sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Hans Jonas - O Princípio Vida

 


 

VOZES, Petrópolis, 2004

Síntese: Paolo Cugini

 Digitação: Jaciara Souza Pereira

 

                                      Introdução

                        A temática de uma filosofia da vida

Nós afirmamos é que já o metabolismo, a camada básica de toda existência orgânica, permite que a liberdade seja reconhecida – ou que ele é efetivamente a primeira forma da liberdade. (pag. 13)

Nos obscuros movimentos da substancia orgânica primitiva, dentro da necessidade sem limites do universo físico, ocorre um primeiro lampejo de um principio de liberdade – principio este que é estranho aos astros, aos planetas e aos átomos. Evidentemente, quando o conceito é utilizado para um principio tão amplo, todas as associações de significado têm que ser mantidas á distancia: “liberdade” tem que designar um modo de ser capaz de ser percebido objetivamente, isto é, uma maneira de existir atribuída ao orgânico em si, e que neste sentido seja compartilhada por todos os membros da classe dos “orgânicos”, sem ser compartilhada pelas demais: um conceito ontologicamente descrito, que de inicio só possa ser mesmo relacionado a fatos meramente corporais. (pag. 13)

Apesar de toda a objetividade física, os caracteres por ele descrito no nível primitivo constituem a base ontológica e a antecipação daqueles fenômenos mais elevados a que pode ser aplicado diretamente o nome de “liberdade”, e que lhe servem de exemplo manifesto: e mesmo os mais elevados destes fenômenos permanecem ligados aos inícios não aparentes na camada orgânica básica, como condição para que seja possíveis. Desta maneira o primeiro aparecimento do principio em sua forma pura e elementar implica a irrupção do ser em um âmbito ilimitado de possibilidades, que se estende até as mais distantes amplidões da vida subjetiva, e que como um todo se encontra sob o signo da “liberdade”. (pag. 13 e 14)

Suspenso, assim, na possibilidade, o ser sob todos os aspectos um fato polar, e a vida manifesta sem cessar esta polaridade nas antíteses básicas que determinam sua existência: antítese do ser e não-ser, de eu e mundo, de formas e matéria, de liberdade e necessidade. Todas estas dualidades, como é fácil perceber, são formas de revelação: viver é essencialmente estar relacionado com algo; e relação, como tal, implica “transrelação. Se conseguirmos mostrar a presença de uma tal, implica “transrelação. Se conseguirmos mostrar a presença de uma tal transcendência e das polaridades que a articulam já na própria base da vida, por mais rudimentar e pré-espiritual que seja sua forma, teremos tornado verdadeira a afirmação de que o espírito se encontra prefigurado na existência orgânica como tal. (pag. 15)

A morte é a passagem para quê, já que tudo quanto existe é vida, e a morte em última analise não pode ser diferente? A metafísica primitiva tenta responder a estas perguntas; ou então as põe em duvidas,  rebelando-se, revoltando-se contra a lei que não consegue compreender, e deixando-a sem respostas. É a questão de Gilgamesh – a resposta do culto aos mortos. Assim como para o ser humano primitivo o saber tomou forma nos utensílios de pedra, assim também sua reflexão encarnou-se nos túmulos, que reconhecem a morte ao mesmo tempo que a negam. Dos túmulos surgiu a metafísica, sob a forma do mito e da religião. A metafísica procura resolver esta contradição básica, de que tudo é vida e que toda vida está sujeita á morte. Ela se expõe ao desafio radical, e para salvar a totalidade das coisas, nega a morte. (pag. 18)

Reduzir a vida ao que não tem vida é outra coisa senão dissolver o particular no geral, o composto no simples, a exceção aparente na regra confirmada. Esta é precisamente a tarefa imposta á ciência moderna da vida, á biologia, pelos objetivos da “ciência” em si. O grau de aproximação a este objetivo é uma medida do seu êxito; o resto que permanece ainda sem ser conquistado constitui sua fronteira provisória, destinada a ser sempre mais ampliada. (pag. 21)

O dualismo é o elemento de ligação que historicamente uniu os dois extremos, que até agora foram aqui contrapostos um ao outro; efetivamente, foi ele o veiculo para o movimento que levou o espírito humano, do monismo vitalista da pré-história para o monismo materialista da época atual, como um resultado não intendido ou mesmo paradoxal; e não é fácil ver como um poderia ser alcançado a partir do outro, a não ser por este grande rodeio. (pag. 22)

A ascensão e a prolongada dominação do dualismo faz parte, em mais de um aspecto, do numero dos acontecimentos decisivos da história intelectual da humanidade. Sua importância para o nosso contexto consiste em que ao longo de toda sua carreira, alias bastante variada, ele trabalhou para retirar da esfera física os conteúdos espirituais, e por fim, depois de sua época haver passado, deixou atrás de si um mundo privado de todos estes atributos. Um dos elementos que podem ser encontrados na origem e na historia do dualismo é sem duvida alguma o tema da morte. (pag. 22)

                  II Antropomorfismo e teleologia

Em todas as listas de mandamentos e proibições que o credo cientifico carrega consigo não pode deixar de figura em primeiro lugar entre a proibição da teologia, isto é, causas finais. Este é um ponto que de maneira especial tem sido resultado pelos porta-vozes da ciência desde seus inícios no século 17, tendo de tal modo passado á condição de artigo indiscutível de fé da atitude cientifica que a pergunta direita: “Por que as causas finais têm que ser excluídas?”, encontra hoje muitos cientistas desprovidos de uma resposta satisfatória. Recordar aqui as razões poderá ser uma contribuição a aparência de evidencia natural que a máxima veio a adquirir através da posse pura e incontestada e para trazê-la de volta ás condições que justificam sua validade.

Em primeiro lugar temos que observar que a máxima se refere á teologia entendida como um modo casual da própria natureza, e que se aplica á teologia imanente e não á transcendente, que o criador do sistema natural que está aí talvez tenha exercido uma vez, quando a criou para ser o que é: todo propósito final de sua parte na distribuição inicial da matéria seria perfeitamente compatível com um modo de atuar estreitamente mecânico desta matéria, que haveria de realizar a intenção do criador precisamente desta maneira ([4 Um caso paralelo a isto é a teologia de toda maquina fabricada pelo homem: na disposição de suas partes ela incorpora uma causa final que orientou seu construtor, mas seu funcionamento obedece exclusivamente ás causas eficientes cuja operação estava prevista no plano. Noutras palavras, a causalidade final não está como tal colocada na maquina, mas ela foi traduzida em uma causalidade,final não está como tal colocada na maquina, mas ela foi traduzida em uma casualidade eficiente, a que daí por diante está confiada a realização do objetivo. ]). Com a condição de que se declare que é desconhecido e em principio inacessível ao conhecimento, que portanto não pode ser objeto de pesquisas cientificas, o admitir-se um tal propósito final em nada fere o conceito cientifico do mundo. Quando a ciência nascente se ocupou com este aspecto da teologia, ela limitou-se a denunciar sua forma grosseiramente antropocêntrica de um universo feito para proveito do ser humano. Abstraindo disto, a ideia de um arquiteto divino dono de uma suprema arte mas com intenções imperscrutáveis foi na realidade benvinda á visão mecânica do mundo durante a fase mais importante do seu primeiro desenvolvimento. (pag. 43 e 44)

O modelo mecanicista da natureza da natureza, que tomou forma no século 17, ocupou-se primeiramente com estruturas já prontas – fossem elas o sistema solar ou os corpos dos animais – sem prender o pensador ás questões inerentes á sua origem. Cada estrutura, tal como encontrada, era considerada como um mecanismo em funcionamento, e a análise deveria explicar através dos componentes elementares de matéria e movimento o seu efetivo funcionamento de acordo com um modelo uniforme. A pergunta de como esta estrutura poderia ter surgido no passado da história da natureza ainda não fazia parte do programa cientifico, embora por vezes pudesse ser objeto de alguma especulação sumaria. Esta fuga provisória a uma questão creia de riscos teológicos serviu de proteção á infância da ciência moderna. Por cerca de um século as crenças teístas pouparam a seus fundadores a necessidade de ocuparem-se com o problema das origens. Mesmo com a criança já mais robusta, o deísmo do século 18 continuou a fornecer ainda uma moldura á  nova cosmologia científica, embora precária. Contra a ideia de um cosmo vivo e autocriador, defendida pelos panteístas, o deísmo opôs a ideia de uma imensa maquina, que uma vez posta em  andamento continuava a funcionar por si mesma. Mas primeiro esta maquina tinha que ser construída e posta em funcionamento: o criador que atuava sem cessar foi substituído pelo construtor (o “relojoeiro”) que atuou uma única vez; e em lugar do movente imóvel que em sua eterna presença impulsiona o mundo, passa a figurar o movente inicial, que em um primeiro momento transmitiu ao mundo um determinado impulso. Por uma curiosa ironia do destino, foi a ideia bíblica de um Deus criador fora do mundo, e da criação como um ato realizado “no principio”, que preparou o terreno para esta precária imagem. “Que Deus é este, que se limita unicamente a impulsionar de fora?”, protesta Goethe. Mas para o espírito cientifico a ideia de uma maquina pronta não passava de um recurso provisório. As primeiras coisas necessárias para a explicação não podiam deixar de ser também as primeiras coisas na ordem temporal, e o estado atual tinha necessariamente que ser também o último membro de uma série temporal que o liga áqueles primeiros elementos. Se são estes os fatos absolutamente primitivos de matéria e movimento, os que não fazem parte de nenhum plano, e se é possível derivar unicamente deles a série que leva ao estado presente, então a criação passou a ser supérflua. (pag. 49 e 50)

Durante muito tempo costumou-se empregar a expressão “sistema” em primeira linha para estruturas de pensamento, e com isto para uma determinada forma de teoria, em vista ou do resultado, isto é, da ordem do conhecido, ou então do seu modo de proceder, isto é da ordem da aquisição de conhecimentos. As duas coisas podem coincidir. Uma ciência ideal, como a geometria euclidiana, constitui um sistema de proposições baseado em um sistema de conceitos. Quando se reflete sobre a maneira como um sistema surge em uma sequencia de passos, fala-se por exemplo de sistema dedutivo, ou, avançando mais um passo, de um sistema de dedução, de indução, de dialética, etc., como tal. Neste caso estamos pensando no sistema do método, que não é necessariamente o método de um sistema. Quando dizemos que um método é sistemático, no fundo nós estamos querendo dizer apenas que ele é método, e não falta de método, e isto é perfeitamente compatível com a ausência de um principio sistemático no objeto. Em casos como a dedução matemática ou a dialética hegeliana, o sentido do método inclui na verdade a ideia de que sua sistemática corresponde a uma sistemática da coisa mesma, a que ela se atém, e que de certa maneira ele reproduz em forma de processo. Isto coloca no começo a visão pelo menos da essência formal de seu objeto, ou o conhecimento de seus princípios. A indução prescinde de toda pretensão antecipatório deste tipo, mas em geral pressupõe uma lei ou regularidade de alguma espécie, que mais tarde, conforme o êxito da indução – sob a forma de hipóteses especiais – pode servir de base para uma dedução (o exemplo mais comum disto é a predição). Mas são possíveis também formas inteiramente livres da relação entre método e objeto. Mesmo a mera coleção pode ter sistema, como no caso da numismática. A ordem encontra-se aqui exclusivamente na classificação mental. Como ordem mental, o conhecimento sistemático de uma coisa é possível mesmo quando esta coisa não possui em si ordem alguma, nem mesmo uma ligação interna. Aquela que agrupa sistemática formas de nuvens não pretende com isto imputar nenhum sistema ás próprias nuvens. Até o que por definição é irregular pode estatisticamente ser colocado sob a forma de uma regra. As tabelas de mortalidade das companhias de seguros são a sistematização de algo essencialmente assistemático. (pag. 74 e 75)

Nos dias atuais, um refinamento do modelo cartesiano foi alcançado por uma nova visão da natureza do metabolismo, entendido como um processo permanente e constantemente renovador da composição do organismo – ultrapassando, pois, a analogia do fornecimento de combustível a uma maquina – e que de fato coincide com o processo vital; e também por uma visão do papel fundamental e não apenas ocasional da informação externa e interna para todas as atividades do corpo vivo. Aqui eu menciono por a terio biológica do “sistema aberto” de L. Von Bertalanffy, e por outro a teria “cibernética” de N. Wiener e de seu grupo tecnológico. Ambas são declaradamente teorias sistêmicas do orgânica; e ambas também levam em conta, bem melhor do que a teria dos autômatos de descartes, a unidade entre organismo e ambiente. A “abertura”, no primeiro caso, consiste no já mencionado fato da constante e ampla troca de material entre o sistema orgânica e seu ambiente, ao longo da qual o organismo mantém-se o mesmo não segundo sua substancia e sim segundo sua função dinâmica (ou não pela matéria mas sim pela forma). A propriedade que define o sistema não é aqui uma disposição das partes (uma estrutura), mas sim um comportamento dinâmico (um processo), sendo considerados como seus portadores as mais diferentes disposições entre suas partes, que não são melhor especificados pela teoria. De acordo com Von Bertalanffy, da propriedade da abertura, combinada com certas constantes de equilíbrio formalizadas matematicamente como axiomas, podem ser analiticamente deduzidas, ou pelo menos entendidas como possíveis, outras propriedades características do organismo (entre elas as que H. Driesch considerou necessárias para o conceito extracientifico de enteléquia), como propriedades sistemáticas imanentes de uma pluralidade assim definida; por exemplo: auto-regulação, crescimento e limite de crescimento, regeneração, adaptação, capacidade de atingir o objetivo através de desvios. O grau de eficácia do método não pode ser analisado aqui ([² Cf. general System Theory: A new approach to unity of science (L.V. Bertalanffy, C.G Hempel, R.E. Blass, H. Jonas), em: Human Biology, 23/4, 1951.]). Para o nosso contexto é importante apenas observar que a dinâmica reguladora de todos estes fenômenos quase-teleológicos encontra-se em um conceito especial de equilíbrio para o qual Bertalanffy, para distinguir do equilíbrio estático, propõe o nome de “equilíbrio fluido”. (pag. 83 e 84)  

A emancipação da forma vem acompanhada pela condição necessitada constitutiva da vida, que representa também um fato que dela não poder ser separado. – A liberdade na relação com a matéria, manifestada na existência metabólica da forma, necessariamente acarreta consigo a dependência da matéria; e isto na mesma medida do dinamismo transformador da forma, que por outro lado é o indicador preciso de sua liberdade ontológica. – Não-identidade com a própria matéria – do lado positivo, a peculiaridade da forma existindo como ela própria, do negativo a insuficiência de toda materialidade de cada momento – faz com que tanto mais a vida coincida no tempo com a matéria: não diminui, portanto, antes aumenta no cômputo total a materialidade da forma libertada da equalização fixa da matéria, transformado-a em forma “emancipada”, saindo da sefixa da matéria, transformando-a em forma “emancipada”. Saindo da segurança (inquestionabilidade) da identidade física para o ousadia da diferença e da liberdade, a forma vital se eleva acima da matéria – ao mesmo tempo que fica exposta a toda matéria do contexto ambiental. Sacrificando neste êxodo a completude simultânea á  realização sucessiva, a relação com a matéria passa a ser transitória, portanto em cada momento acidental – porém com isto por sua vez necessariamente extensa: multiplicando-se no tempo através da sucessão de suas materialização; ampliada em cada agora pelo horizonte associado á matéria atual do potencial de que justamente necessita; qualitativamente exacerbado da posse indiferente para a necessidade da conquista.

Duplicidade semelhante é apresentada por todos os caracteres autênticos da vida, quaisquer que sejam os conceitos com que procuremos explicar uma situação, e qualquer que seja o aspecto que nela destaquemos. Assim a autonomia em relação á natureza, estabelecida e afirmada na autocausalidade do organismo – autonomia que não é mecânica – tem seu exato preço na dependência existencial em relação á natureza, que é totalmente estranha á estabilidade do ser da matéria sem vida. Mais uma vez: o fechamento para dentro da totalidade funcional – é abertura correlativa para o mundo na realização da própria funcionalidade. – O si-mesmo da vida individual opõe-se a todo o resto como mundo exterior ou estranho – e no entanto esta mesma oposição se atualiza, por “transcendência” (que nela está baseada, e que atualiza a relação com o outro a partir do si-mesmo), como aceitação do exterior – como exterior – no interior, ou como o estar-fora-de-si do interior no exterior. – A particularização da unidade vital como individuo, sua radical separação do universo do coordenado e intercambiável – precisamente esta particularização significa capacidade de contacto com a diversidade do outro, e isto em proporção direta: quanto mais decididamente se estabelece a intadividualidade, portanto o isolamento, no progresso das formas vitais, tanto mais cresce na mesma proporção, em extensão e diversidade, o raio de seus contactos possíveis; portanto, quanto mais centralizado e pontual o eu da vida, tanto mais ampla sua periferiria; e vice-versa, quanto mais acolhida ainda no todo da natureza, tanto mais indeterminada em sua diferença e tanto mais imprecisa em seu centralismo, tanto menor sua periferia de contactos com o mundo. – A  vida possui em principio um distanciamento em relação ao mundo, de cuja homogeneidade a forma destacou-se, retraindo-se em sua peculiaridade: mas precisamente este distanciamento oferece a dimensão para a referencia ao mundo, enraizada nas necessárias relações reais, porém sem coincidir com  elas, e sim podendo ultrapassá-las até á universalidade.

Por último, a fragilidade desta existência, o outro lado de sua auto-constituição  soberana: a identidade que se constitui, precisamente por ser de momento a momento produto funcional e não estado subsistente, é de duração precária e revogável; a criatividade com que luta por sua continuação é um incessante evitar do apagamento. Ela, cujo conservar-se só pode estar no continuo renovar-se – a forma livre em direção á matéria, porém não livre da matéria – encontra-se desde o inicio sob o signo do efêmero, do poder ser destruída, da morte (cf. introdução desta obra).

Os traços aqui esboçados, localizados na base do orgânico, só aparecem em plena luz na existência animal. (pag. 122 e 123)

A emancipação da forma vem acompanhada pela condição necessitada constitutiva da vida, que representa também um fato que dela não pode ser separado. – A  liberdade na relação com a matéria, manifestada na existência metabólica da forma, necessariamente acarreta consigo a dependência  da matéria; e isto na mesma medida do dinamismo transformador da forma, que por outro lado é o indicador preciso de sua liberdade ontológica. – Não-identidade com a própria matéria – do lado positivo, a peculiaridade da forma existindo como ela própria, do negativo a insuficiência de toda materialidade de cada momento – faz com que tanto mais a vida coincida no tempo com a matéria: não diminui, portanto, antes aumenta no cômputo total a materialidade da forma liberdade da equalização fixa da matéria, transformando-a em forma “empancipada”. Saindo da segurança (inquestionabilidade) da identidade física para a ousadia da diferença e da liberdade, a forma vital se elava acima da matéria – ao mesmo tempo que fica exposta a toda matéria do contexto ambiental. Sacrificando neste êxodo a completude simultânea á realização sucessiva, a relação com a matéria passa a ser transitório, portanto em cada momento acidental – porém com isto por sua vez necessariamente extensa: multiplicando-se no tempo através da sucessão de suas materializações; ampliada em cada agora pelo horizonte associado á matéria atual do potencial de que justamente necessita; qualitativamente exacerbado da posse indiferente para a necessidade da conquista.

Duplicidade semelhante é apresentada por todos os caracteres autênticos da vida, quaisquer que sejam os conceitos com que procuremos explicar uma situação, e qualquer que seja o aspecto que nela destaquemos. Assim a estabelecida e afirmada na autonomia em relação á natureza, estabelecida e afirmada na autocausalidade do organismo – autonomia que não é natureza, que é totalmente estranha á estabilidade do ser da matéria sem vida. Mais uma vez: o fechamento para dentro da totalidade funcional – é abertura correlativa para o mundo na realização da própria funcionalidade. – O sistema da vida individual opõe-se a todo o resto como mundo exterior ou estranho – e no entanto esta mesma oposição se atualiza, por “transcendência” (que nela está baseada, e que atualiza a relação com exterior – no interior, ou como o estar-fora-de-si do interior no exterior. -  A particularização da unidade vital como individuo, sua radical separação do universo do coordenado e intercambiável – precisamente esta particularização significa capacidade de contacto com a diversidade do outro, e isto em proporção direta: quanto mais decididamente se estabelece a individualidade, portanto o isolamento, no progresso das formas vitais, tanto mais cresce na mesma proporção, em extensão e diversidade, o raio de seus contactos possíveis; portanto, quanto mais centralizado e pontual o eu da vida, tanto mais ampla sua periferia; e vice-versa, quanto mais acolhida ainda no todo da natureza, tanto mais indeterminada em sua diferença e tanto mais imprecisa em seu centralismo, tanto menor sua periferia de contactos com o mundo. – A vida possui em principio um distanciamento em relação ao mundo, de cuja homogeneidade a forma destacou-se, retraindo-se em sua peculiaridade: mas precisamente este distanciamento oferece a dimensão para a referencia ao mundo, enraizada nas necessárias relações reais, porém sem coincidir com elas, e sim podendo ultrapassá-las até á universalidade.

Por último, a fragilidade desta existência, o outro lado de sua autoconstituição soberana: a identidade que se constitui, precisamente por ser de momento a momento produto funcional e não estado subsistente, é de duração precária e revogável; a  criatividade com que luta por sua continuação é um incessante evitar do apagamento. Ela, cujo conservar-se só pode estar no continuo renovar-se – a forma livre em direção á matéria, porém não livre da matéria – encontra-se desde o inicio sob o signo do efêmero, do poder ser destruída, da morte (cf. introdução desta obra).

Os traços aqui esboçados, localizados na base do orgânica, só aparecem em plena luz na existência animal. (pag. 122 e 123)

Em 1782 James Watt patenteou o regulador centrifugo para sua maquina a vapor. Esta válvula consiste de duas esferas metálicas presas a um eixo vertical girando com o movimento da maquina; as esferas elevam-se ou se baixam, de acordo com a velocidade de rotação. Este movimento de sobe-e-desce comanda uma válvula entre a caldeira e o cilindro, de modo a fechá-la quando a velocidade do pistão ultrapassa um valor desejado, ou a abri-la quando ela permanece abaixo deste valor. A beleza desta auto-regulação consiste em que ela é realizada pela própria maquina como parte do rendimento a ser regulado, através do excesso ou da falta do que deve ser objeto correção.

Consideramos aqui os dois aspectos importantes deste mecanismo de controle. Em primeiro lugar, uma parte, mesmo extremamente pequena, do rendimento realizado é redirecionado para o mecanismo de controle mais atrás no sistema: esta disposição chama-se feedbach (realimentação, reacoplamento). Segundo, a realimentação é tal que atua contrariamente á atividade da maquina, isto é, ela é corretiva e não reforçadora: esta disposição recebe o nome de feeedbach negativo. Se funcionar corretamente, ela mantém o rendimento do sistema dentro de um intervalo médio, na medida em que reage alternamente a um desvio deste rendimento para mais ou para menos.

Mais de oitenta anos mais tarde, em 1868, em um tratado, On governors, apresentado á Royal Society, Clark Maxwell deu a primeira explição teórica desta espécie de mecanismo. E mais uma vez oitenta anos mais tarde, em 1948, Norbert Wiener deu origem a uma nova ciência, que ele chamou de “cibernética”, de acordo com a palavra grega kybernetes (piloto, guia) de onde provém a palavra governar.

Watt dificilmente poderia ter sonhado com estas consequências. Seu regulador era um dispositivo auxiliar para a maquina a vapor, cuja finalidade era a produção de força mecânica para a indústria. Foi da grande disponibilidade desta força que proveio a Revolução Industrial, ou, como Wiener prefere dominá-la, a Primeira Revolução Industrial. Seu aspecto técnico predominante foram as maquinas de força mecânica. A fundação controladora do regulador limitava-se a garantir o funcionamento continuo da máquina, e tudo quanto Watt e seus contemporâneos podem ter estado em condições de prever referia-se certamente ás forças motoras que as novas maquinas iriam fornecer, e á sua utilização econômica no sentido da Primeira Revolução Industrial. Recentemente, porém, os dispositivos automáticos de controle conquistaram direitos próprios, com novas funções não mais tão subordinadas. A tecnologia moderna, além de mera produção e aplicação de força, tende cada vez mais a associar a máquina a mecanismos de robô – isto é, mecanismos que substituem a percepção e o julgamento do ser humano na operação das maquinas, assim como a maquina substituiu os braços humanos. A diferença não se encontra somente na função mas também na tecnologia: o controle automático é um ramo da técnica da comunicação, em oposição á técnica das maquinas. Foi o avanço destes mecanismos operacionais e o fato de eles substituírem funções humanas de natureza inteiramente diferente daquelas que foram substituídas pela mera força da maquina – noutras palavras: funções “mais elevadas” –, que levou Wiener e outros a falarem de uma Segunda Industrial. Exemplos conhecidos de mecanismos operacionais são os termostatos, os pilotos automáticos que guiam os navios em suas rotas, a direção automática do fogo de artilharia na defesa aérea, os torpedos que buscam o alvo, as maquinas de calcular eletrônicas, os dispositivos telefônicos automáticos. Em todos estes dispositivos eo feedback desempenha um papel importante. (pag. 132 e 133)

Desde os dias da filosofia grega, o olho tem sido celebrado como o sentido mais excelente. A mais nobre das atividade do espírito, a theoria, é descrita em metáfora tiradas predominante da esfera visual. Platão e com ele a filosofia ocidental, fala do “olho da alma” e da “luz da razão”. Nas primeiras linhas da “Metafísica”, Aristóteles relaciona o natural desejo de todos os homens por conhecimento com o prazer universal com as percepções dos sentidos, acima de qualquer outro a visão. Mas nem ele nem qualquer outro pensador grego parece haver realmente explicado, nos breves tratados sobre a visão que chegaram ao nosso conhecimento, quais as propriedades que qualificam a visão a honras filosóficas tão elevadas ([¹ Na mesma passagem, Aristóteles resume as virtudes do sentido da visão, dizendo que “mais do que os outros ele nos ajuda a reconhecer uma coisa, e manifesta muitas diferenças” (Met. A. 980 a 25), e enfatiza que nós nos alegramos com a visão por causa dela mesma, mesmo sem qualquer utilidade. Esta avaliação sumária não contem mais do que um ligeiro indicio das qualidades que conferem á visão a preeminência sobre os demais sentidos. ]). Nem foram realmente comparadas e avaliadas em seu valor relativo as diferentes virtudes dos diversos sentidos. O sentido da visão não apenas foi preferido para fornecer as analogias para a superestrutura intelectual, mas serviu também em larga escala como modelo da percepção em geral, e com isto como padrão e medida para os outros sentidos. Mas este sentido é de fato muito especial. Por si só ele é incompleto: para exercer seu ofício de reconhecer precisa ser completamente por outros sentidos e funções; suas maiores vantagens são também suas mais importantes fraquezas. Precisamente a sua nobreza exige o apoio de formas mais vulgares de convívio com a importância das coisas. Neste sentido, em que qualquer eminência tem que pagar o preço de uma dependência mais elevada, tentar-se-á explicar a seguir a “nobreza da visão”. Um dos resultados da explicação há de ser que desde sempre nós encontramos a um só tempo confirmadas e limitadas as exigências maiores feitas á visão.

Esta distinção única da visão consiste naquilo que por antecipação nós gostamos de chamar de imagem, palavra que implica três características: 1) simultaneidade na apresentação de uma variedade, 2) neutralização da causa da afecção do sentido, 3) distancia no sentido espacial e espiritual. Com a consideração destas três características esperamos contribuir não apenas para a fenomenologia dos sentidos em si, mas também para valorizar seu papel nas realizações espirituais mais elevadas, que no caso do ser humano nelas se fundamentam. (pag. 159 e 160)

Perguntar qual é a essência do ser humano é o mesmo que perguntar o que é que distingue o ser humano dos outros seres vivos, portanto do animal.. perguntar qual é a diferença especifica do ser humano é o mesmo que perguntar qual a característica em que esta diferença se manifesta de uma maneira perceptível e convincente. Mas a pergunta por esta característica pode ser adequadamente abordada ao âmbito de rigorosas condições especialmente estabelecidas. Uma condição ideal rigorosa para um experimento heurístico é dada pela situação fictícia (hoje não mais tão fantasiosamente fictícia) de espaçonautas que se transferem para um mundo vivo inteiramente estranho de outro planeta, e que desejam certificar-se de que ali existem “homens”. A situação é idealmente rigorosa, e portanto rigorosamente ideal, porque está ausente todo e qualquer apoio de uma familiaridade morfológica prejudicial, isto é, todos os indícios, mas também toda e qualquer sedução da mera semelhança de aparência para se reconhecer o humano. O “humano” tem que designar então alguma coisa que justifique a atribuição deste nome, por mais extremas que sejam as diferenças físicas. Com isto é levantada e pergunta pelos traços, isto é, pelos meios de reconhecimento, e se possível por um meio de reconhecimento privilegiado, que ateste com precisão a igualdade essencial do ser, ou que forneça a mesma possibilidade de estabelecer a diferença em relação ao animal, não importando qual seja a construção orgânica. Este meio de reconhecimento precisa ser claro, e precisa ser primitivo. Além disso ele tem que ser um agir, ou o resultado de um agir. Que é que nestas circunstancias deve ser reconhecido como evidencia conclusiva, e de que esta evidencia seria conclusiva? Quer dizer: Que podemos dela aprender sobre a essência do ser humano, alem, de sua vitalidade apenas intuitiva?

O experimento heurístico completo teria que explicar os méritos relativos das diversas manifestações de vida a serem consideradas como evidencias – como utensílios, túmulos, fogueiras – de acordo com a força conclusiva e com a riqueza de cada uma. A escolha preliminar que antecede a pesquisa que se segue será melhor justificada por seus resultados. Aqui seja suficiente dizer-se que a ela não se atribui nenhum significado excludente, e que cada um dos três outros fenômenos mencionados poderia ser tomado como ponto de partida. Uma certa vantagem hermenêutica, de que queremos nos assegurar, pode ser encontrada na relativa simplicidade da natura da imagem – comparada com a da fala. A linguagem é certamente o fenômeno humanamente mais constitutivo e central, mas em sua variedade é também o mais difícil de ser apreendido, e também o que tem sua interpretação filosófica bem mais discutida e onerada. Além disto, sob a condição adaptada, a pergunta pela possibilidade de reconhecimento –imposta pela indiferença física da manifestação simbólica como tal, que não é auto-evidente – acrescentaria um problema secundário, estranho á própria tarefa. Mas sobretudo o conceito da “linguagem”, como o da “razão” ou do “pensamento”, passou a ser tão inseguro para a filosofia contemporânea, e a margem de unanimidade que se pode pressupor tornou-se tão problemática, que já por isso a “linguagem” não é o mais apropriado para a intenção teórica que aqui nos propomos. Maior esperança de um acordo preliminar existe sobre o que é uma imagem do que sobre o que é uma palavra. De fato, uma compreensão da capacidade da imagem, que é uma capacidade mais simples, pode contribuir para a compreensão do problema muito mais complexo da fala. (pag. 181 e 182)

                               Transição

Da filosofia do organismo á filosofia do ser humano

Nos últimos estudos nós ultrapassamos a linha divisória entre as esferas corporal e espiritual. Como daqui para a frente nos iremos movimentar unicamente nesta ultima, convém que recapitulemos os desgraus que a partir do metabolismo nos levaram a atingir este limiar.

A separação entre o eidos e a realidade, com que confrontaram-nos os fenômenos da “imagem” e da “verdade”, representa a transição para uma nova elevação critica do caráter mediato na relação do organismo com o mundo ambiente. Este aumento de mediatez pode ser observado ao longo de toda a evolução orgânica. O próprio metabolismo, e portanto já a vida vegetal, é identidade e continuidade mediada (cap. 5). Ao nível animal, que representa um passo decisivo para além da relativa imediatez da existência vegetativa, a mediatez possui os três aspectos de movimento, percepção e emoção (cap. 6-7). Todos três implicam distancia: ao ultrapassá-la, e atraves das formas do perceber, do buscar e do agir, é constituído o “mundo”, que substitui a mera vizinhança da planta. O “mundo” confronta o sujeito com objetos concretos e fechados em si, ao passo que o ambiente da planta consiste de materiais adjacentes e de forças que a atingem. O intercambio químico direto com a vizinhança é a maneira vegetal da relação exterior, e permanece a base de toda existência orgânica. Mas na vida animal este plano vegetativo é servido através de um rodeio, pela relação do organismo com objetos no espaço fora dele, que são percebidos, desejados, alcançados e elaborados exteriormente (mecanicamente) antes de entrarem no comercio químico do sistema metabólico. Assim, a liberdade do estagio animal é a liberdade de variadas adaptações por ações que se diferenciam do objetivo a ser alcançado, e que por isso se encontram sob a alternativa de certo e errado, de êxito e fracasso. Graças á dialética essencial da vida, esta camada sobreposta de mediatez, apesar de seu papel instrumental para a mera conservação orgânica, constitui sua própria escala de interesses, que invertem a relação fim-meio entre a função vegetativa e a função animal. As sensações de prazer e dor, que acompanham a experiência animal como recompensa e castigo interior do comportamento, e a que se deve acrescentar a excitação da própria ação, são sinais claros de que as atividades animais são dotadas de valores e finalidades próprios. O que nos animais parece não poder ainda ser encontrado é que a percepção em si é prazerosa, ganhando o status de uma experiência buscada por causa dela mesma.

Nesta esfera percepção, nossa atenção voltou-se especialmente para a contribuição dos sentidos á distância para o esquema de mediatez. Entre eles a visão representa o caso mais apurado de separação entre organismo e mundo, e de seu tornar a unir-se em uma relação secundaria (cap. 8). O objeto visto encontra-se entre o organismo e seu intercambio orgânico direto com o mundo exterior. A partir daí, este intercambio é introduzido, dirigido e controlado pela informação sobre coisas que se encontram á distancia, isto é, em fora do alcance orgânico direto. Arco deste caminho indireto da satisfação é o lugar de liberdade e do risco na vida animal. Na distancia entre o eu e o objeto distante, ainda não engajado, que o alcance da visão produz, o sentimento pode fazer sua escolha, e ter inicio o movimento de longa distancia. Mas a visão mesma, como foi mostrada no capitulo 8º, contém em si possibilidades de contemplação e de atitudes que ultrapassam o meramente animal, capazes de realizar uma capacidade espiritual mais elevada. (pag. 206 e 207)

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