sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Zygmunt Bauman – Modernidade-Líquida

 




 

 

Síntese: Paolo Cugini

Prefácio

 

Ser Leve E Líquido

 

Os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade. Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o tempo. Enquanto os sólidos têm dimensões espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou o tornam irrelevante), os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la; assim, para ele, o que conta é o tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal, preenchem apenas “por um momento”. Em certo sentido, os sólidos suprimem o tempo; para os líquidos, ao contrário, o tempo é o que importa. Ao descrever os sólidos, podemos ignorar inteiramente o tempo; ao descrever os fluidos, deixar o tempo de fora seria um grave erro. Descrições de líquidos são fatos instantâneas, que precisam ser datadas. (pág.8)

A extraordinária mobilidade dos fluídos é o que os associa à idéia de “leveza”. Associamos “leveza” ou “ausência de peso” à mobilidade e à inconstância: sabemos pela prática que quanto mais leves viajamos, com maior facilidade e rapidez nos movemos. (pág.8)

Essa são razões para considerar “fluidez” ou “liquidez” como metáforas adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras, na história da modernidade. (pág.9)

A nossa é, como resultado, uma versão individualizada e privatizada da modernidade, e o peso da trama dos padrões e a responsabilidade pelo fracasso caem principalmente sobre os ombros dos indivíduos. Chegou a vez da liquefação dos padrões de dependência e interação. Eles são agora maleáveis a um ponto que as gerações passadas não experimentaram e nem poderiam imaginar; mas, como todos os fluídos, eles não mantêm a forma por muito tempo. Dar-lhes forma é mais fácil que mantê-los nela. Os sólidos são moldados para sempre. Manter os fluidos em uma forma requer muita atenção, vigilância constante e esforço perpétuo – e mesmo o sucesso do esforço é tudo menos inevitável.

Seria imprudente negar, ou mesmo subestimar, a profunda mudança que o advento da “modernidade fluida” produziu na condição humana. O fato de que a estrutura sistêmica seja remota e inalcançável, aliado ao estado fluido e não-estruturado do cenário imediato da política-vida, muda aquela condição de um modo radical e requer que repensemos os velhos conceitos que costumavam cercar suas narrativas. Como zumbis, esses conceitos são hoje mortos-vivos. A questão prática consiste em saber se sua ressurreição, ainda que em nova forma ou encarnação, é possível; ou – se não for – como fazer com que eles tenham um enterro decente e eficaz. (pág.15)

O que leva tantos a falar do “fim da história”, da pós-modernidade, da “segunda modernidade” e da “sibremodernidade”, ou a articular a intuição de uma mudança radical no arranjo do convívio humano e nas condições sociais sob as quais a política-vida é hoje, é o fato de que o longo esforço para acelerar a velocidade do movimento chegou a seu “limite natural”. (pág.17 e 18)

 

  1. Emancipação

 

A bênçãos mistas da liberdade

 

A libertação é uma bênção é uma maldição? Uma maldição disfarçada de bênção, ou uma bênção temida como maldição? Tais questões assombraram os pensadores durante a maior parte da era moderna, que punha a “libertação” no topo da agenda da reforma política e a “libertação” no alto da lista de valores – quando ficou suficientemente claro que a liberdade custava a chegar e os que deveriam dela gozar relutavam em dar-lhe as boas-vindas. Houve dois tipos de resposta. A primeira lançava dúvidas sobre a prontidão do “povo comum” para a liberdade. Como o escritor norte-americano Herbert Sebastian Agar dizia: “a verdade que torna os homens livres é, na maioria dos casos, a verdade que os homens preferem não ouvir”. A segunda inclinava-se a aceitar que os homens podem não estar inteiramente equivocados quando questionam os benefícios que as liberdades oferecidas podem lhes trazer. (pág.26)

O indivíduo se submete à sociedade e essa submissão é a condição de sua libertação. Para o homem a liberdade consiste em não estar sujeito às forças físicas cegas; ele chega a isso opondo-lhes a grande e inteligente força da sociedade, ele se torna, até certo ponto, dependente dela. Mas é uma dependência libertadora; não há nisso contradição.[1] (pág.27)

Não só não há contradição entre dependência e libertação: não há outro caminho para buscar a libertação senão “submeter-se à sociedade” e seguir suas normas. A liberdade não pode ser ganha contra a sociedade. O resultado da rebelião contra as normas, mesmo que os rebelados não tenham se tornado bestas de uma vez por todas, e, portanto, perdido a capacidade de julgar sua própria condição, é uma agonia perpétua de indecisão ligada a um Estado de incerteza sobre as intenções e movimentos dos outros ao redor – o que faz da vida um inferno. (pág.28)

 

A casualidade e a arte cambiantes da crítica

 

O que está errado com a sociedade em que vivemos, disse Cornelius Castoriadis, é que ela deixou de se questionar. É um tipo de sociedade que não mais reconhece qualquer alternativa para si mesma e, portanto, sente-se absolvida do dever de examinar, demonstrar, justificar (e que dirá provar) a validade de suas suposições tácitas e declaradas.

Isso não significa, entretanto, que nossa sociedade tenha suprimido (ou venha a suprimir) o pensamento crítico como tal. Ela não deixou seus membros reticentes (e menos ainda temerosos) em lhe dar voz. Ao contrário: nossa sociedade – uma sociedade de “indivíduos livres’ – fez da crítica da realidade, da insatisfação com “o que aí está” e da expressão dessa insatisfação uma parte inevitável e obrigatória dos afazeres da vida de cada um de seus membros. (pág.30 e 31)

De alguma maneira, no entanto, essa reflexão não vai longe  suficiente para alcançar os complexos mecanismos que conectam nossos movimentos com seus resultados e os denominam, e menos ainda as condições que mantêm esses mecanismos em operação. Somos talvez mais “predispostos à crítica”, mais assertivos e intransigentes em nossa críticas, que nossos ancestrais em sua vida cotidiana, mas nossa crítica é, por assim dizer, “desdentada”, incapaz de afetar a agenda estabelecida para nossas escolhas na “política-vida”. A liberdade sem precedentes que nossa sociedade oferece a seus membros chegou, como há tempo nos advertia Leo Strauss, e com ela também uma impotência sem precedentes. (pág.31)

Essa modernidade pesada/sólida/condensada/sistêmica da “teoria crítica” era impregnada da tendência ao totalitarismo. A sociedade totalitária da homogeneidade compulsória, imposta e onipresente, estava constante e ameaçadoramente no horizonte – como destino último, como uma bomba nunca inteiramente desarmada ou um fantasma nunca inteiramente exorcizado. Essa modernidade era inimiga jurada da contingência, da verdade, da ambigüidade, da instabilidade, da idiossincrasia, tendo declarado uma guerra santa a todas essas “anomalias”; e esperava-se que a liberdade e a autonomia individuais fossem as primeiras vítimas da cruzada. Entre os princípios ícones dessa modernidade estavam a fábrica fordista, que reduzia as atividades humanas a movimentos simples, rotineiros e predeterminados, destinados a serem obediente e mecanicamente seguidos, sem envolver as faculdades mentais e excluindo toda espontaneidade e iniciativa individual. (pág.33 e 34)

Duas características, no entanto, fazem nossa situação – nossa forma de modernidade – nova e diferente.

A primeira é o colapso gradual e o rápido declínio da antiga ilusão moderna: da crença de que há um fim do caminho em que andamos, um telos alcançável da mudança histórica, um Estado de perfeição a ser atingido amanhã, no próximo ano ou no próximo milênio, algum tipo de sociedade boa, de sociedade justa e sem conflitos em todos ou alguns de seus aspectos postulados: do firme equilíbrio entre oferta e procura e a satisfação de todas as necessidades; da ordem perfeita, em que tudo é colocado no lugar certo, nada que esteja deslocado persiste e nenhum lugar é posto em dúvida; das coisas humanas que se tornam totalmente transparentes porque se sabe tudo o que deve ser sabido; do completo domínio sobre o futuro – tão completo que põe fim a toda contingência, disputa, ambivalência e conseqüências imprevistas das iniciativas humanas.

A segunda mudança é a desregulamentação e a privatização das tarefas e deveres modernizados. O que costumava ser considerado uma tarefa para a razão humana, vista como dotação e propriedade coletiva da espécie humana, foi fragmentado (“individualizado”), atribuído às vísceras e energia individuais e deixando à administração dos indivíduos e seus recursos. (pág.37 e 38)

 

O indivíduo em combate com o cidadão

 

A “individualização” agora significa uma coisa muito diferente do que significa há cem anos e do que implicava nos primeiros tempos da era moderna – os tempos da exaltada “emancipação” do homem da trama estreita da dependência, da vigilância e da imposição comunitárias. (pág.39 e 40)

A “individualização” consiste em transformar a “identidade” humana de um “dado” em uma “tarefa” e encarregar os atores da responsabilidade de realizar essa tarefa e das conseqüências (assim como dos efeitos colaterais) de sua realização. Em outras palavras, consiste no estabelecimento de uma autonomia de jure (independentemente de a autonomia de facto também ter sido estabelecida). (pág.40)

Para assumir o abismo entre a individualidade como fatalidade e a individualidade como capacidade realista e prática de auto-afirmação está aumentando. (Melhor ser afastado da “individualidade por atribuição”, como “individuação”: o termo escolhido por Beck para distinguir o indivíduo auto-sustentado e auto-impulsionado daquele que não tem escolha senão a de agir, ainda que contrafactualmente, como se a individualização tivesse sido alcançada). Saltar sobre esse abismo não é – isso é crucial – parte dessa capacidade. (pág.44)

A individualização chegou para ficar; toda elaboração sobre os meios de enfrentar seu impacto sobre o modo como levamos nossas vidas deve partir do reconhecimento desse fato. A individualização traz para um número sempre crescente de pessoas uma liberdade sem precedentes de experimentar – mas (timeo danaos et dana ferentes...) traz junto a tarefa também sem precedentes de enfrentar as conseqüências. O abismo que se abre entre o direito à auto-afirmação e a capacidade de controlar as situações sociais que podem tornar essa auto-afirmação algo factível ou irrealista parece ser a principal contradição da modernidade fluida – contradição que, por tentativa e erro, reflexão crítica e experimentação corajosa precisamos aprender a manejar coletivamente. (pág.47)

 

  1. Tempo/Espaço

 

Da modernidade pesada à modernidade leve

 

Na era do hardware, da modernidade pesada, que nos termos de Max Weber era também a era da racionalidade instrumental, o tempo era o meio que precisava ser administrado prudentemente para que o retorno de valor, que era o espaço, pudesse ser maximizado; na era do software, da modernidade leve, a eficácia do tempo como meio de alcançar valor tende a aproximar-se do infinito, como o efeito paradoxal de nivelar por cima (ou, antes, por baixo) o valor de todas as unidades no campo dos objetivos potenciais. O ponto de interrogação moveu-se do lado dos meios para o lado dos fins. Se aplicado à relação tempo-espaço, isso significa que, como todas as partes do espaço podem ser atingidas no mesmo período de tempo (isto é, em “tempo nenhum”), nenhuma parte do espaço é privilegiada, nenhum tem um “valor especial”. Se todas as partes do espaço podem ser alcançadas a qualquer momento, não há razão para alcançar qualquer uma delas num dado momento e nem tampouco razão para se preocupar em garantir o direito de acesso a qualquer uma delas. Se soubermos que podemos visitar um lugar em qualquer momento que quisermos, não há urgência em visitá-lo em gastar dinheiro em uma passagem válida para sempre. Há ainda menos razão para suportar o gasto da supervisão e administração permanentes, do laborioso e arriscado cultivo de terras que podem ser facilmente ocupadas e abandonadas conforme interesses de momentos e “relevâncias tópicas”. (pág.137)

 

A sedutora leveza do ser

 

O tempo instantâneo e sem substância do mundo do software é também um tempo sem conseqüências . “Instantaneidade” significa realização imediata , “no ato” – mas também exaustão e desaparecimento do interesse. A distância em tempo que separa o começo do fim está diminuindo ou mesmo desaparecendo; as duas noções, que outrora eram usadas para marcar a passagem do tempo, e portanto para calcular seu “valor perdido”, perderam muito de seu significado – que, como todos os significados, derivava de sua rígida oposição. Há apenas “momentos” – pontos sem dimensões. Mas, será ainda um tal tempo – tempo com a morfologia de um agregado de momentos – o tempo “como conhecimento”? A expressão “momento de tempo” parece, pelo menos em certos aspectos vitais, cometido suicídio? Não teria sido o espaço apenas a primeira baixa na corrida do tempo para a auto-aniquilação? (pág.137 e 138)

As pessoas que se movem e agem com maior rapidez, que mais se aproximam do momentâneo do movimento, são as pessoas que agora mandam. E são as pessoas que não podem se mover tão rápido – e, de modo ainda mais claro, a categoria das pessoas que não podem deixar seu lugar quando quiserem – as que obedecem. A dominação consiste em nossa própria capacidade de escapar, de nos desengajarmos, de estar “em outro lugar”, e no direito de decidir sobre a velocidade com que isso será feito – e ao mesmo tempo de destruir os que estão do lado dominado de sua capacidade de parar, ou de limitar seus movimentos ou ainda torná-los mais lentos. A batalha contemporânea da dominação é travada entre forças que empunham, respectivamente, as armas da aceleração e da procrastinação. (pág.139)

O trabalho sem corpo da era do software não mais amarra o capital: permite ao capital ser extraterritorial, volátil e inconstante. A descorporificação do trabalho anuncia a ausência de peso do capital. Sua dependência mútua foi unilateralmente rompida: enquanto a capacidade do trabalho é, como antes, incompleta e irrealizável isoladamente, o inverso não mais se aplica. O capital viaja esperançoso, contando com breves e lucrativas aventuras e confiante em que não haverá escassez delas ou de parceiros com quem compartilhá-las. O capital pode viajar rápido e leve, e sua leveza e mobilidade se tornam as fontes mais importantes de incerteza para todo o resto. Essa é hoje a principal base da dominação e o principal fator das divisões sociais. (pág.141)

 

Vida instantânea

 

Uma vez que a infinidade de possibilidades esvaziou a infinitude do tempo de seu poder sedutor, a durabilidade perde sua atração e passa de um recurso a um risco. Talvez seja mais adequado observar que a própria linha de demarcação entre o (durável” e o “transitório”, outrora foco de disputa e engenharia, foi substituída pela polícia de fronteiras e por batalhões de construtores.

A desvalorização da imortalidade não pode senão anunciar uma rebelião cultural, defensavelmente o marco mais decisivo na história cultural humana. A passagem do capitalismo pesado ao leve, da modernidade sólida à fluida, pode vir a ser um ponto de inflexão mais radical e rico que o advento mesmo do capitalismo e da modernidade, vistos anteriormente como os marcos cruciais da história humana, pelo menos desde a revolução neolítica. De fato, em toda a história humana o trabalho da cultura consistiu em peneirar e sedimentar duras sementes de perpetuidade a partir de transitórias vidas humanas e de ações humanas fugazes, em invocar a duração a partir da transitoriedade, a continuidade a partir da descontinuidade, e em assim transcender os limites impostos pela mortalidade humana, utilizando homens e mulheres mortais a serviço da espécie humana mortal. A demanda por esse tipo de trabalho está diminuindo hoje em dia. A demanda por esse tipo de trabalho está diminuindo hoje em dia. As conseqüências dessa demanda em queda estão para ser vistas e são difíceis de visualizar de antemão, pois não há precedentes a lembrar ou em que se apoiar.

A nova instantaneidade do tempo muda radicalmente a modalidade do convívio humano – e mais conspicuamente o modo como os humanos cuidam (ou não cuidam, se for o caso) de seus afazeres coletivos, ou antes o modo como transformam (ou não transformam, se for o caso) certas questões em questões coletivas. (pág.146 e 147)

4. Trabalho

 

Progresso e fé na história

 

Se, no entanto, a idéia de progresso em sua encarnação presente parece tão pouco familiar que chegamos a nos perguntar se ainda a mantemos, é porque o progresso, como tantos outros parâmetros da vida moderna, está agora “individualizado”; mais precisamente – desregulado e privatizado. Está agora desregulado – porque as ofertas de “elevar de nível” as realidades presentes são muitas e diversas e porque a questão “uma novidade particular significa de fato um aperfeiçoamento?” foi deixada à livre competição antes e depois de sua introdução, e permanecerá em disputa mesmo depois de feita a escolha. (pág.155)

No mundo humano labiríntico, os trabalhos humanos se dividem em episódios isolados como o resto da vida humana. E, como no caso de todas as outras ações que os humanos podem empreender, o objetivo de manter um curso próximo aos projetos dos atores é evasivo, talvez inatingível. O trabalho escorregou do universo da construção da ordem e controle do futuro em direção do reino do jogo; atos de trabalho se parecem mais com as estratégias de um jogador que se põe modestos objetivos de curto prazo, não antecipando imediatos de cada movimento; os efeitos devem ser passíveis de ser consumidos no ato. Suspeita-se que o mundo esteja repleto de pontes demasiado longínquas, o tipo de pontes que é melhor não pensar em atravessar até encontrá-las, o que não acontecerá tão cedo. Cada obstáculo deve ser negociado quando chegar sua vez; a vida é uma seqüência de episódios – cada um a ser calculado em separado, pois cada um tem seu próprio balanço de perdas e ganhos. Os caminhos da vida não se tornam mais retos por serem trilhados, e virar uma esquina não é garantia de que os rumos corretos serão seguidos no futuro. (pág.159 e 160)

 

Ascensão e queda do trabalho

 

A nova desigualdade global e a nova autoconfiança e sentimento de superioridade que se seguiram foram espetaculares e sem precedentes: novas noções, novos quadros cognitivos eram necessários para captá-las e assimilá-las intelectualmente. Essas noções e quadros foram fornecidos pela recém-nascida ciência da economia política, que veio a substituir as idéias fisiocratas e mercantilistas que acompanham a Europa em seu caminho para a fase moderna de sua história, até o limiar da Revolução Industrial.

Não “por caso” essas noções foram cunhadas na Escócia, país ao mesmo tempo envolvido e separado do curso principal da convulsão industrial, física e psicologicamente próximo do país que se tornaria o epicentro da emergente ordem industrial, mas que permaneceria por certo tempo relativamente imune a seu impacto econômico e cultural. As tendências em pleno movimento no “centro” são, em regra, mais prontamente detectadas e mais claramente articuladas em lugares temporariamente relegados às “margens”. Viver na periferia do centro civilizacional significa estar suficientemente próximo para ver as coisas com clareza, mas suficientemente longe para “objetivá-las” e assim moldar e condensar as percepções em conceitos. Não foi, portanto, “mera coincidência” que o evangelho tenha vindo da Escócia: a riqueza vem do trabalho, sua fonte principal, talvez única. (pág.162)

Essa nova ordem em que todos os fins presentemente soltos serão novamente amarrados, enquanto as cargas e destroços de fatalidades passadas, náufragos abandonos ou à deriva, serão recolocados e fixados em seus lugares corretos, deveria ser massiva, sólida, feita de pedra ou armada em aço: destinada a durar. Grande era belo, grande era racional; “grande’ queria dizer poder, ambição e coragem. O local de construção da nova ordem industrial era repleto de monumentos ao poder e à ambição, monumentos que, fossem ou não indestrutíveis, deveriam parecê-lo: fábricas gigantescas lotadas de maquinaria volumosa e multidões de operadores de máquinas, ou densas redes de canais, pontes e trilhos pontuados de majestosas estações dedicadas a emular os antigos templos erigidos para a adoração da eternidade e para a eterna glória dos adoradores. (pág.165)

 

Do casamento à coabitação

 

A presente versão “liquefeita”, “fluída”, dispersa, espalhada e desregulada da modernidade pode não implicar o divórcio e ruptura final da comunicação, mas anuncia o advento do capitalismo leve e flutuante, marcado pelo desengajamento e enfraquecimento dos laços que prendem o capital ao trabalho. Pode-se dizer que esse movimento ecoa a passagem do casamento para o “viver junto”, com todas as atitudes disso decorrentes e conseqüências estratégicas, incluindo a suposição da transitoriedade da coabitação e da possibilidade de que a associação seja rompida a qualquer momento e por qualquer razão, uma vez desaparecida a necessidade ou o desejo. Se manter-se juntos era uma questão de acordo recíproco e de mútua dependência, o desengajamento é unilateral: um dos lados da configuração adquiriu uma autonomia que talvez sempre tenha desejado secretamente mas que nunca havia manifestado seriamente antes. Numa medida nunca alcançada na realidade pelos “senhores ausentes” de outrora, o capital rompeu sua dependência em relação ao trabalho com uma nova liberdade de movimentos, impensável no passado. A reprodução e o crescimento do capital, dos lucros e dos dividendos e a satisfação dos acionistas se tornaram independentes da duração de qualquer comprometimento local com o trabalho. (pág.171)

 

Digressão: breve história da procrastinação

 

Resumindo: a procrastinação deriva seu sentido moderno do tempo vivido como uma peregrinação, como um movimento que se aproxima de um objetivo. Em tal tempo, cada presente é avaliado por alguma coisa que vem depois. Qualquer valor que este presente aqui e agora possa ter não passará de um sinal premonitório de um valor mais alto por vir. O uso – a tarefa – do presente é levar-nos mais perto desse valor mais alto. Em si mesmo, o tempo presente carece de sentido e de valor. É, por isso, falho, deficiente e incompleto. O sentido do presente está adiante; o que está à mão ganha sentido e é avaliado pelo noch-nicht-geworden, pelo que ainda não existe. (pág.179)  

Viver a vida como uma peregrinação é, portanto, intrinsecamente aporético. E obriga cada presente a servir a alguma coisa que ainda-não-é, e a servi-la diminuindo a distância desaparecesse e o objetivo fosse alcançado, o presente perderia tudo o que o fazia significativo e valioso. A racionalidade instrumental favorecida e privilegiada pela vida do peregrino leva à busca dos meios que podem realizar o estranho feito de manter o fim dos esforços sempre à vista sem nunca chegar lá, de trazer o fim cada vez mais para perto, mas impedindo ao mesmo tempo que a distância caia para zero. A vida do peregrino é uma viagem em direção à realização, mas “realização” nesta vida é equivalente à perda da sentido. Viajar em direção à realização dá sentido tem algo de um impulso suicida; esse sentido não pode sobreviver à chegada ao destino.

A procrastinação reflete essa ambivalência. O peregrino procrastina para estar mais bem preparado para captar as coisas que verdadeiramente importam. Mas captá-las sinalizará o fim da peregrinação, e assim também o fim de uma vida que dela deriva seu único sentido. Por essa razão, a procrastinação tem uma tendência a romper qualquer limite de tempo colocando de antemão e a estender-se indefinidamente – ad calendas graecas. A procrastinação tende a tornar-se seu próprio objetivo. A coisa mais importante deixada de lado no ato da procrastinação tende a ser o fim da própria procrastinação. (pág.179 e 180)

Como uma faca de dois gumes, a procrastinação pode servir à sociedade moderna tanto em seu estágio “sólido” como no “líquido”, tanto em seu estágio de produtor como no de consumidor, ainda que sobrecarregue cada estágio com tensões e conflitos de atitude e axiológicos não-resolvidos. A passagem para a sociedade de consumidores do presente significou portanto uma mudança de ênfase mais que uma mudança de valores. E, no entanto, levou o princípio da procrastinação ao ponto de ruptura. Esse princípio está hoje vulnerável, e perdeu o escudo protetor da proibição ética. O adiamento da satisfação da satisfação não é mais um sinal de virtude moral. É uma provação para e simples, uma problemática sobrecarga que sinaliza imperfeições nos arranjos sociais ou inadequação pessoal, ou nas duas ao mesmo tempo. Não uma exortação, mas uma admissão resignada e triste de um estado de coisas desagradável (mas remediável). (pág.182)

A procrastinação serve à cultura do consumidor pela sua autonegação. A fonte do esforço criativo não é mais o desejo, mas o desejo induzido de encurtar o adiamento ou aboli-lo de todo, acompanhando do desejo induzido de encurtar a duração da satisfação quando ela chega. A cultura em guerra com a procrastinação é uma novidade na história moderna. Ela não tem lugar para tomar distância, nem para reflexão, continuidade, tradição – essa Wiederholung (recapitulação) que, de acordo com Heidegger, era a moralidade do Ser como o conhecemos. (pág.183)

 

Os laços humanos no mundo fluido

 

Na falta de segurança de longo prazo, a “satisfação instantânea” parece uma estratégia razoável. O que quer que a vida ofereça, que o faça hic et nunc – no ato. Quem sabe o que o amanhã vai trazer? O adiamento da satisfação perdeu seu fascínio. É, afinal, altamente incerto que o trabalho e o esforço investidos hoje venham a contar como recursos quando chegar a hora da recompensa. Está longe de ser certo, além disso, que os prêmios que hoje parecem atraentes serão tão desejáveis quando finalmente forem conquistados. Todos aprendemos com amargas experiências que os prêmios podem se tornar riscos de uma hora para outra e prêmios resplandecentes podem se tornar marcas de vergonha. As modas vêm e vão com velocidade estonteante, todos os objetos de desejo se tornam obsoletos, repugnantes e de mau-gosto antes que tenhamos tempo de aproveitá-los. Estilos de vida que são “chiques” hoje serão amanhã alvos do ridículo. Citando Bourdieu uma vez mais: “Os que deploram o cinismo que marca os homens e mulheres de nosso tempo não deveriam deixar de relacioná-lo às condições sociais e econômicas que o favorecem...” Quando Roma pega fogo e há muito pouco ou nada que se possa fazer para controlar o incêndio, tocar violino não parece mais bobo nem menos adequado do que fazer qualquer outra coisa. (pág.185 e 186)

Num mundo em que o futuro é, na melhor das hipóteses, sombrio e nebuloso, porém mais provavelmente cheio de riscos e perigos, colocar-se objetivos distantes, abandonar o interesse privado para aumentar o poder do grupo e sacrificar o presente em nome de uma felicidade futura não parecem uma proposição atraente, ou mesmo razoável. Qualquer oportunidade que não for aproveitada aqui e agora é uma oportunidade perdida; não a aproveitar é assim imperdoável e não há desculpa fácil para isso, e nem justificativa. Como os compromissos de hoje são obstáculos para as oportunidades de amanhã, quanto mais forem leves e superficiais, menor o risco de prejuízos. “Agora” é a palavra-chave da estratégia de vida, ao que quer que essa estratégia se aplique e independente do que mais possa sugerir. Num mundo inseguro e imprevisível, o viajante esperto fará o possível para imitar os felizes globais que viajam leves; e não derramarão muitas lágrimas ao se livrar de qualquer coisa que atrapalhe os movimentos. Raramente param por tempo suficiente para imaginar que os laços humanos não são como peças de automóvel – que raramente vêm prontos, que tendem a se deteriorar e desintegrar facilmente se ficarem hermeticamente fechados e que não são fácies de substituir quando perdem a utilidade. (pág.186 e 187)

Em outras palavras, laços e parcerias tendem a ser vistos e tratados como coisas destinadas a serem consumidas, e não produzidas; estão sujeitas aos mesmos critérios de avaliação de todos os outros objetos de consumo. No mercado de consumo, os produtos duráveis são em geral oferecidos por um “período de teste”; a devolução do dinheiro é prometida se o comprador estiver menos que totalmente satisfeito. Se o participante numa parceria é “concebido” em tais termos, então não é mais tarefa para ambos os parceiros “fazer com que a relação funcione”, “na riqueza e na pobreza”, na saúde e na doença, trabalhar a favor nos bons e maus momentos, repensar, se necessário, as próprias preferências, conceder e fazer sacrifícios em favor de uma união duradoura. É, em vez disso, uma questão de obter satisfação de um produto pronto para o consumo; se o prazer obtido corresponder ao padrão prometido e esperado, ou se a novidade se acabar junto com o gozo, pode-se entrar com a ação de divórcio, com base nos direitos do consumidor. Não há qualquer razão para ficar com um produto inferior ou envelhecido em vez de procurar outro “novo e aperfeiçoado” nas lojas. (pág.187 e 188)

 

5. Comunidade

 

Em termos sociológicos, o comunitarismo é uma reação esperável à acelerada “liquefação” da vida moderna, uma reação antes e acima de tudo ao aspecto da vida sentido como a mais aborrecida e incômoda entre suas numerosas conseqüências penosas – o crescente desequilíbrio entre a liberdade e as garantias individuais. O suprimento de provisões e esvai rapidamente, enquanto o volume de responsabilidade individuais (atribuídas, quando não exercidas na prática) cresce numa escola sem precedentes para as gerações do pós-guerra. Um aspecto muito visível do desaparecimento das velhas garantias é a nova fragilidade dos laços humanos. A fragilidade e transitoriedade dos laços pode ser um preço inevitável do direito de os indivíduos perseguirem seus objetivos individuais, mas não pode deixar de ser, simultaneamente, um obstáculo dos mais formidáveis para perseguir eficazmente esses objetivos – e para a coragem necessária para persegui-los. Isso também é um paradoxo – e profundamente enraizado na natureza da vida na modernidade líquida. E nem é a primeira vez que situações paradoxais provocam e evocam respostas paradoxais. À luz da natureza paradoxal da “individualização” moderna-líquida, a natureza contraditória da resposta comunitária ao paradoxo não deve espantar: a primeira é uma explicação adequada da segunda, enquanto está é um efeito adequado da primeira.

O comunitarismo renascido responde à questão genuína e pungente de que o pêndulo oscila radicalmente – e talvez para longe demais – afastando-se do pólo da segurança na díade dos valores humanos fundamentais. Por essa razão, o evangelho comunitário tem uma grande audiência. Ele fala em nome de milhões: precarité, como insiste Bourdieu, est aujourd’hui partout – ela penetra cada canto da existência humana. Em seu recente livro Proteger ou disparaître,[2] um irado manifesto contra a indolência e a hipocrisia das elites do poder de hoje em face de “la montée des insecurités”, Philippe Cohen lista o desemprego (nove de cada dez novas vagas são estritamente temporárias e de curto prazo), as perspectivas incertas na velhice e os infortúnios da vida urbana como as principais fontes da difusa ansiedade em relação ao presente, ao dia de amanhã e ao futuro mais distante: a falta de segurança é o que une as três, e o principal apelo do comunitarismo é a promessa de um porto seguro, o destino dos sonhos dos marinheiros perdidos no mar turbulento da mudança constante, confusa e imprevisível. (pág.195 e 196)

 

Unidade – pela semelhança ou pela diferença?

 

O “nós” do credo patriótico/navionalista significa pessoas como nós, “eles” significa pessoas que são diferentes de nós. Não que “nós” sejamos idênticos em tudo; há diferenças entre “nós”, ao lado das características comuns, mas as semelhanças diminuem, tornam difuso e neutralizam seu impacto. O aspecto em que somos semelhantes é decididamente mais significativo que o que nos separa; significativo bastante para superar o impacto das diferenças quando se trata de tomar posição. E não que “eles” sejam diferentes de nós em tudo, mas eles diferem em um aspecto que é mais importante que todos os outros, importante o bastante para impedir uma posição comum e tornar improvável a solidariedade genuína, independente das semelhanças que existam. É uma situação tipicamente ou/ ou: as fronteiras que “nos” separam “deles” estão claramente traçadas e são fáceis de ver, uma vez que o certificado de “pertencer” só tem uma rubrica, e o formulário que aquele que requerem uma carteira de identidade devem preencher contém uma só pergunta, que deve ser respondida “sim ou não”. (pág. 202)

O nacionalismo tranca as portas, arranca as aldravas e desliga as campainhas, declarando que apenas os que estão dentro têm direito de aí estar e acomodar-se de vez. O patriotismo é, pelo menos aparentemente, mais tolerante, hospitaleiro e acessível – deixa a questão para os que pedem admissão. E no entanto o resultado último é, quase sempre, notavelmente semelhante. Nem o credo patriótico nem o nacionalista admitem a possibilidade de que as pessoas possam se unir mantendo-se ligadas às suas diferenças, estimando-as e cultivando-as, ou que sua unidade, longe de requerer a semelhança ou promovê-la como um valor a ser ambicionado e buscado, de fato se beneficia da variedade de estilos de vida, ideais e conhecimentos, ao mesmo tempo em que acrescenta força e substância ao que faz o que são – e isso significa ao que as faz diferentes. (pág.203)

 

Segurança a um certo preço

 

A imagem da comunidade é a de uma ilha de tranqüilidade caseira e agradável num mar de turbulência e honestidade. Ela tenta e seduz, levando os admiradores a impedir-se de examiná-la muito de perto, pois a eventualidade de comandar as ondas e domar os mares já foi retirada da agenda como uma proposição tanto suspeita quanto irrealista. Ser o único abrigo dá a essa visão da comunidade um valor adicional, e esse valor continua a crescer à medida que a bolsa onde se negociam outros valores da vida se torna cada vez mais caprichosas e imprevisível. (pág.208 e 209)

A nova primazia do corpo se reflete na tendência a formar a imagem da comunidade ( a comunidade dos sonhos de certeza com segurança, a comunidade como viveiro da segurança) no padrão do corpo idealmente protegido: a visualizá-la como uma entidade internamente homogênea e harmoniosa, inteiramente limpa de toda substância estranha, com todos os pontos de entrada cuidadosamente vigiados, controlados e protegidos, mas fortemente armada e envolta por armadura impenetrável. As fronteiras da comunidade postulada, como os limites exteriores do corpo, são para separar o domínio da confiança e do cuidado amoroso, da selva do risco, da suspeição e da perpétua vigilância. O corpo e também a comunidade postulada são aveludadas por dentro e ásperos e espinhosos por fora.

Corpo e comunidade são os últimos postos de defesa no campo de batalha cada vez mais deserto em que a guerra pela certeza, pela segurança e palas garantias é travada, diariamente e sem tréguas. Corpo e comunidade devem de agora em diante realizar as tarefas no passado divididas entre muitos bastiões e barricadas. O que depende deles agora é mais do que podem suportar, de tal forma que provavelmente aprofundarão, em vez de aliviar, os temores que levaram aqueles que andavam à procura de segurança a voltar-se para eles em busca de proteção.

A nova solidão de corpo e comunidade é o resultado de um amplo conjunto de mudanças importantes subsumidas na rubrica modernidade líquida. Uma mudança no conjunto é, contudo, de particular importância: a renúncia, adiamento ou abandono, pelo Estado, de todas as suas principais responsabilidades em seu papel como maior provedor (talvez mesmo monopolístico) de certeza, segurança e garantias, seguindo de sua recusa em endossar as aspirações de certeza, segurança e garantia de seus cidadãos. (pág.211)

 

Preencher o vazio

 

Para as multinacionais (isto é, empresas globais com interesse e compromissos locais dispersos e cambiantes), “o mundo ideal” “é um mundo sem Estados”, observou Eric Hobsbawm. “A menos que tenha petróleo, quanto menor o Estado, mais fraco ele é, e menos dinheiro é necessário para se comprar um governo”. (pág.219)

A falta de laços sociais com os membros “legítimos” da comunidade (ou a proibição de estabelecer tais laços) tem uma vantagem adicional: as vítimas “podem ser exposta à violência sem risco de vingança”,[3] pode-se puni-los com impunidade – ou pelo menos pode-se esperar por isso, manifestando, porém, a expectativa oposta, pintando a capacidade assassina das vítimas nas cores mais vivas e lembrando que a comunidade deve cerrar fileiras e manter seu vigor e vigilância no máximo.

A teoria de Girard parece fazer sentido da violência que é profusa e exaltada nas esgarçadas fronteiras das comunidades, especialmente comunidades cujas identidades são incertas ou contestadas, ou, mais precisamente, do uso comum da violência como instrumento para desenhar fronteiras quando estas estão ausentes, ou são porosas ou apagadas. (pág.222 e 223)

 

Posfácio

 

Escrever; Escrever Sociologia[4]

 

A sociedade é verdadeiramente autônoma quando “sabe, tem que saber, que não há significados ‘assegurados’, que vive na superfície do caos, que ela própria é um caos em busca de forma, mas uma forma que nunca é fixada de uma vez por todas”. A falta de significados garantidos – de verdades absolutas, de normas de conduta pré-ordenadas, de fronteiras pré-traçadas entre o certo e o errado, de regras de ação garantidas – é a conditio sine qua non de, ao mesmo tempo, uma sociedade verdadeiramente autônoma e indivíduos verdadeiramente livres; a sociedade autônoma e a liberdade de seus membros se condicionam mutuamente. A segurança que a democracia e a individualidade podem alcançar depende não de lutar contra a contingência e a incerteza da condição humana, mas de reconhecer e encarar de frente suas conseqüências. (pág.242 e 243)

Viver entre uma multidão de valores, normas e estilos de vida em competição, sem uma garantia firme e confiável de estarmos certos, é perigoso e cobra um alto preço psicológico. Não surpreende que a atração da segunda resposta, de fugir da escolha responsável, ganhe força. Como diz Julia Kristeva (em Noções sem nacionalismo), “é rara a pessoa que não invoca uma proteção primal para compensar a desordem pessoal”. E todos nós, em medida maior ou menor, às vezes mais e às vezes menos, nos encontramos em Estado de “desordem pessoal”. Vez por outra, sonhamos com uma “grande simplificação”; sem aviso, nos envolvemos em fantasias regressivas cuja principal inspiração são o útero materno e o lar protegido por  muros. A busca de um abrigo primal é o “outro” da responsabilidade, exatamente como o desvio e a rebelião eram o “outro” da conformidade. O anseio por um abrigo primal veio hoje a substituir a rebelião, que deixou de ser uma opção razoável; como diz Pierre Rosanvallon (em novo prefácio a seu clássico Lê capitalisme utopique), não há mais “uma autoridade no poder para depor e substituir. Parece não haver mais espaço para a revolta como atesta o fatalismo diante do fenômeno do desemprego”. (pág.243 e 244)

 



[1] De Sociologie et philosophie (1942). Aqui citado seguindo a tradução em Émile Durkheim: Selected Writings, Cambridge: Cambridge University Press, 1972, p.115.

[2] Philippe Cohen, proteger ou disparaîte: les elites face à la montée des insecurités, Paris: Gallimard, 1999, p. 7-9.

[3] René Girard, La violence et lê sacré, Paris: Grasset, 1972. Aqui citado na tradução inglesa de Patrick Gregory, Violence and the Sacred, Baltimore: Johns Hopkins Iniversity Press, 1979, p.8, 12, 13.

[4] Este ensaio foi publicado pela primeira vez em Theory, Culture and Society, 200, 1.

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