Editora Centauro – São Paulo, 2004
(Síntese de Paolo Cugini)
Primeira Parte
As estruturas
do Universo Pessoal
Capítulo I
A Existência Incorporada
A pessoa está mergulhada na natureza. – O homem é o corpo exatamente como é espírito, é integralmente
“corpo” e é integralmente “espírito”.
A indissolúvel
união da alma e do corpo é o centro do pensamento cristão. Nunca opôs
“espírito” a “corpo” ou a “matéria”, na acepção moderna deste termo. Foi antes
o desprezo dos gregos pela matéria que transmitiu de século em século até aos
nossos dias, cobrindo-se de falsas justificações cristãs.
Impõe-se-nos
hoje acabar com esse pernicioso dualismo, tanto na nossa maneira de viver, como
no nosso pensamento.
Esta ascensão da
pessoa criadora pode seguir-se na história do mundo. Aparece-nos como uma luta
entre duas tendências de sentido oposto:
-Uma é uma
permanente tendência para a despersonalização-, a outra é um movimento de
personalização que, em rigor, só começa com o homem, mas cuja preparação se
anuncia ao longo de toda a história do universo [1].
Conseqüências desta
condição. – Da condição que acabamos de definir
resultam conseqüências importantes:
1ª Não interessa encher a ciência da “matéria” ou a ciência do “espírito” com
desprezo e exaltações que ao nível da realidade não têm qualquer valor.
2ª Personalismo está longe de ser um espiritualismo.
Pertence-lhe, em toda a latitude da humanidade concreta, qualquer problema
humano, desde a mais humilde condição material, às mais elevadas possibilidades
espirituais.
3ª É preciso repetir no plano da ação o que acabamos de
dizer no plano de explicação. Em qualquer problema prático é preciso assegurar
a solução no plano das infra-estruturas biológica e econômica, se quisermos que
sejam viáveis as medidas tomadas em outros planos.
A existência encarnada – O personalismo
opõe-se, pois, ao idealismo, quando o idealismo:
1º - Reduz a matéria (e o corpo) a aparência do espírito
humano, nele se inserido através de uma atividade puramente ideal;
2º - Dissolve o sujeito pessoal num amontoado de
relações geométricas ou inteligíveis, donde a sua presença é expulsa, ou
redu-lo a um simples oposto receptor de resultados objetivos.
Para o personalismo, pelo contrário:
Obstáculos à personalização da natureza. Um
otimismo trágico. Invadida pelo universo pessoal, a natureza ameaça, sem
cessar, investir também contra ele. A perfeição do universo pessoal encarando
não é, pois, a perfeição de uma ordem, como pretendem todas filosofias (e todas
as políticas) que pensam que o homem poderá um dia submeter totalmente o mundo.
É perfeição de uma liberdade que combate, e que combate duramente. Por isso,
subsiste até mesmo nas suas derrotas. Entre o otimismo impaciente da ilusão
liberal ou revolucionária e o pessimismo impaciente dos fascismos, o caminho
próprio está nesse otimismo trágico onde encontra a sua justa medida num clima
de grandeza e de luta.
Capítulo II
A comunicação
Auto defesa do indivíduo. Personalismo contra
individualismo. O individualismo é um sistema de
costumes, de sentimentos, de idéias e de instituições que organiza o indivíduo
partindo de atitudes de isolamento e de defesa. Foi a ideologia e a estrutura
dominante da sociedade burguesa ocidental entre o século XVIII e o século XIX.
Homem abstrato, sem vínculos nem comunidades naturais, Deus supremo no centro
da liberdade sem direção nem medida, sempre pronto a olhar os outros com
desconfiança, cálculo ou reivindicações, instituições reduzidas a assegurar a
instalação de todos estes egoísmos, ou o seu melhor rendimento pelas
associações viradas para o lucro; eis a forma de civilização que vemos
organizar, sem dúvida uma das mais pobres que a história jamais conheceu. É a
própria antítese do personalismo e o seu mais direto adversário.
A comunicação como fato primitivo. – assim, a primeira preocupação do individualismo é centrar o
indivíduo sobre si mesmo, e a primeira preocupação do personalismo é
descentrá-lo para o colocar nas largas perspectivas abertas pela pessoa. Quando
a comunicação se enfraquece ou se corrompe perco-me profundamente eu próprio:
todas as loucuras são uma falha nas relações com os outros – o alter torna-se alienus, torno-me também estranho a mim mesmo, alienado. Quase se
poderia dizer que só existo na medida em que existo para os outros, ou numa
frase-limite: ser é amar.
Estas verdades
são o próprio personalismo, a ponto de podermos dizer há pleonamo quando se
designa a civilização que ele visa por personalista
e comunitária[3].
Funda-se numa
série de atos originais que não têm equivalente em mais parte nenhuma no
universo.
1º. – Sair de nós
próprios. A pessoa é uma existência capas de libertar de si própria, de se
desapossar, de se descentrar para se tornar disponíveis aos outros.
2º. – Compreender.
Deixar de me colocar sempre no meu próprio ponto de vista, para me situar no
ponto de vista dos outros.
3º. – Tomar sobre
nós, assumir o destino, os desgostos, as alegrias, as tarefas dos outros,
“sofrer na nossa própria carne.
4º. – Dar. A
força viva no ímpeto não está na luta de reivindicação (individualismo
pequeno-burguês), nem na luta de morte (existencialismo), mas a generosidade e no ato gratuito, ou seja, numa palavra, na dádiva, não de compensação
ou de cálculo.
5º. – Ser fiel. A aventura da pessoa é uma aventura
constante desde o nascimento á morte. As dedicações pessoais, amor, amizade, só
podem ser perfeitas na continuidade. Essa continuidade não é uma exibição, uma
repetição uniforme, como sucede na matéria ou nas generalizações lógicas, mas
um contínuo renovamento. A fidelidade pessoal é uma fidelidade criadora ³.
Trato o outro
como um objeto quando o trato como ausente, como um repertório de informações
que me podem ser úteis (G. Marcel) ou como instrumento à minha disposição;
quando o classifico definitivamente, isto é, para empregarmos exata expressão,
quando desespero dele.
Tratá-lo como sujeito,
como ser presente, é inesgotável, pleno de esperanças, esperanças de que só ele
dispõe; é acreditar. Desesperar de alguém é desesperá-lo.
Obstáculos a comunicação. – Mas o ser
não é o amor de manhã à noite. A comunicação tem que enfrentar vários obstáculos:
1º.- Há sempre algo nos outros que foge ao mais total
esforço de comunicação. No mais íntimo dos diálogos, a coincidência perfeita
não nos é dada; nada me pode dar a certeza de que não haja qualquer
mal-entendido.
2º.- Há sempre algo em nós que resiste essencialmente a
todo esforço de reciprocidade, uma como que má-vontade fundamental, que acima
descrevemos.
3º. – Até a nossa existência é como que inerente a uma
opacidade irredutível, a uma indiscrição que é barreira à livre comunicação.
4º. – Sempre que formamos uma nova reunião de
reciprocidade, família, pátria, corpo religioso etc., cedo esta vai alimentar
um novo egocentrismo e levantar novas barreiras entre o homem e o homem.
Por isso e de
fato, no universo em que vivemos, a pessoa está a maior parte das vezes mais
exposta do que rodeada, mais abandonada do que comunicada
Capítulo III
A Conversão Íntima
O
recolhimento.- A vida pessoal começa com uma capacidade de romper contatos
com o meio, de ripostar, de recuperar, para, através de uma
unificação tentada, se constituir uma só. A pessoa só recua para depois saltar
melhor.
È nesta experiência fundamental que se fundem
os valores de silêncio e de retiro. É importante que hoje chamemos para eles a
atenção. As distrações de nossa civilização destroem o sentido do tempo livre,
o gosto pelo tempo que corre, a paciência da obra que amadurece, e vão
dispersando as vozes interiores que, dentro de pouco tempo, só o poeta e o
homem religioso escutarão.
O vocabulário do recolhimento (ripostar,
recuperar) lembra-nos, no entanto, que ele é uma conquista ativa, o oposto,
pois de uma ingênua confiança na espontaneidade e fantasia interiores.
O segredo (l’en soi). – Compreender-se que a
vida pessoal esteja naturalmente ligada a um certo segredo. As pessoas completamente viradas para fora, para a
exibição, não têm segredos, não tem densidade, nem nada por detrás delas.
Lêem-se como um livro aberto, e depressa se esgotam. Não tem a experiência
desta profunda distancia, ignoram o “respeito pelo segredo”, pelo seu ou pelo
dos outros. Gostam muito de contar, de secontar, de ouvir contar, de fazer
alarde e de remexer. A reserva na expressão, a discrição, são manifestações de
respeito da pessoa pelo seu infinito interior.
Encontramos ainda muitas vezes nos
pensamentos de inspiração personalista[4],
o tema do pudor. O pudor é o
sentimento da pessoa que não quer ser esvaziada nas suas expressões, nem
ameaçada em seu ser pelos sentimentos que assumiria a sua existência, uma vez
que esta totalmente se manifestasse. O pudor físico não traduz a impureza do
corpo, mas antes significa que eu sou infinitamente mais do que esse corpo
olhado e alcançado. O pudor dos sentimentos revela que cada um deles me limita
e me trai. Ambos são sinal de que não sou simples joguete nas mãos da natureza
ou dos outros. Não fico envergonhado por essa nudez ou esse personagem, mas por
parecer não ser mais do que isso. O contrário do pudor é a vulgaridade.
A
intimidade. O privado. – É preciso simplesmente que desmistifiquemos o
privado, impedindo que este seja elevado à posição de defesa contra a vida
pública. É a própria estrutura da
vida pessoal que a isso nos obriga: a reflexão
não é somente um olhar interior sobre mim e minhas imagens lançando; é
também intenção, projeto de nós próprios.
A
atração dos abismos.
Da
apropriação à desapropriação. – A vida pessoal é sucessiva afirmação e
negação de nós próprios. Este ritmo fundamental encontra-se em todas as suas
operações. Afirma-se num permanente trabalho de assimilação das contribuições
exteriores. Elabora-se elaborando-as. Como já vimos, uma subjetividade pura é
impensável para o homem. Para a pessoa é necessidade elementar o dispor de um
certo número de objetos com os quais, um pouco como acontece com as outras
pessoas, se vá familiarizando com o correr do tempo e o hábito. Afirmar-se é,
antes de tudo, ter espaço. É pois, preciso que não ponhamos demasiado[5]
o
ter e o ser, como duas atitudes existenciais entre a quais fosse preciso
escolher. Pensemos antes em dois pólos, no meio dos quais a existência está
compreendida. Não é possível ser em ter, embora nosso ser seja infinita
capacidade de ter, não seja nunca esgotável pelo que tem e o ultrapasse em
muito pelo seu significado. Sem ter, a existência não se agarra, perde-se nos objetos. Para mais, possuir é entrar em
contato, renunciar à solidão, à passividade; há falsas pobrezas que mais não
são do que escapatórias.
A
vocação. – Unindo-se para encontrar, e a seguir expondo-se para encontrar,
e a seguir expondo-se para se enriquecer e se tornar a encontrar , depois de
novo se unindo no despojamento, a vida pessoal, sístole, diástole, é a procura
até à morte de uma unidade pressentida, desejada e nunca realizada.
A
dialética intrioridade-objetividade. – Assim, a existência pessoal
permanece sempre entre um movimento de exteriorização e um movimento de
interiorização que lhe são essenciais e que podem, quer fixá-la, quer
dissipá-la.
É então que é preciso lembrar à pessoa que
ela só encontra e se fortifica por intermédio do objeto: é preciso sair da interioridade para alimentar a interioridade. É
preciso que não desprezemos tanto a vida exterior: sem ela, a vida interior
tornar-se-ia incoerente, tal como, sem vida interior, aquela mais não seria que
delírio.
Capítulo IV
O Afrontamento
A singularidade. O excepcional. – Se a pessoa se cumpre na realização de valores infinitamente longe
situados, é no entanto chamada a atingir o extraordinário no próprio centro da
vida cotidiana.
Os valores de ruptura. A pessoa como protesto. – existir é dizer
sim, é aceitar, é aderir. Mas se for aceitando sempre, se não recusar e nunca
me recusar, deixo-me submergir, existir pessoalmente é também e muitas vezes
saber dizer não, protestar, desligar-se.
A luta
de Jacob. A força. – A pessoa toma consciência de si própria, não no
êxtase, mas numa luta de força. A força é um de seus principais atributos; mas
não a força bruta do poder ou da agressividade em que o homem renuncia a si
próprio para imitar o choque material, ma as força humana, simultaneamente
interior e eficaz, espiritual e manifesta.
A
afirmação. A pessoa como o ato e como opção -. Ser é amar. Mas também
afirmar-se. Pode voltar-se e tornar-se a voltar em todos os sentidos o estudo
objetivo do eu, substituir a substância material pela substância espiritual
para tornar mais necessária aquela, a substância espiritual pela material para
tornar mais sólida, que nunca obteremos, por tais formas, o ato da pessoa que
diz eu.
Exatamente, agir é escolher, por conseguinte
cortar, saber acabar o tempo, e, ao mesmo tempo em que adotar, recusar e
repelir.
O irredutível. – Se as negações da pessoa são, na maior parte das vezes, dialéticas
e solidárias de uma recuperação, vem sempre o momento das irredutíveis recusas,
em que o próprio ser da pessoa está em jogo.
Há na pessoa uma
indomável paixão que nela arde como fogo divino. Ergue-se e range ao vento de
cada vez que presente a ameaça servidão e prefere defender, mais do que a sua
vida, a dignidade de sua vida.
A maioria dos
homens prefere a escravidão na segurança ao risco na independência, a vida
material e vegetativa à aventura humana. No entanto, a revolta em tempo de
domesticação, a resistência à opressão, a recusa face ao aviltamento soa
privilégios inalienáveis da pessoa, seu último recurso quando o mundo levanta
contra o seu reino.
Capítulo
V
Liberdade
com Condições
A liberdade não é uma coisa.
Tudo o que
podemos dizer neste capítulo é que:
1º. A ciência
moderna estabelece que o universo não é totalmente ao plano do determinismo em
que procurava esta totalização e disso se apercebeu naquelas das suas
atividades ( matemática e logística) que mais diretamente a deveriam conduzir a
uma sistematização perfeita; se a ciência nada tem a dizer a favor da
liberdade, deve cada vez mais também renunciar a contestá-la.
2º. A natureza
revela uma opressão lenta e contínua das condições de liberdade. No entanto a
liberdade não resulta destes preparativos como o fruto da flor. No mistério das
forças naturais que os atravessa, e misturam, foi reservado para a
insubstituível iniciativa da pessoa reconhecer os declives cúmplices da sua
liberdade, escolhe-los e neles se comprometer. É a pessoa que se faz livre,
depois de ter escolhido ser livre. Em parte nenhuma encontrará a liberdade dada
e constituída. Nada no mundo lhe garantirá que ela é livre se não entrar
audaciosamente na experiência da liberdade.
A liberdade não é manifestação espontânea.
Esta liberdade
absoluta é um mito.
A noção de
natureza é uma noção confusa que é preciso purificar. Mas exprime que
existência, ao mesmo tempo em que é manifestação espontânea, é também
espessura, densidade; ao mesmo tempo em que é criação, é dano. Não sou somente
o que faço, o mundo não é somente o que quero. Sou dado a mim próprio e o mundo
antecede-me. Sendo esta a minha condição, há na própria liberdade um peso
múltiplo, o que lhe vem de mim próprio, do meu ser particular que a limita, o
que lhe vem do mundo, das necessidades que a constrangem e dos valores que a
primem.
A nossa liberdade
é liberdade de pessoas situadas, e é também liberdade de pessoas valorizadas.
Não sou livre apenas porque exerço minha espontaneidade, torno-me livre se der
a essa espontaneidade o sentido de uma libertação, ou seja, de uma
personalização do mundo e de próprio. Da espontaneidade da existência a
liberdade, há, pois, aqui, uma nova instância, a que separa a pessoa implícita,
à beira do ímpeto vital, da pessoa que por seus atos amadurece na espessura
cada vez maior da existência individual e coletiva. Por isso, não posso dispor
arbitrariamente da minha liberdade, embora o ponto onde com ela me confundo
esteja inserido no mais fundo de mim próprio. A minha liberdade não é somente
manifestação espontânea, mas antes dirigida, ou, ainda melhor, invocada.
Liberdade de escolha e liberdade de adesão.-
O movimento de liberdade é também repouso, permeabilidade, disponibilidade. Não
é somente ruptura e conquista, é também e finalmente, adesão. O homem livre é
um homem que o mundo interroga e que responde; é o homem responsável. A liberdade,assim,entendida, não isola mas uma, não
permite a anarquia, mas é, na verdadeira acepção destas palavras, religião,
devoção. Não é o ser da pessoa, mas o modo como a pessoa é tudo o que é, e é-o
mais plenamente do que por necessidade.
Capítulo
VI
A
Eminente Dignidade
A transcendência
da pessoa manifesta-se a partir da atividade produtora.
A aspiração
transcendente da pessoa não é agitação, mas negação de nós próprios como mundo
fechado, suficiente, isolado sobre o seu próprio brotar. A pessoa não é o ser,
é movimento do ser para o ser, e não é consistente senão no ser que visa.
Direção da transcendência. – Este
permanente agitar do ser pessoal tem
alguma orientação? A permanente projeção
de nós próprios para diante de nós, para um ser sem finalidade num universo sem
significação, não é uma orientação, tal como não é uma verdadeira
transcendência. O ultrapassar da pessoa por si própria não é somente projeto, é
elevação (Jaspers), passar para além de. O
ser pessoal é um ser feito para ultrapassar. Todos os valores se agrupam para
ele debaixo do apelo de uma Pessoa suprema.
A personalização dos valores. –
Resta-nos percorrer rapidamente as grandes direções dos valores e a sua
articulação na vida pessoal.
Mas nem por isso
a verdade é subjetiva.
4. Os valores
morais. Traços gerais duma ética personalista. – Liberdade e valor: o
universo pessoal define o universo moral e coincide com ele. Não é a
imoralidade que dele devemos excluir: erro ou pecado são conseqüência e
condição da liberdade. É antes o estádio da pré-moralidade: abandono ao
automatismo impessoal do instinto ou do hábito, à dispersão, ao egocentrismo, à
indiferença e à cegueira moral. Entre as duas, a moralidade mistificada procura
na observância exterior um compromisso entre as exigências de valor e as forças
pré-morais, ou seja, máscaras para a imoralidade.
O mal moral
começa com estas imposturas. Perversão profunda da liberdade, o conhecimento
objetivo do bem e do mal não basta para dissipar, tal como não basta uma
simples técnica de higiene ou de sobrevivência. É preciso uma conversão. Mas
conversão que exige manobra tão rápida quanto à liberdade. A obsessão moral
instala na virtude o espírito da propriedade e fecha, mais do que abre, os
caminhos da moralidade. Quanto mais conseguir descentrar a preocupação moral,
melhor poderá prosseguir. O sentimento da impureza, da sujidade pessoal, é
válido, mas está demasiado próximo de uma preocupação egocêntrica de
integridade, perde-se no sonho, sufoca-se no escrúpulo. E melhor um encontro, é
mesmo melhora a viva e pertubante ferida do mal que a outrem se fez. Só o
sofrimento pode amadurecer o cogito moral. É através das próprias
feridas que a fraqueza abriu que a alma habituada – ao mal ou ao bem – se
liberta do círculo mágico que a prendia.
Num tal momento
o combate moral prossegue em duas direções.é preciso que saiba alimentar a
insatisfação e o drama da liberdade. O final da inquetação é o final da
moralidade e da vida pessoal: à liberdade sucede-se o legalismo que prolonga as
pressões sociais e as intimidações infantis, elimina a invenção moral e
socializa este critério, classificando segundo uma observância formal os maus e
os bons. O legalismo, no entanto, não condena a lei que é ainda necessária a
unma liberdade incorparada e socializada.
Mas se o destino
desta história está de antemão fixo não pode haver liberdade. O destino comum
da humanidade é efetivamente para um conjunto de pessoas um dos seus mais altos
valores. Com o despertar dos continentes e após as feridas das duas grandes
guerras mundiais começa a ganhar corpo, como ainda não o tinha feito.
7. Os valores religiosos. Personalismo e
Cristianismo. – Um personalista cristão não tem mais a dizer sobre o
cristianismo do que qualquer outro cristão. Da relação de Fé, sublinhará
somente a estrutra pessoal, confiança ou intimidade suprema e obscura da pessoa
numa Pessoa transcendente, e a incompetência, nesta capítulo, de qualquer
demosntração ou regulamentação que permanecesse puramente objetiva99. Mas o
Cristianismo é também religião de um a transcedencia que encarna num universo
de pessoas incoporado e histórico.
Obstáculos
aos valores. O sofrimento. O mal. O nada.
Capítulo VII
O Compromisso
Uma teoria da ação não é, pois,
apêndice ao personalismo, é seu capítulo central.
As
quatro dimensões da ação. – Que exigiremos, pois, da ação? Que modifique a
realidade exterior, que nos forme, que nos aproxime dos homens, que enriqueça o
nosso universo de valores. Para sermos exatos, exigimos de qualquer ação que
responda mais ou menos a essas quatro exigências, porque é todo o homem que
dentro de nós de debruça para beber em cada um dos nossos atos.
Há no entanto, formas de ação que valorizam
predominantemente uma, sendo outras, apenas o indispensável complemento harmonia.
Iremos assim reencontrar uma distinção clássica.
1. No fazer (poiein) a ação tem por principal
fim dominar e organizar uma matéria exterior. Chamá-la-emos econômica: ação do homem sobre coisas,
ação do homem sobre o homem no plano das forças naturais ou produtivas, que
está presente sempre que o homem, até mesmo em problemas de cultura ou
religião, desmonta, ilumina ou engrena determinismos. É o domínio da ciência
aplicada aos assuntos humanos da indústria
no sentido mais vasto do termo. Tem o seu fim e o seu critério próprio na eficácia.
2. Vista sob o ângulo
do agir (prassein) a ação não tem
como principal fim a construção de uma obra exterior, mas a formação daquele
que executa, a sua capacidade, as suas virtudes, a sua unidade pessoal. Esta
zona da ação ética tem seu fim e sua
dimensão na autenticidade.
3. Teorein, diziam os gregos para designar
este aspecto da nossa atividade que explora os valores e se enriquece à medida
que se estende o seu reino sobre a humanidade. Se conservarmos tradução clássica
de ação contemplativa temos, contudo, que apreciar que essa contemplação para
nós não depende somente da inteligência, mas do homem inteiro, não é evasão da
atividade comum para uma atividade escolhida
e separada, mas aspiração a um reino
de valores que abranja e desenvolva toda a atividade humana. O seu fim é perfeição e universalidade, mas através
de uma obra finita e de uma ação singular.
A atividade contemplativa é desinteressada,
no sentido de que não visa diretamente a organização das relações exteriores
entre as coisas e entre os homens.
O contemplativo, embora guardando como
principal preocupação a exploração e a integral experiência de valores, pode
ter também diretamente em vista modificação de caráter prático. Diremos então
que a sua ação é de tipo profético. A
ação profética assegura a ligação entre o contemplativo e o prático
(ético+econômico), como a ação política entre o ético e o econômico. Cabe-lhe,
por exemplo, afirmar em todo o ser rigor, pela palavra, por escritos ou por
atos, a existência de um absoluto cujo sentido se perde dia a dia ao peso de
tantos compromissos.
4. Não temos que
retomar o tratamento da dimensão coletiva da ação. Comunidade de trabalho,
comunidade de destino ou comunhão espiritual são indispensáveis à sua humanização
integral.
Foi pela oferta que
delas foi feita, oferta mais ou menos impura, àqueles que não se encontravam no
ambiente do seu país ou da sua vida, que fascismo e comunismo conheceram tão
largo sucesso. Não é com os clamores de desesperados solitários que hoje
poderemos despertar uma ação que o desespero esgotou.
Pólo político e pólo profético. Teoria do compromisso. – Tal é, pois, a total extensão da
ação. Não basta, como vimos, afirmar de um modo geral a solidariedade entre a
teoria e a prática. Importa traçar uma total geografia da ação para sabermos
tudo o que deve ser unido e como o deve ser. Nenhuma ação poderá ser sã e
viável se desprezar totalmente, ou, por maioria de razão, se repelir, quer uma
preocupação de eficácia, quer o contributo de uma vida espiritual. Se
esquecermos, no entanto, a incapacidade de cada homem para plenamente realizar
todo o homem, especializa a ação. O técnico, o político, o moralista, o
profeta, o contemplativo irritam-se muitas vezes uns com os outros. Não podemos
ser tudo ao mesmo tempo: mas a ação, no sentido corrente da palavra, aquela que
sobre a vida pública incide, não pode, portanto implicar um desequilíbrio,
assumir bases mais estreitas do que o campo que vai do pólo político ao pólo profético. O homem de ação realizado é aquele
que vive no seu íntimo esta dupla polaridade, percorre agitando-se o caminho
que vai de um outro, combatendo a um tempo para assegurar a autonomia e regular
a força de cada um, e para encontrar as comunicações que conduzem de um a outro.
A maior parte das vezes, o temperamento político que vive na condução e no
compromisso, e o temperamento profético que vive na meditação e na audácia, não
coexistem no mesmo homem. É indispensável para uma ação bem combinada a
existência destas duas espécies de homens, o profeta perde-se em vãs
imprecações e o tático deixa-se arrastar em manobras várias.
[1] Sobre esta preparação ver os textos do P. Teilhard de Chardin.
[2] Tema essencial das obras de Gabriel Marcel e Maine de Biran. Ver,
também, G. Madinier: Conscience et
mouvement.
[3] Fórmula empregada pela revista Esprit
(Inverno, 23-33) nos números especiais Révolution
personnaliste, Révolution communautarie, e
[4] Por exemplo. Kierkegaard, Jaspers, Soloviev.
[5] Menos mesmo do que G. Marcel
no Être et avoir (Aubier); Le
Journal métaphysique; Du refus à Pinvocation (Gallimard).
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