Por um cristianismo não religioso
Síntese Pe. Paolo Cugini
digitação
Winne Muryanne
Primeira Parte
Lições nova-iorquinas
1
O Deus que morreu
Não é somente uma visão do ser como
objetividade que se torna inaceitável por motivos teóricos e
práticos-políticos. Depois da Sein und Zeit, durante os anos daquela que
ele próprio chamou de Kehre, a virada em seu pensamento, Heidegger insistiu,
cada vez mais, nos êxitos niilistas da ciência técnica moderna. Mais ainda do
que a organização total da sociedade, aquilo que desmente a metafísica e a
torna impossível como crença em uma ordem objetiva, estável e bem
fundamentada do ser é a explosão incontrolável das imagens do mundo. A
especialização das linguagens cientificas, a multiplicidade das culturas (não
mais unificadas hierarquicamente pelo mito eurocêntrico), a fragmentação das
esferas de existência e o pluralismo babélico da sociedade de fins da
modernidade fizeram, de fato, com que se tornasse impensável uma ordem unitária
do mundo. Assim,. Não maios foram dignas de credito as metanarrativas – usando
a bem-sucedida expressão de Lyotard – que pretendiam representar a estrutura
objetiva do ser. É em todos estes elementos que consiste o fim da metafísica,
que não se resume, portanto, apenas a descoberta, por parte de um filosofo ou
de uma escola, de que o ser não é a objetividade na qual a ciência acredita
poder reduzi-lo; trata-se de um conjunto de eventos que transformam a nossa
existência e sobre os quais a filosofia pós-metafísica se esforça em fornecer
uma interpretação (que significa, acima de tudo, pois não é colocado em um
ponto ideal, externo ao processo) e não uma descrição objetiva.
É, enfim, o mundo desta Babel de
tarde modernidade aquele que “verifica”, por assim dizer, conferindo-lhe
validade, tanto o anuncio nietzschiano da morte de deus quanto aquele de
Heidegger, idêntico em seu significado, do fim da metafísica. Em tantos
sentidos que não podem ser com facilidade reunidos em um conjunto sistemático,
mas que, creio eu, estão bem claros, é exatamente este o mundo no qual o ‘deus
moral”, isto é, o fundamento da metafísica, morrei e foi enterrado. Todavia,
este é justamente aquele que Pascal chamava de Deus dos filósofos e, de fato,
muitos são os sinais que parecem indicar que foi a própria morte deste Deus o
que abriu caminho para uma vitalidade renovada da religião.
Do ponto de vista teórico isto em
parece evidente. Antes de mais nada, juntamente com a metafísica, vista como
(possibilidade de um) filosofia sistemática capaz de fornecer uma representação
coerente, unitária e rigorosamente fundada, das estruturas estáveis do se,
também se esgotou toda e qualquer possibilidade de se negar filosoficamente a
existência de Deus, de resto, este é um ponto que já se prefigurava como um dos
objetos perseguidos por Kant na sua critica da razão; era importante para
ele mostrar que a razão não pode falar objetivamente do mundo neumênico e de
Deus, também, e, cima de tudo, para reivindicar a possibilidade de uma
experiência religiosa, que ele concebia apenas em termos de razão pratica,
contra qualquer pretensão de negála com base em motivações metafísicas. E, pois
bem, hoje parece que um dos principais efeitos filosóficos da morte do Deus
metafísico e do descrédito geral, ou quase, em que caiu todo o tipo de
fundamento filosófico, foi justamente o de ter criado um terreno fértil para
uma possibilidade renovada da experiência religiosa. Tal possibilidade retorna
ao âmbito da filosofia inclusive e, sobretudo, por meio da liberação da
metáfora. É um pouco como se , no final, Nietzsche razão ao preconizar a
criação de muitos novos deuses: na babel do pluralismo de fins da modernidade e
do fim das metanarrativas, se multiplicam as narrativas sem um centro ou uma
hierarquia. Nenhuma metanarrativa direcional, nenhuma metalinguagem normativa
está em condições de legitimá-los ou desacreditá-los. É desmantelada aquela hierarquia
social entre as linguagens da qual, sempre Nietzsche, havia falado em seu longo
fragmento juvenil Sobre verdade e mentira no sentido extramoral.
(pag. 23-25)
A esta liberação da metáfora e a
queda das razões filosóficas para o ateísmo, corresponde – mas obviamente sem
nenhuma ligação de dependência causal – renascimento do religioso no seio da
sociedade industrial avançada. Para um tal renascimento existem, claramente,
diversas explicações que, em ultima análise, podem ser correlacionadas às mesmas
circunstâncias históricas que deram início ao fim da metafísica: por exemplo, a
derrubada do colonialismo, que libertou as culturas “outras”, tornando, acima
de tudo na pratica. Impossível o historicismo eurocêntrico. O fim do
colonialismo ocidental também significou o desenvolvimento de uma sociedade
multiétnica em grande parte dos países industrializados, e este pluralismo pode
ser seguramente considerado, embora menos pacífico do que aquele “textual” da
filosofia e da crítica, um fenômeno de liberação da metáfora. As culturas
outras que tomaram a palavra nas sociedades ocidentais trouxeram consigo as
suas próprias teologias e crenças religiosas. Talvez uma reação – imitava ou
defensiva – a este pluralismo, se desenvolveu nas sociedades ocidentais formas de
retorno à tradição religiosa local; provavelmente, também e, sobretudo, porque
a queda de qualquer tipo de linguagem “própria” e de hierarquia entre as visões
de mundo provocou reações de rejeição, suscitando a necessidade de se regredir
a formas de pertinência, ao mesmo tempo confortantes e temíveis como qualquer
paternidade. (pag. 27-28)
Tanto em seus
aspectos teóricos quanto em alguns aspectos fundamentais de caráter
histórico-social (como a derrubada do eurocentrismo e a liberação também
política das culturas outras), o retorno da religião parece depender da
dissolução da metafísica, isto é, do descrédito em qualquer doutrina que
pretenda valer absoluta e definitivamente como descrição verdadeira das
estruturas do ser. É a liberação da metáfora que torna novamente possível aos
filósofos falar de Deus, de anjos, de salvação etc., e é, sobretudo o
pluralismo característico das sociedades da tarda modernidade que permite que
as religiões venham de novo à tona. Por outro lado,o renascimento da esfera do religioso
parece se configurar, necessariamente , como pretensão de alcançar uma verdade
ultima , certamente objeto de fé e não da demonstração racional, mas, de
qualquer forma, tendêncialmente uma exclusão precisamente daquele pluralismo
das visões do mundo que, em principio , parece ser a condição da sua
possibilidade. (pag. 28-29)
A superação da metafísica, se quiser
ser realmente radical, não pode ser reduzida a um valor de pura e simples
re-legitimação do mito, da ideologia e , mesmo, do salto pascaliano na fé.
Pensemos no que
significou a superação da metafísica para o filosofo que de forma mais radical
teorizou : Martin Heidegger. O esforço em pensar o ser – pelas razões que
mencionei – não mais como estrutura objetiva que a mente deveria espelhar, adequando-
se a ela em suas escolhas praticas, levou-o a praticar a filosofia como retorno
rememorado a historia do ser. A expressão “historia do ser” ou, também,
“destino do ser” (jogando com a proximidade entre os termosGeschichete e Geshich)
é um elemento central no pensamento do tardo Heidegger. E isto porque o único
modo não-metafisico, não-objetivante, de se pensar a ser é , na opinião de
Heidegger, aquele que o concebe não como uma estrutura objetivamente colocada
perante os olhos da mente, e sim como evento, como acontecimento. Poderíamos
dizer, portanto, que os objetivos da nossa experiência se dão somente dentro de
um horizonte e que este horizonte, como uma luz que faz com que as coisas
apareçam, não é, por sua vez, objetivamente visível. Se podemos falar de um
ser, devemos pensá-lo antes como este horizonte e como esta luz, mais do que
como a estrutura geral dos objetivos. Não sendo objeto, porém, o ser também não
tem aquela estabilidade que a traição metafísica lhe quis atribuir. Tal é o
evento do ser no duplo sentido do genitivo: o horizonte é abertura que pertence
ao ser, mas também é aquilo ao qual o ser pertence ; não há ao ser estável
etc., pois o ser somente aquele que, vez por outra, acontece no seu evento.
Entendido o ser
como evento, a tarefa do pensamento é,segundo Heidegger , aquela de uma
perspectiva de espalhamento objetivo, seja necessário conhecer o ser histórico
na sua totalidade – como, no fundo, pensava Hegel. Trata-se , antes, de “saltar
no abismo liberatório da tradição” – um salto que só é liberatório porque
sacode a pretensão da ordem atual do ente de valer como a única e eterna ordem
objetiva do ser enquanto tal. O salto não nos dá um conhecimento mais
verdadeiro e completo daquilo o que o ser objetivamente é; nos diz apenas que o
ser não é nada do objetivo ou de estável, desvenda-o para nós como evento no
qual estamos sempre, na qualidade de intérpretes, envolvidos e de alguma forma
“em caminho” (o ser é nós). Aquele que propus chamar de “pensamento fraco”
insiste neste aspecto da rememoração heideggeriana: o salto no abismo da
tradição é sempre, também, um enfraquecimento do ser, já que sacode as
pretensões de peremptoriedade com as quais sempre se apresentaram as estruturas
ontológicas da metafísica. No salto, por outro lado, não se reconhece o ser
como evento em termos abstratos – como se disséssemos que o ser é “sempre”
evento (segundo uma concepção da historicidade que se limita a pensá-la como
“eterna” finidade da existência, como eterna queda no tempo etc.). O
evento é o evento que acontece para nos hoje , aqui. Assim, o enfraquecimento
do ser, que se produz quando este se desvenda no salto como evento, é também,
inseparavelmente, um enfraquecimento, como sentido e fio, contudo histórico, da
tradição dentro da qual saltamos. O retorno rememorado do ser é, igualmente,
uma filosofia da historia guiada pela idéia do enfraquecimento: consumação das
estruturas fortes no plano teórico (desde a metafísica metanarrativa até as
racionalidades locais; desde a crença na objetividade do conhecimento até a
consciência do caráter hermenêutico de cada verdade) e no plano da existência
individual e social (desde o sujeito centrado na autoconsciência até o sujeito
da psicanálise; desde o estado despótico até o estado constitucional; e assim
por diante...).
Até aqui, delineei
dois aspectos salientes da morte de Deus: em primeiro lugar, tentei mostrar
como o fim da metafísica, vista como crença em uma ordem fundada, estável,
necessária e objetivamente cognitiva do ser, foi acompanhado, no pensamento e
na pratica social, pela morte do Deus moral, do Deus dos filósofos, mas, também
por um renascimento do sacro em muitíssimas formas. Em seguida, insisti quanto
ao fato de que, no autor que mais coerentemente afirmou o fim e a superação da
metafísica, ou seja, em Heidegger, este fim significa a passagem de uma
concepção do ser como estrutura para uma concepção do ser como evento,
caracterizada por uma tendência ao enfraquecimento. As conclusões às quais
quero chegar após ter colocado estas duas longas premissas são: primeiro, que o
renascimento da religião na era pós-metafisica não é apenas o resultado de um
mal-entendido, mas pode mesmo parecer teoricamente legitimo se reconhecermos
que existe um profundo parentesco – por enquanto posso apenas indicá-lo assim –
entre tradição religiosa do Ocidente e pensamento do ser como evento e como
destino de enfraquecimento. Segundo, que o reconhecimento deste parentesco
oferece à filosofia uma base sobre a qual pensar criticamente as formas que o
renascimento do sacro assumiu hoje; tal renascimento, em outras palavras, pode
e deve ser criticado filosoficamente sempre que trair a própria constitutiva
inspirada antimetafísica. (pag. 31-34)
Capitulo 3
O Deus Ornamento
O que muda, ou
deveria mudar, uma vez tenha a filosofia reencontrado a sua proveniência da
tradição judaico-cristã e esta última interpretada não mais em correspondência
a uma concepção metafísica do ser, mas á luz de uma ontologia do evento? Foram
estas duas premissas que tentei estabelecer, ou pelo menos sugerir, nas duas
aulas anteriores, aquela sobre as quais é possível construirmos uma imagem da
religiosidade pós-moderna. Não renuncio a usar aqui este termo, pós-moderno,
porque, fiel ao ensinamento de Gioacchino, estou convencido de que a historia
da salvação anunciada pela Bíblia se realize nos eventos da historia mundana,
que, portanto, não representam apenas uma prova à qual o homem deve se submeter
para obter a vida eterna, ou uma condição de exílio da qual é preciso fugir o
quanto antes. A história da salvação passa por nós por meio dos acontecimentos
da modernidade; e eventualmente da sua crise, visto que as teorias da
pós-modernidade falam a respeito de um fim da modernidade e de um fim da
concepção da historia como progresso linear. Isto, contudo, parece tornar
paradoxal a idéia de uma religiosidade pós-moderna que evoque Gioacchino de
Fiore e o seu “progressismo” teológico.
Podemos acrescentar
ainda que a recusa generaliza do historicismo e da idéia de progresso ,
presente no pensamento contemporâneo , está relacionada a
motivações de tipo popperiano, ou seja, à suspeita de que a fé
na historia como progresso direcionado a uma condição de perfeição
conduz, inevitavelmente, a êxitos políticos totalitários. Esta suspeita ressoa
nas conotações atribuídas ao termo milenarismo que, talvez erroneamente, também
aparece relacionado ao nome de Gioacchino da Fiore. Se a salvação, o paraíso, a
perfeição final podem ser imaginados como resultantes de um processo histórico
realizável no mundo, é quase fatal que uma política inspirada nestas convicções
se proponha a construir, com todos os meios passiveis, uma ordem perfeita,
dando lugar a regimes não liberais. Hitler e o comunismo podem, então, ser
colocados na linha da posteridade espiritual de Gioacchino da Fiore, como o faz
De Lubac na obra já mencionada. A idéia do divino como totalmente outro, que
inspirou a maior parte das filosofias religiosas da primeira metade do século
XX, tornou-se assim tão popular principalmente no momento da desilusão com os
milenarismos revolucionários que ensangüentaram a nossa historia. As teorias
sobre a pós-modernidade são também elas, conseqüentes a esta desilusão: os
resultados catastróficos das revoluções milenaristas desmentiram e tornaram
inaceitáveis as “metanarrativas “(para usarmos o termo de Lyotard) nas quais se
inspiravam. As metanarrativas, que sustentaram a modernidade, não terminaram
somente em conseqüência daquelas catástrofes; elas também se tornaram
impraticáveis por ter chegado ao fim o imperialismo eurocêntrico (na pratica
política) e ter se esgotado, por motivos teóricos, a hegemonia dos sistemas
historicistas (positivismo, idealismo marxismo etc.) nos quais, ainda que
freqüentemente de forma remota, se inspiravam os milenarismos revolucionários.
(pag. 56-57)
Do ponto de vista
da nossa herança judaico-cristã, me parece que as teologias do totalmente outro
não levem suficientemente em considerações a fé no dogma da encarnação, mesmo
quando se professam cristãs. E com base nesta fé que Gioacchino da Fiore , ao
contrario , constrói a sua teologia da historia.
Se, como venho
tentando argumentar interpretarmos o fim da modernidade em termos que evitem a
retomada da metafísica objetivista torna-se então possível extrairmos do
ensinamento de Gioacchino da Fiore uma imagem de religiosidade pós-moderna. Ao
pensamento pós-moderno o ser se dá como anuncio que provém de uma tradição da
qual ele é herdeiro, de um “envio”, como diz Heidegger; e pretendo mostrar que
existem boas razões para acreditarmos que este envio pertença a historia da
salvação tal como ele concebe Gioacchino da Fiore, e tenha os traços daquele
que ele dominou inicio da idade do Espírito.
Por que, porém,
idade do Espírito? Gioacchino chegou a este conceito impulsionado, sobretudo
pela exigência de estimular uma reforma na Igreja de sua época, que ele queria
ver menos envolvida nas contendas terrenas e que, para que pudesse
preparar o cumprimento da salvação, deveria constituir, finalmente , “um
único rebanho com o único pastor”, a partir da conversão de todos os povos,
principalmente dos hebreus , ao cristianismo. Em sua opinião, a reforma da
Igreja dependia de uma nova interpretação “espiritual” da Escritura;
espiritual, acima de tudo, porque mais profundamente orientada no sentido da
conservação interior e da contemplação e menos interessada nas lutas pelo
poder. Gioacchino partia, portanto, de uma releitura da Bíblia à luz da
exigência de uma renovação moral/religiosa que ele percebia na Igreja da época.
Da nossa parte, reencontramos o ensino de Gioacchino a partir da consideração
do fim da metafísica, isto é, do fato de que ser o que, hoje, se anuncia como
evento e como destino de enfraquecimento. O fim da metafísica não é
“descoberto” pela filosofia de forma autônoma; ao menos, se é que valem as
observações que fizemos nas duas anteriores , o próprio fato de que a filosofia
(ou uma parte não marginal dela) chegue a pensar o ser como evento e como
destino de enfraquecimento é um sinal de que ainda permanece viva, em seu
interior , a herança da mensagem judaico-cristã. Em termos muito sumários, o
que ocorre na filosofia com o fim da metafísica é parte da historia da salvação
tal como a formula Gioacchino: é um momento da “terceira época”. Já disse
repetidas vezes que não tenciono seguir Gioacchino da Fiore em seu esforço,
ainda muito literal e pouco “espiritual”, de prever acontecimentos futuros com
base em complicadas leituras simbólicas dos textos das Escrituras. O que me
parece ser valido em, seu ensinamento, justamente do ponto de vista da
filosofia que se coloca para além da metafísica, é idéia de uma historia da
salvação que ocorre hoje como espiritualização do cristianismo. Trata-se, se um
lado, de estabelecer o nexo entre espiritualização e enfraquecimento e, de
outro, mostrar que a nossa cultura atual manifesta sinais reconhecíveis de uma
transformação que pode ser interpretada precisamente em tais termos.
Todavia, estas duas
passagens não podem ser feitas em uma sucessão rígida. Para que fosse possível
compreender que o enfraquecimento do ser, ao qual se refere o pensamento
pós-metafísico, é um fenômeno de “espiritualização” do sentido da Escritura, já
evoquei a secularização que caracteriza o mundo moderno. Se partirmos, mais uma
vez, de um dos textos básicos para a descrição da modernidade em termos de secularização,
ou seja, da obra de Max Weber. A ética protestante e o espírito do
capitalismo, podemos observar que nela a relação entre o capitalismo e
a ética cristã é uma relação de aplicação interpretativa e não de abandono ou
oposição polemica. Segundo Weber , o capitalismo só pode ser explicado como
conseqüência da realização daqueles princípios éticos. O sentido em que emprego
o termo secularização é exatamente este: uma aplicação interpretativa da
mensagem bíblica que o desloca para um plano que não é estreitamente
sacramental, sagrado, eclesiástico. Quem quer que sustente que este
deslocamento de planos é uma traição à mensagem, defende obviamente uma
interpretação literal da doutrina cristã a qual podemos, legitimamente, opor a
idéia de secularização como interpretação “espiritual”. O modelo “weberiano”
pode ser estendido a qualquer relação da modernidade com o texto bíblico que,
afinal, durante muitos séculos foi também , explicitamente , a referência
suprema para toda vida a interpretação ocidental do mundo, desde a política até
a vida familiar e a própria ciência natural (pensemos na disputa relativa ao
heliocentrismo ou na questão do evolucionismo). Esta centralidade da Bíblia foi
mais tarde atenuada pelas grandes lutas de emancipação da razão moderna. (pag.
58-60)
As dificuldades que
se colocam ao reconhecimento desta proximidade, ou antes, identidade, entre
historia profana e historia sacra são bem facilmente associáveis à persistente
predominância de uma interpretação “literal” da Escritura. Em resposta à
hipótese que foi aqui proposta, o espírito leigo imediatamente objetaria que,
na verdade, foram às igrejas cristãs, e novamente sobretudo a Igreja Católica ,
a contrastarem justamente as realizações da modernidade que acabei de lembrar,
começando pela hipótese heliocêntrica até as constituições republicanas.
Todavia, como mostra o exemplo por demais conhecido Galileu, estes
comportamentos da Igreja se inspiraram em uma interpretação literal e, por isto
mesmo, autoritária do texto bíblico. Da mesma forma, quando a Igreja ainda hoje
condena como fossem abandonos ou traições tantos fenômenos de secularização da
vida individual e social, continua a evocar uma interpretação literal da
Escritura. Em certos casos, isto é feito de uma forma tão evidente que
chega a parecer absurda: basta pensarmos na recusa às ordens sacerdotais para
as mulheres , uma recusa que tem por único fundamento o fato de que Jesus
escolheu apenas homens para a formação de seu grupo de apóstolos. No que se
refere a este exemplo, que hoje tem boas razões para estar no centro do debate
inclusive em muitos ambientes católicos, se pode ver que o “rigorismo” é, no
fundo, simplesmente uma ligação com uma cultura historicamente determinada e
falsamente assumida como “natureza”: o que fez com que Jesus escolhesse apenas
homens como apóstolos, e o que hoje ainda motiva a recusa do sacerdócio
feminino na Igreja Católica, é a condição de inferioridade social da mulher
que, se era geral e “obvia” no tempo de Cristo, nos nossos dias é um simples resíduo
ou passado assumido como se fosse uma norma eterna da natureza.
O primeiro sentido,
portanto, no qual, segundo a minha hipótese, devemos entender a nossa época
como uma idade da interpretação espiritual da mensagem bíblica, é que nela a
presença ativa da herança cristã só pode ser reconhecida se for abandonada à
interpretação literal e autoritária da Bíblia. Insisto no mesmo exemplo porque
ele me parece ser absolutamente emblemático. Não creio que existam duvidas
quanto ao fato de que desejo das mulheres de ter acesso ao sacerdócio seja mais
cristão do que a sua resignação em renunciar a ele de que, em geral, isto deva
ser interpretado como um fenômeno positivo de extensão das vocações
sacerdotais. Entretanto, a Igreja Católica não o entende desta forma, pois não
consegue se libertar do rigorismo histórico da escolha dos primeiros apóstolos.
Analogamente, se colocarmos finalmente de lado o rigorismo na leitura da
Sagrada Escritura, poderão ser reconhecidos como genuína historia da salvação
tantos aspectos do mundo moderno e da nossa contemporaneidade que, para uma
mente rigorosamente “ortodoxa”, parecem ser puros fenômenos de abandono e
distanciamento da religião. Enfim, até o popular de religiões marginais e de
seitas heterodoxas ou sincretistas, que se difundem hoje em várias partes mesmo
do mundo ocidental avançado, pode ser visto sob este prisma. As igrejas
oficiais, de maneira geral, tendem a condenar estes fenômenos religiosos como
aberrações ou até fraudes, mas talvez seja o caso de os levarmos em
consideração de forma mais tolerante e aberta. Em resumo, quer os muitos
aspectos da “irreligiosidade” da sociedade leiga, quer outros tantos da
religiosidade espúria e marginal mudam de feição e de valor se os considerarmos
fora do quadro rígido da interpretação literal e autoritária da Bíblia.
Naturalmente, há
que se perguntar até que ponto pode chegar à aceitação da secularização. Não
haverá mais nenhuma distinção entre interpretações legítimas e interpretações
aberrantes da mensagem cristã? O critério que a tradição cristã nos indica, a
começar por santo Agostinho, é ama et fac quod vis. O único limite
para a espiritualização da mensagem bíblica é a caridade, justo aquela caridade
que também para Gioacchino da Fiore deveria caracterizar a terceira época da
historia da salvação. Este não é, de forma alguma, um critério genérico e vago.
Pensemos, ainda uma vez, na grande pregação moral da Igreja Católica atual: por
exemplo, uma ética sexual que esteja atenta ao amor e não somente presa as
estruturas tradicionais da família, não dominada pelo principio da reprodução,
é algo que, certamente, não fere o mandamento da caridade e, no entanto, o
ensinamento eclesiástico continua a se opor a ela por meio de uma disciplina
fundada na letra de certos textos bíblicos (a destribuição de Sodoma e Gomorra,
por exemplo) e de uma metafísica da “natureza” que não tem mais lugar na
filosofia, pois equivale mais ou menos a doutrina aristotélica dos “lugares
naturais”.
Uma leitura mais
espiritual do texto bíblico, e dos dogmas cristãos de forma geral, parece ser
hoje uma demanda que serve não apenas para reconhecer a essência profundamente
religiosa de tantos aspectos da sociedade secularizada, mas também para tornar
possível o dialogo ecumênico das igrejas cristã entre si e delas com as outras
religiões. O reconhecimento de direitos iguais para as culturas outras, que no
plano político ocorreu com o final do colonialismo e no plano teórico com a
dissolução das “metanarrativas” eurocêntricas, no caso das igrejas cristãs
exige o abandono dos comportamentos “missionários”, isto é, da pretensão de
levar das outras religiões, que começa a se fazer sentir em vários teólogos
cristãos (estou pensando em personagens “incômodos” como Hans Kung, por
exemplo), requer um esforço intensificado para desenvolver a leitura espiritual
da Bíblia e também de tantos dogmas da tradição eclesiástica, de maneira a que
se possa colocar em evidencia o cerne da revelação, ou seja, a caridade, mesmo
a custa, obviamente, do enfraquecimento das pretensões de validade literal dos
textos e de peremptoriedade do ensinamento dogmático das igrejas. (pag. 61-64)
Paul Ricoeur
intitulou uma sua famosa obra O conflito das interpretações. Este
título, indo muito alem das intenções de Ricoeur, pode ser usado para indicar a
essência mesma do mundo da tardia modernidade. Afinal, a filosofia hermenêutica
que o próprio Ricoeur evoca naquela obra, em sua versão mais radical, poderia
ser sintetizada na frase de Nietzsche: “Não existem fatos, apenas
interpretações”. Conscientes como estamos – pelo menos desde Nietzsche e
Heidegger – de que cada nossa relação com o mundo é “mediada” (os epistemólogos
pós-analíticos diriam theory ladden) por esquemas culturais, por
paradigmas históricos que constituem os verdadeiros apriorismos de qualquer
conhecimento, não podemos mais nos iludir (ou, pior, nos deixarmos iludir) de
que aquilo que dizemos e que nos é dito sejam descrições “objetivas” de uma
realidade dada externamente. A idéia de um destino de enfraqueciemnto que está
inevitavelmente escrito na historia do ser pretende interpretar justamente esta
situação: uma realidae concebida como jogo de interpretações e não (mais) como
presença estável de coisas definidas em si mesmas que a mente tem por tarefa
simplesmente espelhar objetivamente é, em muitos sentidos, uma realidade
enfraquecida. Se, além disso, como corre com muitas posições filosóficas
atuais, a verdade passa a ser pensada não mais como adequação do intelecto à
coisa (descrição fiel de estados de fato) e sim como plausibilidade e persuasão
no interior de um sistema de premissas (ou da comunidade dos interpretes de
competência), também aqui estamos diante de um fenômeno de enfraquecimento e
poderíamos até mesmo entender a centralidade, que o consenso dos interpretes
adquire na definição da verdade, como sendo uma forma de emersão da caridade no
lugar do próprio valor tradicional do verdadeiro.
Segundo esta
maneira de entendermos a pós-modernidade, a espiritualização assume o
significado daquele enfraquecimento das estruturas fortes do ser que parece
resultante do triunfo da técnica em nosso mundo. A técnica era de inicio, uma
tecnologia do motor e, portanto, uma capacidade mecânica, que tornou a
realidade mais leve na medida em que permitiu que o trabalho manual fosse menos
gravoso. Hoje, ela é, principalmente, uma tecnologia da informação que
enfraquece a realidade ao mostrá-la, cada vez mais explicitamente, como um jogo
de interpretações. (pag.65-66)
Ao se ver diante da
tarefa de aliviar o peso da letra da Bíblia e dos dogmas, com o objetivo de
entender a verdade das outras religiões, o pensamento cristãos descobre
realmente, que a única coisa que conta é a caridade; de fato, somente a
caridade constitui o limite e o critério da interpretação espiritual da
escritura. Analogamente, o pensamento filosófico, quando percebe que a historia
do ser se revela, na época do fim da metafísica, como destino de
enfraquecimento (com a realidade que se “reduz” a conflito, ou jogo, de
interpretações), se conscientiza de que este destino é também o único fio
condutor ao qual pode fazer referencia ao avaliar a plausibilidade das
interpretações e, sobretudo, ao decidir quanto às opções morais. Não existe nem
o fundamento metafísico último e indiscutível – ao qual, depois de Nietzsche,
Freud, Marx, Heidegger, não mais podemos ser fiéis – nem a voz da razão
kantiana que fala em todos os homens da mesma forma: a antropologia cultural
nos advertiu quanto à irredutível pluralidade das culturas. Para interpretarmos
o mundo e avaliarmos as alternativas éticas só podemos fazer referencia ao
apelo que nos é oferecido pela historia no qual já estamos sempre envolvidos:
um apelo que não fala em uníssono, que não é absoluto, e que nos empenha como
intérpretes. Decidirmos interpretar a nossa proveniência como destinada ao
enfraquecimento já é certamente uma maneira de assumirmos de modo explicito a
herança judaico-cristã que trazemos em nós. Todavia, a afirmação desta herança
também é uma interpretação: e daí? Estamos dispostos a abandoná-la caso alguém
nos proponha uma outra melhor, porém não renunciaremos a ela com base no
argumento “realista” de que ela seja “somente” uma interpretação.
Não em proponho a
desenvolver aqui, de forma detalhada, as conseqüências éticas da leitura da
historia do ser como enfraquecimento. Estas não se limitam a fundar uma escolha
pela tolerância, mas promovem um empenho ativo em prol da redução da violência
em todas as suas formas, o que no final se revela um sinônimo do que as
linguagem religiosa chama de caridade; atestando, mais uma vez, não apenas uma
analogia e sim um verdadeiro parentesco, como proveniência, entre a filosofia
pós-metafísica e a herança cristã.
O reconhecimento
deste parentesco esbarra, contudo, justamente nas questões ultimas, ou seja, no
problema da escatologia. (pag.66-67)
O enfraquecimento
do ser em direção ao qual, segundo a minha hipótese, está orientada a história
da nossa civilização, parece poder se configurar como uma historia de salvação
como acontecimento que prepara a transferência do real para o plano das qualidades
secundarias, do espírito, do ornamental: talvez, até mesmo, do virtual. Se
assim fosse, anteveríamos, também, o sentido “espiritual”, não puramente
literal, daKénosis do verbo divino, que não se humilha apenas para
tornar mais compreensível o seu ensinamento e depois voltar, na sua plenitude e
majestade, a preparar-nos a vida terna prometida somente para o além. Apesar de
toda a sal autentica fidelidade a igreja da época, Gioacchino não fala muito a
respeito de uma passagem que, após a terceira idade, nos conduziria a salvação
em um outro mundo. Se, por um lado, ele não nega a imortalidade da alma, a vida
eterna lhe parece ser definível apenas nos termos da idade do espírito; esta
idade, portanto, não é mais uma simples preparação para algo diverso e a
historia do mundo não é somente um tempo de prova que deve terminar com a
destruição da ordem natural e a passagem para o “sobrenatural”.
Muito embora a
filosofia não tenha instrumentos para decidir a questão da imortalidade, está
pelo menos claro que depois do final da metafísica ela não fornece mais nenhum
tipo de suporte (como aquele que Santo Tomás encontrava em Aristóteles) para
falar em natural e sobrenatural. O filosofo, como qualquer homem religioso,
pode apenas esperar que a ida não acabe com a morte do corpo, e tal esperança
não é desprovida de razão na medida em que não existem mais limites
“metafisicamente” certos para a natureza (aqueles que, segundo alguns, excluíam
a sobrevivência da alma individual). Quer se realize aqui quer para além da
morte, a salvação sobre a qual nos fala a revelação judaico-cristã,
interpretada “espiritualmente” com base nas indicações de Gioacchino ou à luz
do final da metafísica, se configura como uma suavização e um enfraquecimento
das estruturas “pesadas” em meio às quais o ser se “deu” no passado da
civilização humana. (pag.68-69)
O estágio de
civilização ao qual chegamos – com a tecnologia mecânica e informática, com a
democracia política e o pluralismo social, com a disponibilidade universal dos
bens necessários a garantir a sobrevivência – nos oferece a chance de
realizarmos o reino do espírito entendido como suavização e “poetização” do
real. Digo que oferece a chance. Seu muito bem que esta poetização é, por
enquanto, de todo imaginária. Mesmo quando Gioacchino falava sobre o inicio da
idade do espírito, ele previa que fosse necessária uma dura luta para que ela
se realizasse de fato em seu mundo. Assim, a espiritualização, que hoje está ao
alcance de nossas mãos, pelos no plano das possibilidades técnicas e da
evolução das idéias, requer uma cação concomitante que não se apresenta como
algo fácil. A aparência da facilidade e de desempenho moral que poderia
suscitar está ligada ao fato de que o ideal de salvação, ou de emancipação, que
prefigura tem fortes conotações estéticas e poéticas. Todavia, estas conotações
são as únicas capazes de preencher a figura, que de outra forma ficaria vazia,
da “conclusão” da aventura humana, qualquer que seja a conclusão que queiramos
imaginar: ou seja, quer a pensemos como o télos da emancipação
que dá sentido a vida de cada um de nós concebida dentro dos limites do
nascimento e da morte terrenos, quer a pensemos como uma condição que será
atuada na vida eterna após a morte. Mesmo neste segundo caso – assim nos
ensinou Gioacchino e assim, também a concebe a (minha) filosofia – a salvação
deve ter inicio aqui, caso contrario toda a historia da sua preparação perderia
o sentido, o jogo seria confiado a uma divindade transcendente
independentemente da nossa capacidade de relacionamento – sobre a qual,
portanto, seria melhor que nem sequer falássemos (pag.70-71)
Se não respondemos
apelo de emancipação estética que a nova condição de existência nos propõe é
apenas porque ainda estamos por demais oprimidos pelo peso da “letra” – tanto
do rigorismo dos textos sacros (fetiche dos fundamentalistas de todo tipo)
quanto da letra da materialidade do mundo, das necessidades insatisfeitas e das
injustiças cometidas na distribuição dos bens indispensáveis a vida. (pag.72)
Segunda Parte
4
Historia da salvação historia da
interpretação
O que pretendo sugerir com o titulo é
que a situação de partida na qual nós (por mais problemático que seja este nós)
nos encontramos, a precompreensão na qual, assim que tematizamos a coisa,
percebemos que já estamos inseridos, é aquela de uma relação entre estes dois
termos, mais estreita e, ao mesmo tempo, também mais vaga e esfumada do que
poderia ser sugerido por uma relação de identidade ou pela simples paráfrase.
(pag.76)
A interpretação – acima de tudo aquela
dos textos sacros – obviamente sempre esteve relacionada, na tradição
judaico-cristã, a salvação (pag.77)
Para nos salvamos é necessário que
compreendamos a palavra de Deus na Escritura e a apliquemos corretamente a
nossa condição e situação (subtilitas applicandi). Não só: é igualmente
necessário interpretá-la de forma a que não se choque com a razão, suando,
portanto as nossas faculdades para respeitar profundamente a palavra de Deus e
evitar que lhe sejam atribuídos significados aberratórios (pag.77)
Em um segundo sentido, contudo, na
tradição cristã a salvação e a interpretação estão ligadas: é aquele que
conecta Jesus aos profetas e que pode ser encontrado no novo Testamento em
pressões do tipo: “Ouvistes o que foi dito [...]. mas eu vos digo [...].”
(pag.77-78)
O evento da
salvação (a vinda de Jesus) é ele próprio, intimamente, um fato hermenêutico.
Todavia, pode-se dizer que ele é hermenêutico somente até certo ponto: é
verdade que Jesus é a interpretação viva do sentido da lei e dos profetas (eis
aqui um outro significado do logos que se faz carne: se
encarna o logos, o sentido, do Antigo Testamento...), mas, de certa
forma, também é o seu cumprimento e, decifração – como se, depois, não houvesse
mais espaço e nem necessidade de interpretação. Entretanto, muito embora a
salvação esteja essencialmente “completada” com a encarnação, paixão, morte e
ressurreição de Jesus, ele ainda espera uma complementação ulterior (bastaria
que pensássemos, aqui, em todos os acontecimentos da chamada escatologia conseqüente),
e o Paracleto, o espírito de verdade que é enviado aos fieis em pentecostes,
tem exatamente por tarefa assisti-lo nesta ulterior empresa hermenêutica. É
preciso não esquecermos que o Espírito (que também é aquele que vivifica o
texto, o sentido verdadeiro da “letra”), ou seja, a pessoa mais deliciosamente”
hermenêutica” da Trindade – ela própria estrutura hermenêutica por excelência,
pois, de fato, nela o Filho é o logos do Pai e o espírito é a
sua relação, a hipótese do seu amor-compreensão – é também aquele por obra do
qual o Filho se faz homem no ventre de Maria (pag.78)
A interpretação, e
também a salvação, tem uma historia que não é somente um acontecimento
acidental que passa sobre ou ao lado do seu cerne estavelmente dado, mas as
afeta profundamente em um sentido que podemos expressar ao evidenciarmos o
significado “objetivo” do genitivo nas duas expressões: a salvação se forma se
dá, se constitui, na sua historia e, igualmente, com um giro de conexões
difícil de ser contido em um esquema, na história da interpretação. É verdade
que o anuncio da salvação é dado de forma definitiva – nos contornos, em Jesus
– mas também é verdade que este seu dar-se precisa das interpretações que o
recebam, o atualizem e o enriqueçam. (pag.79)
Este evento hermenêutico me parece
coincidir com aquele fenômeno que em linguagem heideggeriana chamamos de fim da
metafísica no mundo da ciência técnica. De forma sumária, mas nem tanto,
lembrarei que Heidegger chama de fim da metafísica a ciência moderna na medida
em que esta liquida definitivamente a idéia de que o ser seja aquilo que se dá
indubitavelmente como presente. Na ciência experimental, e depois, na universal
(pelo menos tendencialmente, e em linha de máxima), manipulação tecnológica do
mundo que ela tornou possível, a presença verificada e indubitável da coisa se
torna explicitamente efeito de representação; a certeza do objeto é, portanto,
mero efetivo da verificação operada pelo sujeito. Entretanto, quando chegamos a
este ponto, desenvolvendo coerentemente as premissas já contidas na metafísica
clássica, então, passa a ser impossível identificarmos o ser com a presença.
Muito embora Heidegger não vá além
desta negação, isto é, da percepção da abertura de uma diferença radical entre
o ser e o ente presente, é fácil constatarmos como e por que a sua ontologia
esteja também na base (na sua obra e naquela de todos que o evocaram) daquele
vastíssimo endereço de pensamento que se chama de hermenêutica, e que se tornou
uma espécie de verdadeira koiné, “lugar-comum”, da cultura
contemporânea. Somente se desmentirmos a identificação do ser verdadeiro com o
que se dá, de forma completa e indubitável, na presença, é possível atribuirmos
um significado não puramente acidental, instrumental e secundário a
interpretação.
A ontologia de Heidegger, contudo, e
também a hermenêutica que dela depende, tem algo a ver, de alguma forma, com a
historia da revelação cristã? Tratar-se-á, no fundo, apenas do fato de que a
problemática hermenêutica se desenvolve na cultura européia, sobretudo
principalmente relacionada ao problema da leitura e interpretação da sagrada
escritura como é fácil vermos simplesmente refazendo a trajetória da historia
das teorias da interpretação? Este fato, porém, encerra um outro bem mais
vasto, que pode ser formulado nos seguintes termos: se não deseja ser
contraditória com relação as suas próprias conclusões, uma ontologia, tal como
aquela de Heidegger, não pode, por sua fez, se apresenta como descrição de uma
estrutura “objetiva”, ou seja, presente, dada, do ser. La, pelo contrário,
deverá necessariamente afirmar a si mesma como “interpretação”, isto é, como
resposta a uma mensagem, a uma “leitura” de textos, repostas a um “envio” que
provém da tradição. (Termos tais como envio tradição etc., são como é sabido, centrais
na filosofia que se costuma denominar “segundo Heidegger”). Bem, mesmo
divergindo um tanto da escrita dos textos heideggerianos, que a este respeito
são bastante obscuros, no fundo, reticentes não-conclusivos (pelo menos a meu
ver), o envio ao qual a ontologia pós-metafísica co-reponde e, justamente, a
tradição da civilização ocidental. (pag.82-83)
O problema é que é necessário vermos
os vários processos de secularização ocorridos na modernidade não - a maneira
de Hans Blumenberg, por exemplo, e em boa parte da historiografia de inspiração
iluminista, mas também católica (Del Noce) – como processos de distanciamento
da matriz religiosa, e sim como processos de interpretação, aplicação,
especificação enriquecedora, daquela matriz.
Um desses processos
de secularização “positiva” da mensagem cristã é exatamente aquele que
Heidegger chama de fim da metafísica na ciência – técnica moderna e a abertura
da diferenciação ontológica entre ser e ente, aquele que dá lugar também a
“descoberta” da produtividade da interpretação. (pag.84-85)
A consciência cada vez mais aguda da
historicidade do paradigma cientifico coloca a epistemologia contemporânea em
condições de reconhecer e da historia da salvação: não existe verdade fora de
um horizonte aberto por um anúncio, por uma palavra transmitida. (pag. 85)
Aqueles que delineamos até aqui são
apenas os primeiros passos no caminho de uma escuta do sentido da vírgula que
liga os dois termos do título deste texto. A ontologia hermenêutica (que
tematiza explicitamente a produtividade da interpretação) e o fim da metafísica
da presença como êxito da ciência técnica moderna resultaram da ação da
mensagem cristã na historia da civilização ocidental; são interpretações
secularizantes desta mensagem, mas em um sentido positivo-construtivo do termo.
Seria necessário acrescentarmos aqui que a secularização não é um termo que se
choque com a essência da mensagem e sim um aspecto constitutivo: como evento
salvífico e hermenêutico, a encarnação de Jesus (akénosis, o
rebaixamento de deus) é ela mesma, acima de tudo, um fato arquetípico de
secularização. (pag.85-86)
Na verdade, é até por demais obvio
que uma vez liquidada a metafísica da presença, a interpretação “boa”, válida,
não mais poderá, absolutamente, se configurar como aquela que toma “fielmente”
(literalmente, objetivamente etc.) o texto.
O que “produz” a
interpretação produtiva? Produz o ser como novos sentidos da experiência, novos
modos de dar-se do mundo, que não são simplesmente outros relativamente aqueles
dados “antes”, mas se acrescentam a eles em umdiscursus cuja
“lógica” (também no sentido do logos) consiste inteiramente na
continuidade. Uma tal continuidade – desejo ser breve – não possui nenhuma
medida objetiva, se “reduz” (mas se tratará de uma redução?) a uma persuasão
retórica, ad homines. Não é qualquer secularização que é boa e
positiva e nem qualquer interpretação é válida; é preciso que pareça para uma
comunidade de intérpretes. (pag.86)
Usando uma
linguagem mais explicitamente espiritual, poderíamos dizer que o único limite
para a secularização é o amor, a possibilidade de comunicação com uma
comunidade de interpretes. Não seria um paradoxo afirmarmos que a historia de
hermenêutica moderna, da qual foi um momento extremamente relevante a Reforma
protestante, é igualmente um longo caminho de redescoberta da igreja.
Naturalmente, é significativo, também para a igreja, pelo menos nas minhas
intenções aqui, o fato d que se reconheça a sal centralidade com base no fim da
metafísica da presença e no advento de uma ontologia hermenêutica. Mesmo no
modo de conceber e viver a igreja como comunidade “de referência” para a
validade e continuidade da historia da interpretação, continuamente se
reapresentam certas tentações de tipo “metafísico”, que tendem a recair nos
horizontes da presença. (pag. 87)
A metafísica da
presença é substituída, pela ontologia hermenêutica, por uma “concepção” do ser
da qual é parte essencial esta conotação dissolutiva; o ser não se dá de forma
definitiva na presença, mas acontece como anuncio e cresce nas interpretações
que o escutam que a ele correspondem, sendo, também, um ser orientado para a
espiritualização, para a suavização, ou, o que é a mesma coisa, para a kénosis.
É muito provável que a ontologia hermenêutica, que nasceu da dissolução da
metafísica da presença, não seja apenas uma redescoberta da Igreja, mas, também
e, sobretudo, uma retomada do sonho de Gioacchino da Fiore. (pag.87-88)
5
O ocidente ou a
cristandade
A tese da
legitimação nova e totalmente autônoma da modernidade implica, por sua vez, uma
dose excessiva de confiança na possibilidade do novo radical e uma enfática
acentuação da criatividade, originalidade, liberdade absoluta do homem: todos
dogmas, ou talvez mitos, modernos, mas, portanto, internos a época sobre cuja
origem deveriam explicar e que parecem ser bem pouco óbvios no momento em que a
modernidade aparece para muitos como uma longa fase conclusa ou, no mínimo,
problemática em seus valores constitutivos. (pag. 92)
O que significa,
portanto, no que implica como conseqüência teóricas e, eventualmente,
“práticas” (no sentido do juízo relativo a condutas históricas, opções
políticas, escolhas morais etc.) a tese de que o ocidente é cristianismo
secularizado? Notamos que, se vale o que disse acerca da validade a ser reconhecida,
em um quadro consciente do círculo hermenêutico, as duas teses da alternativa,
do aut aut, a afirmação indica, também, que o Ocidente é
cristianismo secularizado e nada mais. Em síntese: se quisermos falar do
Ocidente, da Europa, da modernidade – temos que, para o nosso discurso, têm o
valor de sinônimos – bem como de entidades histórico- culturais reconhecíveis e
caracterizadas, a única noção que podemos utilizar é justamente aquela da
secularização do patrimônio judaico-cristão. No momento em eu o ocidente não
pode mais ser definido apenas como a alternativa ao império do mal do
totalitarismo comunista e tenta reencontrar, de modo autônomo e positivo, a sua
própria fisionomia, o que encontra é sua origem cristã sob a forma de uma
herança, certamente transformada e “a deriva”, e que, no entanto, é ainda tal a
poder constituir o seu único elemento de identificação. (pag.94)
Trata-se, antes de
mais anda, de compreender radicalmente que a equivalência significa duas
coisas: a) o Ocidente, no momento em que – também e, sobretudo, graças a
elementos políticos já lembrados, a queda do inimigo comunista e, ao mesmo
tempo, a guinada econômica e política para a construção da Europa unida – sente
a exigência de afirmar uma sua identidade cultural, não encontra outro elemento
de unificação e identificação a não ser uma comum origem cristã, na forma
secularizada, que exatamente neste sentido se reflete nas teses do aut
aut (que, portanto, tem razão do ponto de vista dos conteúdos que
desejam fazer valer, enquanto erram no sentido complexo que atribuem a
modernidade, ao pensá-la como alternativa radical ao cristianismo); b) a nova
vitalidade do cristianismo, ou seja, aquela que, em muitos sentidos e com justa
razão, é indicada como sendo o verdadeiro renascimento religioso de nossa
época, pode ser tão-somente uma redescoberta do cristianismo como Ocidente e
nada mais. (pag.95)
O que são na
verdade a Europa ou o ocidente ou a modernidade senão, acima de tudo,
civilizações da racionalidade cientifica econômica e tecnológica? Esta
racionalidade, contudo, tal como nos ensinou Max Weber, e tal como já repetimos
ao infinito, não se realizou em nenhuma outra cultura do planeta, mesmo quando
presentes todas as outras condições materiais, porque somente no Ocidente agia
a tradição religiosa judaico-cristã. (pag. 96)
O que pretendo afirmar é que o
Ocidente é essencialmente cristão na medida em que o sentido da sua historia se
mostra como o “crepúsculo” do ser, o enfraquecimento da dureza do “real”
através de todos os procedimentos de dissolução da objetividade que a
modernidade trouxe consigo. (pag.98)
O que talvez possa se constituir em
um problema é o fato de chamarmos de secularização também o desenvolvimento
“pós-moderno” da deriva, descrita por Weber, na direção daquele enfraquecimento
do sentido da realidade e da própria noção de verdade a qual acenei antes.
(pag.100)
Tal hipótese é, sumariamente, a
seguinte: se o Ocidente procura a própria identidade, acaba tendo que se
confrontar principalmente com os fenômenos que assinalei, ou seja, a
racionalização capitalista weberiana mais i mundo da informação da
interpretação sem centro, proliferador. Que tende a enfraquecer o próprio
sentido de termos como ser e realidade. Bem, este conjunto de fenômenos, a meu
ver, só pode ser compreendido de maneira unitária se o considerarmos um grande
fenômeno de secularização do conteúdo da tradição judaico-cristã. (pag.100)
Assim, trata-se tanto de continuarmos
no caminho aberto por Weber, quanto de colocarmos em evidencia o fato de que
uma sociedade da comunicação e da interpretação sem limites se configura como o
prosseguimento lógico de um mundo que tem por base a Escritura e que se
desenvolve, acima de tudo, como exegese. Todavia, igualmente, e mais
teologicamente, é possível evidenciarmos, através de uma leitura radical da
Encarnação como Kénosis, que o enfraquecimento do ser é um dos
possíveis sentidos, senão o sentido em absoluto, da mensagem cristã que fala de
um deus que se encarna, se rebaixa, e confunde todas as potências deste
mundo... (pag. 101)
Muito embora o catolicismo tenha
sempre ensinado que as fontes de revelação são a Escritura e a tradição, e
tenha, portanto, reconhecido sempre, em linha de máxima, que a revelação
continua e se enriquece (mas até certo ponto) na fé Ivã da comunidade, na
pratica, ele sempre restringiu muito os confins da comunidade, identificando a
Igreja com a organização hierárquica guiada pelo papa e pelo bispos e definida
pelo respeito da Escritura. Em nome desta visão da comunidade, hoje a Igreja
Católica está bem longe do reconhecimento dos elementos de religiosidade
“leiga” que se anunciam na cultura do Ocidente e, antes, contrapõe a estes uma
desconfiança que se manifesta na aceitação, não necessária, de uma concepção
rigidamente disciplinar da pratica cristã (estou pensando, obviamente, na moral
sexual, que pretende evocar a “lei da natureza” etc.). Todavia, se como creio,
reconhecemos (juntamente com Novalis, por exemplo) que a verdade da revelação
está contida in nuce na Escritura, porém cresce e se enriquece
na experiência da comunidade, deveremos, provavelmente, continuar no mesmo
caminho de Novalis: a comunidade cristã não pode ser tão arbitrariamente
delimitada com base na letra da Escritura. (pag.103)
6
Morte ou
transfiguração da religião
Eis aqui delineados,
portanto, mesmo que aproximativa e vagamente, como o são todas as
precompreensões no limite das quais se move a nossa apropriação interpretativa
do mundo, os dois “fatos” característicos da nossa cultura sobre os quais
pretendo refletir. De um lado, o renascimento da religião na cultura comum,
configurado como escuta renovada do ensinamento da Igreja, como necessidade de
verdades definitivas, como desejo de reencontrar a própria identidade também e
acima de tudo, com relação à transcendência. De outro, a derrocada das razões
filosóficas do ateísmo, na qual a filosofia, por enquanto, deveria começar a
refletir, principalmente em função do primeiro fato a que me referi. O
renascimento da religião na cultura contemporânea não pode deixar de representar
um problema para uma filosofia que se habituou a não mais considerar relevante
a questão de Deus. Esta filosofia, dizia, com o fim das metanarrativas, viu
desaparecerem também as razões do seu tradicional ateísmo ou agnosticismo;
porém, parece ser quase fatal que, em tal situação, se quiser estar atentar as
razões da atualidade – ou seja, no fundo preocupada em “salvar os fenômenos”,
em fazer justiça à experiência – deverá tomar ciência do renascimento da
religião na consciência comum e das boas razões que motivaram este
renascimento. É justamente isto p que acontece, a meu ver, em tantos aspectos
do reflorescimento da chama “cultura de direita” em alguns países ocidentais,
como a Itália. Aqui, a esquerda não é mais cultura hegemônica, como o foi
durante muito tempo mesmo em épocas de predomínio político democrata-cristão. E
a renovada popularidade da religião, juntamente com a retomada política dos
partidos de direita, é geralmente interpretada como um motivo para liquidar
também a herança cultural da modernidade e, portanto, antes de mais nada, do
odiado iluminismo e, mais amplamente, de todo o tipo de pensamento crítico.
(pag.110-111)
A minha tese é que,
se a filosofia reconhece que não mais pode ser atéia, deve, também, encontrar
em tal consciência a base sobre a qual assumir um comportamento critico com
relação ao renascimento da religião e dos seus perigosos traços
fundamentalistas. (pag.111)
A metafísica, as
metanarrativas terminam, por não serem mais necessárias e críveis, assim como o
Deus moral de Nietzsche morre porque os seus próprios fieis o reconhecem como
uma mentira supérflua. O processo de dissolução da metafísica é o mesmo que
produzir a modernidade e a tarda-modernidade; a tecnologia suaviza a existência
de forma a tornar menos angustiante à pergunta sobre coisas últimas; a ciência
experimental, que de resto está na base do progresso tecnológico, induz, também
, a um pensamento mais sóbrio, mais atento a proximidade do que aos princípios
primeiros, cujos resultados se deixam cada vez menos reduzir a unidade de um
único fundamento, fazendo com que a metafísica seja, cada vez mais,
inverossímil. As estruturas da sociedade se fazem menos rígidas, a comunidade
natural se substitui uma sociedade complexa e ramificada com a qual o individuo
se identifica de forma cada vez menos imediata. O poder político evolui na
direção de formas democráticas, assumindo uma fisionomia menos direta e menos
“central”. A própria subjetividade individual, pelo menos desde Freud, aparece
com um conjunto compósito onde cada ultimação parece ser provisória e,
portanto, se exclui qualquer possibilidade de uma interpretação em termos de
fundamento. (pag.113-114)
7
Cristianismo e
conflitos culturais na Europa
Se hoje constatamos que o
cristianismo não mais se apresenta ou pelo menos não é mais considerado com a
mesma obviedade de um tempo, como um fator de superação dos conflitos
interculturais, é, acima de tudo, por ter desabado a segurança universal da
razão ocidental moderna, que, muito embora inconscientemente, era uma tradução
secularizada da fé judaico-cristã no plano divino da salvação. Aquela parte do
pensamento cristão que sempre considerou esta tradução em termos seculares como
sendo uma traição e um abandono da verdade, se compadece do atual naufrágio da
“racionalização” ocidental. Todavia, tal naufrágio tem por conseqüência o fato
de que o cristianismo hoje tende a se apresenta muito ,mais como um elementos
do conflito do que como um fator para a sua superação e conciliação (pag.121)
A tese eu
pretendo defender é que: a) hoje existem sinais evidentes do fato de que em
muitas comunidades cristã (nas diversas igrejas e confissões) se difunde a
tentação de opor ao universalismo comprometido com o eurocentrismo do
pensamento e da política ocidental moderna, formas de enclausuramento que vão
desde vários tipos de comunitarismo (com a prega de uma certa apartheid das
culturas) até o verdadeiro fundamentalismo, não raro aberto a resultados
violentos; b) acreditando se subtrair, com isso, aos êxitos perversos do
racionalismo moderno, da secularização etc., o cristianismo, na verdade,
renuncia a sua missão civilizadora, que poderia recuperar somente
reencontrando, em formas certamente não mais evolucionistas e imperialistas, a
própria profunda solidariedade com o destino da modernização (pag.122)
Aquilo que – ainda
que a fadiga, dada a natureza nem um pouco linear do problema – estou tentando
defender é que a dissolução pós-moderna das metanarrativas, ou seja, o
descrédito no universalismo da razão, característico da modernidade, conduz
também o cristianismo a se sentir como puro e simples elemento interno de um
conflito entre culturas, religiões, visões de mundo. (pag.123)
O cristianismo se
liberta da sua cumplicidade com os ideais imperialistas da modernidade européia
em seguida a uma dura experiência histórica, aquela da revolta dos povos antes
colonizados que se rebelam contra seus dominadores “cristãos” também em nome de
uma mais autentica interpretação da mensagem evangélica. Mesmo a redescoberta
da própria vocação “leiga” – aquela de se apresentar, ante de tudo, como
promotor de espaços de liberdade para o diálogo entre religiões, visões de
mundo, orientações ideais e culturas diversas – é “imposta” ao cristianismo
pelo encontro da sua vocação missionária com experiências históricas novas e
inéditas. (pag.125-126)
O outro caminho que
se abre para o cristianismo é aquela da recuperação da própria função
universalista, acentuando sua vocação missionária como hospitalidade e como
fundação religiosa (paradoxal quanto se queira) da laicidade (das instituições,
da sociedade civil, da própria vida religiosa individual). Assim, para
voltarmos ao exemplo a que me referi há pouco, os cristãos não podem ao mesmo
tempo reivindicar o direito de expor o crucifixo nas escolas publicas e assumi-lo
como sinal de uma religião particular intensamente dogmática. Ou ainda: pode-se
continuar a celebrar o Natal como uma festa de todos, mas não haverá sentido
lamentar-se, depois, que se tornou uma festa por demais leiga, mundana priva do
seu significado originário. No fundo, a proibição dochador para as
moça muçulmanas nas escolas publicas francesas pode ser justificado somente com
base no fato de que ai se trata de uma afirmação de identidade forte, uma
espécie de profissão de fundamentalismo. O crucifixo, ao contrario, se
transformou em nossa sociedade num sinal quase obvio, ao qual se presta menos
atenção, que deixa substituir a laicidade, conferindo-lhe apenas uma origem
religiosa que se desenvolveu no sentido da secularização. É justamente com base
neste seu significado, genérico mais igualmente “aberto” e possibilitador, que
ele pode reivindicar o direito de ser aceito como símbolo universal em uma
sociedade leiga. (pag.127)
8
A mensagem cristã e
a dissolução da metafísica
Fora Dostoievski, a
linha clássica do cristianismo tendeu a identificar a verdade, enquanto
descrição exata e objetiva da “realidade”, com a verdade que é Cristo. Se a
verdade tem o poder de nos libertar é porque somente sabendo o que é a
realidade podemos nos libertar. (Mas do quê? Não certamente da própria
verdade/realidade por mais desagradável e opressiva que ela seja.) A
redenção (“Redimisti nos domine, deus veritatis”, diz uma
oração do breviário romano) consistiria, portanto, no fato de “ver” o próprio
ser tal como é: amor dei intellectualis,se diria, segundo Spinoza.
Na verdade, a idéia tradicional de que a vida terna consiste na contemplação de
Deus (face a face) foi interpretada em um sentido spinoziano que acaba
identificando a beatitude com o perfeito conhecimento da geometria. Teria sido
com tal finalidade que a segunda pessoa da Trindade ter-se-ia encarando e se
sacrificado na cruz? (pag.130)
Se o niilismo
europeu (como diz o famoso fragmento que traz esse titulo escrito a Lenzer
Heide durante o verão de 1887) é o fim da crença em uma ordem objetiva do
mundo, que justificaria a fidelidade a uma verdade que vá além de qualquer
amizade ou inimizade, aquilo que Nietsche não vê (não quer ou não pode ver –
sempre por causa das suas próprias inimizades: filho de pastor, crescido a
sombra da igreja, como é lembrado em um de seus fragmentos autobiográficos) é
que este niilismo não é somente o sentido “nietzschiano” da morte de Deus, mas
, igualmente, da morte de Jesus sobre a qual fala o Evangelho. Ou, em outras
palavras aquilo de Heidegger denomina fim da metafísica. Este fim, como
sabemos, se cumpre justamente, por Heidegger, no niilismo de Nietzsche e no
fenômeno histórico/ destinador que a doutrina de Nietzsche reconhece, descreve,
anuncia. O niilismo, do ponto de vista nietzschiano/heideggerianos no qual me
coloco, é a perda da crença em uma verdade objetiva em favor de uma perspectiva
que concebe a verdade como efeito de poder – nos múltiplos sentidos desta
expressão: experiência cientifica que realiza o principium reddendae rationis -,
sendo o fundamento reerguido sobre a vontade ativa dos sujeitos que constroem a
experiência de daqueles que, no quadro de um paradigma, se não arbitrário
certamente histórico, o aceitam como válido; ideologia considerada verdadeira
por aqueles que pertencem a uma categoria: mentira dos monges, inventada para
justificar o poder e a disciplina social. (pag.131-132)
Esta visão da
historia do pensamento europeu como historia de uma luta entre, de um lado, o
princípio de dissolução da metafísica – interioridade, vontade, certeza do
pensamento - introduzido no mundo elo cristianismo e, de outro, a objetividade
visual-naturalista (estética) da cultura grega, marca profundamente, como já
disse antes, também e sobretudo, a visão heideggeriana da sobrevivência e da
dissolução da metafísica. Quero ressaltar, acima de tudo, o fato de que, mais
explicitamente em Heidegger, não se trata em absoluto de uma luta entre a
verdade “natural” (ou paradoxalmente “objetiva”) da subjetividade cristã e uma
metafísica que se revelaria, ao final, uma falsificação desta verdade
autentica. O anuncio cristão é mais exatamente um evento histórico, não a
revelação, pro parte de Cristo, de uma verdade eterna. Trata-se da luta entre
dias possibilidade históricas, ou, poderíamos dizer, entre duas amizades. É
isto o que encontramos, também, ainda que em termos diversos, pro exemplo,
na krisis de Husserl: a crise das ciências européias não
consiste em uma tradição contra uma pretensa essência “natural” da ciência, que
a ciência moderna teria abandonado e esquecido; se trata (apenas) de uma falta
de fidelidade ao ideal de uma ciência “absoluta” e totalmentefundada (embora
talvez exista aqui uma contradição no próprio Husserl), ideal que nasce em um
determinado momento da historia e do qual (mas por quê? Somente a ontologia daEreignis de
Heidegger poderá justificá-lo) não podemos mais prescindir. (pag.135-136)
Somente Nietzsche e
Heidegger, com a sua reconstrução (porque existe uma também em Nietzsche, se
penso no capitulo sobre “Como o mundo verdadeiro acabou se tornando fácula”
em Crepúsculo dos ídolos) da historia e da dissolução da
metafísica, oferecem em fundamento filosófico rigoroso para as teorias mais
abertas à caritas como aquelas de Habermas, Lévinas etc. de
forma mais clara: a amizade pode se tornar principio, fator da verdade, somente
depois do pensamento ter abandonado todas as pretensões de fundação objetiva,
universal, evidente. Sem uma autentica abertura ao ser enquanto evento, o outro
de Lévinas corre sempre o risco de se ver desprovido do ouro, com maiúscula –
mais uma vez uma verdade que “justifica” a amizade por Platão apenas
suprimindo-o como individuo. Um discurso análogo parece valer para Habermas,
para quem a comunicação não-opaca que funciona como horizonte normativo não
está fundada no respeito pelo outro enquanto tal e sim no intento de reduzir o
outro e eu mesmo, a uma idéia de racionalidade “transparente” que, se não evoca
uma metafísica racionalista do tipo Kantiano, ou antes justo porque a
reivindica, é só em ultima instância uma colonização do mundo da vida por parte
da racionalidade estratégica que domina a ciência e a técnica. (pag.169)
A pregação cristã
da caridade não é apenas, ou não é de forma alguma, uma conseqüência ética,
alias edificante, da revelação da verdade “objetiva” com relação a nossa
natureza de filhos de Deus. Ela é, muito mais, um apelo que provém do fato
histórico da encarnação (histórico sobretudo não tanto no sentido de se tratar
de um fato “real” e sim como constitutivo, na sua Wirkungsgeschichte, da
nossa existência) e que nos fala de um destino niilista do ser, de uma teologia
do enfraquecimento de toda rigidez “ôntica” em favor de um ser onto-lógico - ou
seja, do Verbum, Logos, palavra no Gesprachque,
enquanto seres históricos somos.
Verdade como caritas e
ser como Ereignis, eventos, são dois aspectos estreitamente
interligados. O papel central do outro em muitas teorias filosóficas de hoje
assume todo o seu significado quando o colocamos no âmbito da
dissolução da metafísica, e só sob esta condição evita o risco do puro e
simples moralismo edificante, ou puramente “pragmático” (“de qualquer forma é
preferível viver em um mundo de amigos...”). Com todas as imprecisões que um
Atal conclusão, ainda que provisória, deixa substituir, me parece que justo a
partir deste ponto devêramos começar uma reflexão sobre aquilo que resta, não
apenas a ser relembrado, mas também a ser feito, dois mil anos depois do evento
do cristianismo (pag.140)
9
Violência,
metafísica, cristianismo
A violência se
insinua no cristianismo quando ele se alia à metafísica como “ciência do ser
enquanto "ser”, isto é, como saber de princípios primeiros. As razões e as
circunstancias desta aliança são varias, a começar pela responsabilidade que a
igreja herda como único poder, também temporal, em um mundo perturbado pela
dissolução do império romano. Entretanto , havia igualmente, e mais
profundamente, a identificação da existência cristã com a existência filosófica
concebida à maneira clássica : é elevando-se até o conhecimento do principio
primeiro, assimilando-se a ele (na linha Platão/Plotino) que o homem realiza
verdadeiramente a própria humanidade. Pensemos em quão pouco essencial parece
ser, em uma perspectiva como esta, o mandamento cristão da caridade: o que
conta é o conhecimento da verdade , que certamente induzirá a um distanciamento
dos bens sensíveis a ponto de reduzir a luta pela sobrevivência e, portanto , o
conflito com os outros, sem fazer,contudo, com que esta renúncia à violência
tenha significado positivo de uma abertura ao outro.
A idéia de que a
moral consiste no respeito à lei natural é filha desta mesma tradição. É, ao
mesmo tempo, a pretensão de que a perfeição consista na identificação , de
alguma forma, com o primeiro principio, e a convicção de que o principio
primeiro se imponha enquanto tal, sem explicações e nem perguntas. Hýbris e
submissão se misturam aqui de maneira inseparável , com uma contraditoriedade
que mostra o caráter de neurose próprio da mentalidade metafísica – como ,
justamente, sugeriu Nietzsche. Estamos conscientes de que – de resto, como
sempre ocorre quando se reflete sobre a metafísica e sobre sua possível
superação – aqui tocamos uma quantidade incontável de cernes teóricos , éticos
existenciais , nos quais estamos todos profundamente envolvidos. Até mesmo
o factum do imperativo categórico que fala em nós , segundo
Kant, pode ser revocado em dúbio nesta análise das raízes metafísicas e
violentas da nossa cultura.
Se admitirmos que a
idéia da perfeição como elevação ao principio primeiro, como identificação
mística com ele (Plotino), é expressão de hýbris e fonte de
violência ulterior (a pretensão de impor a lei natural ainda que contra a
vontade ainda que contra a vontade dos homens), e que a idéia de que a lei
moral possa estar fundada apenas sobre a natureza comofactum, dado para
além do qual não se pode perguntar, por ser um modo de pensar contraditório e
radicalmente violento (por que não deveria mais perguntar o porquê? E se a lei
é a natureza , ela se realiza necessariamente e, portanto, não tem sentido que
me seja imposta como um comando), como repensar, realmente a ética e a
metafísica cristãs?
A simples colocação
destas hipóteses e de suas conseqüentes perguntas já faz balançarem muitas das
estruturas mais enraizadas em nossa mentalidade. Como pensarmos a perfeição a
não ser como identificação, de alguma forma , com o próprio ser, Deus, o
principio supremo? E como pensarmos a metafísica, ou o saber essencial, a não
ser com apropriação teórica dos princípios primeiros? Com fundarmos a lei a não
ser sobre uma estrutura incontroversa,dada, indiscutível e, enquanto tal,
portanto, em condições de legitimar o uso da força?
A dificuldade que
temos em responder a tais perguntas é a mesma que, para Heidegger, parece
corresponder à insuperabilidade da metafísica , que não pode ser ultrapassada ,
mas apenas verwunden, aceita, perseguida segundo caminhos
irônicos que sabemos ser provisórios. (146-148)
Parece difícil
fugirmos a lógica da secularização, como prosseguimento da ação salvífica da
revelação cristã, se aceitamos a análise girardiana do sacro natural como
violência, do sacrifício como vitimização de um bode expiatório sobre o qual
são descarregadas as expressões cruentas da crise mimética. Foi objetado que a
idéia do sacrifício como violência não contempla a possibilidade do
auto-sacrifício. (pag.148-149)
Não salvação
ATRAVÉS da Kénosis, visto que se a glória fosse conseguida somente mediante a
humilhação e o sofrimento estaríamos novamente em plena lógica vitimaria. A
kénosis não é mio de redenção, é a própria redenção. Esta é, a meu ver, a
leitura mais razoável da mensagem da Encarnação. Que é uma leitura “niilista”
apenas para quem persiste em pensar o ser com as características metafísica da
imponência, da estabilidade, da evidencia plena na presença. Ou seja, com os
atributos do auto puro aristotélico, do ser parmenídeo, totalmente o oposto do
ser como criação de um deus livre e amoroso. O Deus metafísico que a teologia
cristã acreditou dever reconhecer como sua própria base “natural” é também
aquele que põe problemas insolúveis quanto à idéia de predestinação; que requer
uma teodicéia que jamais esteja impune à ironia do Candide voltairiano; e que,
ainda hoje, a ética naturalista, ao mesmo tempo autoritária e ineficaz, do
ensinamento pontifício. (pag.149)
10
Hos Mé Heidegger e
o cristianismo
A historia das
relações entre Heidegger e a tradição cristã, e especificamente católica,
dentro da qual ele se formou – a ponto de ter sido ajudado nos estudos pelos
subsídios do seu bispo, e depois ter sido visto no inicio da sua carreira como
uma esperança para o pensamento católico alemão – ainda deve ser amplamente
explorada e, talvez, só possa proceder por caminhos novos com base na
publicação de outros inéditos, além daqueles que ficara conhecidos
recentemente. (pag.151)
A importância
da Einleitung não consiste apenas no fato de representar, em
muitos aspectos, uma antecipação bastante plena e eficaz de vários temas
da Sein und Zeit, e, portanto, da sucessiva elaboração doutrinal de
Heidegger. Muito mais significativo me parece ser um outro aspecto que salta
aos olhos, isto é, que aqui a temática da Sein und Zeit, e
também aquela dão Heidegger mais maduro, que explicita a idéia da metafísica
como esquecimento do ser, aparece na sua conexão essencial com a reflexão sobre
a experiência cristã. É preciso falarmos em uma conexão ESSENCIAL, sobretudo
levando em conta o significado que a palavra Wesen assume,
justamente nos textos heideggerianos; no sentido de que os conceitos principais
da Sein und Zeit aparecem aqui como inconcebíveis sem a referencia ao EVENTO
cristão. A essencialidade desta conexão e, portanto, de caráter
histórico/destinador e não recondutível a uma espécie de implicação analítica
de tais conceitos no “conceito” de cristianismo. (pag.152)
Quando Heidegger
diz no curso que a experiência cristã das origens, aquela sobre a qual ele fala
descobrindo-a em Paulo, é a experiência da temporalidade autentica, é difícil
não reconhecermos uma confirmação desta segunda hipótese. (pag.154)
Para Heidegger,
segundo uma leitura atenta das aulas de 1920, não é possível pensarmos a
filosofia a não ser nestes termos cristãos, mas sabendo explicitamente que o
evento cristão PE um evento, assumindo plenamente a nossa concreta
historicidade sem pulá-la tranquilamente para passarmos a visão da essência, e
sim desenvolvendo, ao contrario, estafaktische Lebenserfahrung até
a critica da metafísica e ao tema mais tardio da “historia do ser”. Uma tal
eventualidade- essencial enquanto destinaria e não enquanto universal no
sentido da abstração metafísica – reenvia, provavelmente, a insistência de
Heidegger, na analise do texto paulino, quanto a termos como “eghéneto” e
“glénesthai” (Primeira Epístola ais Tessalonicenses 1, 5-7). Uma insistência
que pode ser vista como a verdadeira explicação para o “salto” lógico entre a
primeira e a segunda parte do curso. Se de fato a experiência religiosa cristã
poderá ser reconhecida como o modelo (e bem mais, em definitiva) da experiência
autentica da temporalidade-daquela que não podemos wesentlich,
destinariamente, deixar de reconhecer como sendo a única experiência autentica
da temporalidade – isto é porque nós mesmos, que nos empenhamos em estudar
fenomenologicamente a experiência religiosa, já estamos “transformados”, já
“soubemos” por termos recebido o anuncio. Podemos formular esta observação de
muitas maneiras: por exemplo, reconhecendo como um traço constitutivo da
experiência religiosa – aquela acessível a nós – o fato dela jamais começar com
uma escolha entre religiões diferentes e som como um encontrar-se já em uma
tradição, em uma fé, que podemos criticar e até recusar, mas não decidirmos, a
partir do zero, se aceitar ou não. Pode ser que este já seja um traço de
qualquer tipo de experiência religiosa, mas é indiscutível que no caso do
cristianismo um semelhante traço é co relação à historicidade da revelação e,
em ultima análise, apropria criação tal como é narrada na Bíblia, muito mais do
que um dado antropológico elementar como aquele que vê a religião sempre ensinada
dentro da família, juntamente com a língua materna e as primeiras regras de
educação. É verdade que o ser transformado sobre o qual Paulo fala aqui é a
transformação já ocorrida junto aos tessalonicenses graças a sua pregação: o
que eles já sabem aprenderam com ele. Todavia, é evidente que para Heidegger
isto tem um sentido mais geral – aquele no qual a temporalidade autentica se
revelará como uma tensão entre o “já” e o “ainda não”, que é a estrutura mesma
da escatologia cristã. Reduzir o eghéneto a memória pontual do
fato da pregação de Paulo, significaria assumi-lo em um rigorismo que Paulo
seria o primeiro a recusar (coisa que não podemos deixar de levar em conta
enquanto intérpretes), visto que até a sua primeira pregação aos
tessalonicenses é o anuncio daquilo que eles já sabem em virtude da redenção de
Cristo.
Em que sentido,
então, re-conhecer-se naquilo que já somos constitui a base de uma experiência
autêntica da temporalidade. (pag.155-156)
A temporalidade
autentica da experiência cristã surge como solução do problema, ou pelo menos
como um modelo alternativo relativamente e este estar como simples presença no
tempo que transcorre linearmente. O eghéneto, o já, que constitui a
base sobre a qual a pregação de Paulo em suas epístolas se coloca, é a salvação
já ocorrida com a morte e ressurreição de Jesus, que, no entanto é de tal forma
apenas um mero evento “passado”, no sentido horizontal/ objetivo do termo, a
ponto de ainda não ter sido realmente completada e ser esperada como o evento
escatológico da parusia. Façamos atenção, pois, a dificuldade
em pensarmos esta experiência da temporalidade cristã não é nada diferente
daquela que encontramos na leitura das páginas da Sein und Zeit sobre
este mesmo tema, ainda que lá não vejamos, mas a referencia aos textos
evangélicos. O fato é que não existe uma verdadeira descrição, ou definição,
positiva, da experiência autêntica da temporalidade. (pag.157-158)
Em síntese, estamos
diante de uma tentativa da traduzir em conceitos a pura historicidade da existência,
que não é nada de naturalmente dado, e que, antes, precisa ser pensada em
explícito contraste com a banalização metafísica na qual, como dirá a Sein
und Zeit, a existência já está sempre atirada e dejetada. Citemos agora
algumas passagens que ilustram estes conceitos. Constitutivo da vida cristã (ou
seja, como já sabemos da experiência autentica da temporalidade) é o não
(pretender) saber o daí e à hora da parusía. “para a vida cristã
não há nenhuma segurança; a constante insegurança é, alias o elemento
característico dos significados fundamentais da vida efetiva. A insegurança não
é causal e sim necessária. ‘aqueles que dizem paz e segurança’ (2 coríntios
5,3) se afastaram daquilo que a vida representa; estão na obscuridade quanto ao
conhecimento de si mesmos” (p. 105). E, um pouco acima; “O sentido desta
temporalidade é fundamental também para a experiência efetiva da vida, assim
como para questões tais como a eternidade de Deus” (p. 104). (pag.160)
Certamente a
hipótese aqui sugerida (por Heidegger) de que a historia do cristianismo seja
um mal-entendido “metafísico” dão sentido originário da mensagem
neotestamentária não parece ser original, e se poderia, até mesmo, perguntar se
e até que ponto não é uma pura e simples retomada de temas do modernismo que
durante aqueles anos circulava no pensamento católico e havia sido condenado
pela encíclica Pascendi de Pio X em 1907.
Em uma relação mais
especifica com a atitude que Heidegger vinha amadurecendo com respeito ao
catolicismo, podem ser visto aqui as bases para o seu distanciamento polemico
da tradição escolástica e da metafísica “clássica” que ela queria retomar, um
distanciamento que, significativamente, é aqui motivado pela fidelidade a
originaria experiência cristã – em termos análogos a quanto ocorria no
modernismo. (pag.162)
Se a leitura
heideggeriana de Paulo é fundada, devemos ver nestes textos também uma
indicação contra a excessiva atenção aos conteúdos “teóricos” e descritivos da
revelação bíblica. Qualquer tentativa de lê-la como um ensinamento sobre a
natureza e os atributos de Deus peca por aquela queda anticristã no pensamento
representativo, que é o mesmo pecado da metafísica objetivante contra o qual se
trata de reencontrar a escuta do ser. A partir daqui, provavelmente, pode ter
inicio uma tentativa de pensarmos o cristianismo e de vivermos a fé cristã que
adquire sentido na medida em que se considera – com base em escritos como este
curso de 1920 – que a ontologia de Heidegger tenha uma das suas fontes mais
constantes justamente na tradição cristã. Dito der forma mais clara; se, como
me parece, hipotizamos (mas diria, reconhecemos) que a filosofia de Heidegger
não e separável das suas origens na reflexão sobre a mensagem evangélica, esta
hipótese (ou outra que seja) não tem apenas por conseqüência esclarecer
historiograficamente (historisch!) as fonte daquela filosofia, nem
apenas o sentido de “reconduzi-la” ao cristianismo, como uma conversão
finalmente tranqüilizante (como dizer: afinal se somos heideggerianos, não
somos anticristãos). Aquilo que se impõe é antes um efeito de reciprocidade:
não apenas Paulo nos ajuda a esclarecer Heidegger, como Heidegger nos propõe
considerações que, se levadas a sério, nos conduzem também a reinterpretar a
tradição cristã. (pag.163)
Seria possível reconduzirmos
todas estas sugestões heideggerianas acerca do modo de conceber e viver a
experiência cristã a uma espécie de profissão de protestantismo luterano? O
fato de que ele, em seus desenvolvimentos sucessivos, não tenha caminhado
explicitamente nesta direção, deve ser, pelo menos, levado em conta. A sua
polêmica contra a tradição cristã pós-apostólica e a historia da sua dogmática
se confundiu, cada vez mais, com o esforço de ultrapassar a metafísica e a
onto-teo-logia que sempre a acompanhou. Tudo isto significa, provavelmente, que
seria desviante lermos estas paginas apenas como uma concessão a motivos
modernistas ou somente como um movimento do filósofo de uma confissão cristã
para outra. Parece ser mais historicamente fundado, e também mais fiel aos
desenvolvimentos do seu pensamento, nos perguntarmos se não existem aqui
significativas indicações para correlacionarmos, de maneira mais positiva e
produtiva, o esforço da filosofia em superar o objetivismo metafísico com a
busca de uma visão do cristianismo que, quer no plano dos dogmas quer no plano
da ética, seja, finalmente , capaz de pensar o próprio sentido ecumênico
também, e acima de tudo, como escuta da nova época – pós-moderna – do ser.
(pag.166-167)
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