sexta-feira, 14 de julho de 2023

EMMANUEL MOUNIER - O PERSONALISMO (sintese)

 




Editora Centauro – São Paulo, 2004

(Síntese de Paolo Cugini)

 

Primeira Parte

                                As estruturas do Universo Pessoal

 

Capítulo I

 

A Existência Incorporada

 

    A pessoa está mergulhada na natureza. – O homem é o corpo exatamente como é espírito, é integralmente “corpo” e é integralmente “espírito”.

  A indissolúvel união da alma e do corpo é o centro do pensamento cristão. Nunca opôs “espírito” a “corpo” ou a “matéria”, na acepção moderna deste termo. Foi antes o desprezo dos gregos pela matéria que transmitiu de século em século até aos nossos dias, cobrindo-se de falsas justificações cristãs.

  Impõe-se-nos hoje acabar com esse pernicioso dualismo, tanto na nossa maneira de viver, como no nosso pensamento.

  Esta ascensão da pessoa criadora pode seguir-se na história do mundo. Aparece-nos como uma luta entre duas tendências de sentido oposto:

  -Uma é uma permanente tendência para a despersonalização-, a outra é um movimento de personalização que, em rigor, só começa com o homem, mas cuja preparação se anuncia ao longo de toda a história do universo [1].

   Conseqüências desta condição. – Da condição que acabamos de definir resultam conseqüências importantes:

1ª Não interessa encher a ciência da     “matéria” ou a ciência do “espírito” com desprezo e exaltações que ao nível da realidade não têm qualquer valor.

2ª Personalismo está longe de ser um espiritualismo. Pertence-lhe, em toda a latitude da humanidade concreta, qualquer problema humano, desde a mais humilde condição material, às mais elevadas possibilidades espirituais.

3ª É preciso repetir no plano da ação o que acabamos de dizer no plano de explicação. Em qualquer problema prático é preciso assegurar a solução no plano das infra-estruturas biológica e econômica, se quisermos que sejam viáveis as medidas tomadas em outros planos.

   A existência encarnada – O personalismo opõe-se, pois, ao idealismo, quando o idealismo:

1º - Reduz a matéria (e o corpo) a aparência do espírito humano, nele se inserido através de uma atividade puramente ideal;

2º - Dissolve o sujeito pessoal num amontoado de relações geométricas ou inteligíveis, donde a sua presença é expulsa, ou redu-lo a um simples oposto receptor de resultados objetivos.

 

 

 

 

 

 

Para o personalismo, pelo contrário:

1º. Por mais abundante e sutil que seja a luz que o espírito humano leva até às mais pequenas articulações do universo, a materialidade existe de uma existência irredutível, autônoma, hostil à consciência. Só se pode resolver numa relação interior da consciência.

2º. Até nas formas mais elementares da minha existência me afirmo como pessoa, e, nunca sendo fator de despersonalização, muito pelo contrário, a minha existência encarnada é fator essencial da minha situação pessoal.

  Existir subjetivamente, existir corporalmente são uma única e mesma experiência [2].

Não posso pensar sem ser, nem ser sem o meu corpo: através dele, exponho-me a mim próprio, ao mundo, aos outros, através dele escapo à solidão de um pensamento que mais não seria do que pensamento do meu pensamento.

 

  A personalização da natureza. – A pessoa não se contenta com sofrer a ação da natureza, donde veio, ou com mover-se conforme suas provocações. Volta-se para ela para a transformar e progressivamente lhe impor a soberania de um universo pessoal. A pessoa só se liberta, libertando. E é chamada tanto para libertar a humanidade, como as coisas.

  Obstáculos à personalização da natureza. Um otimismo trágico. Invadida pelo universo pessoal, a natureza ameaça, sem cessar, investir também contra ele. A perfeição do universo pessoal encarando não é, pois, a perfeição de uma ordem, como pretendem todas filosofias (e todas as políticas) que pensam que o homem poderá um dia submeter totalmente o mundo. É perfeição de uma liberdade que combate, e que combate duramente. Por isso, subsiste até mesmo nas suas derrotas. Entre o otimismo impaciente da ilusão liberal ou revolucionária e o pessimismo impaciente dos fascismos, o caminho próprio está nesse otimismo trágico onde encontra a sua justa medida num clima de grandeza e de luta.

 

 

Capítulo II

 

A comunicação

 

  Auto defesa do indivíduo. Personalismo contra individualismo. O individualismo é um sistema de costumes, de sentimentos, de idéias e de instituições que organiza o indivíduo partindo de atitudes de isolamento e de defesa. Foi a ideologia e a estrutura dominante da sociedade burguesa ocidental entre o século XVIII e o século XIX. Homem abstrato, sem vínculos nem comunidades naturais, Deus supremo no centro da liberdade sem direção nem medida, sempre pronto a olhar os outros com desconfiança, cálculo ou reivindicações, instituições reduzidas a assegurar a instalação de todos estes egoísmos, ou o seu melhor rendimento pelas associações viradas para o lucro; eis a forma de civilização que vemos organizar, sem dúvida uma das mais pobres que a história jamais conheceu. É a própria antítese do personalismo e o seu mais direto adversário.

  A comunicação como fato primitivo. – assim, a primeira preocupação do individualismo é centrar o indivíduo sobre si mesmo, e a primeira preocupação do personalismo é descentrá-lo para o colocar nas largas perspectivas abertas pela pessoa. Quando a comunicação se enfraquece ou se corrompe perco-me profundamente eu próprio: todas as loucuras são uma falha nas relações com os outros – o alter torna-se alienus, torno-me também estranho a mim mesmo, alienado. Quase se poderia dizer que só existo na medida em que existo para os outros, ou numa frase-limite: ser é amar.

  Estas verdades são o próprio personalismo, a ponto de podermos dizer há pleonamo quando se designa a civilização que ele visa por personalista e comunitária[3].

  Funda-se numa série de atos originais que não têm equivalente em mais parte nenhuma no universo.

1º. – Sair de nós próprios. A pessoa é uma existência capas de libertar de si própria, de se desapossar, de se descentrar para se tornar disponíveis aos outros.

2º. – Compreender. Deixar de me colocar sempre no meu próprio ponto de vista, para me situar no ponto de vista dos outros.

3º. – Tomar sobre nós, assumir o destino, os desgostos, as alegrias, as tarefas dos outros, “sofrer na nossa própria carne.

4º. – Dar. A força viva no ímpeto não está na luta de reivindicação (individualismo pequeno-burguês), nem na luta de morte (existencialismo), mas a generosidade e no ato gratuito, ou seja, numa palavra, na dádiva, não de compensação ou de cálculo.

5º. – Ser fiel. A aventura da pessoa é uma aventura constante desde o nascimento á morte. As dedicações pessoais, amor, amizade, só podem ser perfeitas na continuidade. Essa continuidade não é uma exibição, uma repetição uniforme, como sucede na matéria ou nas generalizações lógicas, mas um contínuo renovamento. A fidelidade pessoal é uma fidelidade criadora ³.

  Trato o outro como um objeto quando o trato como ausente, como um repertório de informações que me podem ser úteis (G. Marcel) ou como instrumento à minha disposição; quando o classifico definitivamente, isto é, para empregarmos exata expressão, quando desespero dele.

 

 

 

  Tratá-lo como sujeito, como ser presente, é inesgotável, pleno de esperanças, esperanças de que só ele dispõe; é acreditar. Desesperar de alguém é desesperá-lo.

  Obstáculos a comunicação. – Mas o ser não é o amor de manhã à noite. A comunicação tem que enfrentar vários obstáculos:

1º.- Há sempre algo nos outros que foge ao mais total esforço de comunicação. No mais íntimo dos diálogos, a coincidência perfeita não nos é dada; nada me pode dar a certeza de que não haja qualquer mal-entendido.

2º.- Há sempre algo em nós que resiste essencialmente a todo esforço de reciprocidade, uma como que má-vontade fundamental, que acima descrevemos.

3º. – Até a nossa existência é como que inerente a uma opacidade irredutível, a uma indiscrição que é barreira à livre comunicação.

4º. – Sempre que formamos uma nova reunião de reciprocidade, família, pátria, corpo religioso etc., cedo esta vai alimentar um novo egocentrismo e levantar novas barreiras entre o homem e o homem.

  Por isso e de fato, no universo em que vivemos, a pessoa está a maior parte das vezes mais exposta do que rodeada, mais abandonada do que comunicada

 

 

Capítulo III

 

A Conversão Íntima

 

   O recolhimento.- A vida pessoal começa com uma capacidade de romper contatos com o meio, de ripostar, de recuperar, para, através de uma unificação tentada, se constituir uma só. A pessoa só recua para depois saltar melhor.

  È nesta experiência fundamental que se fundem os valores de silêncio e de retiro. É importante que hoje chamemos para eles a atenção. As distrações de nossa civilização destroem o sentido do tempo livre, o gosto pelo tempo que corre, a paciência da obra que amadurece, e vão dispersando as vozes interiores que, dentro de pouco tempo, só o poeta e o homem religioso escutarão.

  O vocabulário do recolhimento (ripostar, recuperar) lembra-nos, no entanto, que ele é uma conquista ativa, o oposto, pois de uma ingênua confiança na espontaneidade e fantasia interiores.

  O segredo (l’en soi). – Compreender-se que a vida pessoal esteja naturalmente ligada a um certo segredo. As pessoas completamente viradas para fora, para a exibição, não têm segredos, não tem densidade, nem nada por detrás delas. Lêem-se como um livro aberto, e depressa se esgotam. Não tem a experiência desta profunda distancia, ignoram o “respeito pelo segredo”, pelo seu ou pelo dos outros. Gostam muito de contar, de secontar, de ouvir contar, de fazer alarde e de remexer. A reserva na expressão, a discrição, são manifestações de respeito da pessoa pelo seu infinito interior.

  Encontramos ainda muitas vezes nos pensamentos de inspiração personalista[4], o tema do pudor. O pudor é o sentimento da pessoa que não quer ser esvaziada nas suas expressões, nem ameaçada em seu ser pelos sentimentos que assumiria a sua existência, uma vez que esta totalmente se manifestasse. O pudor físico não traduz a impureza do corpo, mas antes significa que eu sou infinitamente mais do que esse corpo olhado e alcançado. O pudor dos sentimentos revela que cada um deles me limita e me trai. Ambos são sinal de que não sou simples joguete nas mãos da natureza ou dos outros. Não fico envergonhado por essa nudez ou esse personagem, mas por parecer não ser mais do que isso. O contrário do pudor é a vulgaridade.

  A intimidade. O privado. – É preciso simplesmente que desmistifiquemos o privado, impedindo que este seja elevado à posição de defesa contra a vida pública. É a própria estrutura da vida pessoal que a isso nos obriga: a reflexão não é somente um olhar interior sobre mim e minhas imagens lançando; é também intenção, projeto de nós próprios.

  A atração dos abismos.

  Da apropriação à desapropriação. – A vida pessoal é sucessiva afirmação e negação de nós próprios. Este ritmo fundamental encontra-se em todas as suas operações. Afirma-se num permanente trabalho de assimilação das contribuições exteriores. Elabora-se elaborando-as. Como já vimos, uma subjetividade pura é impensável para o homem. Para a pessoa é necessidade elementar o dispor de um certo número de objetos com os quais, um pouco como acontece com as outras pessoas, se vá familiarizando com o correr do tempo e o hábito. Afirmar-se é, antes de tudo, ter espaço. É pois, preciso que não ponhamos demasiado[5]  o ter e o ser, como duas atitudes existenciais entre a quais fosse preciso escolher. Pensemos antes em dois pólos, no meio dos quais a existência está compreendida. Não é possível ser em ter, embora nosso ser seja infinita capacidade de ter, não seja nunca esgotável pelo que tem e o ultrapasse em muito pelo seu significado. Sem ter, a existência não se agarra, perde-se nos objetos. Para mais, possuir é entrar em contato, renunciar à solidão, à passividade; há falsas pobrezas que mais não são do que escapatórias.

  A vocação. – Unindo-se para encontrar, e a seguir expondo-se para encontrar, e a seguir expondo-se para se enriquecer e se tornar a encontrar , depois de novo se unindo no despojamento, a vida pessoal, sístole, diástole, é a procura até à morte de uma unidade pressentida, desejada e nunca realizada.

  A dialética intrioridade-objetividade. – Assim, a existência pessoal permanece sempre entre um movimento de exteriorização e um movimento de interiorização que lhe são essenciais e que podem, quer fixá-la, quer dissipá-la.

  É então que é preciso lembrar à pessoa que ela só encontra e se fortifica por intermédio do objeto: é preciso sair da interioridade para alimentar a interioridade. É preciso que não desprezemos tanto a vida exterior: sem ela, a vida interior tornar-se-ia incoerente, tal como, sem vida interior, aquela mais não seria que delírio.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo IV

 

O Afrontamento

 

 

 

 A singularidade. O excepcional. – Se a pessoa se cumpre na realização de valores infinitamente longe situados, é no entanto chamada a atingir o extraordinário no próprio centro da vida cotidiana.

 Os valores de ruptura. A pessoa como protesto. – existir é dizer sim, é aceitar, é aderir. Mas se for aceitando sempre, se não recusar e nunca me recusar, deixo-me submergir, existir pessoalmente é também e muitas vezes saber dizer não, protestar, desligar-se.

  A luta de Jacob. A força. – A pessoa toma consciência de si própria, não no êxtase, mas numa luta de força. A força é um de seus principais atributos; mas não a força bruta do poder ou da agressividade em que o homem renuncia a si próprio para imitar o choque material, ma as força humana, simultaneamente interior e eficaz, espiritual e manifesta.

  A afirmação. A pessoa como o ato e como opção -. Ser é amar. Mas também afirmar-se. Pode voltar-se e tornar-se a voltar em todos os sentidos o estudo objetivo do eu, substituir a substância material pela substância espiritual para tornar mais necessária aquela, a substância espiritual pela material para tornar mais sólida, que nunca obteremos, por tais formas, o ato da pessoa que diz eu.

  Exatamente, agir é escolher, por conseguinte cortar, saber acabar o tempo, e, ao mesmo tempo em que adotar, recusar e repelir.

  O irredutível. – Se as negações da pessoa são, na maior parte das vezes, dialéticas e solidárias de uma recuperação, vem sempre o momento das irredutíveis recusas, em que o próprio ser da pessoa está em jogo.

  Há na pessoa uma indomável paixão que nela arde como fogo divino. Ergue-se e range ao vento de cada vez que presente a ameaça servidão e prefere defender, mais do que a sua vida, a dignidade de sua vida.

  A maioria dos homens prefere a escravidão na segurança ao risco na independência, a vida material e vegetativa à aventura humana. No entanto, a revolta em tempo de domesticação, a resistência à opressão, a recusa face ao aviltamento soa privilégios inalienáveis da pessoa, seu último recurso quando o mundo levanta contra o seu reino.

 

 

 

Capítulo V

 

Liberdade com Condições

 

  A liberdade não é uma coisa.

  Tudo o que podemos dizer neste capítulo é que:

  1º. A ciência moderna estabelece que o universo não é totalmente ao plano do determinismo em que procurava esta totalização e disso se apercebeu naquelas das suas atividades ( matemática e logística) que mais diretamente a deveriam conduzir a uma sistematização perfeita; se a ciência nada tem a dizer a favor da liberdade, deve cada vez mais também renunciar a contestá-la.

  2º. A natureza revela uma opressão lenta e contínua das condições de liberdade. No entanto a liberdade não resulta destes preparativos como o fruto da flor. No mistério das forças naturais que os atravessa, e misturam, foi reservado para a insubstituível iniciativa da pessoa reconhecer os declives cúmplices da sua liberdade, escolhe-los e neles se comprometer. É a pessoa que se faz livre, depois de ter escolhido ser livre. Em parte nenhuma encontrará a liberdade dada e constituída. Nada no mundo lhe garantirá que ela é livre se não entrar audaciosamente na experiência da liberdade. A liberdade não é manifestação espontânea.

  Esta liberdade absoluta é um mito.

  A noção de natureza é uma noção confusa que é preciso purificar. Mas exprime que existência, ao mesmo tempo em que é manifestação espontânea, é também espessura, densidade; ao mesmo tempo em que é criação, é dano. Não sou somente o que faço, o mundo não é somente o que quero. Sou dado a mim próprio e o mundo antecede-me. Sendo esta a minha condição, há na própria liberdade um peso múltiplo, o que lhe vem de mim próprio, do meu ser particular que a limita, o que lhe vem do mundo, das necessidades que a constrangem e dos valores que a primem.

  A nossa liberdade é liberdade de pessoas situadas, e é também liberdade de pessoas valorizadas. Não sou livre apenas porque exerço minha espontaneidade, torno-me livre se der a essa espontaneidade o sentido de uma libertação, ou seja, de uma personalização do mundo e de próprio. Da espontaneidade da existência a liberdade, há, pois, aqui, uma nova instância, a que separa a pessoa implícita, à beira do ímpeto vital, da pessoa que por seus atos amadurece na espessura cada vez maior da existência individual e coletiva. Por isso, não posso dispor arbitrariamente da minha liberdade, embora o ponto onde com ela me confundo esteja inserido no mais fundo de mim próprio. A minha liberdade não é somente manifestação espontânea, mas antes dirigida, ou, ainda melhor, invocada.

  Liberdade de escolha e liberdade de adesão.- O movimento de liberdade é também repouso, permeabilidade, disponibilidade. Não é somente ruptura e conquista, é também e finalmente, adesão. O homem livre é um homem que o mundo interroga e que responde; é o homem responsável. A liberdade,assim,entendida, não isola mas uma, não permite a anarquia, mas é, na verdadeira acepção destas palavras, religião, devoção. Não é o ser da pessoa, mas o modo como a pessoa é tudo o que é, e é-o mais plenamente do que por necessidade.

 

 

 

Capítulo VI

  

A Eminente Dignidade

 

 

  A transcendência da pessoa manifesta-se a partir da atividade produtora.

  A aspiração transcendente da pessoa não é agitação, mas negação de nós próprios como mundo fechado, suficiente, isolado sobre o seu próprio brotar. A pessoa não é o ser, é movimento do ser para o ser, e não é consistente senão no ser que visa.

  Direção da transcendência. – Este permanente agitar do ser pessoal tem alguma orientação?  A permanente projeção de nós próprios para diante de nós, para um ser sem finalidade num universo sem significação, não é uma orientação, tal como não é uma verdadeira transcendência. O ultrapassar da pessoa por si própria não é somente projeto, é elevação (Jaspers), passar para além de. O ser pessoal é um ser feito para ultrapassar. Todos os valores se agrupam para ele debaixo do apelo de uma Pessoa suprema.

  A personalização dos valores. – Resta-nos percorrer rapidamente as grandes direções dos valores e a sua articulação na vida pessoal.

 1. A felicidade. – as o valor supremo não pode ser a perfeita organização dos valores vitais e econômicos a que geralmente se dá o nome de felicidade. Isolada, a felicidade e fica irremediavelmente presa entre o egoísmo individual e o mecanismo coletivo.

2. A ciência. – Uma das franquezas do existencialismo reside no fato de muitas vezes conduzir as suas análises como se a ciência não existisse.

3. A verdade. Esboço de uma teoria personalista do conhecimento. ­– Exatamente porquê o homem é o ser que está sempre comprometido, o compromisso do sujeito que conhece, longe de servir de obstáculo, é meio indispensável para um conhecimento verdadeiro. A verdade não exerce sobre as pessoas impressões automáticas ou autoritárias. Só consegue ser aceita se for proposta discretamente, e só se dá àquele que a ela se oferece de corpo e alma. A inteligência que se quer limitar ao formalismo lógico destrói-se. Assim, num universo de pessoas a verdade tem, sempre propriedade. Exatamente porque não exige somente técnicas, mas uma conversão, condição prévia para uma iluminação (mito da caverna em Platão, noção de metanoia na filosofia cristã, de arranque ou de salto nos existencialistas).

  Mas nem por isso a verdade é subjetiva.

4. Os valores morais. Traços gerais duma ética personalista. – Liberdade e valor: o universo pessoal define o universo moral e coincide com ele. Não é a imoralidade que dele devemos excluir: erro ou pecado são conseqüência e condição da liberdade. É antes o estádio da pré-moralidade: abandono ao automatismo impessoal do instinto ou do hábito, à dispersão, ao egocentrismo, à indiferença e à cegueira moral. Entre as duas, a moralidade mistificada procura na observância exterior um compromisso entre as exigências de valor e as forças pré-morais, ou seja, máscaras para a imoralidade.

  O mal moral começa com estas imposturas. Perversão profunda da liberdade, o conhecimento objetivo do bem e do mal não basta para dissipar, tal como não basta uma simples técnica de higiene ou de sobrevivência. É preciso uma conversão. Mas conversão que exige manobra tão rápida quanto à liberdade. A obsessão moral instala na virtude o espírito da propriedade e fecha, mais do que abre, os caminhos da moralidade. Quanto mais conseguir descentrar a preocupação moral, melhor poderá prosseguir. O sentimento da impureza, da sujidade pessoal, é válido, mas está demasiado próximo de uma preocupação egocêntrica de integridade, perde-se no sonho, sufoca-se no escrúpulo. E melhor um encontro, é mesmo melhora a viva e pertubante ferida do mal que a outrem se fez. Só o sofrimento pode amadurecer o cogito moral. É através das próprias feridas que a fraqueza abriu que a alma habituada – ao mal ou ao bem – se liberta do círculo mágico que a prendia.

  Num tal momento o combate moral prossegue em duas direções.é preciso que saiba alimentar a insatisfação e o drama da liberdade. O final da inquetação é o final da moralidade e da vida pessoal: à liberdade sucede-se o legalismo que prolonga as pressões sociais e as intimidações infantis, elimina a invenção moral e socializa este critério, classificando segundo uma observância formal os maus e os bons. O legalismo, no entanto, não condena a lei que é ainda necessária a unma liberdade incorparada e socializada.

5. A arte. Esboço de uma estética personalista. – O execesso da vida de trrabalho impede-nos, muitas vezes, de ver que a vida em poesia é aspecto central da vida pessoal e devia contar para o nosso pão cotidiano. Transcedente, “sublime”, no sentido autêntico da palavra, não se reduz à gulodice das sensações nem a embriaguez da vida; mas, incorporada, também não se reduz à pura contemplação da idéia, ou ao opder elaborador do espírito. É, em toda a extensão da existência, a expressão sensível da íntima gratuidade da existência: compraz-se em desconcertar visões habituais, em lançar sobre os objetos familiares um raio de luz divina, em introduzir nas regiões sublimes a comovente presença de uma percepção familiar.

6. A comunidade dos destinos. A história. – A história humana ou, mais concretamente, o destino comum da humanidade serão valores para um mundo de pessoas? Se as pessoas não são mais do que brotantes liberdades, rigorosamente solitátrias, não pode haver entre elas uma história; são outras tantas histórias incomunicáveis. Há uma história porque há uma humanidade.

  Mas se o destino desta história está de antemão fixo não pode haver liberdade. O destino comum da humanidade é efetivamente para um conjunto de pessoas um dos seus mais altos valores. Com o despertar dos continentes e após as feridas das duas grandes guerras mundiais começa a ganhar corpo, como ainda não o tinha feito.

7. Os valores religiosos. Personalismo e Cristianismo. – Um personalista cristão não tem mais a dizer sobre o cristianismo do que qualquer outro cristão. Da relação de Fé, sublinhará somente a estrutra pessoal, confiança ou intimidade suprema e obscura da pessoa numa Pessoa transcendente, e a incompetência, nesta capítulo, de qualquer demosntração ou regulamentação que permanecesse puramente objetiva99. Mas o Cristianismo é também religião de um a transcedencia que encarna num universo de pessoas incoporado e histórico.

  Obstáculos aos valores. O sofrimento. O mal. O nada.

 

 

 

 

 

 

 

 

Capítulo VII

 

O Compromisso

 

 

  Uma teoria da ação não é, pois, apêndice ao personalismo, é seu capítulo central.

  As quatro dimensões da ação. – Que exigiremos, pois, da ação? Que modifique a realidade exterior, que nos forme, que nos aproxime dos homens, que enriqueça o nosso universo de valores. Para sermos exatos, exigimos de qualquer ação que responda mais ou menos a essas quatro exigências, porque é todo o homem que dentro de nós de debruça para beber em cada um dos nossos atos.

  Há no entanto, formas de ação que valorizam predominantemente uma, sendo outras, apenas o indispensável complemento harmonia. Iremos assim reencontrar uma distinção clássica.

1. No fazer (poiein) a ação tem por principal fim dominar e organizar uma matéria exterior. Chamá-la-emos econômica: ação do homem sobre coisas, ação do homem sobre o homem no plano das forças naturais ou produtivas, que está presente sempre que o homem, até mesmo em problemas de cultura ou religião, desmonta, ilumina ou engrena determinismos. É o domínio da ciência aplicada aos assuntos humanos da indústria no sentido mais vasto do termo. Tem o seu fim e o seu critério próprio na eficácia.

2. Vista sob o ângulo do agir (prassein) a ação não tem como principal fim a construção de uma obra exterior, mas a formação daquele que executa, a sua capacidade, as suas virtudes, a sua unidade pessoal. Esta zona da ação ética tem seu fim e sua dimensão na autenticidade.

3. Teorein, diziam os gregos para designar este aspecto da nossa atividade que explora os valores e se enriquece à medida que se estende o seu reino sobre a humanidade. Se conservarmos tradução clássica de ação contemplativa temos, contudo, que apreciar que essa contemplação para nós não depende somente da inteligência, mas do homem inteiro, não é evasão da atividade comum para uma atividade escolhida  e separada, mas aspiração a um reino de valores que abranja e desenvolva toda a atividade humana. O seu fim é perfeição e universalidade, mas através de uma obra finita e de uma ação singular.

  A atividade contemplativa é desinteressada, no sentido de que não visa diretamente a organização das relações exteriores entre as coisas e entre os homens.

  O contemplativo, embora guardando como principal preocupação a exploração e a integral experiência de valores, pode ter também diretamente em vista modificação de caráter prático. Diremos então que a sua ação é de tipo profético. A ação profética assegura a ligação entre o contemplativo e o prático (ético+econômico), como a ação política entre o ético e o econômico. Cabe-lhe, por exemplo, afirmar em todo o ser rigor, pela palavra, por escritos ou por atos, a existência de um absoluto cujo sentido se perde dia a dia ao peso de tantos compromissos.

4. Não temos que retomar o tratamento da dimensão coletiva da ação. Comunidade de trabalho, comunidade de destino ou comunhão espiritual são indispensáveis à sua humanização integral.

 

 

 

Foi pela oferta que delas foi feita, oferta mais ou menos impura, àqueles que não se encontravam no ambiente do seu país ou da sua vida, que fascismo e comunismo conheceram tão largo sucesso. Não é com os clamores de desesperados solitários que hoje poderemos despertar uma ação que o desespero esgotou.

Pólo político e pólo profético. Teoria do compromisso. ­– Tal é, pois, a total extensão da ação. Não basta, como vimos, afirmar de um modo geral a solidariedade entre a teoria e a prática. Importa traçar uma total geografia da ação para sabermos tudo o que deve ser unido e como o deve ser. Nenhuma ação poderá ser sã e viável se desprezar totalmente, ou, por maioria de razão, se repelir, quer uma preocupação de eficácia, quer o contributo de uma vida espiritual. Se esquecermos, no entanto, a incapacidade de cada homem para plenamente realizar todo o homem, especializa a ação. O técnico, o político, o moralista, o profeta, o contemplativo irritam-se muitas vezes uns com os outros. Não podemos ser tudo ao mesmo tempo: mas a ação, no sentido corrente da palavra, aquela que sobre a vida pública incide, não pode, portanto implicar um desequilíbrio, assumir bases mais estreitas do que o campo que vai do pólo político ao pólo profético. O homem de ação realizado é aquele que vive no seu íntimo esta dupla polaridade, percorre agitando-se o caminho que vai de um outro, combatendo a um tempo para assegurar a autonomia e regular a força de cada um, e para encontrar as comunicações que conduzem de um a outro. A maior parte das vezes, o temperamento político que vive na condução e no compromisso, e o temperamento profético que vive na meditação e na audácia, não coexistem no mesmo homem. É indispensável para uma ação bem combinada a existência destas duas espécies de homens, o profeta perde-se em vãs imprecações e o tático deixa-se arrastar em manobras várias.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Sobre esta preparação ver os textos do P. Teilhard de Chardin.

[2] Tema essencial das obras de Gabriel Marcel e Maine de Biran. Ver, também, G. Madinier: Conscience et mouvement.

[3] Fórmula empregada pela revista Esprit (Inverno, 23-33) nos números especiais Révolution personnaliste, Révolution communautarie, e em E. Mounier, Révolution personnaliste et communuautarie (Aubier, 1934), tantas vezes depois retomada.

[4] Por exemplo. Kierkegaard, Jaspers, Soloviev.

[5]  Menos mesmo do que G. Marcel no Être et avoir  (Aubier); Le Journal métaphysique; Du refus à Pinvocation (Gallimard).

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