Síntese: Paolo Cugini
1
No começo era o projeto
Ou o
refugo da construção da ordem
“Redundância”
compartilhada o espaço semântico de “rejeitos”, “desejos”, “restos”, “lixo” –
com refugo. O destino dos desempregados, do “exército de reserva da
mão-de-obra”, era serem chamadas de volta ao serviço ativo. O destino do refugo
é o depósito de desejos, o monte de lixo. Com muita freqüência, na verdade,
rotineiramente, as pessoas declaradas “redundantes” são consideradas sobretudo
um problema financeiro. Precisam ser “providas” – ou seja, alimentadas,
calçadas e abrigadas. Não sobreviveriam por si mesmas – faltam-lhes os “meios
de sobrevivência” (quer dizer, sobretudo a sobrevivências biológica, o oposto
da morte por inanição ou abandono). A resposta à redundância é tão financeira
quanto a definição do problema: esmolas fornecidas pelo Estado, reguladas pelo
Estado ou por ele promovidas e testadas em relação aos meios (chamadas, de modo
variado, mas sempre eufemístico, de benefícios da previdência, incentivos
fiscais, isenções, concessões, pensões). (pág.20 e 21)
Desde o início
dos tempos modernos, cada geração sucessiva tem sido seus naufrágios no vácuo
social: as “baixas colaterais” do progresso. Enquanto muitos conseguiram pular
para dentro do veículo em alta velocidade e aproveitar profundamente a viagem,
muitos outros – menos sagazes, hábeis, espertos, musculosos ou aventureiros –
ficaram para trás ou tiveram negado o acesso ao veículo superlotado, se é que
não foram esmagados sob suas rodas. No carro do progresso, o número de assentos
e de lugares em pé não é, em regra, suficiente para acomodar todos os
passageiros potenciais, e a admissão sempre foi seletiva. Talvez por isso o
sonho de se juntar a essa viagem fosse tão doce para tantos. O progresso era
apregoado sob o slogan de mais felicidade para um número maior de pessoas. Mas
talvez o progresso, marca registrada da era moderna, tivesse a ver, em última
instância, com a necessidade de menos (e cada vez menos) pessoas manter o
movimento, acelerar e atingir o topo, o que antes exigiria uma massa bem maior
para negociar, invadir e conquistar. (pág.23 e 24)
Deixando por sua
própria conta, fora do alcance dos holofotes da história e antes da primeira
sessão de ajuste com os planejadores, o mundo não é ordenado nem caótico, nem
limpo nem sujo. É o projeto humano que evoca a desordem juntamente com a visão
da ordem, a sujeira juntamente com o plano da pureza. O pensamento ajusta
primeiro a imagem do mundo, de modo a que o próprio mundo possa ser ajustado
logo em seguida. Uma vez ajustada a imagem, o ajustamento do mundo ( o desejo
de ajustá-lo, o esforço para isso – embora não necessariamente o ato concreto
do ajuste) é uma conclusão previamente obtida. O mundo é administrável e exige
ser administrado, já que tem sido refeito na medida da compreensão humana. A
observação de Francis Bacon de que “a natureza, para ser comandada, deve ser
obedecida” não foi uma intimação à humildade, muito menos um apelo à
docilidade. Foi um ato de desafio. (pág.29)
Indagado sobre
como obtinha a bela harmonia de suas esculturas, Michelangelo teria respondido:
“É simples. É só você pegar um bloco de mármore e cortar todos os pedaços supérfluos”.
No auge do Renascimento, Michelangelo proclamou o preceito que foi o guia da
criação moderna. A separação e a destruição do refugo seriam comercial da
criação moderna: cortando e jogando fora o supérfluo, o desnecessário e o
inútil, seriam descoberto o belo, o harmonioso, o agradável e o gratificante.
A visão de uma
forma perfeita oculta num bloco informe de pedra bruta precede seu ato de
nascença. O refugo é o envoltório que esconde essa forma. Para desnudá-la,
fazê-la emergir e ser, admirar sua harmonia e sua beleza sem mácula, deve-se
destinar alguma coisa ao lixo. O envoltório – o refugo do ato criativo – deve
ser posto de lado, retalhado e removido para não atulhar o chão e restringir os
movimentos do escultor. Não pode haver oficina artística sem uma pilha de lixo.
Isso, porém,
torna o lixo um ingrediente indispensável do processo criativo. Mais ainda:
confere ao lixo um poder aterrorizante, verdadeiramente mágico, equivalente ao
da “pedra filosofal” do alquimista – o poder de realizar a maravilhosa
transmutação da matéria inferior, sem significação e desprezível num objeto nobre,
belo e precioso. Também faz do lixo a encarnação da ambivalência. O lixo é ao
mesmo tempo divino e satânico. É a parteira de toda criação – e seu mais
formidável obstáculo. O lixo é sublime: uma mistura singular de atração e
repulsa que produz um composto, também singular, de terror e medo. (pág.31 e
32)
A mente moderna
nasceu justamente com a idéia de que o mundo pode ser transformado. A
modernidade refere-se à rejeição do mundo tal como ele tem sido até agora e à
decisão de transformá-lo. A moderna forma de ser consistente na mudança
compulsiva, obsessiva: na refutação do que “meramente é” em nome do que poderia
– e no mesmo sentido deveria – ser posto em seu lugar. O mundo moderno é um
mundo que contém um desejo e uma determinação: desafiar sua mêmeté (como diria
Paul Ricoeur) – sua mesmidade. O desejo de se fazer diferente do que se é, de
se refazer, e de continuar se refazendo. A condição moderna é estar em
movimento. A opção é modernizar-se ou perecer. A história moderna tem sido,
portanto, a história da produção de projetos e um museu/túmulo de projetos
tentados, usados, rejeitados e abandonados na guerra contínua de conquista e/ou
desgaste que se trava contra a natureza. (pág.33 e 34)
A produção de
projetos faz sentido à medida que nada no mundo existente é como deveria ser.
Ainda mais importante, ela ganha uma fama merecida se esse mundo não é o que
poderia ser, considerando-se os meios disponíveis ou esperados de tornar as
coisas diferentes. O objetivo da produção de projetos é abrir mais espaço para
“o bem”, e menos ou nenhum para “o mal”. É o bem que faz do mal aquilo que ele
é: mal. “O mal” é o refugo do progresso.
A natureza,
admite-se, é governada por suas leis. Estas não foram feitas pelos seres
humanos, que assim também não podem desfazê-las. Seguindo o conselho de Bacon,
só restaria aos seres humanos aprender essas leis de modo a poder utilizá-las
em seu proveito. Um aspecto do mundo que a mente moderna considerou
particularmente repugnante, inaceitável e insustentável era, contudo, a condição
da humanidade. E a humanidade era uma parte do mundo que conseguia ignorar,
para seu próprio risco, as leis da natureza e colocar em seu lugar as leis do
homem.
Guiada pelas
leis humanas, a humanidade seguiu em frente se arrastando, enquanto era fustigada,
pressionada e atormentada pelas forças da irracionalidade, do preconceito e da
superstição. Comparado com a parte inumana do universo que não conhece o
“erro”, o passado humano só podia aparecer como uma estufa da estupidez e da
malevolência, e como uma longa seqüência de crimes e erros crassos. A única
“lei da história humana” que se podia imaginar era a necessidade de a razão
onde a espontaneidade humana havia falhado de maneira espetacular. Essa
conquista era tão inevitável quanto urgente. Foi uma inevitabilidade histórica.
Estava falada a acontecer, graças à absoluta falta de opção, à
indispensabilidade da descoberta de que em algum ponto a razão humana deve
conquistar o controle da história, reprimir, domesticar ou amordaçar suas
inclinações naturais e suas tendências básicas, e assumir a responsabilidade
pela configuração da necessidade histórica. (pág.40 e 41)
Onde há projeto
há refugo. Nenhuma casa está realmente concluída antes que os dejetos
indesejados tenham sido varridos do local da construção. (pág.41)
Quando se trata
de projetar as formas do convívio humano, o refugo são seres humanos. Alguns
não se ajustam à forma projetada nem podem ser ajustados a ela, ou sua pureza é
adulterada, e sua transparência, turva: os monstros e mutantes de Kafka, como o
indefinível Odradek ou o cruzamento de gato com ovelha – singularidades,
vilões, híbridos que desmascaram categorias supostamente inclusivas/exclusivas.
Nódoas numa paisagem sob outros aspectos elegante e serena. Seres inválidos,
cuja ausência ou obliteração só poderia beneficiar a forma projetada,
tornando-a mais uniforme, mais harmoniosa, mais segura e ao mesmo tempo mais em
paz consigo mesma. (pág.42)
2
Serão eles demasiados?
Ou o
refugo do progresso econômico
“Superpopulação”
é uma ficção atuarial: um codinome para a aparição de um número de pessoas que,
em vez de ajudarem a economia a funcionar com tranqüilidade, tornam muito mais
difícil a obtenção, para não falar na elevação, dos índices pelos quais se mede
e avalia o funcionamento adequado. A quantidade desses indivíduos parece
crescer de maneira incontrolável, aumentando continuamente as despesas, mas não
os ganhos. Numa sociedade de produtores, essas são as pessoas cuja mão-de-obra
não pode ser empregada com utilidade, já que todos os bens que a demanda atual
e futura é capaz de absorver podem ser produzidos – e produzidos com maior
rapidez, maior lucratividade e de modo mais “econômico” – sem que elas sejam
mantidas em seus empregos. Numa sociedade de consumidores, elas são os “consumidores
falhos” – pessoas carentes do dinheiro que lhes permitiriam ampliar a
capacidade do mercado consumidor, e que criam um novo tipo de demanda a que a
indústria de consumo, orientada para o lucro, não pode responder nem
“colonizar” de maneira lucrativa. Os consumidores são os principais ativos da
sociedade de consumo, enquanto os consumidores falhos são os seus passivos mais
irritantes e custosos.
A “população
excedente” é mais uma variedade de refugo humano. (pág.52 e 53)
As pessoas
supérfluas estão numa situação em que é impossível ganhar. Se tentam alinhar-se
com as formas de vida hoje louvadas, são logo acusadas de arrogância
pecaminosa, falsas aparências e da desfaçatez de reclamarem prêmios imerecidos
– senão de intenções criminosas. Caso se queixem abertamente e se recusem a
honrar aquelas formas que podem ser saboreadas pelos ricos, mas que, para eles,
os despossuídos, são mais como veneno, isso é visto de pronto como prova
daquilo que a “opinião pública” (mais corretamente, seu porta-vozes eleitos ou
autoproclamados) “já tinha advertido” – que os supérfluos não são apenas um
copo estranho, mas um tumor canceroso que corrói os tecidos sociais saudáveis e
inimigos jurados do “nosso modo de vida” e “daquilo que respeitamos”. (pág.55)
“A produção de corpos
supérfluos, não são mais exigidos para o trabalho, é conseqüência direta da
globalização”, como aponta Hauke Brunkhorts. Ele acrescenta que a peculiaridade
da versão globalizada da “superpopulação” é a maneira como ela combina, com
grande rapidez, a crescente desigualdade com a exclusão dos “corpos supérfluos”
do domínio da comunicação social. (pág.55)
É sempre o
excesso deles que nos preocupa. Mais perto de casa, é a queda livre das taxas
de fecundidade e sua inevitável conseqüência, o envelhecimento da população,
que nos deixam impacientes e exaltados. Haverá um número suficiente de “nós”
para sustentar “nosso modo de vida”? Haverá um número suficiente de lixeiros,
coletores dos desejos que “nosso modo de vida” produz todo dia, ou – como
pergunta Richard Rorty – um número suficiente de “pessoas que sujam as mãos
limpando nossas privadas”, recebendo dez vezes menos que nós, “que nos sentamos
atrás de escrivaninhas e dedilhamos teclados”?[1]
Esse outro lado pouco sedutor da guerra contra a “superpopulação” – a
perspectiva sinistra da necessidade “deles” de importar mais,e não menos,
apenas para manter “o nosso modo de vida” à tona – assombra as terras dos
abastados.
Essa perspectiva
não seria tão assustadora – como tende a ser percebida em toda parte, com exceção
das ultra-seguras salas de diretoria das empresas e dos salões em que se
realizam tediosas conferências acadêmicas –, não fosse por uma nova utilização
das pessoas expelidas, em particular as que conseguiram desembarcar nas terras
dos riscos. (pág.60)
Vulnerabilidade
e incerteza sã as duas qualidades da condição humana a partir das quais se
molda o “medo oficial’: o medo do poder humano, do poder criado e manipulado
pelo homem. Esse “medo oficial” é construído segundo o padrão do poder inumano
refletido pelo (ou melhor, que emana do) “medo cósmico”.
Bakhtin aponta
que o medo cósmico é usado por todos os sistemas religiosos. A imagem de Deus,
supremo governante do universo e de seus habitantes, é moldada a partir da bem
conhecida emoção do medo da vulnerabilidade e do temor em face da incerteza
impenetrável e sem remédio. A religião, portanto, se justifica pelo papel de
mediadora e eficaz, de intercessora que defende os vulneráveis e os
amedrontados no início tribunal capaz de decretar o banimento dos reveses
aleatórios do destino. A religião extrai seu poder sobre as almas humanas
brandindo a promessa da segurança. Mas, para fazê-lo, teve primeiro de
reprocessar o universo, transformando-o em Deus – forçando-o a falar... (pág.61
e 62)
A
vulnerabilidade e a incerteza humanas são as principais razões de ser de todo
poder político. E todo poder político deve cuidar da renovação regular de suas
credenciais.
Numa sociedade
moderna média, a vulnerabilidade e a insegurança da existência e a necessidade
de perseguir os objetivos da vida em condições de incerteza aguda e irredimível
são garantidas pela exposição desses objetivos às forças do mercado. Além de
colocar em operação, monitorar e vigiar as condições jurídicas das liberdades
de mercado, o poder político não tem necessidade de interferir mais para
assegurar uma quantidade suficiente e uma provisão permanente de “medo
oficial”. Ao exigir de seus súditos a disciplina e a obediência à lei, pode
basear sua legitimidade na promessa de mitigar o grau de vulnerabilidade e
incerteza já existente entre eles: limitar os danos e prejuízos perpetrados
pelo livre jogo das forças de mercado, proteger os vulneráveis de golpes
dolorosos demais e defender o incerto dos riscos que a livre competição
necessariamente enseja. Tal legitimação encontra sua derradeira expressão na
autodefinição da moderna forma de governo como um “Estado de bem-estar”.
(pág.66)
Na visão de Hans
– Jörg Albrecht, só a ligação entre a imigração e a inquietação pública com o
crescimento da violência e os temores relativos à segurança é que é nova. Fora
isso, não tem havido grandes mudanças desde os primórdios do Estado moderno –
as imagens folclóricas de demônios que no passado eram usadas para incutir os
difusos temores sobre segurança “foram transformadas em perigo e riscos”:
A demonização foi substituída pelo conceito e
estratégia da “periculização”. A governança política, portanto, tornou-se em
parte dependente do outro desviante e da mobilização do sentimento de
segurança. O poder político e seu estabelecimento, assim como sua preservação,
dependem hoje de temas de campanha selecionados com cuidado, entre os quais a
segurança (e o sentimento de insegurança) se destaca.[2]
Os imigrantes,
permitam-me observar, se ajustam melhor a esse propósito que qualquer outra
categoria de vilões genuínos ou supostos. Há uma espécie de “afinidade eletiva”
entre os imigrantes (aquele refugo humano proveniente de lugares distantes
descarregado em “nosso próprio quintal”) e os menos toleráveis de nossos
próprios temores domésticos. Quando todos os lugares e posições parecem
balançar e não são mais considerados confiáveis, a presença de imigrantes joga
sal na ferida. Os imigrantes, e em particular os recém-chegados, exalam o dor
opressivo do depósito de lixo que, em seus muitos disfarces, assombra as noites
das potenciais vítimas da vulnerabilidade crescente. Para aqueles que os
detratam e odeiam, os imigrantes encarnam – de modo visível, tangível, em carne
e osso – o pressentimento inarticulado, mas pungente e doloroso, de sua própria
condição de descartável. Fica-se tentando a dizer que, se não houvesse
imigrantes batendo às portas, eles teriam de ser inventados... De fato, eles
fornecem aos governos um “outro desviante” ideal, um alvo muito bem-vindo para
“temas de campanha selecionados com esmero”. (pág.72 e 73)
As pessoas cujas
formas de subsistência ortodoxas e forçosamente desvalorizadas já foram
marcadas para a destruição, e elas próprias assinaladas como refugo removível,
não podem optar. Em seus sonhos noturnos podem moldar-se à semelhança dos
consumidores, mas é a sobrevivência física, e não a orgia consumista, que lhes
ocupa os dias. Está montado o palco para o encontro dos desejos humanos com as
sobras das orgias consumistas – de fato, parecem ter sido feitos uns para os
outros... Por trás da cortina colorida da livre competição e do comércio idem,
o homo hierarquicus se arrasta. Na sociedade de castas, só os intocáveis podiam
(e deviam) manusear coisas intocáveis. No mundo da liberdade e igualdade
globais, as terras e a população foram arrumadas numa hierarquia de castas.
(pág.76 e 77)
3
A cada refugo seu depósito de lixo
Ou o
refugo da globalização
Daí a ansiedade
– provocada pela dolorosa experiência de estar perdido e infeliz: não somos os
únicos, ninguém está no comando, ninguém está por dentro. Não há como dizer
quando e de onde virá o próximo ataque, até onde suas ondas vão chegar e qual
será o grau do cataclismo. A incerteza e a angústia que dela nasce são produtos
básicos da globalização. Os poderes de Estado não podem fazer quase nada para
aplacar a incerteza, muito menos para eliminá-la. O máximo que podem fazer é
mudar seu foco para objetos alcançáveis. Tirá-la dos objetos em relação aos
quais nada podem fazer e colocá-la sobre aqueles que pelo menos lhes propiciam
uma demonstração de sua capacidade de manejo e controle. Refugiados, pessoas em
busca de asilo, imigrantes – os produtos rejeitados da globalização – se
encaixam perfeitamente nesse papel. (pág.84)
Mas agora o
planeta está cheio. Isso significa, entre outras coisas, que típicos processos
modernos, como a construção da ordem e o progresso econômico, ocorrem por toda
parte, e assim por toda parte o “refugo humano” é produzido e germinado em
quantidades sempre crescentes – agora, porém, na ausência de depósitos
“naturais” adequados para sua armazenagem e potencial reciclagem. O processo
previsto pela primeira vez por Rosa Luxemburgo um século atrás (embora descrito
por ela sobretudo em termos econômicos, e não explicitamente sociais) atingiu o
limite máximo. (pág.88)
Talvez a única
indústria a prosperar nas terras dos retardatários (desonesta e enganosamente
apelidadas de “países em desenvolvimento”) seja a produção maciça de
refugiados. São os produtos cada vez mais prolíficos dessa indústria que o
primeiro-ministro britânico propõe descarregar “perto de seus países natais”,
em acampamentos temporários para toda vida (desonesta e enganosamente
apelidados de “abrigos seguros”), exacerbando desse modo os já
não-administráveis problemas de “excedente populacional” dos vizinhos próximos
que dirigem a contragosto uma indústria semelhante. O objetivo é manter locais
os “problemas locais” e cortar pela raiz todas as tentativas de os
recém-chegados seguirem o exemplo dos pioneiros da modernidade procurando
soluções globais (as únicas efetivas) para problemas manufaturados localmente.
No momento em que escrevo estas palavras, numa outra variação sobre o mesmo
tema, a Otan foi solicitada a mobilizar seus exércitos para ajudar a Turquia a
fechar sua fronteira com o Iraque em vista de um iminente ataque ao país.
Vários estadistas dos países pioneiros objetaram, levantando muitas reservas
imaginosas – mas ninguém mencionou publicamente que o perigo contra o qual a
Turquia devia ser protegida era o influxo de refugiados iraquianos
recém-transformados em pessoas sem-teto, e não um ataque dos derrotados e
pulverizados soldados do Iraque.[3]
Ainda que
honestos, os esforços para represar a maré da “migração econômica” não são e
nem podem ser cem por cento bem-sucedidos. A miséria prolongada leva milhões de
pessoas ao desespero, e, na era da terra de fronteira global e do crime
globalizado, dificilmente se poderia imaginar que houvesse uma carência de
“empresas” ávidas por ganhar algum dinheiro, ou alguns milhões, se aproveitando
desse desespero. Daí a segunda conseqüência formidável da atual transformação:
milhões de migrantes vagam por estradas que já foram trilhadas pela “população
excedente” descarregada pelas estufas da modernidade – só que na direção
inversa, e desta vez desassistidas (pelo menos até agora) por exércitos de
conquistadores, comerciantes e missionários. A dimensão plena dessa
conseqüência e de suas repercussões ainda está por ser revelada e apreendida em
todas as suas diversas ramificações. (pág.92 e 93)
Um dos efeitos
mais sinistros da globalização é a desregulamentação das guerras. A maioria das
ações belicosas de hoje, e as mais cruéis e sangrentas de todas, são conduzidas
por entidades não-estatais, que não se sujeitam às leis do Estado nem às convenções
internacionais. São ao mesmo tempo produtos e causas acessórias, mas poderosas,
da contínua erosão da soberania do Estado e da permanente condição de terra de
fronteira que caracteriza o espaço global “interestatal”. Os antagonismos
intertribais nem à tona graças à debilitação do poder do Estado, ou, no caso
dos “novos Estados”, do fato de não ter havido tempo para que esse poder se
desenvolvesse. Quando desencadeados, eles tornam as leis promulgadas pelo
Estado, sejam elas incipientes ou consolidadas, inaplicáveis e quase nulas.
A população como
um todo se vê num espaço sem lei. A parte dela que decide e consegue fugir do
campo de batalha encontra-se em outro tipo de lugar em que a lei não existe, a
terra de fronteira global. Uma vez fora dos limites de seus países nativos, os
fugitivos são privados do apoio de uma autoridade estatal reconhecida que
poderia tomá-los sob sua proteção, reivindicar seus direitos e interceder por
eles perante as potências estrangeiras. Os refugiados são destituídos de Estado,
mas num novo sentido: sua condição de sem Estado é alçada a um nível totalmente
inédito graças à inexistência de uma autoridade estatal à qual sua cidadania
possa referir-se. (pág.95 e 96)
Os guetos, com
ou sem este nome, são instituições antigas. Servem ao propósito da
“estratificação compósita” (e ao mesmo tempo da “privação múltipla”),
superpondo a separação territorial à diferenciação por casta ou classe. Os
guetos podem ser voluntários ou involuntários (embora só estes últimos tendam a
carregar o estigma do nome), e a principal diferença entre ambos é o lado da
“fronteira assimétrica” com o qual se defrontam – os obstáculos empilhados,
respectivamente, na entrada ou na saída da área do gueto. (pág.101)
A proximidade
imediata de amplas e crescentes aglomerações de “pessoas refugadas”, que tendem
a ser duradouras e permanentes, exige políticas segregacionistas mais estritas
e medidas de segurança extraordinárias para que “saúde da sociedade” e o
“funcionamento normal” do sistema social não sejam ameaçados. As notórias
tarefas de “administração da tensão” e “manutenção do padrão”, que, segundo
Talcott Parsons, todo sistema precisa desempenhar a fim de sobreviver, hoje se
resumem quase totalmente em separar de modo estrito o “refugo humano” do
restante da sociedade, excluí-lo do arcabouço jurídico em que se conduzem as
atividades dos demais e “neutralizá-lo”. O “refugo humano” não pode mais ser
removido para depósitos de lixo distantes e fixado firmemente fora dos limites
da “vida normal”. Precisa, assim, ser lacrado em contêineres fechados com
rigor. (pág.107)
Um imperativo da
maior urgência enfrentado por todo governo que preside ao desmantelamento e ao
recuo do Estado social é, portanto, a tarefa de encontrar ou construir uma nova
“fórmula de legitimação” em que a auto-afirmação da autoridade do Estado e a
exigência de disciplina se possam basear. Ser abatido como “baixa colateral” do
progresso econômico, agora nas mãos de forças econômicas globais livremente
flutuantes, não é uma sina que os governos dos Estados possam prometer
afugentar com alguma fidedignidade. Mas alimentar os temores provocados pela
ameaça à segurança pessoal com conspiradores terroristas caracterizados também
pela livre flutuação global, e então prometer mais guardas de segurança, uma
rede mais densa de máquinas de raio X e um escopo mais amplo de televisão em
circuito fechado, além de novas checagens, outros ataques preventivos e mais
prisões para averiguação a fim de proteger essa segurança – esta parece ser uma
alternativa vantajosa.
Em contraste com
a insegurança demasiado tangível e todo dia vivenciada que os mercados
produzem, sm necessidade de ajuda dos poderes políticos senão para serem
deixados à vontade, a mentalidade de “fortaleza sitiada” e de corpos
individuais e bens privados sob ameaça deve ser ativamente cultivada. As
ameaças devem ser pintadas nas cores mais sinistras, de modo que sua
não-materialização, em lugar do advento do pressagiado apocalipse, possa ser
apresentada ao público atemorizado como um evento extraordinário, e acima de
tudo como o resultado das habilidades, da vigilância, da atenção e da boa
vontade excepcionais dos órgãos de Estado. Quase diariamente, e pelo menos uma
vez por semana, a CIA e o FBI advertem os norte-americanos de iminentes
atentados contra a segurança, lançando-os e mantendo-os num estado de alerta
constante, colocando firmemente a segurança individual no foco das tensões mais
variadas e difusas – enquanto o presidente dos Estados Unidos relembra a seus
eleitores que “bastaria um frasco, uma lata, um caixote introduzido neste país
para provocar um dia de horror como nenhum de nós jamais conheceu”. Essa
estratégia é copiada com avidez, ainda que até agora com um pouco menos de
ardor (menos por falta de fundos que de vontade), por outros governos que
supervisionam o enterro do Estado Social. A nova demanda popular por um poder
de Estado vigoroso, capaz de ressuscitar as debilitadas esperanças de proteção
contra o confinamento ao lixo, é construída sobre os pilares da vulnerabilidade
e da segurança pessoais, e não da precariedade e da proteção sociais. (pág.112
e 113)
“Danos
colaterais” é um termo que pode ter sido inventado em específico para denotar o
refugo humano peculiar às novas condições de terra de fronteira planetária
criadas pelo impetuoso e irrestrito impulso à globalização que até hoje resiste
de fato a todas as tentativas de domesticação e regulamentação. Os temores
relacionados à moderna variedade de produção de lixo parecem sobrepujar as
apreensões e ansiedades que ela tradicionalmente evoca. Não admira que sejam
empregados com avidez na construção (e também, portanto, nas tentativas de
desconstrução) das novas hierarquias de poder de âmbito planetário. (pág.114)
A confiança é
substituída pela suspeita universal. Presume-se que todos os vínculos sejam
precários, duvidosos, semelhantes a armadilhas e emboscados – até prova em
contrário. Mas, ma ausência de confiança, a própria idéia de “prova”, para não
falar de prova segura e final, está longe de ser clara e convincente. Como seria
uma prova fidedigna, confiável de verdade? Você não há conheceria se a visse.
Mesmo se olhasse no rosto, não acreditaria que ela fosse o que afirmava ser. A
aceitação da prova, portanto, deve ser adiada de modo indefinido. Os esforços
para estabelecer e estreitar os vínculos alinham uma seqüência infinita de
experimentos. Sendo experimentais, aceitos “na base da tentativa” e eternamente
testados, sempre um provisório “vamos esperar para ver como funcionam”, não é
provável que as alianças, compromissos e vínculos humanos se solidifiquem o
suficiente para serem proclamados confiáveis de maneira verdadeira e integral.
Nascidos da suspeita, geram suspeita. (pág.115)
4
A cultura do lixo
Se a vida
pré-moderna era uma recitação diária da duração infinita de todas as coisas,
com exceção da existência mortal, a vida líquido-moderna é uma recitação diária
da transitoriedade universal. Nada no mundo se destina a permanecer, muito
menos para sempre. Os objetos úteis e indispensáveis de hoje são, com
pouquíssimas exceções, o refugo de amanhã. Nada é necessário de fato, nada é
insubstituível. Tudo nasce com a marca da morte iminente, tudo deixa a linha de
produção com um “prazo de validade” afixado. As construções não têm início sem
que as permissões de demolição (se exigidas) tenham sido emitidas, e os
contratos não são assinados a menos que se fixe a sua duração ou que se permita
serem anulados, dependendo de sua sorte no futuro. Nenhum passo e nenhuma
escolha é de uma vez para sempre, irrevogável. Nenhum compromisso dura o
bastante para alcançar o ponto sem retorno. Todas as coisas, nascidas ou
feitas, humanas ou não, são até segunda ordem e dispensáveis. Um espectro paira
sobre os habitantes do mundo líquido-moderno e todos os seus esforços e
criações: o espectro da redundância.
A modernidade
líquida é uma civilização do excesso, da superfluidade, do refugo e de sua
remoção. (pág.120)
Max Scheler
observou as conseqüências da ampla aplicação do “estratagema diversionista”. Ao
contrário de Pascal, porém, Scheler via a fuga pelo diversionismo como um
evento na história, e não como um eterno apuro humano: um resultado da moderna
revolução no modo de ser. Ele deplorava essa novidade como um perigo mortal
para a necessidade humana de transcendência.
A morte foi
afastada para longe da vista dos homens e mulheres contemporâneos, “não é mais
visível”. Esse “não-ser-da morte” se tornou, na opinião de Scheler, a “ilusão
negativa do tipo moderno de consciência”.[4]
Não constituindo mais uma parte do destino humano que mereça ser encarada em
toda sua majestade e devidamente respeitada, a morte foi rebaixada à condição
de catástrofe deplorável, como um tiro de pistola ou um tijolo que cai de um
telhado. Com o horizonte da mortalidade fora de sua vista, e não mais
orientando os projetos a longo prazo, ou regulando as ações cotidianas, a vida
perdeu sua coesão interna. Ela é vivida de um dia para o outro “até que, por
curiosa coincidência, não há dia seguinte”. Mas quando o medo da morte recua ou
desaparece da vida diária, ele deixa de trazer atrás de si a desejada quietude
espiritual. É desde logo substituído pelo medo da vida, O outro medo, por sua
vez, instiga uma “abordagem calculista da vida”, que se alimenta de uma
insaciável sede de bens eternamente novos e do culto do “progresso” – em si
mesmo uma idéia sem sentido, destituída de propósito. “Progredir” – e aqui
Scheler cita o memorável veredicto de Werner Sombart – é seu único sentido
prático. (pág.123 e 124)
A eternidade era
um dos poucos universais genuínos da cultura. Para a mente sóbria, logicamente
treinada, isso pode parecer estranho, pelo menos à primeira vista. Com efeito,
é preciso muita imaginação até mesmo para conceber a “eterna permanência”,
enquanto visualizá-la desafia o poder dos sentidos humanos. Não existe forma de
extrair a “eternidade” do “interior” da experiência humana. Ela não pode ser
vista, tocada, ouvida, cheirada ou saboreada. No entretanto seria inútil
procurar uma população humana que não considerasse a eternidade quase
auto-evidente. A consciência da eternidade (deveríamos dizer a crença nela)
pode mesmo ser considerada um dos traços definidores da humanidade.
A solução desse
paradoxo parece estar em outro universal: a linguagem. Ou antes, em outros
paradoxo, associado de modo inextricável à posse da linguagem. (pág.124 e 125)
A invenção da
eternidade é de fato uma mágica da linguagem. É uma invenção curiosa e
extraordinária – e no entanto inevitável, algo que não poderia deixar de ser
inventado. Inconcebível seria uma espécie semelhante à humana, dotada de linguagem,
que deixasse de inventar a eternidade – inconcebível pela simples razão de ser
capaz de permanecer inconsciente de sua própria mortalidade. Mas, em sua forma
prístina, crua, não-preparada, a visão da eternidade só poderia contribuir para
o desespero causado pela certeza da morte. Para embrulhar o medo e a esperança
no mesmo pacote, era necessário um fio, uma liga, uma dobradiça – a unir uma
vida destinada a terminar e, logo, a um mundo destinado a permanecer
eternamente. (pág.126)
A “beleza” é um
dos ideais que nos conduzem para além do mundo que já é. Seu valor está
plenamente contido no seu poder de conduzir. Se já a tivéssemos atingido, ela
teria perdido esse poder, e com ele seu valor. Nossa jornada teria chegado ao
fim. Não haveria mais nada a transgredir ou transcender, e assim também não
haveria vida humana tal como a conhecemos. Mas, graças à linguagem e à
imaginação que ela torna tanto possível quanto inevitável, talvez não seja
possível alcançar esse ponto.
Chamamos muitas
coisas de “belas”, mas não há só objeto a que atribuímos esse nome do qual não
possamos dizer que dispensa ser aperfeiçoado. A “perfeição” é um eterno “ainda
não”, algo que está um ou mais passos à frente, que se pode alcançar, mas não
realmente controlar. Com efeito, um estado de coisas em que nenhum
aperfeiçoamento posterior será desejável só pode ser almejado por pessoas que
têm muito a aperfeiçoar. A visão da perfeição pode ser um elogio à imobilidade,
mas a tarefa dessa visão é puxar-nos e empurrar-nos para longe daquilo que é,
impedir-nos de permanecer imóveis... Imobilidade é aquilo de que se ocupam os
cemitérios – e, no entanto, paradoxalmente, é o sonho da imobilidade que nos
mantém vivos e ocupados. Enquanto o sonho permanecer irrealizado, contamos os
dias e os dias contam: existe um propósito, e também uma tarefa inconclusa a
realizar... Como a grande cientista polonesa Marie Curie confidenciou ao irmão,
com um misto de orgulho e vergonha: “Nunca se nota o que já foi feito, só
conseguimos ver o que está por fazer...”
Não que essa
tarefa – que se recusa, obstinada e furiosamente, a ser concluída – seja apenas
uma bênção e traga uma felicidade não poluída. A condição de “negócio
inacabado” tem muitos encantos, mas, tal como outras condições, carece de
perfeição...
Como costumava
dizer o grande sociólogo italiano Alberto Melucci: “Estamos contaminados pela
fragilidade da condição presente, que exige um alicerce firme onde não existe
alicerce algum”. E assim, “ao contemplar a mudança, sempre nos dividimos entre
o desejo e o medo, a expectativa e a incerteza”.[5]É
isso: a incerteza. Ou, como prefere Ulrich Beck, o risco: aquele companheiro
(ou seria rastreador?) indesejado, desastrado e irritante, mas também
obstinado, atrevido e inseparável, de toda expectativa – um espectro sinistro
que assombra os inveterados tomadores de decisões que nós somos. Para nós, como
Melucci afirmou energicamente, “a escolha tornou-se um destino”.
“Tornou-se”
talvez não seja a expressão correta: afinal, pelos motivos já manifestados, os
seres humanos são obrigados a fazer escolhas desde que se tornaram humanos. Mas
podemos dizer que em nenhuma outra época foi necessário fazer escolhas que nos
afetassem de modo tão profundo e com efeitos tão medonhos, todos os dias e sob
condições de uma incerteza dolorosa mas incurável, com propósitos de ação e
padrões de conduta que dificilmente duram o tempo necessário para serem
atingidos e concluir a ação, sob a ameaça constante de sermos “deixados para
trás”, “não estarmos à altura das novas exigências” e (horror do horrores)
sermos expulso do jogo. O que separa a atual agonia da escolha dos desconfortos
que atormentaram o homo eligens, o “homem que escolhe”, em todos os tempos é a
angustiante suspeita ou a descoberta dolorosa de que não existem regras claras
e confiáveis, objetivos aprovados de validade universal que possam aliviar de
todo, ou pelo menos em parte, aqueles que devem fazer escolhas de sua
responsabilidade pelas conseqüências adversas – equivocadas ou imprevistas – do
que escolheram. Não há pontos de orientação inconfundíveis nem diretrizes à
prova de falhas, e as diretrizes e pontos de referência hoje considerados
confiáveis tendem a ser desmascarados amanhã como ilusórios ou viciados.
(pág,141, 142 e 143)
O mercado de
consumo e o padrão de conduta que ele exige e cultiva são adaptados à “cultura
do cassino” líquido-moderna, que, por sua vez, é adaptada às pressões e
seduções do mercado. Os dois se dão bem entre si, se abastecem e se reforçam
mutuamente. Para não desperdiçar o tempo de seus limites, nem prejudicar ou
impedir suas futuras mas imprevisíveis alegrias, o mercado de consumo oferece
produtos destinados ao consumo imediato, de preferência para um único uso,
seguindo de rápida remoção e substituição, de modo que os espaços de vida não
fiquem congestionados quando os objetos hoje admirados e cobiçados saírem de
moda. Os clientes, confusos pelo turbilhão da moda, pela atordoante variedade
de ofertas e o ritmo vertiginoso de sua mudança, não podem mais recorrer à
capacidade de aprender e gravar – e assim precisam (e o fazem com gratidão)
aceitar as garantias de que o produto atualmente em oferta é “a coisa”, “a
coisa mais quente”, o “must”, aquilo “(com/em) que devem ser vistos”. (pág.146)
Em nossa líquida
sociedade moderna, a beleza encontrou o mesmo destino sofrido por todos os
outros ideais que costumavam motivar a inquietude e a rebeldia humanas. A busca
pela harmonia definitiva e pela permanência eterna foi redefinida simplesmente
como uma preocupação equivocada. Os valores são valores desde que se ajustam ao
consumo instantâneo, imediato. São atributos de experiências momentâneas. E
assim é a beleza. E a vida consiste numa sucessão de experiências momentâneas.
“A beleza não
tem uma utilidade óbvia, nem existe uma clara necessidade cultural para ela. No
entanto a civilização não poderia passar sem ela”, refletiu Freud. “Essa coisa
inútil que nós esperamos que a civilização valorize é a beleza. Exigimos que o
homem civilizado reverencie a beleza onde quer que a veja e a crie em objetos
artesanais na medida de sua habilidade”. A beleza, junto com a limpeza e a
ordem, “ocupam obviamente uma posição especial entre os requisitos da
civilização” .[6]
(pág.150)
“Seu carro passa
por uma revisão todo ano. Por que não seu relacionamento?”, indaga Hugh Wilson.[7]
De fato. O que vale para os carros também vale para os relacionamentos. Ou
seja, ambos só fazem sentido se atendem às suas necessidades e enquanto você
estiver satisfeito com a forma como isso se dá... Seria tolo imaginar que eles
continuarão desempenhando bem suas tarefas para sempre e que seu contentamento
será eterno. (pág.151)
Somos
consumidores numa sociedade de consumidores. A sociedade de consumidores é uma
sociedade de mercado. Todos nos encontramos totalmente dentro dele, e ora somos
consumidores, ora mercadorias. (pág.151)
Um número cada
vez maior de observadores acredita, com sensatez, que amigos e amizades
desempenham um papel vital em nossa sociedade tão individualizada. Com o
desmantelamento das tradicionais estruturas de apoio fornecidas pela coesão
social, as relações tecidas a partir da amizade poderiam transformar-se em
nossas tábuas de salvação. (pág.152)
Na vida “moderna
tardia” ou “líquido-moderna”, os relacionamentos são um assunto ambíguo e
tendem a ser os focos de uma ambivalência mais aguda e exasperante: o preço da
companhia que todos desejamos com tamanho ardor é invariavelmente a renúncia,
ao menos parcial, à independência, não importa o quanto desejaríamos a primeira
sem a segunda...
A ambivalência
contínua resulta em dissonância cognitiva, estado mental notoriamente
aviltante, desqualificador e difícil de suportar. Esta, por sua vez, atrai o
usual repertório de estratagemas, dos quais o mais utilizado é reduzir,
minimizar e desprezar um dos dois valores inconciliáveis. Submetidos a pressões
contraditórias, muitos relacionamentos, de qualquer modo destinados a serem
apenas “até segunda ordem”, acabarão se rompendo. O rompimento é uma
expectativa razoável, algo que se deve prever e estar preparado para enfrentar.
Desse modo, parceiros sensatos prefeririam (nas palavras de Wilson) “introduzir
desde o início cláusulas que garantam uma ‘saída’ fácil”, “queremos que a parte
da saída seja tão indolor quanto possível”.
Quando a elevada
probabilidade do desgaste é calculada no processo de construir vínculos de
relacionamento, a precaução e a prudência mandam que se cuide com antecedência
da instalação de armazenamento de lixo. Afinal, planejadores urbanos sensatos
não se arriscariam a dar início à construção de um prédio antes de obterem a
permissão para demoli-lo, generais hesitariam em enviar suas tropas ao campo de
batalha sem terem preparado um cenário viável para a fuga, e os empregadores em
geral se queixam de que a adoção dos direitos trabalhistas e as restrições à
demissão de empregados tornam quase impossível ampliar o nível de emprego.
(pág.152 e 153)
O encontro veloz
é apenas um de uma série crescente de estratagemas oferecidos no mercado
“consumidor-amigo” das “relações humanas” (mais precisamente, de seus
substitutos produzidos em massa e de qualidade inferior, porém mais baratos).
Por exemplo, anúncios pessoais on line, que eliminam até mesmo o risco dos três
minutos de exposição para as conseqüências de longo prazo advindas de uma
escolha imprudente e extemporânea. Nas palavras de Emma Taylor e Lorelei
Sharkey, “se sua vida amorosa fosse uma conta bancária, seu anúncio pessoal
seria seu caixa eletrônico, proporcionando-lhe acesso fácil e instantâneo a
qualquer coisa que você quisesse (sexo casual, amor verdadeiro, amizade colorida),
quando quisesse”.[8] Elas deveriam ter acrescentado que, ao usar o
caixa eletrônico, você retira exatamente a quantia que está pronto a gastar e
preparado para perder. Desse modo, a perda – embora não evitável de todo – será
calculada por antecipação e, portanto, vai doer menos. Os parceiros não se
queixarão dos custos e de sacrifícios extenuantes: tendo se conhecido por meio
de anúncios pessoais, os dois saberão que são “ambos solteiros e procuram”, e
assim – assinalam Taylon e Sharkey –, “você resolve marcar o encontro – e
bum!”. (pág.155)
Parcerias
assumidas de modo instantâneo, logo consumidas e removidas podem, contudo, ter
seus efeitos colaterais, não menos dolorosos que o efeito da timidez que as
empresas de encontro veloz prometem anular. O espectro da pilha de lixo nunca
se afasta muito. Afinal, a velocidade e os serviços de remoção de lixo estão
disponíveis para os dois lados. Você pode terminar na condição descrita por
Oliver James: envenenado por “uma constante sensação de que faltam outras pessoas
em sua vida, com sentimentos vazios e solidão semelhantes à privação”. Você
pode ter “o medo eterno de ser abandonado por amantes e amigos”. A condição
aqui diagnosticada parece ser uma conseqüência natural, lógica e racional de
uma vida salpicada de parcerias estabelecidas de modo instantâneo e da mesma
forma rompidas, mas James encontra sua causa na “depressão dependente”, uma
doença orgânica ou física, clínica e curável, e afirma que “as origens desse
problema se encontram muitas vezes na infância”. A “insensibilidade” gerada em
sua infância pela “falta de empatia do responsável” “se incorpora ao seu
cérebro como um conjunto de padrões elétricos e níveis químicos”.[9]
Uma explicação científica como essa pode afastar a culpa do sofredor e reduzir
o grau de auto-censura e auto-reprovação. Seu outro efeito, porém, é uma
absolvição do modo de vida que fez da condição denominada “depressão
dependente” u,a aflição tão comum. (pág.156 e 157)
[1] Richard Rorty, “Failed Prophecies,
Glorious Hopes”, Philosophy and Social Hope,
Penguin, 1999, p.203.
[2] Hans-Jorg Albrecht, “Immigration,
Crime and Safety”, in Adam Crawford (org.), Crime and Insecurity: The
Governance of Safety in
[3] Na época da Guerra do Golfo, “quando Saddam voltou as armas de seu
helicóptero contra os curdos do Iraque, eles tentaram fugir para o norte pelas
montanhas, para a Turquia – mas os turcos se recusaram a deixá-los entrar.
Chicotearam-nos fisicamente até voltarem às fronteiras. Ouvi um oficial turco
dizer: ‘Nós odiamos essas pessoas. Eles são porcos filhos-da-mãe’. Desse modo,
durante semanas, os curdos ficaram presos nas montanhas, a 10 graus abaixo de
zero, às vezes somente com a roupa que tinha no corpo na hora da fuga. As
crianças foram as que mais sofreram; disenteria, tifo e subnutrição...”; ver
Maggie O’Kane, “The Most Pitful Sights I Have ever Seen” Guardian, 14 fev 2003,
p.6-11.
[4] Max Scheler, Tod und Fortleben, aqui citado a partir da tradução
polonesa de Adam Wegrzecki, Cierpienie Smierc, Dalsze Zycie, PWN, 1993.
[5] Ver AlbertoMelucci, The Playing Self: Person and Meaning in the
Planetary Society, Cambridge University Press, 1996, p.43ss. Esta é uma visão
mais ampla do original italiano publicado em 1991 sob o título de Il gioco
dell1’io.
[6] Sigmund Freud, Civilization,
Society and Religion, vol.12, The Pelican Freud Library, Pengyuin, 1991, p.271,
281 e 282.
[7] Aqui e adiante, ver Hugh Wilson, “This years’s
love”, Observer Magazine,
[8] Emma Taylon e Lorelei Sharkey, “Personal Ads Are
for Lonely Hearts”, Guardian Weekend, 19 abr 2003, p.7.
[9] Ver Oliver James, “Constant craving”, Observer Magazine, 19 jan
2003, p.71.
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