Francis Bacon, Novum Organum
I Engendrar e introduzir nova natureza ou
novas naturezas em um corpo dado, tal é a obra e o fito do
poder humano. E a obra e o fito da ciência humana é descobrir a forma de uma
natureza dada ou a sua verdadeira diferença ou natureza naturante ou fonte de
emanação (estes são os vocábulos de que dispomos mais adequados para os fatos
que apresentamos). A estas empresas primárias subordinam-se duas outras
secundárias e de cunho inferior. A primeira é a transformação de corpos
concretos de um em outro, nos limites do possível; a segunda, a descoberta de
toda geração e movimento do processo latente, contínuo, a partir do agente
manifesto até a forma implícita e descobrir, também, o esquematismo latente dos
corpos quiescentes e não em movimento.
II A
infeliz situação em que se encontra a ciência humana transparece até nas
manifestações do vulgo. Afirma-se corretamente que o verdadeiro saber é o
saber pelas causas. E, não indevidamente, estabelecem-se quatro coisas: a
matéria, a forma, a causa eficiente, a causa final. Destas, a causa final longe
está de fazer avançar as ciências, pois na verdade as corrompe; mas pode ser de
interesse para as ações humanas. A descoberta da forma tem-se como impossível. E a causa eficiente e a causa material (tal
como são investigadas e admitidas, isto é, como remotas e sem o processo
latente no sentido da forma) são perfunctórias e superficiais, em nada
beneficiando a ciência verdadeira e ativa. Não nos esquecemos, porém, de antes
ter notado e procurado sanar o erro da mente humana que consiste em atribuir à
forma o afirmado da essência. Ainda que na natureza, de fato, nada mais exista
que corpos individuais que produzem atos puros individuais, segundo uma lei, na
ciência é essa mesma lei, bem assim a sua investigação, na descoberta e
explicação, que se constitui no fundamento para o saber e para a prática. Pelo
nome de forma entendemos essa lei e seus parágrafos, mormente porque tal
vocábulo é de uso comum e se tornou familiar.
III Quem
conhece a causa de alguma natureza (como a da brancura ou do calor), somente em
determinados sujeitos, possui uma ciência imperfeita, que pode produzir um
efeito em apenas determinadas matérias (entre as que são suscetíveis), esse
possui igualmente um poder imperfeito. E quem conhece apenas a causa eficiente
e a causa material (que são causas instáveis e não mais que veículos que em
certos casos provocam a forma), esse pode chegar a novas descobertas em matéria
algo semelhante e para isso preparada, mas não conseguir mudar os limites mais
profundos e estáveis das coisas. Mas o que conhece as formas abarca a unidade
da natureza nas suas mais dissímeis matérias e, em vista disso, pode descobrir
e provocar o que até agora não se produziu, nem pelas vicissitudes naturais,
nem pela atividade experimental, nem pelo próprio acaso e nem sequer chegou a
ser cogitado pela mente humana. Assim é que da descoberta das formas resultam a
verdade na investigação e a liberdade na operação.
IV Ainda
que as vias que levam ao humano poder e à humana ciência estejam muito ligadas
e sejam quase coincidentes, apesar do pernicioso e inveterado hábito de se
propender para as abstrações, é muito mais seguro urdir e derivar as ciências
dos mesmos fundamentos apropriados para o lado prático e deixar que esta
designe e determine o lado contemplativo. Em vista disso, para se gerar ou
introduzir em um corpo dado uma certa natureza, é necessário se considere
devidamente o preceito ou direção ou dedução que deve ser escolhido, e isso
deve ser feito em termos claros e não abstrusos. Por exemplo, se alguém se
propõe a dotar a prata da cor amarela do ouro ou aumentar-lhe o peso
(observando as leis da matéria) ou tornar transparente uma pedra não
transparente, ou dar resistência ao vidro, ou vegetação a um corpo não vegetal,
deve averiguar a regra ou a dedução mais conveniente para o caso. Com tal
propósito, em primeiro lugar, estará, sem dúvida, interessado em um
procedimento que não frustre a empresa, nem leve ao malogro o experimento. Em
segundo lugar, estará igualmente interessado em um procedimento que não o
constranja nem o force ao uso de certos meios e modos particulares de proceder.
Pois pode ocorrer que não disponha de tais meios ou não tenha possibilidade ou
condições de consegui-los. E se há outros meios ou modos para reproduzir a
natureza desejada (além daqueles preceitos), eles poderiam estar ao alcance do
operador. E este poderia, pela rigidez dos preceitos, anular os resultados. Em
terceiro lugar, desejará que lhe seja indicado algo que não seja tão difícil
quanto a própria operação investigada, mas que seja mais próximo da prática. A
regra verdadeira e perfeita para o operar pode ser assim enunciada: que seja
certa, livre e predisposta ou que esteja ordenada para a ação. O mesmo deve ser
levado em conta para a descoberta da forma. Pois a forma de uma natureza dada é
tal que, uma vez estabelecida, infalivelmente se segue a natureza. Está
presente sempre que essa natureza também o esteja, universalmente a afirma e é
constantemente inerente a ela. E essa mesma forma é de tal ordem que, se se
afasta, a natureza infalivelmente se desvanece; que sempre que está ausente
está ausente a natureza, quando totalmente a nega, por só nela estar presente.
Finalmente, a verdadeira forma é tal que deduz a natureza de algum princípio de
essência que é inerente a muitas naturezas e é mais conhecido (como se diz) na
ordem natural que a própria forma. Por conseguinte, o enunciado e a regra do
verdadeiro e perfeito axioma do saber: que se descubra outra natureza que seja
conversível à natureza dada e que ainda seja a limitação de uma natureza mais
geral, à maneira de um verdadeiro gênero. Estes dois enunciados, um ativo e
outro contemplativo, são a mesma coisa, pois o que é mais útil na prática é
mais verdadeiro no saber.
V A regra 2 0 ou axioma para a transformação
dos corpos é de duas espécies. A primeira considera o corpo
como um conjunto ou conjugação de naturezas simples. Veja-se, no ouro estão
reunidas as seguintes características: ser amarelo, ter um determinado peso,
ser maleável e dúctil até determinado limite, não ser volátil ou perder a sua
quantidade sob a ação do fogo, liquefazer-se com determinada fluidez,
separar-se e solver-se por determinados meios, e outras naturezas semelhantes
que se encontram no ouro. Desse modo, tal axioma deduz a coisa das formas das
naturezas simples. Quem conhecer as formas e os modos de se introduzir o
amarelo, o peso, a ductilidade, a fixidez, a fluidez, a solução, etc., e suas
graduações e modos, saberá como proceder para conjugar em um único corpo essas
qualidades, para conduzi-las à transformação em ouro. Essa espécie de operação
pertence à ação primária. Pois o método de se produzir uma única natureza
simples é o mesmo que o de muitas; apenas o homem se sente mais limitado e
tolhido nas suas operações, quando se trata de várias, em vista da dificuldade de
coordenar essas naturezas que não se unem tão facilmente, como pelas trilhas
ordinárias do mundo natural. Contudo, deve ser lembrado que tal método de opera
que distingue as naturezas é constante, eterno e universal, e abre amplas vias
ao poder humano, e isso a um ponto tal que, no estado atual das coisas, a mente
humana pode sequer cogitar ou representar. A segunda espécie de axiomas (a que
depende da descoberta do processo latente) não procede das naturezas simples,
mas dos corpos concretos, tal como se encontram na natureza em seu curso
ordinário. Por exemplo, se se trata de investigar, a partir de sua origem, o
modo e o processo de formação do ouro ou de qualquer outro metal ou a pedra, a
partir de seus primeiros mênstruos ou de seus rudimentos até o estado acabado
de mineral; ou apreender o processo pelo qual se gera a erva, a partir das
primeiras concreções do suco na terra ou a partir da semente até a planta
formada, acompanhando toda a sucessão de movimentos e todos os diversos e
continuados esforços da natureza; igualmente, investigar a geração dos animais,
discernindo a partir do coito até o parto. E proceder da mesma forma em relação
aos demais corpos. Mas, na verdade, essa investigação não se restringe à
geração dos corpos, mas se estende aos outros movimentos e operações da
natureza. Assim, por exemplo, se se trata de investigar a série completa e
contínua da ação da nutrição, a partir da ingestão inicial do alimento até a
sua perfeita assimilação; ou o movimento involuntário dos animais, a partir da
primeira impressão da imaginação e dos continuados esforços do espírito até as
flexões e movimentos dos membros; ou os distintos movimentos da língua, dos
lábios e dos demais instrumentos até a emissão de vozes articuladas, tudo isso,
com efeito, também respeita às naturezas concretas ou coligadas e conjugadas.
Estas podem ser consideradas como modos de ser habituais, particulares e
especiais da natureza e não como leis fundamentais e comuns que constituem as
formas. Não obstante, deve-se reconhecer que este segundo procedimento é mais
expedito, mais disponível e oferece mais esperanças que o primeiro. E da mesma
forma, a parte operativa, que corresponde a esta especulativa, estende e
promove a operação, a partir do que ordinariamente se descobre na natureza,
indo para as mais próximas, até as que se não distanciam muito destas. Mas as
operações mais profundas e mais radicais na natureza dependem sempre dos
primeiros axiomas. Em vista disso, onde não é dada ao homem a faculdade de
operar, mas apenas de saber, como em relação às coisas celestes — pois não é
possível ao homem agir sobre as coisas celestes, para mudá-las ou transformálas
—, a investigação do próprio fato ou da verdade da coisa, bem como o
conhecimento das causas e dos consensos, refere-se tão somente àqueles axiomas
primários e universais, relativos às naturezas simples (como os relacionados à
natureza da rotação espontânea, da atração ou virtude magnética e de muitas
outras coisas, ainda mais comuns que os próprios corpos celestes). E que
ninguém espere resolver a questão de que se o movimento diurno é da terra ou do
céu antes de haver compreendido a natureza da rotação espontânea.
VI O
processo latente de que falamos está longe daquilo que pode ocorrer à mente dos
homens, com as preocupações a que ora se entregam. Não o
entendemos, de fato, como medidas, ou signos ou escalas dos processos visíveis
dos corpos, mas como um processo continuado, que na maior parte escapa aos
sentidos. Por exemplo, em toda geração ou transformação de corpos, e necessário
investigar o que se perde e volatiliza; o que permanece ou se acrescenta; o que
se dilata e o que se contrai; o que se une e o que se separa; o que continua e
o que se divide; o que impele e o que retarda; o que domina e o que sucumbe; e
muitas outras coisas. E essa investigação não se deve limitar à geração e às
transformações dos corpos, mas deve estender-se, igualmente, ao que antecede e
ao que sucede; ao que é mais veloz e ao que é mais lento; ao que produz e ao
que regula o movimento; e assim por diante. Todas essas coisas são
desconhecidas e deixadas intactas pelas ciências, de textura grosseira e
inábil, como as que se professam. De vez que toda ação natural se cumpre em
mínimos graus, ou pelo menos em proporções que não chegam a ferir os sentidos,
ninguém poderá governar ou transformar a natureza antes de havê-lo devidamente
notado e compreendido.
VII A
investigação e a descoberta do esquematismo latente é igualmente coisa nova, à
semelhança da descoberta do processo latente e da forma.
Ainda nos encontramos nos átrios da natureza e não estamos preparados para adentrar
lhe os íntimos recessos. E nenhum corpo pode ser dotado de uma nova natureza,
ou ser transformado, com acerto e sucesso, em outro corpo, sem um completo
conhecimento do corpo que se quer alterar ou transformar. Sem o que, acabarão
sendo usados procedimentos vãos, ou pelo menos difíceis e penosos e impróprios
para a natureza do corpo em que se opera. Daí ser necessária a nova via,
adequadamente provida. Na anatomia dos corpos orgânicos (como os do homem e dos
animais) foram adotados procedimentos bastante acertados e fecundos; trata-se
de tarefa delicada e que efetua um ótimo escrutínio da natureza. Mas esse
gênero de anatomia dependendo do visível e dos sentidos, em geral, só vige para
os corpos orgânicos. E isso é, aliás, algo óbvio e pronto, em comparação com a
verdadeira anatomia do esquematismo latente dos corpos tidos por similares,
especialmente das coisas específicas e de suas partes, como o ferro e a pedra,
nas partes similares da planta e do animal, como a raiz, a folha, a flor, a
carne, o sangue, o osso, etc. E é de se notar que mesmo nesse gênero não se
interrompeu a indústria humana. Assim o indica a separação dos corpos similares
pela destilação, bem como outros modos de separação, que procuram fazer
aparecer a dessemelhança interna, congregando as partes homogêneas, e isso que
é usual atende também ao que buscamos; conquanto seja algo falaz, uma vez que
muitas naturezas são imputadas e atribuídas à separação, como se antes
existissem no composto, na verdade foram estabelecidas e superinduzidas recentemente
30 pelo fogo, e pelo calor e por outros métodos de separação. Mas, ademais,
esta é uma pequena parte do trabalho de descoberta do verdadeiro esquematismo
do composto, uma vez que o esquematismo é algo tão sutil e preciso que a ação
do fogo mais confunde que elucida. Em vista disso, a separação e solução dos
corpos não devem ser feitas pelo fogo, mas pela razão e pela verdadeira
indução, com auxílio de experimentos; e por meio da comparação com outros
corpos e pela redução a naturezas simples e a suas formas que se juntam e
combinam no composto. Enfim, deve-se deixar Vulcano por Minerva, se se almeja
trazer à luz as verdadeiras contexturas dos corpos e os seus esquematismos, de
que dependem todas as propriedades ocultas e, como se costumam chamar,
propriedades e virtudes específicas das coisas e donde, também, se retiram as
normas capazes de conduzir a qualquer alteração ou transformação. Por exemplo,
é de se investigar o que em todo corpo corresponde ao espírito e o que
corresponde à essência tangível; e se esse mesmo espírito é copioso e túrgido
ou jejuno e parco; se é tênue ou espesso; se mais próximo do ar ou do fogo; se
é ativo ou apático; se é delgado ou robusto; se em progresso ou em regresso; se
é partido ou continuo; se concorde com as coisas exteriores e com o ambiente ou
em desacordo, etc . O mesmo deve ser feito em relação à essência tangível (que
não é menos passível de diferenciações que o espírito), e seus pêlos, fibras e
sua múltipla contextura, bem como a colocação do espírito na substância do
corpo e seus poros, condutos, veias e células, e os rudimentos ou tentativas de
corpo orgânico. Tudo isso faz parte da mesma investigação. Mas mesmo aqui, como
em toda investigação do esquematismo latente, a luz verdadeira e clara, que
desfaz toda obscuridade e sutileza, só pode provir dos axiomas primários.
VIII E nem por isso se deve recorrer aos
átomos que pressupõem o vazio e matéria estável (ambos falsos), mas às partículas verdadeiras,
tal como se encontram. Tal sutileza, tampouco, é de causar espanto, como se
fosse inexplicável. Ao contrário, quanto mais a investigação se dirige às
naturezas simples tanto mais se aplainam e se tornam perspicazes as coisas,
passando o objeto do multíplice ao simples, do incomensurável ao comensurável,
do insensível ao calculável, do infinito e vago ao definido e certo, como
ocorre com as letras do alfabeto e com as notas da música. Todavia, a
investigação natural se orienta da melhor forma quando a física é rematada com
auxílio da matemática. E então, que ninguém se espante com as multiplicações e
com os fracionamentos, pois, quando se trata com números, tanto faz colocar ou
pensar em mil ou em um, ou na milésima parte ou no inteiro.
IX Das duas espécies de axiomas antes
estabelecidas 38 origina-se a verdadeira divisão da filosofia e das ciências,
devendo-se, bem entendido, ajustar vocábulos comumente aceitos (os mais
apropriados para indicar o que pretendemos) ao sentido que lhes emprestamos.
Assim, a investigação das formas que são (pelo seu princípio e lei) eternas e imóveis constitui a Metafísica. A
investigação da causa eficiente, da matéria, do processo latente e do
esquematismo latente (que dizem respeito ao curso comum e ordinário da
natureza, não a leis fundamentais e eternas) constitui a Física. E a elas
subordinam-se duas divisões práticas: à Física, a Mecânica; à Metafísica, a
Magia (depois de purificado o nome), em vista das amplas vias que abrem e do
maior domínio sobre a natureza que propiciam.
X Uma vez
estabelecido o escopo da ciência, passamos aos preceitos e na ordem menos sinuosa
e obscura possível. E as indicações acerca da interpretação da natureza
compreendem duas partes gerais: a primeira, que consiste em estabelecer e fazer
surgir os axiomas da experiência; a segunda, em deduzir e derivar experimentos
novos dos axiomas. A primeira parte divide-se em três administrações, a saber,
administração dos sentidos, administração da memória e administração da mente
ou da razão. Em primeiro lugar, com efeito, deve-se preparar uma História
Natural e Experimental que seja suficiente e correta (exata), pois é o
fundamento de tudo o mais. E não se deve inventar ou imaginar o que a natureza
faz ou produz, mas descobri-lo. Mas na verdade, a história natural e
experimental é tão vária e ampla que confunde e dispersa o intelecto, se não
for estatuída e organizada segundo uma ordem adequada. Por isso devem ser
preparadas as tábuas e coordenações de instâncias, dispostas de tal modo que o
intelecto com elas possa operar. Mas, mesmo assim procedendo, o intelecto
abandonado a si mesmo e a o seu movimento espontâneo é incompetente e inábil
para a construção dos axiomas, se não for orientado e amparado. Daí, em terceiro
lugar, deve ser adotada a verdadeira e legítima indução, que é a própria chave
da interpretação. Contudo, devemos começar pelo fim e depois retroceder em
direção ao resto.
XI A investigação das formas assim procede:
sobre uma natureza dada deve-se em primeiro lugar fazer uma citação perante o intelecto
de todas as instâncias conhecidas que concordam com uma mesma natureza, mesmo
que se encontrem em matérias dessemelhantes. E essa coleção deve ser feita
historicamente, sem especulações prematuras ou qualquer requinte demasiado.
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