segunda-feira, 2 de outubro de 2023

Gianni Vattimo - Depois da Cristandade

 

 


 

Por um cristianismo não religioso

Síntese Pe. Paolo Cugini

 digitação Winne Muryanne

 

Primeira Parte

Lições nova-iorquinas

1

O Deus que morreu

Não é somente uma visão do ser como objetividade que se torna inaceitável por motivos teóricos e práticos-políticos. Depois da Sein und Zeit, durante os anos daquela que ele próprio chamou de Kehre, a virada em seu pensamento, Heidegger insistiu, cada vez mais, nos êxitos niilistas da ciência técnica moderna. Mais ainda do que a organização total da sociedade, aquilo que desmente a metafísica e a torna impossível como crença em uma ordem objetiva, estável e bem fundamentada do ser é a explosão incontrolável das imagens do mundo. A especialização das linguagens cientificas, a multiplicidade das culturas (não mais unificadas hierarquicamente pelo mito eurocêntrico), a fragmentação das esferas de existência e o pluralismo babélico da sociedade de fins da modernidade fizeram, de fato, com que se tornasse impensável uma ordem unitária do mundo. Assim,. Não maios foram dignas de credito as metanarrativas – usando a bem-sucedida expressão de Lyotard – que pretendiam representar a estrutura objetiva do ser. É em todos estes elementos que consiste o fim da metafísica, que não se resume, portanto, apenas a descoberta, por parte de um filosofo ou de uma escola, de que o ser não é a objetividade na qual a ciência acredita poder reduzi-lo; trata-se de um conjunto de eventos que transformam a nossa existência e sobre os quais a filosofia pós-metafísica se esforça em fornecer uma interpretação (que significa, acima de tudo, pois não é colocado em um ponto ideal, externo ao processo) e não uma descrição objetiva.

É, enfim, o mundo desta Babel de tarde modernidade aquele que “verifica”, por assim dizer, conferindo-lhe validade, tanto o anuncio nietzschiano da morte de deus quanto aquele de Heidegger, idêntico em seu significado, do fim da metafísica. Em tantos sentidos que não podem ser com facilidade reunidos em um conjunto sistemático, mas que, creio eu, estão bem claros, é exatamente este o mundo no qual o ‘deus moral”, isto é, o fundamento da metafísica, morrei e foi enterrado. Todavia, este é justamente aquele que Pascal chamava de Deus dos filósofos e, de fato, muitos são os sinais que parecem indicar que foi a própria morte deste Deus o que abriu caminho para uma vitalidade renovada da religião.

Do ponto de vista teórico isto em parece evidente. Antes de mais nada, juntamente com a metafísica, vista como (possibilidade de um) filosofia sistemática capaz de fornecer uma representação coerente, unitária e rigorosamente fundada, das estruturas estáveis do se, também se esgotou toda e qualquer possibilidade de se negar filosoficamente a existência de Deus, de resto, este é um ponto que já se prefigurava como um dos objetos perseguidos por Kant na sua critica da razão; era importante para ele mostrar que a razão não pode falar objetivamente do mundo neumênico e de Deus, também, e, cima de tudo, para reivindicar a possibilidade de uma experiência religiosa, que ele concebia apenas em termos de razão pratica, contra qualquer pretensão de negála com base em motivações metafísicas. E, pois bem, hoje parece que um dos principais efeitos filosóficos da morte do Deus metafísico e do descrédito geral, ou quase, em que caiu todo o tipo de fundamento filosófico, foi justamente o de ter criado um terreno fértil para uma possibilidade renovada da experiência religiosa. Tal possibilidade retorna ao âmbito da filosofia inclusive e, sobretudo, por meio da liberação da metáfora. É um pouco como se , no final, Nietzsche razão ao preconizar a criação de muitos novos deuses: na babel do pluralismo de fins da modernidade e do fim das metanarrativas, se multiplicam as narrativas sem um centro ou uma hierarquia. Nenhuma metanarrativa direcional, nenhuma metalinguagem normativa está em condições de legitimá-los ou desacreditá-los. É desmantelada aquela hierarquia social entre as linguagens da qual, sempre Nietzsche, havia falado em seu longo fragmento juvenil Sobre verdade e mentira no sentido extramoral. (pag. 23-25)

A esta liberação da metáfora e a queda das razões filosóficas para o ateísmo, corresponde – mas obviamente sem nenhuma ligação de dependência causal – renascimento do religioso no seio da sociedade industrial avançada. Para um tal renascimento existem, claramente, diversas explicações que, em ultima análise, podem ser correlacionadas às mesmas circunstâncias históricas que deram início ao fim da metafísica: por exemplo, a derrubada do colonialismo, que libertou as culturas “outras”, tornando, acima de tudo na pratica. Impossível o historicismo eurocêntrico. O fim do colonialismo ocidental também significou o desenvolvimento de uma sociedade multiétnica em grande parte dos países industrializados, e este pluralismo pode ser seguramente considerado, embora menos pacífico do que aquele “textual” da filosofia e da crítica, um fenômeno de liberação da metáfora. As culturas outras que tomaram a palavra nas sociedades ocidentais trouxeram consigo as suas próprias teologias e crenças religiosas. Talvez uma reação – imitava ou defensiva – a este pluralismo, se desenvolveu nas sociedades ocidentais formas de retorno à tradição religiosa local; provavelmente, também e, sobretudo, porque a queda de qualquer tipo de linguagem “própria” e de hierarquia entre as visões de mundo provocou reações de rejeição, suscitando a necessidade de se regredir a formas de pertinência, ao mesmo tempo confortantes e temíveis como qualquer paternidade. (pag. 27-28)

Tanto em seus aspectos teóricos quanto em alguns aspectos fundamentais de caráter histórico-social (como a derrubada do eurocentrismo e a liberação também política das culturas outras), o retorno da religião parece depender da dissolução da metafísica, isto é, do descrédito em qualquer doutrina que pretenda valer absoluta e definitivamente como descrição verdadeira das estruturas do ser. É a liberação da metáfora que torna novamente possível aos filósofos falar de Deus, de anjos, de salvação etc., e é, sobretudo o pluralismo característico das sociedades da tarda modernidade que permite que as religiões venham de novo à tona. Por outro lado,o renascimento da esfera do religioso parece se configurar, necessariamente , como pretensão de alcançar uma verdade ultima , certamente objeto de fé e não da demonstração racional, mas, de qualquer forma, tendêncialmente uma exclusão precisamente daquele pluralismo das visões do mundo que, em principio , parece ser a condição da sua possibilidade. (pag. 28-29)

A superação da metafísica, se quiser ser realmente radical, não pode ser reduzida a um valor de pura e simples re-legitimação do mito, da ideologia e , mesmo, do salto pascaliano na fé.

Pensemos no que significou a superação da metafísica para o filosofo que de forma mais radical teorizou : Martin Heidegger. O esforço em pensar o ser – pelas razões que mencionei – não mais como estrutura objetiva que a mente deveria espelhar, adequando- se a ela em suas escolhas praticas, levou-o a praticar a filosofia como retorno rememorado a historia do ser. A expressão “historia do ser” ou, também, “destino do ser” (jogando com a proximidade entre os termosGeschichete e Geshich) é um elemento central no pensamento do tardo Heidegger. E isto porque o único modo não-metafisico, não-objetivante, de se pensar a ser é , na opinião de Heidegger, aquele que o concebe não como uma estrutura objetivamente colocada perante os olhos da mente, e sim como evento, como acontecimento. Poderíamos dizer, portanto, que os objetivos da nossa experiência se dão somente dentro de um horizonte e que este horizonte, como uma luz que faz com que as coisas apareçam, não é, por sua vez, objetivamente visível. Se podemos falar de um ser, devemos pensá-lo antes como este horizonte e como esta luz, mais do que como a estrutura geral dos objetivos. Não sendo objeto, porém, o ser também não tem aquela estabilidade que a traição metafísica lhe quis atribuir. Tal é o evento do ser no duplo sentido do genitivo: o horizonte é abertura que pertence ao ser, mas também é aquilo ao qual o ser pertence ; não há ao ser estável etc., pois o ser somente aquele que, vez por outra, acontece no seu evento.

Entendido o ser como evento, a tarefa do pensamento é,segundo Heidegger , aquela de uma perspectiva de espalhamento objetivo, seja necessário conhecer o ser histórico na sua totalidade – como, no fundo, pensava Hegel. Trata-se , antes, de “saltar no abismo liberatório da tradição” – um salto que só é liberatório porque sacode a pretensão da ordem atual do ente de valer como a única e eterna ordem objetiva do ser enquanto tal. O salto não nos dá um conhecimento mais verdadeiro e completo daquilo o que o ser objetivamente é; nos diz apenas que o ser não é nada do objetivo ou de estável, desvenda-o para nós como evento no qual estamos sempre, na qualidade de intérpretes, envolvidos e de alguma forma “em caminho” (o ser é nós). Aquele que propus chamar de “pensamento fraco” insiste neste aspecto da rememoração heideggeriana: o salto no abismo da tradição é sempre, também, um enfraquecimento do ser, já que sacode as pretensões de peremptoriedade com as quais sempre se apresentaram as estruturas ontológicas da metafísica. No salto, por outro lado, não se reconhece o ser como evento em termos abstratos – como se disséssemos que o ser é “sempre” evento (segundo uma concepção da historicidade que se limita a pensá-la como “eterna” finidade da existência, como eterna queda no tempo etc.). O evento é o evento que acontece para nos hoje , aqui. Assim, o enfraquecimento do ser, que se produz quando este se desvenda no salto como evento, é também, inseparavelmente, um enfraquecimento, como sentido e fio, contudo histórico, da tradição dentro da qual saltamos. O retorno rememorado do ser é, igualmente, uma filosofia da historia guiada pela idéia do enfraquecimento: consumação das estruturas fortes no plano teórico (desde a metafísica metanarrativa até as racionalidades locais; desde a crença na objetividade do conhecimento até a consciência do caráter hermenêutico de cada verdade) e no plano da existência individual e social (desde o sujeito centrado na autoconsciência até o sujeito da psicanálise; desde o estado despótico até o estado constitucional; e assim por diante...).

Até aqui, delineei dois aspectos salientes da morte de Deus: em primeiro lugar, tentei mostrar como o fim da metafísica, vista como crença em uma ordem fundada, estável, necessária e objetivamente cognitiva do ser, foi acompanhado, no pensamento e na pratica social, pela morte do Deus moral, do Deus dos filósofos, mas, também por um renascimento do sacro em muitíssimas formas. Em seguida, insisti quanto ao fato de que, no autor que mais coerentemente afirmou o fim e a superação da metafísica, ou seja, em Heidegger, este fim significa a passagem de uma concepção do ser como estrutura para uma concepção do ser como evento, caracterizada por uma tendência ao enfraquecimento. As conclusões às quais quero chegar após ter colocado estas duas longas premissas são: primeiro, que o renascimento da religião na era pós-metafisica não é apenas o resultado de um mal-entendido, mas pode mesmo parecer teoricamente legitimo se reconhecermos que existe um profundo parentesco – por enquanto posso apenas indicá-lo assim – entre tradição religiosa do Ocidente e pensamento do ser como evento e como destino de enfraquecimento. Segundo, que o reconhecimento deste parentesco oferece à filosofia uma base sobre a qual pensar criticamente as formas que o renascimento do sacro assumiu hoje; tal renascimento, em outras palavras, pode e deve ser criticado filosoficamente sempre que trair a própria constitutiva inspirada antimetafísica. (pag. 31-34)

Capitulo 3

O Deus Ornamento

O que muda, ou deveria mudar, uma vez tenha a filosofia reencontrado a sua proveniência da tradição judaico-cristã e esta última interpretada não mais em correspondência a uma concepção metafísica do ser, mas á luz de uma ontologia do evento? Foram estas duas premissas que tentei estabelecer, ou pelo menos sugerir, nas duas aulas anteriores, aquela sobre as quais é possível construirmos uma imagem da religiosidade pós-moderna. Não renuncio a usar aqui este termo, pós-moderno, porque, fiel ao ensinamento de Gioacchino, estou convencido de que a historia da salvação anunciada pela Bíblia se realize nos eventos da historia mundana, que, portanto, não representam apenas uma prova à qual o homem deve se submeter para obter a vida eterna, ou uma condição de exílio da qual é preciso fugir o quanto antes. A história da salvação passa por nós por meio dos acontecimentos da modernidade; e eventualmente da sua crise, visto que as teorias da pós-modernidade falam a respeito de um fim da modernidade e de um fim da concepção da historia como progresso linear. Isto, contudo, parece tornar paradoxal a idéia de uma religiosidade pós-moderna que evoque Gioacchino de Fiore e o seu “progressismo” teológico.

Podemos acrescentar ainda que a recusa generaliza do historicismo e da idéia de progresso , presente no pensamento contemporâneo , está relacionada a motivações de tipo popperiano, ou seja, à suspeita de que a fé na historia como progresso direcionado a uma condição de perfeição conduz, inevitavelmente, a êxitos políticos totalitários. Esta suspeita ressoa nas conotações atribuídas ao termo milenarismo que, talvez erroneamente, também aparece relacionado ao nome de Gioacchino da Fiore. Se a salvação, o paraíso, a perfeição final podem ser imaginados como resultantes de um processo histórico realizável no mundo, é quase fatal que uma política inspirada nestas convicções se proponha a construir, com todos os meios passiveis, uma ordem perfeita, dando lugar a regimes não liberais. Hitler e o comunismo podem, então, ser colocados na linha da posteridade espiritual de Gioacchino da Fiore, como o faz De Lubac na obra já mencionada. A idéia do divino como totalmente outro, que inspirou a maior parte das filosofias religiosas da primeira metade do século XX, tornou-se assim tão popular principalmente no momento da desilusão com os milenarismos revolucionários que ensangüentaram a nossa historia. As teorias sobre a pós-modernidade são também elas, conseqüentes a esta desilusão: os resultados catastróficos das revoluções milenaristas desmentiram e tornaram inaceitáveis as “metanarrativas “(para usarmos o termo de Lyotard) nas quais se inspiravam. As metanarrativas, que sustentaram a modernidade, não terminaram somente em conseqüência daquelas catástrofes; elas também se tornaram impraticáveis por ter chegado ao fim o imperialismo eurocêntrico (na pratica política) e ter se esgotado, por motivos teóricos, a hegemonia dos sistemas historicistas (positivismo, idealismo marxismo etc.) nos quais, ainda que freqüentemente de forma remota, se inspiravam os milenarismos revolucionários. (pag. 56-57)

Do ponto de vista da nossa herança judaico-cristã, me parece que as teologias do totalmente outro não levem suficientemente em considerações a fé no dogma da encarnação, mesmo quando se professam cristãs. E com base nesta fé que Gioacchino da Fiore , ao contrario , constrói a sua teologia da historia.

Se, como venho tentando argumentar interpretarmos o fim da modernidade em termos que evitem a retomada da metafísica objetivista torna-se então possível extrairmos do ensinamento de Gioacchino da Fiore uma imagem de religiosidade pós-moderna. Ao pensamento pós-moderno o ser se dá como anuncio que provém de uma tradição da qual ele é herdeiro, de um “envio”, como diz Heidegger; e pretendo mostrar que existem boas razões para acreditarmos que este envio pertença a historia da salvação tal como ele concebe Gioacchino da Fiore, e tenha os traços daquele que ele dominou inicio da idade do Espírito.

Por que, porém, idade do Espírito? Gioacchino chegou a este conceito impulsionado, sobretudo pela exigência de estimular uma reforma na Igreja de sua época, que ele queria ver menos envolvida nas contendas terrenas e que, para que pudesse preparar o cumprimento da salvação, deveria constituir, finalmente , “um único rebanho com o único pastor”, a partir da conversão de todos os povos, principalmente dos hebreus , ao cristianismo. Em sua opinião, a reforma da Igreja dependia de uma nova interpretação “espiritual” da Escritura; espiritual, acima de tudo, porque mais profundamente orientada no sentido da conservação interior e da contemplação e menos interessada nas lutas pelo poder. Gioacchino partia, portanto, de uma releitura da Bíblia à luz da exigência de uma renovação moral/religiosa que ele percebia na Igreja da época. Da nossa parte, reencontramos o ensino de Gioacchino a partir da consideração do fim da metafísica, isto é, do fato de que ser o que, hoje, se anuncia como evento e como destino de enfraquecimento. O fim da metafísica não é “descoberto” pela filosofia de forma autônoma; ao menos, se é que valem as observações que fizemos nas duas anteriores , o próprio fato de que a filosofia (ou uma parte não marginal dela) chegue a pensar o ser como evento e como destino de enfraquecimento é um sinal de que ainda permanece viva, em seu interior , a herança da mensagem judaico-cristã. Em termos muito sumários, o que ocorre na filosofia com o fim da metafísica é parte da historia da salvação tal como a formula Gioacchino: é um momento da “terceira época”. Já disse repetidas vezes que não tenciono seguir Gioacchino da Fiore em seu esforço, ainda muito literal e pouco “espiritual”, de prever acontecimentos futuros com base em complicadas leituras simbólicas dos textos das Escrituras. O que me parece ser valido em, seu ensinamento, justamente do ponto de vista da filosofia que se coloca para além da metafísica, é idéia de uma historia da salvação que ocorre hoje como espiritualização do cristianismo. Trata-se, se um lado, de estabelecer o nexo entre espiritualização e enfraquecimento e, de outro, mostrar que a nossa cultura atual manifesta sinais reconhecíveis de uma transformação que pode ser interpretada precisamente em tais termos.

Todavia, estas duas passagens não podem ser feitas em uma sucessão rígida. Para que fosse possível compreender que o enfraquecimento do ser, ao qual se refere o pensamento pós-metafísico, é um fenômeno de “espiritualização” do sentido da Escritura, já evoquei a secularização que caracteriza o mundo moderno. Se partirmos, mais uma vez, de um dos textos básicos para a descrição da modernidade em termos de secularização, ou seja, da obra de Max Weber. A ética protestante e o espírito do capitalismo, podemos observar que nela a relação entre o capitalismo e a ética cristã é uma relação de aplicação interpretativa e não de abandono ou oposição polemica. Segundo Weber , o capitalismo só pode ser explicado como conseqüência da realização daqueles princípios éticos. O sentido em que emprego o termo secularização é exatamente este: uma aplicação interpretativa da mensagem bíblica que o desloca para um plano que não é estreitamente sacramental, sagrado, eclesiástico. Quem quer que sustente que este deslocamento de planos é uma traição à mensagem, defende obviamente uma interpretação literal da doutrina cristã a qual podemos, legitimamente, opor a idéia de secularização como interpretação “espiritual”. O modelo “weberiano” pode ser estendido a qualquer relação da modernidade com o texto bíblico que, afinal, durante muitos séculos foi também , explicitamente , a referência suprema para toda vida a interpretação ocidental do mundo, desde a política até a vida familiar e a própria ciência natural (pensemos na disputa relativa ao heliocentrismo ou na questão do evolucionismo). Esta centralidade da Bíblia foi mais tarde atenuada pelas grandes lutas de emancipação da razão moderna. (pag. 58-60)

As dificuldades que se colocam ao reconhecimento desta proximidade, ou antes, identidade, entre historia profana e historia sacra são bem facilmente associáveis à persistente predominância de uma interpretação “literal” da Escritura. Em resposta à hipótese que foi aqui proposta, o espírito leigo imediatamente objetaria que, na verdade, foram às igrejas cristãs, e novamente sobretudo a Igreja Católica , a contrastarem justamente as realizações da modernidade que acabei de lembrar, começando pela hipótese heliocêntrica até as constituições republicanas. Todavia, como mostra o exemplo por demais conhecido Galileu, estes comportamentos da Igreja se inspiraram em uma interpretação literal e, por isto mesmo, autoritária do texto bíblico. Da mesma forma, quando a Igreja ainda hoje condena como fossem abandonos ou traições tantos fenômenos de secularização da vida individual e social, continua a evocar uma interpretação literal da Escritura. Em certos casos, isto é feito de uma forma tão evidente que chega a parecer absurda: basta pensarmos na recusa às ordens sacerdotais para as mulheres , uma recusa que tem por único fundamento o fato de que Jesus escolheu apenas homens para a formação de seu grupo de apóstolos. No que se refere a este exemplo, que hoje tem boas razões para estar no centro do debate inclusive em muitos ambientes católicos, se pode ver que o “rigorismo” é, no fundo, simplesmente uma ligação com uma cultura historicamente determinada e falsamente assumida como “natureza”: o que fez com que Jesus escolhesse apenas homens como apóstolos, e o que hoje ainda motiva a recusa do sacerdócio feminino na Igreja Católica, é a condição de inferioridade social da mulher que, se era geral e “obvia” no tempo de Cristo, nos nossos dias é um simples resíduo ou passado assumido como se fosse uma norma eterna da natureza.

O primeiro sentido, portanto, no qual, segundo a minha hipótese, devemos entender a nossa época como uma idade da interpretação espiritual da mensagem bíblica, é que nela a presença ativa da herança cristã só pode ser reconhecida se for abandonada à interpretação literal e autoritária da Bíblia. Insisto no mesmo exemplo porque ele me parece ser absolutamente emblemático. Não creio que existam duvidas quanto ao fato de que desejo das mulheres de ter acesso ao sacerdócio seja mais cristão do que a sua resignação em renunciar a ele de que, em geral, isto deva ser interpretado como um fenômeno positivo de extensão das vocações sacerdotais. Entretanto, a Igreja Católica não o entende desta forma, pois não consegue se libertar do rigorismo histórico da escolha dos primeiros apóstolos. Analogamente, se colocarmos finalmente de lado o rigorismo na leitura da Sagrada Escritura, poderão ser reconhecidos como genuína historia da salvação tantos aspectos do mundo moderno e da nossa contemporaneidade que, para uma mente rigorosamente “ortodoxa”, parecem ser puros fenômenos de abandono e distanciamento da religião. Enfim, até o popular de religiões marginais e de seitas heterodoxas ou sincretistas, que se difundem hoje em várias partes mesmo do mundo ocidental avançado, pode ser visto sob este prisma. As igrejas oficiais, de maneira geral, tendem a condenar estes fenômenos religiosos como aberrações ou até fraudes, mas talvez seja o caso de os levarmos em consideração de forma mais tolerante e aberta. Em resumo, quer os muitos aspectos da “irreligiosidade” da sociedade leiga, quer outros tantos da religiosidade espúria e marginal mudam de feição e de valor se os considerarmos fora do quadro rígido da interpretação literal e autoritária da Bíblia.

Naturalmente, há que se perguntar até que ponto pode chegar à aceitação da secularização. Não haverá mais nenhuma distinção entre interpretações legítimas e interpretações aberrantes da mensagem cristã? O critério que a tradição cristã nos indica, a começar por santo Agostinho, é ama et fac quod vis. O único limite para a espiritualização da mensagem bíblica é a caridade, justo aquela caridade que também para Gioacchino da Fiore deveria caracterizar a terceira época da historia da salvação. Este não é, de forma alguma, um critério genérico e vago. Pensemos, ainda uma vez, na grande pregação moral da Igreja Católica atual: por exemplo, uma ética sexual que esteja atenta ao amor e não somente presa as estruturas tradicionais da família, não dominada pelo principio da reprodução, é algo que, certamente, não fere o mandamento da caridade e, no entanto, o ensinamento eclesiástico continua a se opor a ela por meio de uma disciplina fundada na letra de certos textos bíblicos (a destribuição de Sodoma e Gomorra, por exemplo) e de uma metafísica da “natureza” que não tem mais lugar na filosofia, pois equivale mais ou menos a doutrina aristotélica dos “lugares naturais”.

Uma leitura mais espiritual do texto bíblico, e dos dogmas cristãos de forma geral, parece ser hoje uma demanda que serve não apenas para reconhecer a essência profundamente religiosa de tantos aspectos da sociedade secularizada, mas também para tornar possível o dialogo ecumênico das igrejas cristã entre si e delas com as outras religiões. O reconhecimento de direitos iguais para as culturas outras, que no plano político ocorreu com o final do colonialismo e no plano teórico com a dissolução das “metanarrativas” eurocêntricas, no caso das igrejas cristãs exige o abandono dos comportamentos “missionários”, isto é, da pretensão de levar das outras religiões, que começa a se fazer sentir em vários teólogos cristãos (estou pensando em personagens “incômodos” como Hans Kung, por exemplo), requer um esforço intensificado para desenvolver a leitura espiritual da Bíblia e também de tantos dogmas da tradição eclesiástica, de maneira a que se possa colocar em evidencia o cerne da revelação, ou seja, a caridade, mesmo a custa, obviamente, do enfraquecimento das pretensões de validade literal dos textos e de peremptoriedade do ensinamento dogmático das igrejas. (pag. 61-64)

Paul Ricoeur intitulou uma sua famosa obra O conflito das interpretações. Este título, indo muito alem das intenções de Ricoeur, pode ser usado para indicar a essência mesma do mundo da tardia modernidade. Afinal, a filosofia hermenêutica que o próprio Ricoeur evoca naquela obra, em sua versão mais radical, poderia ser sintetizada na frase de Nietzsche: “Não existem fatos, apenas interpretações”. Conscientes como estamos – pelo menos desde Nietzsche e Heidegger – de que cada nossa relação com o mundo é “mediada” (os epistemólogos pós-analíticos diriam theory ladden) por esquemas culturais, por paradigmas históricos que constituem os verdadeiros apriorismos de qualquer conhecimento, não podemos mais nos iludir (ou, pior, nos deixarmos iludir) de que aquilo que dizemos e que nos é dito sejam descrições “objetivas” de uma realidade dada externamente. A idéia de um destino de enfraqueciemnto que está inevitavelmente escrito na historia do ser pretende interpretar justamente esta situação: uma realidae concebida como jogo de interpretações e não (mais) como presença estável de coisas definidas em si mesmas que a mente tem por tarefa simplesmente espelhar objetivamente é, em muitos sentidos, uma realidade enfraquecida. Se, além disso, como corre com muitas posições filosóficas atuais, a verdade passa a ser pensada não mais como adequação do intelecto à coisa (descrição fiel de estados de fato) e sim como plausibilidade e persuasão no interior de um sistema de premissas (ou da comunidade dos interpretes de competência), também aqui estamos diante de um fenômeno de enfraquecimento e poderíamos até mesmo entender a centralidade, que o consenso dos interpretes adquire na definição da verdade, como sendo uma forma de emersão da caridade no lugar do próprio valor tradicional do verdadeiro.

Segundo esta maneira de entendermos a pós-modernidade, a espiritualização assume o significado daquele enfraquecimento das estruturas fortes do ser que parece resultante do triunfo da técnica em nosso mundo. A técnica era de inicio, uma tecnologia do motor e, portanto, uma capacidade mecânica, que tornou a realidade mais leve na medida em que permitiu que o trabalho manual fosse menos gravoso. Hoje, ela é, principalmente, uma tecnologia da informação que enfraquece a realidade ao mostrá-la, cada vez mais explicitamente, como um jogo de interpretações. (pag.65-66)

Ao se ver diante da tarefa de aliviar o peso da letra da Bíblia e dos dogmas, com o objetivo de entender a verdade das outras religiões, o pensamento cristãos descobre realmente, que a única coisa que conta é a caridade; de fato, somente a caridade constitui o limite e o critério da interpretação espiritual da escritura. Analogamente, o pensamento filosófico, quando percebe que a historia do ser se revela, na época do fim da metafísica, como destino de enfraquecimento (com a realidade que se “reduz” a conflito, ou jogo, de interpretações), se conscientiza de que este destino é também o único fio condutor ao qual pode fazer referencia ao avaliar a plausibilidade das interpretações e, sobretudo, ao decidir quanto às opções morais. Não existe nem o fundamento metafísico último e indiscutível – ao qual, depois de Nietzsche, Freud, Marx, Heidegger, não mais podemos ser fiéis – nem a voz da razão kantiana que fala em todos os homens da mesma forma: a antropologia cultural nos advertiu quanto à irredutível pluralidade das culturas. Para interpretarmos o mundo e avaliarmos as alternativas éticas só podemos fazer referencia ao apelo que nos é oferecido pela historia no qual já estamos sempre envolvidos: um apelo que não fala em uníssono, que não é absoluto, e que nos empenha como intérpretes. Decidirmos interpretar a nossa proveniência como destinada ao enfraquecimento já é certamente uma maneira de assumirmos de modo explicito a herança judaico-cristã que trazemos em nós. Todavia, a afirmação desta herança também é uma interpretação: e daí? Estamos dispostos a abandoná-la caso alguém nos proponha uma outra melhor, porém não renunciaremos a ela com base no argumento “realista” de que ela seja “somente” uma interpretação.

Não em proponho a desenvolver aqui, de forma detalhada, as conseqüências éticas da leitura da historia do ser como enfraquecimento. Estas não se limitam a fundar uma escolha pela tolerância, mas promovem um empenho ativo em prol da redução da violência em todas as suas formas, o que no final se revela um sinônimo do que as linguagem religiosa chama de caridade; atestando, mais uma vez, não apenas uma analogia e sim um verdadeiro parentesco, como proveniência, entre a filosofia pós-metafísica e a herança cristã.

O reconhecimento deste parentesco esbarra, contudo, justamente nas questões ultimas, ou seja, no problema da escatologia. (pag.66-67)

O enfraquecimento do ser em direção ao qual, segundo a minha hipótese, está orientada a história da nossa civilização, parece poder se configurar como uma historia de salvação como acontecimento que prepara a transferência do real para o plano das qualidades secundarias, do espírito, do ornamental: talvez, até mesmo, do virtual. Se assim fosse, anteveríamos, também, o sentido “espiritual”, não puramente literal, daKénosis do verbo divino, que não se humilha apenas para tornar mais compreensível o seu ensinamento e depois voltar, na sua plenitude e majestade, a preparar-nos a vida terna prometida somente para o além. Apesar de toda a sal autentica fidelidade a igreja da época, Gioacchino não fala muito a respeito de uma passagem que, após a terceira idade, nos conduziria a salvação em um outro mundo. Se, por um lado, ele não nega a imortalidade da alma, a vida eterna lhe parece ser definível apenas nos termos da idade do espírito; esta idade, portanto, não é mais uma simples preparação para algo diverso e a historia do mundo não é somente um tempo de prova que deve terminar com a destruição da ordem natural e a passagem para o “sobrenatural”.

Muito embora a filosofia não tenha instrumentos para decidir a questão da imortalidade, está pelo menos claro que depois do final da metafísica ela não fornece mais nenhum tipo de suporte (como aquele que Santo Tomás encontrava em Aristóteles) para falar em natural e sobrenatural. O filosofo, como qualquer homem religioso, pode apenas esperar que a ida não acabe com a morte do corpo, e tal esperança não é desprovida de razão na medida em que não existem mais limites “metafisicamente” certos para a natureza (aqueles que, segundo alguns, excluíam a sobrevivência da alma individual). Quer se realize aqui quer para além da morte, a salvação sobre a qual nos fala a revelação judaico-cristã, interpretada “espiritualmente” com base nas indicações de Gioacchino ou à luz do final da metafísica, se configura como uma suavização e um enfraquecimento das estruturas “pesadas” em meio às quais o ser se “deu” no passado da civilização humana. (pag.68-69)

O estágio de civilização ao qual chegamos – com a tecnologia mecânica e informática, com a democracia política e o pluralismo social, com a disponibilidade universal dos bens necessários a garantir a sobrevivência – nos oferece a chance de realizarmos o reino do espírito entendido como suavização e “poetização” do real. Digo que oferece a chance. Seu muito bem que esta poetização é, por enquanto, de todo imaginária. Mesmo quando Gioacchino falava sobre o inicio da idade do espírito, ele previa que fosse necessária uma dura luta para que ela se realizasse de fato em seu mundo. Assim, a espiritualização, que hoje está ao alcance de nossas mãos, pelos no plano das possibilidades técnicas e da evolução das idéias, requer uma cação concomitante que não se apresenta como algo fácil. A aparência da facilidade e de desempenho moral que poderia suscitar está ligada ao fato de que o ideal de salvação, ou de emancipação, que prefigura tem fortes conotações estéticas e poéticas. Todavia, estas conotações são as únicas capazes de preencher a figura, que de outra forma ficaria vazia, da “conclusão” da aventura humana, qualquer que seja a conclusão que queiramos imaginar: ou seja, quer a pensemos como o télos da emancipação que dá sentido a vida de cada um de nós concebida dentro dos limites do nascimento e da morte terrenos, quer a pensemos como uma condição que será atuada na vida eterna após a morte. Mesmo neste segundo caso – assim nos ensinou Gioacchino e assim, também a concebe a (minha) filosofia – a salvação deve ter inicio aqui, caso contrario toda a historia da sua preparação perderia o sentido, o jogo seria confiado a uma divindade transcendente independentemente da nossa capacidade de relacionamento – sobre a qual, portanto, seria melhor que nem sequer falássemos (pag.70-71)

Se não respondemos apelo de emancipação estética que a nova condição de existência nos propõe é apenas porque ainda estamos por demais oprimidos pelo peso da “letra” – tanto do rigorismo dos textos sacros (fetiche dos fundamentalistas de todo tipo) quanto da letra da materialidade do mundo, das necessidades insatisfeitas e das injustiças cometidas na distribuição dos bens indispensáveis a vida. (pag.72)

Segunda Parte

4

Historia da salvação historia da interpretação

O que pretendo sugerir com o titulo é que a situação de partida na qual nós (por mais problemático que seja este nós) nos encontramos, a precompreensão na qual, assim que tematizamos a coisa, percebemos que já estamos inseridos, é aquela de uma relação entre estes dois termos, mais estreita e, ao mesmo tempo, também mais vaga e esfumada do que poderia ser sugerido por uma relação de identidade ou pela simples paráfrase. (pag.76)

A interpretação – acima de tudo aquela dos textos sacros – obviamente sempre esteve relacionada, na tradição judaico-cristã, a salvação (pag.77)

Para nos salvamos é necessário que compreendamos a palavra de Deus na Escritura e a apliquemos corretamente a nossa condição e situação (subtilitas applicandi). Não só: é igualmente necessário interpretá-la de forma a que não se choque com a razão, suando, portanto as nossas faculdades para respeitar profundamente a palavra de Deus e evitar que lhe sejam atribuídos significados aberratórios (pag.77)

Em um segundo sentido, contudo, na tradição cristã a salvação e a interpretação estão ligadas: é aquele que conecta Jesus aos profetas e que pode ser encontrado no novo Testamento em pressões do tipo: “Ouvistes o que foi dito [...]. mas eu vos digo [...].” (pag.77-78)

O evento da salvação (a vinda de Jesus) é ele próprio, intimamente, um fato hermenêutico. Todavia, pode-se dizer que ele é hermenêutico somente até certo ponto: é verdade que Jesus é a interpretação viva do sentido da lei e dos profetas (eis aqui um outro significado do logos que se faz carne: se encarna o logos, o sentido, do Antigo Testamento...), mas, de certa forma, também é o seu cumprimento e, decifração – como se, depois, não houvesse mais espaço e nem necessidade de interpretação. Entretanto, muito embora a salvação esteja essencialmente “completada” com a encarnação, paixão, morte e ressurreição de Jesus, ele ainda espera uma complementação ulterior (bastaria que pensássemos, aqui, em todos os acontecimentos da chamada escatologia conseqüente), e o Paracleto, o espírito de verdade que é enviado aos fieis em pentecostes, tem exatamente por tarefa assisti-lo nesta ulterior empresa hermenêutica. É preciso não esquecermos que o Espírito (que também é aquele que vivifica o texto, o sentido verdadeiro da “letra”), ou seja, a pessoa mais deliciosamente” hermenêutica” da Trindade – ela própria estrutura hermenêutica por excelência, pois, de fato, nela o Filho é o logos do Pai e o espírito é a sua relação, a hipótese do seu amor-compreensão – é também aquele por obra do qual o Filho se faz homem no ventre de Maria (pag.78)

A interpretação, e também a salvação, tem uma historia que não é somente um acontecimento acidental que passa sobre ou ao lado do seu cerne estavelmente dado, mas as afeta profundamente em um sentido que podemos expressar ao evidenciarmos o significado “objetivo” do genitivo nas duas expressões: a salvação se forma se dá, se constitui, na sua historia e, igualmente, com um giro de conexões difícil de ser contido em um esquema, na história da interpretação. É verdade que o anuncio da salvação é dado de forma definitiva – nos contornos, em Jesus – mas também é verdade que este seu dar-se precisa das interpretações que o recebam, o atualizem e o enriqueçam. (pag.79)

Este evento hermenêutico me parece coincidir com aquele fenômeno que em linguagem heideggeriana chamamos de fim da metafísica no mundo da ciência técnica. De forma sumária, mas nem tanto, lembrarei que Heidegger chama de fim da metafísica a ciência moderna na medida em que esta liquida definitivamente a idéia de que o ser seja aquilo que se dá indubitavelmente como presente. Na ciência experimental, e depois, na universal (pelo menos tendencialmente, e em linha de máxima), manipulação tecnológica do mundo que ela tornou possível, a presença verificada e indubitável da coisa se torna explicitamente efeito de representação; a certeza do objeto é, portanto, mero efetivo da verificação operada pelo sujeito. Entretanto, quando chegamos a este ponto, desenvolvendo coerentemente as premissas já contidas na metafísica clássica, então, passa a ser impossível identificarmos o ser com a presença.

Muito embora Heidegger não vá além desta negação, isto é, da percepção da abertura de uma diferença radical entre o ser e o ente presente, é fácil constatarmos como e por que a sua ontologia esteja também na base (na sua obra e naquela de todos que o evocaram) daquele vastíssimo endereço de pensamento que se chama de hermenêutica, e que se tornou uma espécie de verdadeira koiné, “lugar-comum”, da cultura contemporânea. Somente se desmentirmos a identificação do ser verdadeiro com o que se dá, de forma completa e indubitável, na presença, é possível atribuirmos um significado não puramente acidental, instrumental e secundário a interpretação.

A ontologia de Heidegger, contudo, e também a hermenêutica que dela depende, tem algo a ver, de alguma forma, com a historia da revelação cristã? Tratar-se-á, no fundo, apenas do fato de que a problemática hermenêutica se desenvolve na cultura européia, sobretudo principalmente relacionada ao problema da leitura e interpretação da sagrada escritura como é fácil vermos simplesmente refazendo a trajetória da historia das teorias da interpretação? Este fato, porém, encerra um outro bem mais vasto, que pode ser formulado nos seguintes termos: se não deseja ser contraditória com relação as suas próprias conclusões, uma ontologia, tal como aquela de Heidegger, não pode, por sua fez, se apresenta como descrição de uma estrutura “objetiva”, ou seja, presente, dada, do ser. La, pelo contrário, deverá necessariamente afirmar a si mesma como “interpretação”, isto é, como resposta a uma mensagem, a uma “leitura” de textos, repostas a um “envio” que provém da tradição. (Termos tais como envio tradição etc., são como é sabido, centrais na filosofia que se costuma denominar “segundo Heidegger”). Bem, mesmo divergindo um tanto da escrita dos textos heideggerianos, que a este respeito são bastante obscuros, no fundo, reticentes não-conclusivos (pelo menos a meu ver), o envio ao qual a ontologia pós-metafísica co-reponde e, justamente, a tradição da civilização ocidental. (pag.82-83)

O problema é que é necessário vermos os vários processos de secularização ocorridos na modernidade não - a maneira de Hans Blumenberg, por exemplo, e em boa parte da historiografia de inspiração iluminista, mas também católica (Del Noce) – como processos de distanciamento da matriz religiosa, e sim como processos de interpretação, aplicação, especificação enriquecedora, daquela matriz.

Um desses processos de secularização “positiva” da mensagem cristã é exatamente aquele que Heidegger chama de fim da metafísica na ciência – técnica moderna e a abertura da diferenciação ontológica entre ser e ente, aquele que dá lugar também a “descoberta” da produtividade da interpretação. (pag.84-85)

A consciência cada vez mais aguda da historicidade do paradigma cientifico coloca a epistemologia contemporânea em condições de reconhecer e da historia da salvação: não existe verdade fora de um horizonte aberto por um anúncio, por uma palavra transmitida. (pag. 85)

Aqueles que delineamos até aqui são apenas os primeiros passos no caminho de uma escuta do sentido da vírgula que liga os dois termos do título deste texto. A ontologia hermenêutica (que tematiza explicitamente a produtividade da interpretação) e o fim da metafísica da presença como êxito da ciência técnica moderna resultaram da ação da mensagem cristã na historia da civilização ocidental; são interpretações secularizantes desta mensagem, mas em um sentido positivo-construtivo do termo. Seria necessário acrescentarmos aqui que a secularização não é um termo que se choque com a essência da mensagem e sim um aspecto constitutivo: como evento salvífico e hermenêutico, a encarnação de Jesus (akénosis, o rebaixamento de deus) é ela mesma, acima de tudo, um fato arquetípico de secularização. (pag.85-86)

Na verdade, é até por demais obvio que uma vez liquidada a metafísica da presença, a interpretação “boa”, válida, não mais poderá, absolutamente, se configurar como aquela que toma “fielmente” (literalmente, objetivamente etc.) o texto.

O que “produz” a interpretação produtiva? Produz o ser como novos sentidos da experiência, novos modos de dar-se do mundo, que não são simplesmente outros relativamente aqueles dados “antes”, mas se acrescentam a eles em umdiscursus cuja “lógica” (também no sentido do logos) consiste inteiramente na continuidade. Uma tal continuidade – desejo ser breve – não possui nenhuma medida objetiva, se “reduz” (mas se tratará de uma redução?) a uma persuasão retórica, ad homines. Não é qualquer secularização que é boa e positiva e nem qualquer interpretação é válida; é preciso que pareça para uma comunidade de intérpretes. (pag.86)

Usando uma linguagem mais explicitamente espiritual, poderíamos dizer que o único limite para a secularização é o amor, a possibilidade de comunicação com uma comunidade de interpretes. Não seria um paradoxo afirmarmos que a historia de hermenêutica moderna, da qual foi um momento extremamente relevante a Reforma protestante, é igualmente um longo caminho de redescoberta da igreja. Naturalmente, é significativo, também para a igreja, pelo menos nas minhas intenções aqui, o fato d que se reconheça a sal centralidade com base no fim da metafísica da presença e no advento de uma ontologia hermenêutica. Mesmo no modo de conceber e viver a igreja como comunidade “de referência” para a validade e continuidade da historia da interpretação, continuamente se reapresentam certas tentações de tipo “metafísico”, que tendem a recair nos horizontes da presença. (pag. 87)

A metafísica da presença é substituída, pela ontologia hermenêutica, por uma “concepção” do ser da qual é parte essencial esta conotação dissolutiva; o ser não se dá de forma definitiva na presença, mas acontece como anuncio e cresce nas interpretações que o escutam que a ele correspondem, sendo, também, um ser orientado para a espiritualização, para a suavização, ou, o que é a mesma coisa, para a kénosis. É muito provável que a ontologia hermenêutica, que nasceu da dissolução da metafísica da presença, não seja apenas uma redescoberta da Igreja, mas, também e, sobretudo, uma retomada do sonho de Gioacchino da Fiore. (pag.87-88)

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O ocidente ou a cristandade

A tese da legitimação nova e totalmente autônoma da modernidade implica, por sua vez, uma dose excessiva de confiança na possibilidade do novo radical e uma enfática acentuação da criatividade, originalidade, liberdade absoluta do homem: todos dogmas, ou talvez mitos, modernos, mas, portanto, internos a época sobre cuja origem deveriam explicar e que parecem ser bem pouco óbvios no momento em que a modernidade aparece para muitos como uma longa fase conclusa ou, no mínimo, problemática em seus valores constitutivos. (pag. 92)

O que significa, portanto, no que implica como conseqüência teóricas e, eventualmente, “práticas” (no sentido do juízo relativo a condutas históricas, opções políticas, escolhas morais etc.) a tese de que o ocidente é cristianismo secularizado? Notamos que, se vale o que disse acerca da validade a ser reconhecida, em um quadro consciente do círculo hermenêutico, as duas teses da alternativa, do aut aut, a afirmação indica, também, que o Ocidente é cristianismo secularizado e nada mais. Em síntese: se quisermos falar do Ocidente, da Europa, da modernidade – temos que, para o nosso discurso, têm o valor de sinônimos – bem como de entidades histórico- culturais reconhecíveis e caracterizadas, a única noção que podemos utilizar é justamente aquela da secularização do patrimônio judaico-cristão. No momento em eu o ocidente não pode mais ser definido apenas como a alternativa ao império do mal do totalitarismo comunista e tenta reencontrar, de modo autônomo e positivo, a sua própria fisionomia, o que encontra é sua origem cristã sob a forma de uma herança, certamente transformada e “a deriva”, e que, no entanto, é ainda tal a poder constituir o seu único elemento de identificação. (pag.94)

Trata-se, antes de mais anda, de compreender radicalmente que a equivalência significa duas coisas: a) o Ocidente, no momento em que – também e, sobretudo, graças a elementos políticos já lembrados, a queda do inimigo comunista e, ao mesmo tempo, a guinada econômica e política para a construção da Europa unida – sente a exigência de afirmar uma sua identidade cultural, não encontra outro elemento de unificação e identificação a não ser uma comum origem cristã, na forma secularizada, que exatamente neste sentido se reflete nas teses do aut aut (que, portanto, tem razão do ponto de vista dos conteúdos que desejam fazer valer, enquanto erram no sentido complexo que atribuem a modernidade, ao pensá-la como alternativa radical ao cristianismo); b) a nova vitalidade do cristianismo, ou seja, aquela que, em muitos sentidos e com justa razão, é indicada como sendo o verdadeiro renascimento religioso de nossa época, pode ser tão-somente uma redescoberta do cristianismo como Ocidente e nada mais. (pag.95)

O que são na verdade a Europa ou o ocidente ou a modernidade senão, acima de tudo, civilizações da racionalidade cientifica econômica e tecnológica? Esta racionalidade, contudo, tal como nos ensinou Max Weber, e tal como já repetimos ao infinito, não se realizou em nenhuma outra cultura do planeta, mesmo quando presentes todas as outras condições materiais, porque somente no Ocidente agia a tradição religiosa judaico-cristã. (pag. 96)

O que pretendo afirmar é que o Ocidente é essencialmente cristão na medida em que o sentido da sua historia se mostra como o “crepúsculo” do ser, o enfraquecimento da dureza do “real” através de todos os procedimentos de dissolução da objetividade que a modernidade trouxe consigo. (pag.98)

O que talvez possa se constituir em um problema é o fato de chamarmos de secularização também o desenvolvimento “pós-moderno” da deriva, descrita por Weber, na direção daquele enfraquecimento do sentido da realidade e da própria noção de verdade a qual acenei antes. (pag.100)

Tal hipótese é, sumariamente, a seguinte: se o Ocidente procura a própria identidade, acaba tendo que se confrontar principalmente com os fenômenos que assinalei, ou seja, a racionalização capitalista weberiana mais i mundo da informação da interpretação sem centro, proliferador. Que tende a enfraquecer o próprio sentido de termos como ser e realidade. Bem, este conjunto de fenômenos, a meu ver, só pode ser compreendido de maneira unitária se o considerarmos um grande fenômeno de secularização do conteúdo da tradição judaico-cristã. (pag.100)

Assim, trata-se tanto de continuarmos no caminho aberto por Weber, quanto de colocarmos em evidencia o fato de que uma sociedade da comunicação e da interpretação sem limites se configura como o prosseguimento lógico de um mundo que tem por base a Escritura e que se desenvolve, acima de tudo, como exegese. Todavia, igualmente, e mais teologicamente, é possível evidenciarmos, através de uma leitura radical da Encarnação como Kénosis, que o enfraquecimento do ser é um dos possíveis sentidos, senão o sentido em absoluto, da mensagem cristã que fala de um deus que se encarna, se rebaixa, e confunde todas as potências deste mundo... (pag. 101)

Muito embora o catolicismo tenha sempre ensinado que as fontes de revelação são a Escritura e a tradição, e tenha, portanto, reconhecido sempre, em linha de máxima, que a revelação continua e se enriquece (mas até certo ponto) na fé Ivã da comunidade, na pratica, ele sempre restringiu muito os confins da comunidade, identificando a Igreja com a organização hierárquica guiada pelo papa e pelo bispos e definida pelo respeito da Escritura. Em nome desta visão da comunidade, hoje a Igreja Católica está bem longe do reconhecimento dos elementos de religiosidade “leiga” que se anunciam na cultura do Ocidente e, antes, contrapõe a estes uma desconfiança que se manifesta na aceitação, não necessária, de uma concepção rigidamente disciplinar da pratica cristã (estou pensando, obviamente, na moral sexual, que pretende evocar a “lei da natureza” etc.). Todavia, se como creio, reconhecemos (juntamente com Novalis, por exemplo) que a verdade da revelação está contida in nuce na Escritura, porém cresce e se enriquece na experiência da comunidade, deveremos, provavelmente, continuar no mesmo caminho de Novalis: a comunidade cristã não pode ser tão arbitrariamente delimitada com base na letra da Escritura. (pag.103)

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Morte ou transfiguração da religião

Eis aqui delineados, portanto, mesmo que aproximativa e vagamente, como o são todas as precompreensões no limite das quais se move a nossa apropriação interpretativa do mundo, os dois “fatos” característicos da nossa cultura sobre os quais pretendo refletir. De um lado, o renascimento da religião na cultura comum, configurado como escuta renovada do ensinamento da Igreja, como necessidade de verdades definitivas, como desejo de reencontrar a própria identidade também e acima de tudo, com relação à transcendência. De outro, a derrocada das razões filosóficas do ateísmo, na qual a filosofia, por enquanto, deveria começar a refletir, principalmente em função do primeiro fato a que me referi. O renascimento da religião na cultura contemporânea não pode deixar de representar um problema para uma filosofia que se habituou a não mais considerar relevante a questão de Deus. Esta filosofia, dizia, com o fim das metanarrativas, viu desaparecerem também as razões do seu tradicional ateísmo ou agnosticismo; porém, parece ser quase fatal que, em tal situação, se quiser estar atentar as razões da atualidade – ou seja, no fundo preocupada em “salvar os fenômenos”, em fazer justiça à experiência – deverá tomar ciência do renascimento da religião na consciência comum e das boas razões que motivaram este renascimento. É justamente isto p que acontece, a meu ver, em tantos aspectos do reflorescimento da chama “cultura de direita” em alguns países ocidentais, como a Itália. Aqui, a esquerda não é mais cultura hegemônica, como o foi durante muito tempo mesmo em épocas de predomínio político democrata-cristão. E a renovada popularidade da religião, juntamente com a retomada política dos partidos de direita, é geralmente interpretada como um motivo para liquidar também a herança cultural da modernidade e, portanto, antes de mais nada, do odiado iluminismo e, mais amplamente, de todo o tipo de pensamento crítico. (pag.110-111)

A minha tese é que, se a filosofia reconhece que não mais pode ser atéia, deve, também, encontrar em tal consciência a base sobre a qual assumir um comportamento critico com relação ao renascimento da religião e dos seus perigosos traços fundamentalistas. (pag.111)

A metafísica, as metanarrativas terminam, por não serem mais necessárias e críveis, assim como o Deus moral de Nietzsche morre porque os seus próprios fieis o reconhecem como uma mentira supérflua. O processo de dissolução da metafísica é o mesmo que produzir a modernidade e a tarda-modernidade; a tecnologia suaviza a existência de forma a tornar menos angustiante à pergunta sobre coisas últimas; a ciência experimental, que de resto está na base do progresso tecnológico, induz, também , a um pensamento mais sóbrio, mais atento a proximidade do que aos princípios primeiros, cujos resultados se deixam cada vez menos reduzir a unidade de um único fundamento, fazendo com que a metafísica seja, cada vez mais, inverossímil. As estruturas da sociedade se fazem menos rígidas, a comunidade natural se substitui uma sociedade complexa e ramificada com a qual o individuo se identifica de forma cada vez menos imediata. O poder político evolui na direção de formas democráticas, assumindo uma fisionomia menos direta e menos “central”. A própria subjetividade individual, pelo menos desde Freud, aparece com um conjunto compósito onde cada ultimação parece ser provisória e, portanto, se exclui qualquer possibilidade de uma interpretação em termos de fundamento. (pag.113-114)

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Cristianismo e conflitos culturais na Europa

Se hoje constatamos que o cristianismo não mais se apresenta ou pelo menos não é mais considerado com a mesma obviedade de um tempo, como um fator de superação dos conflitos interculturais, é, acima de tudo, por ter desabado a segurança universal da razão ocidental moderna, que, muito embora inconscientemente, era uma tradução secularizada da fé judaico-cristã no plano divino da salvação. Aquela parte do pensamento cristão que sempre considerou esta tradução em termos seculares como sendo uma traição e um abandono da verdade, se compadece do atual naufrágio da “racionalização” ocidental. Todavia, tal naufrágio tem por conseqüência o fato de que o cristianismo hoje tende a se apresenta muito ,mais como um elementos do conflito do que como um fator para a sua superação e conciliação (pag.121)

A tese eu pretendo defender é que: a) hoje existem sinais evidentes do fato de que em muitas comunidades cristã (nas diversas igrejas e confissões) se difunde a tentação de opor ao universalismo comprometido com o eurocentrismo do pensamento e da política ocidental moderna, formas de enclausuramento que vão desde vários tipos de comunitarismo (com a prega de uma certa apartheid das culturas) até o verdadeiro fundamentalismo, não raro aberto a resultados violentos; b) acreditando se subtrair, com isso, aos êxitos perversos do racionalismo moderno, da secularização etc., o cristianismo, na verdade, renuncia a sua missão civilizadora, que poderia recuperar somente reencontrando, em formas certamente não mais evolucionistas e imperialistas, a própria profunda solidariedade com o destino da modernização (pag.122)

Aquilo que – ainda que a fadiga, dada a natureza nem um pouco linear do problema – estou tentando defender é que a dissolução pós-moderna das metanarrativas, ou seja, o descrédito no universalismo da razão, característico da modernidade, conduz também o cristianismo a se sentir como puro e simples elemento interno de um conflito entre culturas, religiões, visões de mundo. (pag.123)

O cristianismo se liberta da sua cumplicidade com os ideais imperialistas da modernidade européia em seguida a uma dura experiência histórica, aquela da revolta dos povos antes colonizados que se rebelam contra seus dominadores “cristãos” também em nome de uma mais autentica interpretação da mensagem evangélica. Mesmo a redescoberta da própria vocação “leiga” – aquela de se apresentar, ante de tudo, como promotor de espaços de liberdade para o diálogo entre religiões, visões de mundo, orientações ideais e culturas diversas – é “imposta” ao cristianismo pelo encontro da sua vocação missionária com experiências históricas novas e inéditas. (pag.125-126)

O outro caminho que se abre para o cristianismo é aquela da recuperação da própria função universalista, acentuando sua vocação missionária como hospitalidade e como fundação religiosa (paradoxal quanto se queira) da laicidade (das instituições, da sociedade civil, da própria vida religiosa individual). Assim, para voltarmos ao exemplo a que me referi há pouco, os cristãos não podem ao mesmo tempo reivindicar o direito de expor o crucifixo nas escolas publicas e assumi-lo como sinal de uma religião particular intensamente dogmática. Ou ainda: pode-se continuar a celebrar o Natal como uma festa de todos, mas não haverá sentido lamentar-se, depois, que se tornou uma festa por demais leiga, mundana priva do seu significado originário. No fundo, a proibição dochador para as moça muçulmanas nas escolas publicas francesas pode ser justificado somente com base no fato de que ai se trata de uma afirmação de identidade forte, uma espécie de profissão de fundamentalismo. O crucifixo, ao contrario, se transformou em nossa sociedade num sinal quase obvio, ao qual se presta menos atenção, que deixa substituir a laicidade, conferindo-lhe apenas uma origem religiosa que se desenvolveu no sentido da secularização. É justamente com base neste seu significado, genérico mais igualmente “aberto” e possibilitador, que ele pode reivindicar o direito de ser aceito como símbolo universal em uma sociedade leiga. (pag.127)

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A mensagem cristã e a dissolução da metafísica

Fora Dostoievski, a linha clássica do cristianismo tendeu a identificar a verdade, enquanto descrição exata e objetiva da “realidade”, com a verdade que é Cristo. Se a verdade tem o poder de nos libertar é porque somente sabendo o que é a realidade podemos nos libertar. (Mas do quê? Não certamente da própria verdade/realidade por mais desagradável e opressiva que ela seja.) A redenção (“Redimisti nos domine, deus veritatis”, diz uma oração do breviário romano) consistiria, portanto, no fato de “ver” o próprio ser tal como é: amor dei intellectualis,se diria, segundo Spinoza. Na verdade, a idéia tradicional de que a vida terna consiste na contemplação de Deus (face a face) foi interpretada em um sentido spinoziano que acaba identificando a beatitude com o perfeito conhecimento da geometria. Teria sido com tal finalidade que a segunda pessoa da Trindade ter-se-ia encarando e se sacrificado na cruz? (pag.130)

Se o niilismo europeu (como diz o famoso fragmento que traz esse titulo escrito a Lenzer Heide durante o verão de 1887) é o fim da crença em uma ordem objetiva do mundo, que justificaria a fidelidade a uma verdade que vá além de qualquer amizade ou inimizade, aquilo que Nietsche não vê (não quer ou não pode ver – sempre por causa das suas próprias inimizades: filho de pastor, crescido a sombra da igreja, como é lembrado em um de seus fragmentos autobiográficos) é que este niilismo não é somente o sentido “nietzschiano” da morte de Deus, mas , igualmente, da morte de Jesus sobre a qual fala o Evangelho. Ou, em outras palavras aquilo de Heidegger denomina fim da metafísica. Este fim, como sabemos, se cumpre justamente, por Heidegger, no niilismo de Nietzsche e no fenômeno histórico/ destinador que a doutrina de Nietzsche reconhece, descreve, anuncia. O niilismo, do ponto de vista nietzschiano/heideggerianos no qual me coloco, é a perda da crença em uma verdade objetiva em favor de uma perspectiva que concebe a verdade como efeito de poder – nos múltiplos sentidos desta expressão: experiência cientifica que realiza o principium reddendae rationis -, sendo o fundamento reerguido sobre a vontade ativa dos sujeitos que constroem a experiência de daqueles que, no quadro de um paradigma, se não arbitrário certamente histórico, o aceitam como válido; ideologia considerada verdadeira por aqueles que pertencem a uma categoria: mentira dos monges, inventada para justificar o poder e a disciplina social. (pag.131-132)

Esta visão da historia do pensamento europeu como historia de uma luta entre, de um lado, o princípio de dissolução da metafísica – interioridade, vontade, certeza do pensamento - introduzido no mundo elo cristianismo e, de outro, a objetividade visual-naturalista (estética) da cultura grega, marca profundamente, como já disse antes, também e sobretudo, a visão heideggeriana da sobrevivência e da dissolução da metafísica. Quero ressaltar, acima de tudo, o fato de que, mais explicitamente em Heidegger, não se trata em absoluto de uma luta entre a verdade “natural” (ou paradoxalmente “objetiva”) da subjetividade cristã e uma metafísica que se revelaria, ao final, uma falsificação desta verdade autentica. O anuncio cristão é mais exatamente um evento histórico, não a revelação, pro parte de Cristo, de uma verdade eterna. Trata-se da luta entre dias possibilidade históricas, ou, poderíamos dizer, entre duas amizades. É isto o que encontramos, também, ainda que em termos diversos, pro exemplo, na krisis de Husserl: a crise das ciências européias não consiste em uma tradição contra uma pretensa essência “natural” da ciência, que a ciência moderna teria abandonado e esquecido; se trata (apenas) de uma falta de fidelidade ao ideal de uma ciência “absoluta” e totalmentefundada (embora talvez exista aqui uma contradição no próprio Husserl), ideal que nasce em um determinado momento da historia e do qual (mas por quê? Somente a ontologia daEreignis de Heidegger poderá justificá-lo) não podemos mais prescindir. (pag.135-136)

Somente Nietzsche e Heidegger, com a sua reconstrução (porque existe uma também em Nietzsche, se penso no capitulo sobre “Como o mundo verdadeiro acabou se tornando fácula” em Crepúsculo dos ídolos) da historia e da dissolução da metafísica, oferecem em fundamento filosófico rigoroso para as teorias mais abertas à caritas como aquelas de Habermas, Lévinas etc. de forma mais clara: a amizade pode se tornar principio, fator da verdade, somente depois do pensamento ter abandonado todas as pretensões de fundação objetiva, universal, evidente. Sem uma autentica abertura ao ser enquanto evento, o outro de Lévinas corre sempre o risco de se ver desprovido do ouro, com maiúscula – mais uma vez uma verdade que “justifica” a amizade por Platão apenas suprimindo-o como individuo. Um discurso análogo parece valer para Habermas, para quem a comunicação não-opaca que funciona como horizonte normativo não está fundada no respeito pelo outro enquanto tal e sim no intento de reduzir o outro e eu mesmo, a uma idéia de racionalidade “transparente” que, se não evoca uma metafísica racionalista do tipo Kantiano, ou antes justo porque a reivindica, é só em ultima instância uma colonização do mundo da vida por parte da racionalidade estratégica que domina a ciência e a técnica. (pag.169)

A pregação cristã da caridade não é apenas, ou não é de forma alguma, uma conseqüência ética, alias edificante, da revelação da verdade “objetiva” com relação a nossa natureza de filhos de Deus. Ela é, muito mais, um apelo que provém do fato histórico da encarnação (histórico sobretudo não tanto no sentido de se tratar de um fato “real” e sim como constitutivo, na sua Wirkungsgeschichte, da nossa existência) e que nos fala de um destino niilista do ser, de uma teologia do enfraquecimento de toda rigidez “ôntica” em favor de um ser onto-lógico - ou seja, do Verbum, Logos, palavra no Gesprachque, enquanto seres históricos somos.

Verdade como caritas e ser como Ereignis, eventos, são dois aspectos estreitamente interligados. O papel central do outro em muitas teorias filosóficas de hoje assume todo o seu significado quando o colocamos no âmbito da dissolução da metafísica, e só sob esta condição evita o risco do puro e simples moralismo edificante, ou puramente “pragmático” (“de qualquer forma é preferível viver em um mundo de amigos...”). Com todas as imprecisões que um Atal conclusão, ainda que provisória, deixa substituir, me parece que justo a partir deste ponto devêramos começar uma reflexão sobre aquilo que resta, não apenas a ser relembrado, mas também a ser feito, dois mil anos depois do evento do cristianismo (pag.140)

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Violência, metafísica, cristianismo

A violência se insinua no cristianismo quando ele se alia à metafísica como “ciência do ser enquanto "ser”, isto é, como saber de princípios primeiros. As razões e as circunstancias desta aliança são varias, a começar pela responsabilidade que a igreja herda como único poder, também temporal, em um mundo perturbado pela dissolução do império romano. Entretanto , havia igualmente, e mais profundamente, a identificação da existência cristã com a existência filosófica concebida à maneira clássica : é elevando-se até o conhecimento do principio primeiro, assimilando-se a ele (na linha Platão/Plotino) que o homem realiza verdadeiramente a própria humanidade. Pensemos em quão pouco essencial parece ser, em uma perspectiva como esta, o mandamento cristão da caridade: o que conta é o conhecimento da verdade , que certamente induzirá a um distanciamento dos bens sensíveis a ponto de reduzir a luta pela sobrevivência e, portanto , o conflito com os outros, sem fazer,contudo, com que esta renúncia à violência tenha significado positivo de uma abertura ao outro.

A idéia de que a moral consiste no respeito à lei natural é filha desta mesma tradição. É, ao mesmo tempo, a pretensão de que a perfeição consista na identificação , de alguma forma, com o primeiro principio, e a convicção de que o principio primeiro se imponha enquanto tal, sem explicações e nem perguntas. Hýbris e submissão se misturam aqui de maneira inseparável , com uma contraditoriedade que mostra o caráter de neurose próprio da mentalidade metafísica – como , justamente, sugeriu Nietzsche. Estamos conscientes de que – de resto, como sempre ocorre quando se reflete sobre a metafísica e sobre sua possível superação – aqui tocamos uma quantidade incontável de cernes teóricos , éticos existenciais , nos quais estamos todos profundamente envolvidos. Até mesmo o factum do imperativo categórico que fala em nós , segundo Kant, pode ser revocado em dúbio nesta análise das raízes metafísicas e violentas da nossa cultura.

Se admitirmos que a idéia da perfeição como elevação ao principio primeiro, como identificação mística com ele (Plotino), é expressão de hýbris e fonte de violência ulterior (a pretensão de impor a lei natural ainda que contra a vontade ainda que contra a vontade dos homens), e que a idéia de que a lei moral possa estar fundada apenas sobre a natureza comofactum, dado para além do qual não se pode perguntar, por ser um modo de pensar contraditório e radicalmente violento (por que não deveria mais perguntar o porquê? E se a lei é a natureza , ela se realiza necessariamente e, portanto, não tem sentido que me seja imposta como um comando), como repensar, realmente a ética e a metafísica cristãs?

A simples colocação destas hipóteses e de suas conseqüentes perguntas já faz balançarem muitas das estruturas mais enraizadas em nossa mentalidade. Como pensarmos a perfeição a não ser como identificação, de alguma forma , com o próprio ser, Deus, o principio supremo? E como pensarmos a metafísica, ou o saber essencial, a não ser com apropriação teórica dos princípios primeiros? Com fundarmos a lei a não ser sobre uma estrutura incontroversa,dada, indiscutível e, enquanto tal, portanto, em condições de legitimar o uso da força?

A dificuldade que temos em responder a tais perguntas é a mesma que, para Heidegger, parece corresponder à insuperabilidade da metafísica , que não pode ser ultrapassada , mas apenas verwunden, aceita, perseguida segundo caminhos irônicos que sabemos ser provisórios. (146-148)

Parece difícil fugirmos a lógica da secularização, como prosseguimento da ação salvífica da revelação cristã, se aceitamos a análise girardiana do sacro natural como violência, do sacrifício como vitimização de um bode expiatório sobre o qual são descarregadas as expressões cruentas da crise mimética. Foi objetado que a idéia do sacrifício como violência não contempla a possibilidade do auto-sacrifício. (pag.148-149)

Não salvação ATRAVÉS da Kénosis, visto que se a glória fosse conseguida somente mediante a humilhação e o sofrimento estaríamos novamente em plena lógica vitimaria. A kénosis não é mio de redenção, é a própria redenção. Esta é, a meu ver, a leitura mais razoável da mensagem da Encarnação. Que é uma leitura “niilista” apenas para quem persiste em pensar o ser com as características metafísica da imponência, da estabilidade, da evidencia plena na presença. Ou seja, com os atributos do auto puro aristotélico, do ser parmenídeo, totalmente o oposto do ser como criação de um deus livre e amoroso. O Deus metafísico que a teologia cristã acreditou dever reconhecer como sua própria base “natural” é também aquele que põe problemas insolúveis quanto à idéia de predestinação; que requer uma teodicéia que jamais esteja impune à ironia do Candide voltairiano; e que, ainda hoje, a ética naturalista, ao mesmo tempo autoritária e ineficaz, do ensinamento pontifício. (pag.149)

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Hos Mé Heidegger e o cristianismo

A historia das relações entre Heidegger e a tradição cristã, e especificamente católica, dentro da qual ele se formou – a ponto de ter sido ajudado nos estudos pelos subsídios do seu bispo, e depois ter sido visto no inicio da sua carreira como uma esperança para o pensamento católico alemão – ainda deve ser amplamente explorada e, talvez, só possa proceder por caminhos novos com base na publicação de outros inéditos, além daqueles que ficara conhecidos recentemente. (pag.151)

A importância da Einleitung não consiste apenas no fato de representar, em muitos aspectos, uma antecipação bastante plena e eficaz de vários temas da Sein und Zeit, e, portanto, da sucessiva elaboração doutrinal de Heidegger. Muito mais significativo me parece ser um outro aspecto que salta aos olhos, isto é, que aqui a temática da Sein und Zeit, e também aquela dão Heidegger mais maduro, que explicita a idéia da metafísica como esquecimento do ser, aparece na sua conexão essencial com a reflexão sobre a experiência cristã. É preciso falarmos em uma conexão ESSENCIAL, sobretudo levando em conta o significado que a palavra Wesen assume, justamente nos textos heideggerianos; no sentido de que os conceitos principais da Sein und Zeit aparecem aqui como inconcebíveis sem a referencia ao EVENTO cristão. A essencialidade desta conexão e, portanto, de caráter histórico/destinador e não recondutível a uma espécie de implicação analítica de tais conceitos no “conceito” de cristianismo. (pag.152)

Quando Heidegger diz no curso que a experiência cristã das origens, aquela sobre a qual ele fala descobrindo-a em Paulo, é a experiência da temporalidade autentica, é difícil não reconhecermos uma confirmação desta segunda hipótese. (pag.154)

Para Heidegger, segundo uma leitura atenta das aulas de 1920, não é possível pensarmos a filosofia a não ser nestes termos cristãos, mas sabendo explicitamente que o evento cristão PE um evento, assumindo plenamente a nossa concreta historicidade sem pulá-la tranquilamente para passarmos a visão da essência, e sim desenvolvendo, ao contrario, estafaktische Lebenserfahrung até a critica da metafísica e ao tema mais tardio da “historia do ser”. Uma tal eventualidade- essencial enquanto destinaria e não enquanto universal no sentido da abstração metafísica – reenvia, provavelmente, a insistência de Heidegger, na analise do texto paulino, quanto a termos como “eghéneto” e “glénesthai” (Primeira Epístola ais Tessalonicenses 1, 5-7). Uma insistência que pode ser vista como a verdadeira explicação para o “salto” lógico entre a primeira e a segunda parte do curso. Se de fato a experiência religiosa cristã poderá ser reconhecida como o modelo (e bem mais, em definitiva) da experiência autentica da temporalidade-daquela que não podemos wesentlich, destinariamente, deixar de reconhecer como sendo a única experiência autentica da temporalidade – isto é porque nós mesmos, que nos empenhamos em estudar fenomenologicamente a experiência religiosa, já estamos “transformados”, já “soubemos” por termos recebido o anuncio. Podemos formular esta observação de muitas maneiras: por exemplo, reconhecendo como um traço constitutivo da experiência religiosa – aquela acessível a nós – o fato dela jamais começar com uma escolha entre religiões diferentes e som como um encontrar-se já em uma tradição, em uma fé, que podemos criticar e até recusar, mas não decidirmos, a partir do zero, se aceitar ou não. Pode ser que este já seja um traço de qualquer tipo de experiência religiosa, mas é indiscutível que no caso do cristianismo um semelhante traço é co relação à historicidade da revelação e, em ultima análise, apropria criação tal como é narrada na Bíblia, muito mais do que um dado antropológico elementar como aquele que vê a religião sempre ensinada dentro da família, juntamente com a língua materna e as primeiras regras de educação. É verdade que o ser transformado sobre o qual Paulo fala aqui é a transformação já ocorrida junto aos tessalonicenses graças a sua pregação: o que eles já sabem aprenderam com ele. Todavia, é evidente que para Heidegger isto tem um sentido mais geral – aquele no qual a temporalidade autentica se revelará como uma tensão entre o “já” e o “ainda não”, que é a estrutura mesma da escatologia cristã. Reduzir o eghéneto a memória pontual do fato da pregação de Paulo, significaria assumi-lo em um rigorismo que Paulo seria o primeiro a recusar (coisa que não podemos deixar de levar em conta enquanto intérpretes), visto que até a sua primeira pregação aos tessalonicenses é o anuncio daquilo que eles já sabem em virtude da redenção de Cristo.

Em que sentido, então, re-conhecer-se naquilo que já somos constitui a base de uma experiência autêntica da temporalidade. (pag.155-156)

A temporalidade autentica da experiência cristã surge como solução do problema, ou pelo menos como um modelo alternativo relativamente e este estar como simples presença no tempo que transcorre linearmente. O eghéneto, o já, que constitui a base sobre a qual a pregação de Paulo em suas epístolas se coloca, é a salvação já ocorrida com a morte e ressurreição de Jesus, que, no entanto é de tal forma apenas um mero evento “passado”, no sentido horizontal/ objetivo do termo, a ponto de ainda não ter sido realmente completada e ser esperada como o evento escatológico da parusia. Façamos atenção, pois, a dificuldade em pensarmos esta experiência da temporalidade cristã não é nada diferente daquela que encontramos na leitura das páginas da Sein und Zeit sobre este mesmo tema, ainda que lá não vejamos, mas a referencia aos textos evangélicos. O fato é que não existe uma verdadeira descrição, ou definição, positiva, da experiência autêntica da temporalidade. (pag.157-158)

Em síntese, estamos diante de uma tentativa da traduzir em conceitos a pura historicidade da existência, que não é nada de naturalmente dado, e que, antes, precisa ser pensada em explícito contraste com a banalização metafísica na qual, como dirá a Sein und Zeit, a existência já está sempre atirada e dejetada. Citemos agora algumas passagens que ilustram estes conceitos. Constitutivo da vida cristã (ou seja, como já sabemos da experiência autentica da temporalidade) é o não (pretender) saber o daí e à hora da parusía. “para a vida cristã não há nenhuma segurança; a constante insegurança é, alias o elemento característico dos significados fundamentais da vida efetiva. A insegurança não é causal e sim necessária. ‘aqueles que dizem paz e segurança’ (2 coríntios 5,3) se afastaram daquilo que a vida representa; estão na obscuridade quanto ao conhecimento de si mesmos” (p. 105). E, um pouco acima; “O sentido desta temporalidade é fundamental também para a experiência efetiva da vida, assim como para questões tais como a eternidade de Deus” (p. 104). (pag.160)

Certamente a hipótese aqui sugerida (por Heidegger) de que a historia do cristianismo seja um mal-entendido “metafísico” dão sentido originário da mensagem neotestamentária não parece ser original, e se poderia, até mesmo, perguntar se e até que ponto não é uma pura e simples retomada de temas do modernismo que durante aqueles anos circulava no pensamento católico e havia sido condenado pela encíclica Pascendi de Pio X em 1907.

Em uma relação mais especifica com a atitude que Heidegger vinha amadurecendo com respeito ao catolicismo, podem ser visto aqui as bases para o seu distanciamento polemico da tradição escolástica e da metafísica “clássica” que ela queria retomar, um distanciamento que, significativamente, é aqui motivado pela fidelidade a originaria experiência cristã – em termos análogos a quanto ocorria no modernismo. (pag.162)

Se a leitura heideggeriana de Paulo é fundada, devemos ver nestes textos também uma indicação contra a excessiva atenção aos conteúdos “teóricos” e descritivos da revelação bíblica. Qualquer tentativa de lê-la como um ensinamento sobre a natureza e os atributos de Deus peca por aquela queda anticristã no pensamento representativo, que é o mesmo pecado da metafísica objetivante contra o qual se trata de reencontrar a escuta do ser. A partir daqui, provavelmente, pode ter inicio uma tentativa de pensarmos o cristianismo e de vivermos a fé cristã que adquire sentido na medida em que se considera – com base em escritos como este curso de 1920 – que a ontologia de Heidegger tenha uma das suas fontes mais constantes justamente na tradição cristã. Dito der forma mais clara; se, como me parece, hipotizamos (mas diria, reconhecemos) que a filosofia de Heidegger não e separável das suas origens na reflexão sobre a mensagem evangélica, esta hipótese (ou outra que seja) não tem apenas por conseqüência esclarecer historiograficamente (historisch!) as fonte daquela filosofia, nem apenas o sentido de “reconduzi-la” ao cristianismo, como uma conversão finalmente tranqüilizante (como dizer: afinal se somos heideggerianos, não somos anticristãos). Aquilo que se impõe é antes um efeito de reciprocidade: não apenas Paulo nos ajuda a esclarecer Heidegger, como Heidegger nos propõe considerações que, se levadas a sério, nos conduzem também a reinterpretar a tradição cristã. (pag.163)

Seria possível reconduzirmos todas estas sugestões heideggerianas acerca do modo de conceber e viver a experiência cristã a uma espécie de profissão de protestantismo luterano? O fato de que ele, em seus desenvolvimentos sucessivos, não tenha caminhado explicitamente nesta direção, deve ser, pelo menos, levado em conta. A sua polêmica contra a tradição cristã pós-apostólica e a historia da sua dogmática se confundiu, cada vez mais, com o esforço de ultrapassar a metafísica e a onto-teo-logia que sempre a acompanhou. Tudo isto significa, provavelmente, que seria desviante lermos estas paginas apenas como uma concessão a motivos modernistas ou somente como um movimento do filósofo de uma confissão cristã para outra. Parece ser mais historicamente fundado, e também mais fiel aos desenvolvimentos do seu pensamento, nos perguntarmos se não existem aqui significativas indicações para correlacionarmos, de maneira mais positiva e produtiva, o esforço da filosofia em superar o objetivismo metafísico com a busca de uma visão do cristianismo que, quer no plano dos dogmas quer no plano da ética, seja, finalmente , capaz de pensar o próprio sentido ecumênico também, e acima de tudo, como escuta da nova época – pós-moderna – do ser. (pag.166-167)

 

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