domingo, 6 de agosto de 2023

ANSELMO DE AOSTA-Antologia

 


 

Material elaborado por pe Paolo Cugini

 

 

      A quem duvida ou nega que exista tal natureza, da qual não se possa pensar nada de maior, dizemos aqui que sua existência é provada, em primeiro lugar, pelo fato de que aquele mesmo que a nega ou dela duvida já a possui no intelecto, quando, ouvindo falar disso, compreende aquilo que é dito; em segundo lugar, porque aquilo que ele compreende é necessário que não esteja apenas no intelecto, mas também na realidade. E esta última passagem é provada assim: uma que existir também na realidade é maior do que existir apenas no intelecto, se aquilo que ele compreende existe apenas no intelecto, maior do que isso será tudo aquilo que existir também na realidade, e assim o ente maior de todos será menor do que algum outro ente e não será o maior de todos, o que certamente é contraditório. Portanto, é necessário que o ente maior de todos, do qual já se provou que está no intelecto, não esteja apenas no intelecto, mas também na realidade, porque diversamente não poderia ser o ente maior de todos. Mas talvez possamos responder do seguinte modo.

Se afirmamos que este ente já está em meu intelecto apenas pelo fato de que eu compreendo aquilo que se diz, não poderia dizer de modo semelhante ter o intelecto também todas as coisas falsas e sem dúvida de nenhum modo existentes em si mesmas, porque se alguém as dissesse eu compreenderia tudo aquilo que diria? A menos que por acaso não resulte que este ente seja tal que não possa estar no pensamento do mesmo modo em que estão também as coisas falsas ou dúbias, e então eu não seja obrigada a dizer que penso ou tenho no pensamento aquilo que ouvi, mas que o compreendo e que o tenho no intelecto; ou seja, digamos que não o posso pensar a não ser entendendo-o, isto é, compreendendo com ciência, que ele existe na própria realidade.

Todavia, se assim for, em primeiro lugar ter tal ente no intelecto não será mais coisa diversa e precedente no tempo, em relação ao compreender em um tempo sucessivo que o ente existe, como ocorre com uma pintura, que antes está na mente do pintor e depois na obra produzida. Além disso, bem dificilmente poderá ser crível que, quando se tiver dito ou ouvido isto, não se possa pensar que isso não exista, assim como ao invés se pode pensar que Deus não existe. Com efeito, se não se pode, porque toda essa disputa é assumida contra quem nega ou duvida que exista uma tal natureza?

Por fim, que tal ente seja tal de modo a não poder ser percebido, que apenas é pensado, sem a segura compreensão de sua indubitável existência, deve ser-me provado com algum argumento que não se preste à dúvida, e não com este; pois, quando compreendo aquilo que ouvi, isso já está em meu intelecto. Com este argumento, afirmo ainda que podem existir, da mesma forma, com todas as outras afirmações incertas ou também falsas ditas por alguém do qual compreendo as palavras; e existiriam também mais se eu, que ainda não creio neste argumento, nelas cresse, como acontece freqüentemente.

Portanto, nem mesmo o exemplo do pintor, que já possui no intelecto a pintura que está para fazer, pode concordar bem com este argumento. Com efeito, a pintura, ainda antes de ser pintada, encontra-se na própria arte do pintor, e tal realidade na arte do artífice não é mais que parte de sua inteligência, pois, como diz santo Agostinho, “quando um artesão está para construir um armário, antes ele o tem na mente; o armário fabricado não é vida, porque vive a alma do artífice, na qual existem todas estas coisas antes de serem produzidas”. Com efeito, como estas coisas na alma vivente do artífice são vida, a não ser porque não são mais que a ciência ou inteligência de sua alma?

Ao contrário, de tudo aquilo que o intelecto percebe como verdadeiro, tendo-o ouvido ou pensado, com exceção das coisas que são conhecidas como pertencentes à própria natureza da mente, uma coisa é sem dúvida o conteúdo verdadeiro e outra o próprio intelecto com que é captado. Portanto, mesmo que fosse verdadeiro que existe o ente do qual nada pode ser pensado maior, este ser, todavia, ouvido e compreendido, não é como a pintura ainda não executada e presente no intelecto do pintor.

A isso acrescentemos aquilo que observamos, isto é, que não posso, pelo fato de tê-lo ouvido, pensar ou ter no intelecto aquele ente maior do que todas as coisas que se podem pensar, do qual se diz que não pode ser outra coisa a não ser o próprio Deus, como não posso pensar ou ter no intelecto aquele ente em base a uma coisa por mim conhecida tanto pela sua espécie como pelo seu gênero, também  não posso pensar ou ter no intelecto, da mesma forma, nem sequer o próprio deus; justamente por este motivo, portanto, posso também pensar  que Deus não existe.

Com efeito, não conheço a própria coisa, nem posso conjeturá-la a partir de outra coisa que lhe seja semelhante, pois tu mesmo afirmas que ela é uma realidade de tal modo feito, que nenhuma coisa pode ser-lhe semelhante. De fato, se eu ouvisse falar de um homem que me é completamente desconhecido, do qual ignorasse também a exist6encia, poderia todavia pensá-lo segundo a própria realidade que é o homem, por meio da noção específica ou genérica em virtude da qual sei o que seja um homem ou o que sejam os homens. Todavia, poderia ocorrer, se quem me fala disso mentisse, que aquele homem pensado por mim não existisse, embora eu o tenha em todo caso pensado conforme uma realidade perfeitamente verdadeira: não a realidade que seria aquele homem individual, mas a realidade que é o homem em geral.

Todavia,  quando então ouço dizer “Deus” ou “ente maior de todos”, não posso tê-lo no pensamento ou no intelecto assim como teria aquela coisa falsa no pensamento ou no intelecto, porque enquanto posso pensar aquela coisa em conformidade com uma realidade verdadeira e por mim conhecida, Deus, ao contrário, não o posso absolutamente pensar a não ser apenas conforme as palavras. Mas apenas com as palavras se pode bem pouco, ou nunca se pode, pensar algo de verdadeiro, porque quando se pensa deste modo não se pensa tanto na própria palavra, isto é, no som das letras ou das sílabas, que é uma realidade certamente verdadeira, e sim no significado da palavra ouvida, mas este não é pensado como quem sabe o que aquela palavra normalmente significa, isto é, como quem a pensa conforme uma realidade verdadeira ao menos apenas no pensamento, e sim como quem conhece aquele significado e o pensa conforme o movimento do espírito provocado pela escuta de tal palavra, na tentativa de construir para si o significado da palavra percebida. Seria verdadeiramente admirável, se pudesse fazê-lo colhendo a verdade da coisa.

Assim, portanto, e com certeza não diversamente, me consta Ter até agora em meu intelecto aquele ente, quando ouço e compreendo quem diz que existe um ente maior do que todas as coisas que podem ser pensadas. Que isto seja dito a respeito daquela afirmação segundo a qual aquela suma natureza já está em meu intelecto.

 

Que a suma natureza exista necessariamente também a realidade, isso me é demonstrado dizendo que, se não fosse assim, tudo aquilo que existe na realidade seria maior do que ela; portanto, ela não seria aquele ente maior do que todos, do qual já se provou que seguramente já está no intelecto. A esta argumentação respondo: se é preciso dizer, daquilo que não pode sequer ser pensado segundo a verdade de uma coisa qualquer, que está no intelecto, eu não nego que deste modo ele esteja também em meu intelecto. Mas uma vez  que disso não se pode de fato deduzir que ele exista também na realidade, não lhe concedo absolutamente a existência real, até que não me seja provada com um argumento indubitável.

Quem diz que este ente existe, porque diversamente aquilo que é maior do que todos não seria maior do que todos, não presta suficiente atenção  a quem está falando. Eu, com efeito, não digo ainda, ao contrário, nego ou duvido, que este ente seja maior do que alguma coisa verdadeira, nem lhe concedo outro ser senão aquele, admitindo que se deve chamá-lo “ser”, de uma coisa completamente ignota que a mente se esforça para imaginar apenas segundo a palavra ouvida. Portanto, de que modo me é demonstrado que este ser maior existe na verdade da coisa, enquanto consta que é maior do que todas as coisas, quando até agora eu nego ou coloco em, dúvida justamente este constar, não admitindo que tal ente maior do que todos exista em meu intelecto ou em meu pensamento, nem mesmo naquele modo com o qual existem também muitas coisas dúbias e incertas? É primeiro necessário, com efeito, que me seja certo que tal ser maior existe em uma realidade verdadeira em algum lugar; então apenas, pelo fato de que é maior do que todas as coisas, não será mais incerto que subsiste também em si mesmo.

 

Tomemos um exemplo. Alguém diz que em alguma parte do oceano há uma ilha que, por causa da dificuldade, ou melhor, da impossibilidade de encontrar aquilo que não existe, alguns chamam “Perdida”. Eles fabulam que, muito ais do que se diz das Ilhas Afortunadas, esta ilha é opulenta pela sua inestimável abund6ancia de todo tipo de riqueza e de toda delícia; e que, sem possuidor ou habitante qualquer, seja superior pela superabundância de bens a todas as outras terras habitadas em todo lugar pelos homens. Que alguém me diga tudo isso, e eu compreenderei facilmente este dizer, no qual não há nenhuma dificuldade.

Todavia, se depois acrescentasse, como se fosse esta ilha melhor do que todas as terras existe verdadeiramente em algum lugar na realidade, mais do que o fato de não duvidares que existe em teu intelecto; e uma vez que é melhor existir não só no intelecto, mas também na realidade, porque se não existisse na realidade qualquer outra terra existente na realidade seria melhor do que ela, e assim a ilha já por ti entendida como superior não seria superior. Se este, digo, quisesse convencer-me com tais argumentos que não se deve mais duvidar da verdadeira existência daquela ilha, ou eu creria que deseja brincar ou não saberia a qual considerar mais estulto, se lhe concedesse ter razão, e ele, se cresse ter estabelecido com alguma certeza a existência daquela ilha, sem ter-me  antes demonstrado que a sua perfeição se encontra em meu intelecto como uma coisa verdadeiramente e indubitavelmente existente, e não como algo falso ou incerto.

 

Estas coisas, no entanto, responderia aquele insipiente às objeções. Quando se lhe diz que aquele ente maior do que todos  é tal de modo a não poder ser sequer pensado como não existente, e isto de novo não é demonstrado de outro modo, a não ser dizendo que de outra forma não seria o ente maior do que todos, o insipiente poderia repetir a mesma resposta e dizer: quando foi que eu disse que na realidade verdadeira existe tal ente, ou seja, o “maior do que todos”, de forma que disso se me deva provar que ele existe também na própria realidade, de modo a não poder ser sequer pensado como não existente? Em primeiro lugar deve-se por isso provar, com algum argumento certíssimo, que há alguma natureza superior, isto é, maior e melhor do que todas as que existem, de modo que disso possamos depois demonstrar todas as outras qualidades, das quais não pode necessariamente faltar o ente que é maior e melhor do que todos.

Quando depois se diz que esta suma realidade não pode ser pensado como não existente, dir-se-ia talvez melhor que sua não existência, ou também a possibilidade de sua não existência, não pode ser entendida. Com efeito, conforme o significado desta palavra, não se podem compreender as coisas falsas; que certamente poder ser pensadas, da mesma forma com que o insipiente pensou que Deus não existe. Também eu sei com absoluta certeza que existo, mas sei ainda que poderia também não existir. Ao invés disso, compreendo de modo indubitável que aquele ser que é sumo, isto é, Deus, existe e não pode não existir.

Depois não sei se posso pensar que não existo, enquanto sei com absoluta certeza que existo. Mas se posso, por que não valeria mesmo também para todas as outras coisas que conheço com a mesma certeza? Se ao invés não posso, tal impossibilidade não se referirá apenas a Deus. 

(Proslogion)

 

podes objetar que quando se diz que não se pode pensar que esta suma realidade não exista, melhor se diria talvez que não se pode compreender que ela não existe ou também possa não existir. Ao contrário, era preciso dizer justamente que não se pode pensar. Com efeito, se eu tivesse dito que não se pode compreender que aquela realidade não existe, talvez tu mesmo, que dizes que segundo o significado próprio desta palavra não se podem compreender as coisas falsa, objetarias que nada daquilo que existe pode ser compreendido como não existente. É falso, com efeito, que aquilo que existe não exista. Por isso não seria próprio de Deus o não poder ser compreendido como não existente. E se alguma das coisas que certissimamente existem pode ser compreendida como não existente, também as outras coisas certas podem da mesma forma ser compreendidas como não existentes.

Mas tudo isso não se pode certamente objetar, se considerarmos bem, a propósito do Pensamento.  Com efeito, também se nenhuma das coisas que existem  pode ser compreendida como não existente, todavia todas podem ser pensadas como não existentes, com exceção do ente que existe sumamente. Podem com efeito ser pensadas como não existentes todas e apenas aquelas coisas que têm início ou fim ou uma conjunção de partes e, como já disse, tudo aquilo que não é como tudo em algum lugar ou em algum tempo. Ao contrário, não pode ser pensado como não existente apenas aquele ente no qual nenhum pensamento encontra nem início, nem fim, nem conjunção de partes, e que é todo sempre e me todo lugar. Saibas, portanto, que podes pensar que não existes, enquanto sabes certissimamente que existes; eu me maravilho de que tenhas dito não saber se podes pensá-lo. Com efeito, nós pensamos a não-existência de muitas coisas que sabemos que existem, e a existência de muitas coisas que sabemos que não existem: não julgando, mas fingindo que seja assim como pensamos. Certamente podemos pensar que uma coisa não existe, enquanto sabemos que existe, porque ao mesmo tempo podemos aquilo e sabemos isto. E não podemos pensar que a coisa não exista, enquanto sabemos que existe, porque não podemos pensar que ela ao mesmo tempo exista e não exista. Se alguém, portanto, distingue de tal modo os dois significados desta expressão, compreenderá que de nada, enquanto se sabe que existe, se pode pensar que não exista, e que toda coisa, com exceção daquilo do qual não se pode pensar o maior, também quando se sabe que existe, se pode pensar que não exista. Assim, portanto, é próprio de Deus o não poder ser pensado como não existente e, todavia, não se pode pensar que as coisas múltiplas não existam, enquanto existem. De que modo se pode todavia dizer a respeito de pensar que Deus não existe, considero tê-lo explicado suficientemente no meu opúsculo.

(Proslogion) 

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