segunda-feira, 29 de abril de 2024

MARIA E O «DISCÍPULO AMADO» SOB A CRUZ (Jo 19,25-27)

 



(Texto: Marcheselli e outros)

Tradução: Paolo Cugini


«19.25 Perto da cruz de Jesus estavam sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria, mãe de Cléofas, e Maria de Magdala. 26Jesus, portanto, vendo a mãe e o discípulo que ele amava ao lado dela, diz à mãe: “Mulher, aqui está o teu filho!”. 27Então diz ao discípulo: «Aqui está a tua mãe!». E a partir daquela hora o discípulo tomou-o do que lhe pertencia” (Jo 19,25-27).

1. Introdução

A primeira consideração é sobre a orientação fundamental que tem o relato joanino da paixão e morte de Jesus. O relato que o quarto evangelista faz dos acontecimentos do Gólgota pouco interessa ao próprio Jesus; ele está muito mais interessado no significado que o que acontece com Jesus na cruz tem para os crentes. A este respeito sublinhamos dois aspectos profundamente ligados entre si.

1.1. Uma morte “para”

Como se sabe, o QE praticamente anulou o aspecto doloroso e humilhante da paixão e morte de Jesus. Isto não se deve simplesmente a uma forma crescente de respeito pelo Filho de Deus, mas sim ao facto de aquilo que é relevante para. para o evangelista é o sentido que tem aquela morte, ou melhor, o “para”. Precisamente este “para” é fundamental em toda o QE como preparação remota para o acontecimento da paixão e da morte. O conto joanino é pontuada por expressões misteriosas, em parte enigmáticas, que depois revelam o seu significado na paixão e morte do messias Jesus. São precisamente as expressões construídas com esta preposição que têm um peso enorme na teologia e na espiritualidade de João: a morte de Jesus. é uma morte para. O QE diz isso a partir da famosa passagem do discurso sobre o “pão da vida”, quando Jesus diz: “O pão que eu darei é a minha carne (existência terrena) para a vida do mundo” (Jo 6.51 ). Há também as declarações insistentes no discurso do “bom pastor”, cuja característica se identifica precisamente nisto: o “bom pastor” coloca a sua existência, a sua vida terrena, “para as ovelhas”. Esta é a perspectiva que domina o relato de João sobre a paixão e morte do Senhor.

1.2. Eclesiologia Joanina

Da primeira surge uma segunda ênfase, sempre dentro da orientação fundamental do relato joanino da paixão e morte do Senhor: o relato joanino da paixão e morte do Senhor tem uma conotação eclesiológica muito forte. Os episódios relativos a Jesus na cruz dizem respeito principalmente à comunidade dos crentes, à Igreja. É assim que se específica aquela morte, que é uma morte “para”. Um dos aspectos fundamentais deste ser “para” é precisamente o vínculo que existe entre aquela morte e a comunidade eclesial, a comunidade dos crentes. Os episódios relativos a Jesus na cruz delineia as características essenciais da comunidade eclesial. Como essas características são simbolicamente indicadas pelos acontecimentos que aconteceram com Jesus na cruz? Pode-se afirmar que a eclesiologia joanina é uma eclesiologia que parte da cruz. Portanto a nossa meditação será ao mesmo tempo mariana e eclesial, porque esta é a perspectiva do QE. O texto joanino ensina um olhar profundo sobre a Igreja.

A eclesiologia de João, que emerge da descrição do que acontece com Jesus na cruz, centra-se mais no mistério profundo da Igreja do que nas suas estruturas, que - de facto - não têm relevância neste texto. Isso não significa que eles não tenham; pelo contrário, as estruturas da vida comunitária, na história da comunidade de João, adquirem progressivamente um significado muito preciso. Contudo, neste texto, como em geral na história da morte de Jesus na cruz, trata-se mais de uma contemplação da essência da Igreja do que do que aparece na superfície. Isto ajuda: é sempre necessário ser ajudado a dirigir este olhar profundo para a Igreja, o que não significa ignorar o que os sentidos vêem, mas antes reconhecer o que os cinco sentidos físicos não conseguem, por si só, captar. Isto é o que o evangelista quer nos levar a fazer.

2. O contexto

É importante colocar esses poucos versículos dentro da história geral, para compreender seu significado geral. Qual é o contexto mais imediato desta curta passagem de três versículos? É o terceiro de cinco episódios que acontecem no Gólgota, termo hebraico que significa "lugar da caveira" (19.17). O quarto evangelista narra cinco episódios relativos a Jesus na cruz. Esta é também uma das características típicas deste evangelho extraordinário, mais seletivo que o sinóptico, mas onde para, fá-lo com grande abundância e profundidade. Tanto que ele conta – na verdade – cinco episódios de Jesus na cruz.

1.      A inscrição colocada acima da cruz (19,19-22).

2.      A divisão das vestes e a sorte lançada na túnica (19.23-24).

3.      O diálogo com Maria e o discípulo que Jesus amava (19,25-27).

4.      A morte de Jesus (19,28-30).

5.      O golpe da lança que abre o lado de Jesus já morto, provocando o fluxo de sangue e água (19.31-37).

O episódio que estamos comentando é o terceiro dos cinco. Alguém observou que os três primeiros episódios poderiam até acontecer ao mesmo tempo, pois envolvem personagens diferentes: enquanto se discute a inscrição na cruz, os soldados dividem as roupas e Jesus fala com sua mãe e discípula. Em todo o caso, é importante sublinhar que existe uma ligação profunda entre este terceiro episódio e aquele que o precede imediatamente (ou seja, aquele relativo às vestes de Jesus). Vemos essa ligação com o episódio dos soldados que lidam com as roupas de Jesus: dividem as roupas, depois chegam à túnica, que é “sem costura, tecida toda de uma só peça” (19.23). Então eles decidem não desmontá-lo e "lançar a sua sorte". O efeito é que a túnica permanece intacta.

Como demonstrou o Padre Ignace de la Potterie, o significado subjacente deste episódio não é tanto cristológico (embora haja uma linha cristológica), mas antes eclesiológico. O Padre de la Potterie defende vigorosamente esta leitura eclesiológica da túnica: a túnica como imagem da comunidade dos crentes. Portanto, é uma imagem que sublinha como a natureza profunda da Igreja é a unidade, e ser unum, “uma coisa”, pelo facto de a Igreja ser constituída por aqueles que são acolhidos naquele mistério de unidade que une os Pai e o Filho; portanto, participa daquela unidade original que é o próprio mistério trinitário. Se aceitarmos esta leitura (que me convence), então a ligação é profunda: dos quatro soldados passamos às quatro mulheres (v. 25). Visualmente há um certo contraste, que, no entanto, também sugere uma link. As duas cenas estão ligadas assim: os quatro soldados, passando depois para as quatro mulheres; mas acima de tudo o vínculo profundo é o interesse pela comunidade eclesial, que é precisamente o resultado último da obra do messias de Nazaré. É em virtude da sua cruz – indica o evangelista João – que surge neste mundo uma realidade que é feita de reunião dos desaparecidos. A Igreja é a reunião daqueles que antes estavam dispersos e que, precisamente por serem atraídos pela cruz do Filho de Deus, se encontram um em Deus e um entre si.

3. O anonimato dos dois personagens

Nenhum dos dois personagens presentes sob a cruz tem nome aqui ou em outro lugar, dentro do QE. Se - absurdamente - possuíssemos apenas o evangelho segundo João, não saberíamos qual era o nome da mãe de Jesus. Os dois personagens aqui envolvidos permanecem ambos sob o véu do anonimato. Os nomes de João e Maria são identificações externas neste texto, que possuem uma certa solidez (Maria claramente mais que João).

Por que o evangelista não levanta o véu?

É difícil dizer com certeza; entretanto, pode-se observar que o QE faz uso consciente do anonimato. Isto é intencional: não dizer explicitamente o nome favorece uma leitura simbólica das duas figuras. Isto não significa diminuir a sua consistência como indivíduos; nem significa reduzir o seu significado histórico. Tudo isso nada tem a ver com isso, não há oposição entre o real e o simbólico, porque o simbólico sempre depende de algo concreto. Ao omitir o nome, Giovanni favorece a leitura simbólica dessas duas figuras e leva o leitor a ver aquele “mais” de sentido que não se limita simplesmente à concretude do indivíduo.

Se o evangelista nunca os chama pelo nome, então como são chamados?

Maria é sempre chamada de “mulher” ou “mãe”. Estas são as duas palavras que, no QE, são usadas para designar a mãe do Senhor. O evangelista sempre e apenas a chama de “a mãe”; frequentemente especifica "a mãe de Jesus" ou "sua mãe". A certa altura, ele abandona todas as especificações e a chama apenas de “mãe”, abandonando tanto “de Jesus” quanto “dele”. Isto acontece logo abaixo da cruz; Não pode ser uma coincidência. “Sua mãe estava junto à cruz de Jesus”: é a última vez que o evangelista usa uma especificação. De facto, logo a seguir lemos: «Jesus, portanto, vendo a sua mãe»; o “dele” caiu. É simplesmente: “a mãe”. Depois insiste: «Diz à mãe»; ele simplesmente perdeu a especificação. Por isso o evangelista João sempre a chama de “a mãe”, especificando: “a mãe de Jesus”. Porém, quando se trata da cena da cruz, ele abandona toda determinação. Pelo contrário, Jesus chama-a constantemente: “Mulher”, no vocativo; é um uso surpreendente na boca de um filho que se dirige à mãe. Porém, na última vez que Jesus fala com ela – isto é, aqui – ele adota também o termo: “mãe”. Neste ponto, porém, é “sua mãe”, com um efeito impressionante. Concluindo, deve-se dizer que Jesus nunca a chama de “minha mãe”, porque a única vez que pronuncia o nome “mãe” ela se torna mãe de João. Voltaremos ao mistério desta confiança mútua. A presença de personagens anônimos visa incentivar a leitura e tentaremos explicar o que Giovanni deseja que o leitor entenda por trás desse anonimato, para além da concretude empírica das duas figuras. Se Maria é chamada de “mãe” e “mulher”, o discípulo costuma ser chamado de “o discípulo que Jesus amava”. A origem desta designação singular e fascinante é a seguinte: é aquele por quem as manifestações do amor de Jesus são acolhidas sem resistência e com total disponibilidade. Ele é chamado assim, não tanto porque Jesus lhe reserva algo que ele não reserva aos outros, mas porque as manifestações do amor de Jesus encontram nele um extremo acolhimento, diante dos outros. Ele é “o discípulo que Jesus amou” porque nele o amor de Jesus atinge o seu efeito: é acolhido com uma intensidade, uma prontidão e uma profundidade sem igual. A diferença está na sua receptividade e não tanto numa escolha prévia de Jesus.

4. A piedade filial de Jesus pela sua mãe

Procuremos agora o significado desta passagem, o que o evangelista quer levar o leitor a compreender neste breve episódio. Comecemos pelo nível mais material de significado. A tradição patrística é quase unânime em interpretar a cena como expressão de piedade filial. A tradição antiga segue praticamente toda essa linha. Portanto, o texto expressaria preocupação pelo destino, mesmo material, de quem está prestes a ficar sem apoio neste mundo; então o Filho, com um ato de piedade filial, cuida da mãe, do seu futuro neste mundo. Esta leitura não me parece excluída, pois não a vejo tão estranha ao evangelho da encarnação: a carne (isto é, a natureza humana) tem necessidades concretas. No evangelho segundo João não há oposição entre o nível material e o nível espiritual; portanto, não há razão para que o significado mais imediato e mais material deva ser aqui oposto ao mais profundo, o que tentaremos dizer mais tarde. Na minha opinião, ambos podem ser compreendidos. O QE educa constantemente para manter o material e o espiritual juntos, não parando no material (porque senão se torna materialista), mas através do que é material o leitor é convidado a compreender o que há de profundo e espiritual que Deus diz, dentro da concretude da carne e a história humana. Por outro lado, o evangelista convida-nos a considerar que o que é espiritual pode sempre e só ser alcançado através das experiências que temos com os nossos sentidos. Mesmo sem nos determos nelas, as experiências sensíveis permanecem essenciais, caso contrário cairíamos num espiritismo desencarnado, completamente estranho ao QE. Neste sentido, esta dimensão material mais concreta também é aceitável. Então, o que essa cena expressa? Num nível imediato e superficial, expressa a piedade filial de Jesus por sua mãe. Agora vamos mais fundo.

 

5. Uma cena de revelação

Estamos diante de uma cena de revelação.

5.1. Veja profundamente

Jesus diz: ««Mulher, eis o teu filho!». Depois diz ao discípulo: «Aqui está a tua mãe!»». Originalmente a partícula «Eis» é uma forma do verbo “ver”; esta é a sua origem na língua grega. Em grego você pode dizer “eis” de duas maneiras, sendo que ambas, originalmente, são formas imperativas do verbo “ver”; então, com o tempo, eles se tornaram uma partícula autônoma: “Eis”. No uso joanino esta partícula parece reter um eco da sua origem. Portanto, podemos considerar o convite de Jesus como um convite a olhar profundamente para a realidade percebida empiricamente pelos sentidos humanos. Quando Jesus diz: “Eis”, trata-se de “ver” no sentido joanino, isto é, de penetrar no sentido, de captar o sentido último daquilo que os olhos da carne vêem. João tem toda uma espiritualidade dos cinco sentidos; sem dúvida a reflexão mais desenvolvida em João é sobre o sentido da visão. Aqui estamos diante de uma cena de revelação, em que Jesus convida cada um dos dois a trazer um olhar que vai fundo, que não se detém na superfície, que vê um objeto material, mas que depois capta o significado profundo do objeto que o sentido da visão vê.

Existem outros episódios desse tipo no QE. Por exemplo, quando Jesus vê Natanael e diz: «Aqui está verdadeiramente um israelita em quem não há falsidade» (1.47). Também isto é uma revelação: Jesus diz algo sobre Natanael que não é simplesmente o que os sentidos veem, mas revela algo da sua identidade profunda. O mesmo acontece quando João Baptista diz de Jesus: «Eis o Cordeiro de Deus...» (1.29,). Os sentidos veem um homem caminhando; talvez alguém também saiba o seu nome: é Jesus, que vem de Nazaré. Mas o Baptista convida-nos a olhar profundamente para aquele ser humano que os olhos vêem e convida-nos a ver num sentido radical, isto é, a captar a profundidade do mistério daquela pessoa. Então isso acontece aqui também. O que significa, então, realçar este aspecto de revelação que o episódio de João tem? Brincando, poderíamos dizer que, à frase de Jesus “Mulher, aqui está o seu filho”, Maria deveria ter reagido respondendo que Jesus estava errado e que aquele discípulo não era seu filho! E que seu filho era Jesus! A questão é precisamente esta: ao dizer à mãe: «Olha para o teu filho», Jesus indica a Maria algo que não coincide simplesmente com a visão sensível. Ele revela o significado para ela última coisa que seus olhos veem sensatamente. Então é uma verdadeira revelação, é um desvelamento; neste momento Jesus revela algo que vai além da pura experiência sensível, embora nunca possa apagá-la. O mesmo vale para a frase recíproca: “Aqui está sua mãe”. O discípulo também poderia ter reagido notando que, na realidade, Jesus estava errado e que sua mãe não estava presente. Em vez disso, este é um momento de revelação: Jesus revela algo. Ele revela uma identidade, que até aquele momento não é percebida pelos personagens humanos que ali estão presentes com ele. Portanto, é um momento grandioso de revelação: aquela mulher que o discípulo vê com os sentidos, ele é agora convidado a ver o que ela é em profundidade: ela é sua mãe.

5.2. O núcleo originário da comunidade eclesial

O que a mãe e o discípulo representam? Jesus revela algo um ao outro; então o que eles formam? São o núcleo fundamental da Igreja: são o núcleo originário da comunidade messiânica, da comunidade dos crentes do fim dos tempos. Confiando-se mutuamente, Jesus constitui uma nova família. O que é narrado nestes versículos do Evangelho é o núcleo da nova família que se forma entre aqueles que professam a sua fé em Jesus. São o núcleo da comunidade eclesial, da comunidade do messias. Voltemos ao nome desses dois personagens, que não têm nome próprio. Deixamos isso pendurado, agora vamos voltar ao assunto.

«Mãe» e «mulher»: estes são os dois títulos que ela ostenta. Sem nunca deixar de ser uma figura individual, uma figura histórica concreta, a “mulher mãe” tem um significado simbólico. Por trás das expressões “mãe” e “mulher” está a imagem bíblica (usada sobretudo pelos profetas) da "filha de Sião". Na literatura profética a “filha de Sião” é a personificação de Jerusalém; porém Jerusalém é a parte pelo todo: portanto a “filha de Sião” é o povo da aliança, é o povo judeu. A “filha de Sião” é uma imagem coletiva, é a personificação num indivíduo, que nas profecias permanece apenas um estratagema literário; ele é a personificação da comunidade dos crentes. Este é provavelmente o significado principal dos dois títulos que se referem a Maria: “mãe” e “mulher” devem ser explicados no contexto desta imagem profética de uma mulher, que representa o povo da aliança e que é mãe . Por um tempo ela foi privada dos filhos, que foram para o exílio; mas então deverá ampliar sua tenda, pois seus filhos retornarão em tal número que não caberão mais ali; portanto – proclama Isaías – “amplia as estacas da tua tenda” (cf. Is 54,2; ver também Is 49,20). Aqui então Maria representa o povo da aliança. Sem deixar de ser uma figura individual, ela tem um valor comunitário na contemplação que o evangelista João faz dela. Maria representa o povo da aliança; pode-se perguntar: aliança de quem? Na minha opinião a resposta mais persuasiva é a seguinte: ela representa o povo da antiga aliança que atingiu o limiar do éskaton, que chegou ao momento em que a aliança é estipulada por Deus de forma definitiva e quem é o "nova aliança" prometida pelos profetas. Então a mãe representa, antes de tudo, Israel levado ao limiar do eskaton. Avançando nesta leitura simbólico-teológica (que é aquela para a qual o evangelista convida o leitor), o discípulo presente na cruz representa o protótipo de cada discípulo de Jesus. Isto porque ser amado por Jesus constitui o fundamento e a essência de cada discípulo de Jesus. toda existência de discípulo. Contudo, João não é apenas o protótipo de cada discípulo: é também o autor do Evangelho; portanto ele é uma testemunha. Você poderia dizer que são as duas coisas, porque ser discípulo é a base, é o fundamento de todo o resto. Este discípulo, protótipo de todo o discipulado, amado por Jesus, tem também uma função especial: é testemunha do mistério do Verbo que se fez carne. Nunca devemos esquecer que ambos os aspectos estão presentes nele: ele é também testemunha; ele é o autor da QV, que é o grande testemunho dado ao Verbo que se fez carne. Depois podemos retomar as palavras que Jesus dirige a ambos, tentando revelar o seu significado último. As palavras à mãe: «Mulher, aqui está o teu filho!». Se fizermos funcionar o que dissemos, poderemos ler este momento supremo assim: Israel (representado pela "mulher", que é a "mãe", e que é levada ao limiar da "nova aliança") abre-se ao receber alguém, amado por Jesus, torna-se seu discípulo. Novamente, com as palavras “Mulher, eis o teu filho!” Jesus instala o discípulo no papel que até então lhe pertencia: João aparece como o “vigário de Cristo”. É evidente que na teologia da tradição católica esta fórmula adquiriu um significado muito preciso; aqui, porém, podemos dizer que esta é a linha do texto. Jesus está dizendo à sua mãe: “Mulher, o lugar que ocupei até agora, de agora em diante ele ocupará”. Então parece realmente que podemos dizer que o discípulo é o seu vigário. Por outro lado, isto está perfeitamente de acordo com a visão eclesiológica do evangelista. Aqui podemos ver claramente o que é a Igreja para João, porque aqui está a essência da eclesiologia joanina: a Igreja é a extensão da encarnação. Enquanto o Logos sai do mundo e vai para o Pai, o seu lugar no mundo é ocupado pelos discípulos, que prolongam a sua presença. «Mulher, eis o teu filho!»: o lugar que Jesus ocupava até aquele momento, de agora em diante então o discípulo o toma como o protótipo da existência de todo discípulo. Para o evangelista a Igreja é a extensão da encarnação.

5.3. O discípulo testemunha por excelência

Dissemos que João não é apenas uma figura de discípulo, o protótipo da existência de cada discípulo; ele também é a testemunha. Ele é verdadeiramente a testemunha por excelência. A igreja antiga reconheceu isso, acolhendo o seu evangelho no cânon, reconhecendo-o como um texto inspirado e canônico. Verdadeiramente a Igreja apostólica reconheceu a sublimidade deste testemunho dado por João ao Verbo feito carne. João é a testemunha, é a grande testemunha da encarnação do Verbo. Então, que significado adquire esta cena, se insistirmos neste aspecto da figura de João, no momento em que o Logos encarnado deixa este mundo e regressa ao Pai? Ele é a sua testemunha, que continua a tornar acessível a revelação.

Ninguém jamais viu a Deus”, então “o Verbo que se fez carne o revelou” (cf. Jo 1,18); mas o que acontece quando o Verbo sai deste mundo e vai para o Pai? Este texto sugere algo desta perspectiva: assim como o Deus invisível permaneceria inacessível se não existisse o Verbo feito carne que dEle testemunho e O revela, do mesmo modo, se não existisse aquele que dá testemunho do Verbo feito carne, uma vez que o Verbo tenha deixado este mundo, o Verbo seria inacessível, incognoscível, inatingível, não poderia mais ser experimentado. Todos esses são níveis que não entram em conflito entre si. Nas palavras que Jesus diz à sua mãe, devemos ver tudo isto. «Mulher, eis o teu filho!»: a mãe é Israel levado ao limiar do eskaton, que se abre para reunir todos os futuros discípulos de Jesus, absolutamente todos, mesmo aqueles que não vêm do ventre de Israel. Aqui está uma olhada na igreja formada por judeus e tão gentil. A mãe acolhe este discípulo que Jesus instala em seu lugar, porque os discípulos de Jesus são a extensão da encarnação. Novamente ela é convidada a recebê-lo como testemunha. Aqui, pois, a mãe de Jesus, desde o início, isto é, desde a cena das bodas de Caná (Jo 2,1-11), foi apresentada sobretudo em relação à aceitação obediente e confiante da palavra. A mãe, que em Caná confiou na palavra do Filho, é agora convidada a fazê-lo em relação àquela testemunha que agora - na ausência do Verbo feito carne, que já não está aqui na sua carne - dá o seu testemunho a aquela Palavra e sua existência entre os homens.

5.4. O reconhecimento de Israel como matriz

Vejamos as palavras ao discípulo. Jesus «diz ao discípulo: «Eis a tua mãe!»»: é uma cena de revelação. Jesus convida-o a olhar para ela: o discípulo não o vê com os olhos da carne, mas Jesus revela-lhe que ela é sua mãe. Retomamos o que dissemos antes: o “discípulo amado”, protótipo de todo discípulo de Jesus, reconhece que Israel é a matriz da qual tudo provém. Você pode brincar com as palavras: mãe-matriz. O discípulo amado reconhece que o povo da antiga aliança é a matriz: ele tira a mulher “do que lhe pertence”, ou “do que é seu”. É uma expressão formidável do evangelista.

«Ele levou-a para casa». A ideia é antes que “a partir daquela hora em que ele a tomou, ela passou a fazer parte do que é dele”. É muito bonito e profundo. O QE foi escrito quando o templo de Jerusalém já havia sido destruído há muito tempo e numa época em que a comunidade se reunia em torno do testemunho que João já havia aberta para acolher os gentios, os incircuncisos, no seu ventre. Isto é muito importante, porque aqui queremos lembrar a esta comunidade eclesial que Israel continua a ser a matriz. Israel é a matriz desta comunidade, que já não é composta apenas pelos filhos de Israel, mas por cada discípulo amado por Jesus, de onde quer que venha.

 

6. A morte de Jesus (Jo 19.30b)

No início sublinhamos a importância da ligação da cena comentada com a anterior da túnica, imagem da comunidade. São duas cenas profundamente eclesiológicas: a túnica, que não se rompe, e a entrega mútua da mãe ao filho. Concluímos olhando para a cena imediatamente seguinte: a história da morte de Jesus, da qual vemos apenas a expressão final: “E, inclinando a cabeça, entregou o espírito” (19,30b). Se o evangelista quisesse simplesmente dizer “expirou”, teria usado outro verbo, aquele usado nos sinópticos. Em vez disso, ele inventou uma frase que pode ter mais de um significado. Uma mais superficial, para a qual “expirou”, “perdeu o fôlego” também serviria; mas há também um significado mais profundo: “libertou o pneuma”, “libertou o espírito”. Certamente o sopro é uma imagem do espírito, como mostra a cena da Páscoa em João 20; então é fácil fazer a troca. É disso que se trata: João encerra a história da morte de Jesus com esta alusão: deixa claro que o cumprimento da obra messiânica é a comunicação escatológica do Espírito, que o messias dá sem medida, “imensuravelmente”.

Aqui a sucessão de ações é muito importante. O texto não diz que “Jesus expira” e que então, não tendo mais vida nele, sua cabeça desaba; esta seria uma descrição do tipo crônica. Pelo contrário, Jesus, com um ato senhorial, «inclina a cabeça», expressão que indica plena posse das suas faculdades. Inclina a cabeça e inclina-a para aquele núcleo que é a comunidade messiânica, que se encontra aos pés da cruz e que é composta pelas duas figuras sobre as quais meditamos; e então "entregar o espírito". A ação do espírito não pode limitar-se exclusivamente aos limites visíveis da comunidade dos crentes, isto é muito claro. Aqui a insistência é em termos positivos, para dizer que Jesus deixou o seu espírito à comunidade, comunicou-o como um dom sem medida.

Este é o olhar joanino. Obviamente é um dos aspectos, pois também existem muitos outros elementos na história da morte; mas é o olhar que o evangelista nos convida a dirigir para a Igreja, com as duas figuras: a mãe e o “discípulo amado”. A relação que Jesus estabelece entre eles, a revelação que lhes entrega é antes de tudo uma meditação sobre a essência da Igreja, sobre a sua estrutura profunda. Certamente para o evangelista, a relação com Israel e esta presença do Espírito, que o messias morto e ressuscitado dá sem medida à sua comunidade, são de grande importância na estrutura profunda da Igreja.

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