, se retiram as normas capazes de conduzir a qualquer alteração ou transformação. Por exemplo, é de se investigar o que em todo corpo corresponde ao espírito e o que corresponde à essência tangível; e se esse mesmo espírito é copioso e túrgido ou jejuno e parco; se é tênue ou espesso; se mais próximo do ar ou do fogo; se é ativo ou apático; se é delgado ou robusto; se em progresso ou em regresso; se é partido ou continuo; se concorde com as coisas exteriores e com o ambiente ou em desacordo, etc . O mesmo deve ser feito em relação à essência tangível (que não é menos passível de diferenciações que o espírito), e seus pêlos, fibras e sua múltipla contextura, bem como a colocação do espírito na substância do corpo e seus poros, condutos, veias e células, e os rudimentos ou tentativas de corpo orgânico. Tudo isso faz parte da mesma investigação. Mas mesmo aqui, como em toda investigação do esquematismo latente, a luz verdadeira e clara, que desfaz toda obscuridade e sutileza, só pode provir dos axiomas primários.

 VIII E nem por isso se deve recorrer aos átomos que pressupõem o vazio e matéria estável  (ambos falsos), mas às partículas verdadeiras, tal como se encontram. Tal sutileza, tampouco, é de causar espanto, como se fosse inexplicável. Ao contrário, quanto mais a investigação se dirige às naturezas simples tanto mais se aplainam e se tornam perspicazes as coisas, passando o objeto do multíplice ao simples, do incomensurável ao comensurável, do insensível ao calculável, do infinito e vago ao definido e certo, como ocorre com as letras do alfabeto e com as notas da música. Todavia, a investigação natural se orienta da melhor forma quando a física é rematada com auxílio da matemática. E então, que ninguém se espante com as multiplicações e com os fracionamentos, pois, quando se trata com números, tanto faz colocar ou pensar em mil ou em um, ou na milésima parte ou no inteiro.

 IX Das duas espécies de axiomas antes estabelecidas 38 origina-se a verdadeira divisão da filosofia e das ciências, devendo-se, bem entendido, ajustar vocábulos comumente aceitos (os mais apropriados para indicar o que pretendemos) ao sentido que lhes emprestamos. Assim, a investigação das formas que são (pelo seu princípio e lei)  eternas e imóveis constitui a Metafísica. A investigação da causa eficiente, da matéria, do processo latente e do esquematismo latente (que dizem respeito ao curso comum e ordinário da natureza, não a leis fundamentais e eternas) constitui a Física. E a elas subordinam-se duas divisões práticas: à Física, a Mecânica; à Metafísica, a Magia (depois de purificado o nome), em vista das amplas vias que abrem e do maior domínio sobre a natureza que propiciam.

X Uma vez estabelecido o escopo da ciência, passamos aos preceitos e na ordem menos sinuosa e obscura possível. E as indicações acerca da interpretação da natureza compreendem duas partes gerais: a primeira, que consiste em estabelecer e fazer surgir os axiomas da experiência; a segunda, em deduzir e derivar experimentos novos dos axiomas. A primeira parte divide-se em três administrações, a saber, administração dos sentidos, administração da memória e administração da mente ou da razão. Em primeiro lugar, com efeito, deve-se preparar uma História Natural e Experimental que seja suficiente e correta (exata), pois é o fundamento de tudo o mais. E não se deve inventar ou imaginar o que a natureza faz ou produz, mas descobri-lo. Mas na verdade, a história natural e experimental é tão vária e ampla que confunde e dispersa o intelecto, se não for estatuída e organizada segundo uma ordem adequada. Por isso devem ser preparadas as tábuas e coordenações de instâncias, dispostas de tal modo que o intelecto com elas possa operar. Mas, mesmo assim procedendo, o intelecto abandonado a si mesmo e a o seu movimento espontâneo é incompetente e inábil para a construção dos axiomas, se não for orientado e amparado. Daí, em terceiro lugar, deve ser adotada a verdadeira e legítima indução, que é a própria chave da interpretação. Contudo, devemos começar pelo fim e depois retroceder em direção ao resto.

 XI A investigação das formas assim procede: sobre uma natureza dada deve-se em primeiro lugar fazer uma citação perante o intelecto de todas as instâncias conhecidas que concordam com uma mesma natureza, mesmo que se encontrem em matérias dessemelhantes. E essa coleção deve ser feita historicamente, sem especulações prematuras ou qualquer requinte demasiado.

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