Síntese: Paolo Cugini
Introdução
Ainda nos lembramos da repercussão mundial que obteve o
livro de Rudolf Otto, Das Heilige (1917). Seu sucesso deu se graças, sem
dúvida, à novidade e à originalidade da perspectiva adotada pelo autor. Em vez
de estudar as idéias de Deus e de religião, Rudolf Otto aplicara-se na análise
das modalidades da experiência religiosa. Dotado de grande refinamento
psicológico e fortalecido por uma dupla preparação de teólogo e de historiador
das religiões, Rudolf Otto conseguiu esclarecer o conteúdo e o caráter específico
dessa experiência. Negligenciando o lado racional e especulativo da religião,
Otto voltou se sobretudo para o lado irracional, pois tinha lido Lutero e
compreendera o que quer dizer, para um crente, o “Deus vivo”. Não era o Deus
dos filósofos, o Deus de Erasmo, por exemplo; não era uma idéia, uma noção
abstrata, uma simples alegoria moral. Era, pelo contrário, um poder terrível,
manifestado na “cólera” divina.
Na obra Das Heilige, Rudolf Otto esforça se por
clarificar o caráter específico dessa experiência terrífica e irracional.
Descobre o sentimento de pavor diante do sagrado, diante desse mysterium
tremendum, dessa majestas que exala uma superioridade esmagadora de poder;
encontra o temor religioso diante do mysterium fascinans, em que se expande a
perfeita plenitude do ser. R. Otto designa todas essas experiências como
numinosas (do latim numen, “deus”) porque elas são provocadas pela revelação de
um aspecto do poder divino. O numinoso singulariza se como qualquer coisa de
ganz andere, radical e totalmente diferente: não se assemelha a nada de humano
ou cósmico; em relação ao ganz andere, o homem tem o sentimento de sua profunda
nulidade, o sentimento de “não ser mais do que uma criatura”, ou seja – segundo
os termos com que Abraão se dirigiu ao Senhor –, de não ser “senão cinza e
pó” (Gênesis, 18: 27).
O sagrado manifesta se sempre como uma realidade
inteiramente diferente das realidades “naturais”. É certo que a linguagem
exprime ingenuamente o tremendum, ou a majestas, ou o mysterium fascinans
mediante termos tomados de empréstimo ao domínio natural ou à vida espiritual
profana do homem. Mas sabemos que essa terminologia analógica se deve
justamente à incapacidade humana de exprimir o ganz andere: a linguagem apenas
pode sugerir tudo o que ultrapassa a experiência natural do homem mediante
termos tirados dessa mesma experiência natural.
Passados quarenta anos, as análises de R. Otto guardam
ainda seu valor; o leitor tirará proveito da leitura e da meditação delas. Mas
nas páginas que seguem situamo-nos numa outra perspectiva. Propomo-nos
apresentar o fenômeno do sagrado em toda a sua complexidade, e não apenas no
que ele comporta de irracional. Não é a relação entre os elementos não racional
e racional da religião que nos interessa, mas sim o sagrado na sua totalidade.
Ora, a primeira definição que se pode dar ao sagrado é que ele se opõe ao
profano. As páginas que o leitor vai abordar têm por objetivo ilustrar e
precisar essa oposição entre o sagrado e o profano.
Quando o sagrado se
manifesta
O homem toma conhecimento do sagrado porque este se
manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano. A fim de
indicarmos o ato da manifestação do sagrado, propusemos o termo hierofania.
Este termo é cômodo, pois não implica nenhuma precisão suplementar: exprime
apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que algo de
sagrado se nos revela. Poder-se-ia dizer que a história das religiões – desde
as mais primitivas às mais elaboradas – é constituída por um número considerável
de hierofanias, pelas manifestações das realidades sagradas. A partir da mais
elementar hierofania – por exemplo, a manifestação do sagrado num objeto
qualquer, urna pedra ou uma árvore – e até a hierofania suprema, que é, para um
cristão, a encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de
continuidade. Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a manifestação de
algo “de ordem diferente” – de uma realidade que não pertence ao nosso mundo –
em objetos que fazem parte integrante do nosso mundo “natural”, “profano”.
O homem ocidental moderno experimenta um certo mal estar diante de
inúmeras formas de manifestações do sagrado: é difícil para ele aceitar que,
para certos seres humanos, o sagrado possa manifestar-se em pedras ou árvores,
por exemplo. Mas, como não tardaremos a ver, não se trata de uma veneração da
pedra como pedra, de um culto da árvore como árvore. A pedra sagrada, a árvore
sagrada não são adoradas com pedra ou como árvore, mas justamente porque são
hierofanias, porque “revelam” algo que já não é nem pedra, nem árvore, mas o
sagrado, o ganz andere.
Nunca será demais insistir no paradoxo que constitui
toda hierofania, até a mais elementar. Manifestando o sagrado, um objeto
qualquer torna-se outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque
continua a participar do meio cósmico envolvente. Uma pedra sagrada nem por
isso é menos uma pedra; aparentemente (para sermos mais exatos, de um ponto de
vista profano) nada a distingue de todas as demais pedras. Para aqueles a cujos
olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata transmuda se numa realidade
sobrenatural. Em outras palavras, para aqueles que têm uma experiência
religiosa, toda a Natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade cósmica.
O Cosmos, na sua totalidade, pode tornar-se uma hierofania.
O homem das sociedades arcaicas tem a tendência para
viver o mais possível no sagrado ou muito perto dos objetos consagrados. Essa
tendência é compreensível, pois para os “primitivos”, como para o homem de
todas as sociedades pré-modernas, o sagrado equivale ao poder e, em última
análise, à realidade por excelência. O sagrado está saturado de ser. Potência
sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia. A oposição
sagrado/profano traduz se muitas vezes como uma oposição entre real e irreal ou
pseudo real. (Não se deve esperar encontrar nas línguas arcaicas essa
terminologia dos filósofos – real-irreal etc. –, mas encontra-se a coisa.) É,
portanto, fácil de compreender que o homem religioso deseje profundamente ser,
participar da realidade, saturar-se de poder. É deste assunto, sobretudo, que
nos ocuparemos nas páginas a seguir: de que maneira o home m religioso se
esforça por manter se o máximo de tempo possível num universo sagrado e,
conseqüentemente, como se apresenta sua experiência total da vida em relação à
experiência do homem privado de sentimento religioso, do homem que vive, ou
deseja viver, num mundo dessacralizado. É preciso dizer, desde já, que o mundo
profano na sua totalidade, o Cosmos totalmente dessacralizado, é uma descoberta
recente na história do espírito humano. Não é nossa tarefa mostrar mediante
quais processos históricos, e em conseqüência de que modificações do
comportamento espiritual, o homem moderno dessacralizou seu mundo e assumiu uma
existência profana. Para o nosso propósito basta constatar que a
dessacralização caracteriza a experiência total do homem não religioso das
sociedades modernas, o qual, por essa razão, sente uma dificuldade cada vez
maior em reencontrar as dimensões existenciais do homem religioso das
sociedades arcaicas.
Dois modos de ser no mundo
Pode se medir o precipício que separa as duas
modalidades de experiência – sagrada e profana – lendo se as descrições
concernentes ao espaço sagrado e à construção ritual da morada humana, ou às
diversas experiências religiosas do Tempo, ou às relações do homem religioso
com a Natureza e o mundo dos utensílios, ou à consagração da própria vida
humana, à sacralidade de que podem ser carregadas suas funções vitais
(alimentação, sexualidade, trabalho etc.). Bastará lembrar no que se tornaram,
para o homem moderno e a religioso, a cidade ou a casa, a Natureza, os
utensílios ou o trabalho, para perceber claramente tudo o que o distingue de
uni homem pertencente às sociedades arcaicas ou mesmo de uni camponês da Europa
cristã. Para a consciência moderna, um ato fisiológico – a alimentação, a
sexualidade etc. – não é, em suma, mais do que uni fenômeno orgânico, qualquer
que seja o número de tabus que ainda o envolva (que impõe, por exemplo, certas
regras para “comer convenientemente” ou que interdiz um comportamento sexual
que a moral social reprova). Mas para o “primitivo” um tal ato nunca é
simplesmente fisiológico; é, ou pode tornar-se, uni “sacramento”, quer dizer,
uma comunhão com o sagrado.
O leitor não tardará a dar-se conta de que o sagrado e o
profano constituem duas modalidades de ser no Mundo, duas situações
existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história. Esses modos de ser
no Mundo não interessam unicamente à história das religiões ou à sociologia,
não constituem apenas o objeto de estudos históricos, sociológicos,
etnológicos. Em última instância, os modos de ser sagrado e profano dependem
das diferentes posições que o homem conquistou no Cosmos e, conseqüentemente,
interessam não só ao filósofo mas também a todo investigador desejoso de
conhecer as dimensões possíveis da existência humana.
Por essa razão, o autor deste pequeno livro, embora um
historiador das religiões, propõe se não escrever unicamente da perspectiva da
ciência que cultiva. O homem das sociedades tradicionais é, por assim dizer, um
homo religiosus, mas seu comportamento enquadra-se no comportamento geral do
homem e, por conseguinte, interessa à antropologia filosófica, à fenomenologia,
à psicologia.
A fim de sublinhar melhor as notas específicas da
existência num mundo suscetível de tornar-se sagrado, não hesitaremos em citar
exemplos escolhidos entre um grande número de religiões, pertencentes a idades
e culturas diferentes. Nada pode substituir o exemplo, o fato concreto. Seria
vão discorrer acerca da estrutura do espaço sagrado sem mostrar, com exemplos
precisos, como se constrói um tal espaço e por que é que tal espaço se torna
qualitativamente diferente do espaço profano que o cerca. Tomaremos esses
exemplos entre mesopotâmicos, indianos, chineses, kwakiutls e outras populações
primitivas. Da perspectiva histórico cultural, uma tal justaposição de fatos
religiosos, pertencentes a povos tão distantes no tempo e no espaço, não deixa
de ser um tanto perigosa, pois há sempre o risco de se recair
nos erros do século XIX e, principalmente, de se acreditar, como
Tvlor ou Frazer, numa reação uniforme do espírito humano diante dos fenômenos
naturais. Ora, os progressos da etnologia cultural e da história das religiões
mostraram que nem sempre isso ocorre, que as “reações do homem diante da
Natureza” são condicionadas muitas vezes pela cultura – portanto, em última
instância, pela história.
Mas, para o nosso propósito, é mais importante salientar
as notas específicas cia experiência religiosa do que mostrar suas múltiplas
variações e as diferenças ocasionadas pela história. É um pouco como se, a fim
de captarmos melhor o fenômeno poético, apelássemos para uma massa de exemplos
heterogêneos, citando, ao lado de Homero, Virgílio ou Dante, poemas hindus,
chineses ou mexicanos – ou seja, tomando em conta não só poéticas
historicamente solidárias (Homero, Virgílio, Dante) mas também algumas criações
baseadas em outras estéticas. Do ponto de vista da história da literatura, tais
justaposições são duvidosas – mas são válidas se temos em vista a descrição do
fenômeno poético como tal, se nos propomos mostrar a diferença essencial entre
a linguagem poética e a linguagem utilitária cotidiana.
O sagrado e a história
O que nos interessa, acima de tudo, é apresentar as
dimensões específicas da experiência religiosa, salientar suas diferenças com a
experiência profana do Mundo.
Não insistiremos sobre os inumeráveis condicionamentos que a
experiência religiosa no Mundo sofreu no curso do tempo. É evidente, por
exemplo, que os simbolismos e os cultos da Terra Mãe, da fecundidade humana e
agrária, da sacralidade da mulher etc. não puderam desenvolver se e constituir
um sistema religioso amplamente articulado senão pela descoberta da
agricultura. É igualmente evidente que uma sociedade pré-agrícola,
especializada na caça, não podia sentir da mesma maneira, nem com a mesma
intensidade, a sacralidade da Terra Mãe. Há, portanto, uma diferença de
experiência religiosa que se explica pelas diferenças de economia, cultura e
organização social – numa palavra, pela história. Contudo, entre os caçadores
nômades e os agricultores sedentários, há uma similitude de comportamento que
nos parece infinitamente mais importante do que suas diferenças: tanto uns como
outros vivem num Cosmos sacralizado; uns como outros participam de uma
sacralidade cósmica, que se manifesta tanto no mundo animal como no mundo
vegetal. Basta comparar suas situações existenciais às de um homem das
sociedades modernas, vivendo num Cosmos dessacralizado, para imediatamente nos
darmos conta de tudo o que separa este último dos outros. Do mesmo modo,
damo-nos conta da validade das comparações entre fatos religiosos pertencentes
a diferentes culturas: todos esses fatos partem de um mesmo comportamento, que
é o do homo religiosus.
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