(Maurizio Marcheselli)
Trad.: Paolo Cugini
A concentração na linguagem e no estilo talvez possa
parecer um aspecto secundário. No entanto, não é; na verdade, a maneira
distinta de escrever de João é um reflexo direto de sua teologia e
espiritualidade. O QE consegue traduzir as grandes crenças que o sustentam e os
grandes conteúdos que oferece também em técnicas de exposição, em uma
determinada forma de se expressar. As preferências de Giovanni em termos de
estilo refletem a sua visão básica das coisas. Então esses são elementos que
estão fortemente conectados. Mesmo que de forma seletiva e, portanto,
arbitrária, vemos alguns aspectos, na crença de que são os mais diretamente
relevantes para uma leitura consciente e correta do QE.
Fica claro que Giovanni tem um estilo próprio. Se você
ler uma passagem de Marcos, talvez surja a dúvida se é realmente Marcos e não
outro sinóptico; porém no caso de QE nunca há dúvidas: reconhece-se
imediatamente que se trata de uma outra forma de escrever. Portanto, a ideia de
focar na forma de se expressar do evangelista parte de um elemento claro: João
é peculiar na forma como se expressa.
1. Preferências e simpatias do evangelista
João Evangelista tem algumas preferências claras e
escreve de uma forma que revela algumas simpatias.
1.1. Os verbos
A primeira evidência é que ele prefere verbos a
substantivos. Há uma enorme preferência dada aos verbos em detrimento dos
substantivos. Por exemplo, o substantivo “fé” nunca aparece (é encontrado
apenas uma vez em 1 João 2.23), mas o verbo “crer” aparece. Mas não se pode
dizer que João não tenha uma reflexão sobre a fé: tem e é gigantesca! Comparado
ao substantivo, João prefere o verbo, porque tem uma dimensão dinâmica mais
evidente do que o substantivo, que permanece estático mais facilmente.
Novamente: João nunca usa o termo gnose,
“conhecimento”: o substantivo abstrato não está ali. Há, no entanto, um uso
abundante de verbos de conhecimento: ginòsko, hóida.
E ainda: os substantivos báptisma (“batismo”) nem
baptismós (“imersão”) não são encontrados. João nunca é chamado de batistés,
que é um substantivo adjetivo. Porém, o QV possui uma terminologia batismal
composta por verbos, portanto encontra-se o verbo baptìzein.
Finalmente, poderíamos continuar a lista dizendo que,
onde João usa o substantivo, ele o usa de forma estatisticamente inferior à do
verbo. Por exemplo: o termo “testemunho” existe, mas o verbo “testemunhar” é
mais frequente.
1.2. O uso de sinônimos
Uma segunda característica da QV é que João
frequentemente usa termos que são substancialmente sinônimos. Daí surge também
um problema da teologia joanina. Um exemplo é a pergunta de João 21, com as
perguntas de Jesus a Pedro: “Você me ama?” (com o verbo agapáo) e «Você me
ama?» (filéo). Este é um fenômeno que está presente no QE: não é encontrado
apenas em João 21, onde há dois verbos para dizer “amar”, dois verbos para
dizer “conhecer”, dois verbos para dizer “alimentar”, dois substantivos para
indicar os membros do rebanho e dois para indicar os peixes. É claro que não é
possível dar uma explicação válida apenas para os dois verbos que indicam
“amor” e não é capaz de explicar as variações que dizem respeito a todos os
outros termos. É necessário uma explicação abrangente, porque o fenômeno é
generalizado, encontra-se em toda parte. Um exemplo simples: em João 2 são
usadas duas palavras diferentes para indicar os “cambistas de moeda”:
kermatistés e kollybistés; novamente: hierón e naós para dizer “templo”.
Portanto, é necessário um modelo de explicação que
leve em conta o fenômeno tal como é entendido globalmente. Na minha opinião,
estes termos nunca são completamente sinónimos; em geral, eles sempre têm suas
nuances. Porém, não consigo ver a sua distribuição hierárquica, ou seja, o fato
de um ser mais importante que o outro. Portanto o uso joanino é o uso de um
autor que adora acumular nuances, porque muitas vezes esses termos na verdade
têm uma conotação que não é totalmente coincidente. Contudo, parece difícil
sustentar que estão ordenados hierarquicamente, ou seja, que um é mais ou menos
importante que o outro.
1.3. Duplas e expressões duplas
Um terceiro aspecto do modo de escrever de João tem
grande importância para a tradução e interpretação do texto. João adora
expressões duplas, pares de termos: há realmente uma quantidade enorme deles.
Estes são pares de verbos, pares de substantivos, pares de frases, pares de
particípios. Alguns exemplos: “Vi o Espírito descer e permanecer” (cf.
Jo 1,32.33); «Adoração em Espírito e em verdade» (cf. Jo 4,23); “Quem
vê o Filho e nele crê” (cf. João 6,40). São todas expressões duplas: “Quem
ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou” (cf. Jo 5,24); “Eu sou
a ressurreição e a vida” (Jo 11,25); “Quem vive e crê em mim” (Jo
11,26); “Saíram sangue e água” (cf. Jo 19,34); até aquele versículo
gigantesco e crucial, que é Jo 20,31: «Estes foram escritos para que creiais
que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus» (esta também é uma expressão dupla).
Na minha opinião (pela qual estou em dívida com padre de la Potterie), em quase
todos os casos são hendíades, ou seja, não são dois conceitos distintos, mas
sim duas expressões que se combinam para dizer a mesma coisa. Estes pares são
feitos de tal forma que, é o segundo termo que é decisivo: o segundo termo
orienta a correta interpretação do primeiro, define-o ou, em qualquer caso, dá
a contribuição crucial para a compreensão do significado da expressão. Um
exemplo é “Se não vês sinais e prodígios, não acreditas” (Jo 4.48), onde
a dupla se desenvolve assim: “Se não vês sinais maravilhosos, não acreditas”. A
questão é o segundo termo: «Você busca o aspecto prodigioso do signo».
Mesmo as palavras de Jesus “Eu sou a ressurreição e
a vida” (11.25) são uma hendiadys, ou seja, é um conceito unificado. O
segundo termo é o decisivo: Jesus diz que é a vida como zoé, ou a vida em
plenitude como Deus a possui; e a ressurreição é uma manifestação incluída numa
dimensão mais ampla, que é a vida divina. Visto que Jesus é vida, vida tal como
Deus a possui, esta vida tem uma de suas manifestações em chamar os mortos à
vida. Portanto, “vida” é o termo decisivo. Forçando um pouco o texto,
poderíamos até entender: “Eu sou a ressurreição porque sou vida”.
Mesmo na frase “Crer que Jesus é o Cristo, o Filho
de Deus” (cf. 20,31), estas não são duas expressões colocadas casualmente
juntas, mas é a segunda que orienta o conteúdo da primeira. João afirma que
“Jesus é o Cristo” e que escreveu o seu evangelho para dizer precisamente isto;
mas devemos ter cuidado: é Cristo no sentido de que é «o Filho de Deus».
Qualquer outro nível de determinação do conteúdo da palavra “Cristo”, para
João, é insuficiente. Contudo, é verdade que ele escreveu o seu evangelho para
indicar que “Jesus é o Cristo”, mas ele é o Cristo no sentido de que é “o Filho
de Deus”. São todas expressões duplas, mas que se combinam para indicar um
conceito, um conteúdo unificado. Aplica-se também aos verbos “Quem ouve as
minhas palavras e crê naquele que me enviou” (Jo 5,24). Significa: «Quem ouve a
minha palavra, acredita naquele que me enviou. Ele me ouve, mas ouve de uma
forma que dá crédito ao Todo-Poderoso”. Portanto é uma expressão dupla, mas que
deve ser tomada de forma unificada.
1.4. Procedendo “em ondas”
Uma quarta característica da forma de escrever de João
é que o autor, no que diz respeito aos seus discursos, tende a proceder “em
ondas”. Esta é uma tendência muito radical e difundida, porque nas suas
histórias João apresenta continuamente pinturas completas. Este elemento também
é muito importante para a compreensão do quarto evangelista. Você pode ver isso
quando você pega uma seção do QE que faz todo o sentido. Por exemplo, na
história de Jesus em Samaria (João 4) há tudo; mas depois João conta outro
episódio em que tudo se reencontra. Nem sempre os detalhes são todos iguais:
resta algo e acrescenta algo. Porém, em essência, onde compôs uma seção que tem
sua própria completude, João fornece todos os elementos fundamentais da
cristologia, da teologia, da pneumatologia, etc. Em suma, o coração da sua
teologia é continuamente reproposto. Na minha opinião, isso cria no leitor do QE
uma sensação de “saciedade”, de “estar farto”. Na verdade, as histórias são
sempre hiperdensas, justamente por causa desta tendência, que é uma
característica constitutiva da forma de escrever do evangelista. Isso também
significa que João tende a ter uma grande noção do desenvolvimento da história
internamente, porque as histórias tendem a ser apresentações completas; em vez
disso, parece muito episódico, se olharmos para o evangelho como um todo. A
ligação entre os vários episódios, que em si são completos, é muitas vezes
muito fraca. Por exemplo, se invertermos a ordem entre dois capítulos, não
mudará muita coisa; em vez disso, a sequência dentro do mesmo capítulo (de uma
seção concluída) não pode ser alterado. Isto responde a uma característica
básica do QE: João tende a apresentar, dentro de cada história que compõe, todo
o essencial da sua visão do mistério de Deus que se dá a conhecer em Jesus, com
toda uma série de ramificações que dizem respeito à existência de homens.
2. A forma de contar
Durante algumas décadas houve um aumento da
sensibilidade. Desde a década de 1980, grande atenção tem sido dada à qualidade
literária dos livros bíblicos; isso se aplica tanto ao AT quanto ao NT. Uma
ampla série de metodologias provenientes dos estudos de literatura entrou com
grande peso na exegese bíblica: estudos de retórica, estudos de romances e
contos, portanto de narrativa. Na verdade, isso ajudou a perceber de forma mais
precisa e matizada a qualidade destes textos que, em vários casos, são apreciáveis
precisamente do ponto de vista literário; eles têm sua própria beleza. João é
reconhecido por ter grande capacidade narrativa, não apenas expositiva. João é
um narrador muito bom, sabe contar de uma forma muito refinada. Vejamos duas
características de sua maneira de contar histórias.
2.1. Reticência joanina
A “reticência” de João: o evangelista é reticente, é um narrador silencioso
(!). Ou seja, tende a esconder alguns elementos, que depois comunica apenas em
determinado ponto, criando um “efeito bomba”. Um exemplo claro encontra-se em
João 5: Jesus está em Jerusalém, cura o homem que estava doente há 38 anos,
depois convida-o a pegar o seu leito e ir embora. Só agora o narrador revela:
«Mas aquele dia era um sábado» (5,9b,); e esse detalhe muda completamente o
sentido do que aconteceu!
Também em João 9, no episódio do cego de nascença, ele
utiliza a mesma técnica: narra-se o milagre de Jesus, depois João especifica:
“Era sábado o dia em que Jesus amassou o barro” (cf. 9,14). É um elemento que
deixa o leitor maravilhado, pois percebe que isso introduz um elemento muito
significativo na história.
Estes dois casos dizem respeito ao sábado, mas João
gosta de trabalhar assim, também no que diz respeito às personagens: o grupo de
discípulos e os presentes em Caná (2,2.11) e Cafarnaum (2,12). Mas o v. 13 não
menciona a subida deles a Jerusalém com Jesus; somente em 2.17 o narrador
revela que eles também estão lá na cidade santa. Portanto devemos ter o cuidado
de dizer que os textos são a montagem de blocos previamente independentes, pois
muitas vezes alguns fenômenos podem, ao contrário, depender da sensibilidade
literária do autor. O autor narra assim: ele tem um estilo em que não conta
alguns detalhes no momento, mas os adia, criando um efeito
surpreender o leitor.
2.2. As intrusões joaninas
Outra característica muito importante e tipicamente
joanina é o que, com expressão técnica, hoje se chama de intrusão: o narrador
se insere e faz intrusões em sua história. João prefere a intrusão; esta é uma
de suas grandes preferências. Eles às vezes são chamados de parênteses do QE.
Há alguns anos foi publicado em Lovaina (Bélgica) um volumoso estudo que
examinou estes elementos, intitulado: “As parênteses do Evangelho segundo
João”. Contudo, o termo “parênteses”, embora não seja errado, na verdade
enfraquece; em vez disso, a “intrusão” (um termo que poderia irritar, quase
como se estivéssemos nos referindo a um "intruso" que entra na
história) ocorre quando o narrador suspende sua história por um momento, olha o
leitor diretamente nos olhos e lhe diz algo que o ajuda a entender melhor o que
está acontecendo narrar, fornecendo-lhe diretamente informações decisivas sobre
os personagens e o enredo. Vejamos alguns exemplos.
Em João 21 há uma longa intrusão do narrador. A história narra o diálogo entre Jesus e Pedro, um
diálogo que termina com uma frase enigmática de Jesus: «Se eu quiser que ele
fique até que eu volte, que te importa isso? Siga-me” (21,22). A história
em sentido estrito acabou; o que se segue é tecnicamente uma intrusão: o
narrador fala diretamente, ele não fala mais indiretamente. De facto, segue-se
aqui uma muito longa intrusão de João, que revela diretamente ao leitor: «Esta
interpretação foi difundida na comunidade, quase como se Jesus tivesse dito que
o “discípulo amado” devia permanecer vivo» (cf. 21, 23); depois a intrusão
continua: «Este é o discípulo que escreveu estas coisas e que dá testemunho
na forma do seu evangelho escrito e sabemos que o seu testemunho é verdadeiro»
(cf. 21,24). Esta é uma intrusão muito importante, porque é a forma como o
narrador, olhando diretamente nos olhos do seu leitor, lhe dá a chave para
escapar do enigma. É um comportamento que João costuma usar. Mais exemplos.
Nas bodas de
Caná: «E não sabiam de onde vinha, mas os servos que tinham tirado a
água sabiam» (cf. 2,9).
Em João 11, na ressurreição de Lázaro, com a
passagem para Samaria: «Jesus, tendo ouvido, disse: «Esta doença não é para
a morte, mas para a glória de Deus, para que o Filho de Deus seja glorificado
por ela »»; «Jesus amava Marta, sua irmã e Lázaro» (cf. 11,4-5); depois
continua a contar a história: «Quando soube que estava doente…». Este é
um ponto em que a história está suspensa; Porém, são informações importantes
que orientam a leitura. Na verdade, o leitor pode pensar que Jesus é um homem
de coração duro que não se importa com o destino de Lázaro; em vez disso, o
evangelista fornece uma chave de compreensão com a qual orienta o modo como o
leitor entende que a reação de Jesus deve ser lida dentro do amor que Jesus
tem, para que sua frase não seja uma expressão de desinteresse. Na minha
opinião, é importante lembrar que o narrador João muitas vezes dá ao seu leitor
informações decisivas sobre os personagens e como se desenrola o episódio que
ele conta.
Fazemos uma ampliação técnica: é útil aplicar estudos
que vêm da narratologia aos textos bíblicos. Assim poderia ser definido o
fenômeno que acabamos de ver: os estudiosos da narrativa dizem que “há um tempo
para a história e há uma hora para a história”. O “tempo da história” é o tempo
que o leitor passa lendo (ou ouvindo) o texto. “Hora da história” é o tempo que
ocorre dentro da história. Quanto mais detalhada for uma história, mais próximo
o “tempo da história” e o “tempo da história” tendem a se aproximar. Uma
história hiperdetalhada (que corre o risco de se tornar muito chata...) pode
até tornar-se tão longa quanto a “hora da história”.
Como você reconhece as intrusões do narrador? São
aqueles pontos da história em que o “tempo da história” não corresponde a
nenhuma “hora da história”
Exemplo: «Jesus amava Marta, a sua irmã e Lázaro»:
quanto tempo isto ocupa na história? Nada, não há contrapartida no
desenvolvimento da história. O tempo da história é de alguns segundos, o tempo
da história é zero. Isso se torna um elemento que ajuda a identificar em quais
pontos o narrador escorrega, suspendendo a própria história. Ele deixa de
contar no sentido estrito e comunica informações. São pontos cruciais no
evangelho como um todo. Já se acreditou, pelo menos por alguns, que essas
intrusões eram como glosas; até mesmo que poderiam ser a intervenção de outra
pessoa no texto do evangelho. Hoje esta explicação está essencialmente
abandonada; é antes um traço típico do modo de contar histórias do evangelista.
3. As principais características do estilo joanino
Existem três características principais na maneira de
escrever do evangelista João. Já vimos algumas características importantes, mas
as três características que vamos ver são decididamente mais visíveis e de
maior peso na compreensão do QE.
1. O amor de João pelos mal-entendidos.
2. O amor de João pela ironia.
3. O amor de Giovanni por usar imagens como símbolos.
3.1. O amor de Giovanni pelos mal-entendidos.
O mal-entendido e a ironia são muito semelhantes. Em
geral, pode-se dizer que o mal-entendido sempre contém também um elemento de
ironia, que é algo mais amplo. Portanto, mal-entendido e ironia: ambos mostram
como João joga continuamente entre dois níveis: um nível superficial e um nível
profundo. Todo o QE é jogado assim; não há uma única palavra que não seja.
Portanto, além do uso da ironia e do mal-entendido que é generalizado, todo o QE
pode ser lido em dois níveis de profundidade. Em primeiro lugar existe uma
superfície que não deve ser desprezada, porque sem ela não se pode chegar às
profundezas passando pela superfície; se por um lado é preciso perfurar a
superfície e ir além dela, por outro lado não se pode ignorá-la. Portanto, o
nível imediato deve ser sempre cuidado. Mas há também um nível mais profundo. Para
compreender o mal-entendido, vejamos um exemplo do episódio da mulher
samaritana.
«4.31 Entretanto, os discípulos oraram-lhe,
dizendo: “Rabi, come”. 32E ele lhes disse: “Tenho um alimento para comer que
vocês não conhecem”. 33Então os discípulos perguntaram uns aos outros: “Alguém
lhe trouxe alguma coisa para comer?” 34Jesus diz-lhes: «O meu alimento é fazer
a vontade daquele que me enviou e completar a sua obra»» (Jo 4,31-34). Em
primeiro lugar vemos que aqui há uma dupla expressão, que significa: “...que eu
faça a vontade daquele que me enviou, completando a sua obra”; não são dois
elementos que possam ser separados. O mal-entendido joanino tem uma estrutura,
o autor sistematizou-a; para ele, tornou-se uma forma de contar histórias. O
mal-entendido é composto por uma série de elementos. Existe um elemento zero,
assim chamado porque é o contexto do qual partimos; neste caso é v. 31, que
permanece à beira de um verdadeiro mal-entendido: «Enquanto isso, os discípulos
rogavam-lhe, dizendo: «Rabi, come»». Então esta é a situação inicial.
Aí começa o mal-entendido, que tem três partes.
1. Jesus faz uma afirmação que contém um certo nível
de ambiguidade: é uma afirmação enigmática e metafórica.
2. Seu interlocutor compreende o enunciado em nível
material, literal, “superficial”; em todo caso, ele a compreende de uma forma
imediatamente inadequada para o leitor; é um caminho que não capta o verdadeiro
significado das palavras de Jesus.
3. O terceiro elemento nem sempre está presente; aqui
está. É possível, mas não sistemático, que surja uma explicação. Explicação vem
de Jesus ou do próprio narrador, com uma intrusão. Este elemento, de facto,
falta quando o interlocutor não são os discípulos. Quando Jesus fala com os
ioudáioi o terceiro elemento não está presente; este é um fato interessante.
Quem entende mal? Todos, incluindo discípulos; não há
ninguém que não entenda mal. Até o final de João 16 os discípulos entenderam
mal. Porém, há uma diferença entre os discípulos e os outros: para eles, às
vezes, chega uma explicação, que falta em outros casos. Às vezes o narrador dá
a explicação não aos discípulos, mas ao leitor, que assim tem acesso
privilegiado ao sentido último das palavras de Jesus.
João 4:31-34 é um exemplo claro, cujo contexto é: “Rabi, coma”;
Jesus responde: «Tenho um alimento para comer que vocês não conhecem»; segue a
interpretação material banal, “superficial” dos discípulos: “Alguém lhe trouxe
alguma coisa para comer?”. Neste caso Jesus dá a explicação, dá o sentido
último e profundo daquele “alimento” com o qual procura saciar-se. Vejamos
outro caso.
O primeiro destes mal-entendidos encontra-se no
episódio da chamada “purificação do templo”, quando Jesus proclama: «Destruí
este templo e em três dias eu o levantarei!». Os judeus disseram: «Em quarenta
e seis anos foi construído este templo, e em três dias vocês o reconstruirão?»»
(2,19-20). Também aqui existe o nível zero do contexto, ou seja, a provocação a
Jesus: “Que sinal você está fazendo?” (cf. v. 18); segue a palavra enigmática
de Jesus e depois há a leitura “superficial” dos interlocutores. Neste caso é o
narrador quem o revela: «Mas ele falava do templo do seu corpo» (v. 22);
portanto não há explicação para o personagem envolvido (que aqui não são os
discípulos). Por que João escreve assim? Tudo parte de um fato óbvio: esses
mal-entendidos estão presentes no QE. Mas não é só isso, porque aqui o fenômeno
foi sistematizado, tornando-se uma característica peculiar do modo como o
evangelista escreve (e que não se encontra nos sinópticos).
Em primeiro lugar, é uma técnica que chama a atenção:
visa estimular o leitor a concentrar-se naquele ponto que, evidentemente, tem
particular importância. Acima de tudo, o mal-entendido tem uma base teológica,
que deriva de um dos muitos mal-entendidos. Em João 8,21-23 lemos: «21Disse-lhes,
pois, outra vez: «Eu vou e vós me procurareis, mas morrereis nos vossos
pecados. Aonde eu vou você não pode vir""; É uma frase
misteriosa. "22Os judeus disseram então: 'Talvez ele se mate, visto que
diz: 'Para onde vou vocês não podem ir'?" É a segunda vez que ocorre o
mesmo mal-entendido a respeito de uma palavra enigmática de Jesus. Não há aqui
nenhuma explicação, consistente com o fato de que não são os discípulos que
entendem mal. Mas Jesus continua dizendo: «23Tu és de baixo, eu sou de cima.
Você é deste mundo, eu não sou deste mundo." Este versículo não é a
explicação física do mal-entendido que acabou de ocorrer, mas é a explicação do
porquê de todos os mal-entendidos acontecerem. Os mal-entendidos surgem porque
Jesus fala uma língua que o interlocutor não tem meios de decodificar. Não se
trata de boa vontade: ou intervém algo que permite ao interlocutor descodificar
a mensagem ou ele não consegue compreender. Jesus vem “do alto”, portanto, tem
uma linguagem própria; aqueles que vêm “de baixo” não possuem ferramentas
adequadas para compreendê-lo. Portanto o mal-entendido está enraizado numa
questão fundamental: nas diferentes origens dos dois interlocutores, o que
torna impossível a compreensão. Por que o evangelista gosta de deixar nesta
situação quem vem “de baixo”? A explicação encontra-se no diálogo com
Nicodemos, que, entendendo mal as palavras de Jesus, lhe pergunta:
«3,4«Como um
homem pode nascer (ou “ser gerado”) quando for velho? Talvez ele possa entrar
pela segunda vez no ventre de sua mãe e nascer (“ser gerado”)?”. 5Jesus
respondeu-lhe: «Em verdade, em verdade vos digo: se alguém não nascer da água e
do Espírito (outro hendiadys), não pode entrar no reino de Deus. 6O que foi
gerado da carne é carne, o que nasce do Espírito é espírito"" (Jo
3,4-6).
Portanto o mal-entendido apresenta este fato: o ser
humano tem uma necessidade intrínseca de um “renascimento do alto”; só como
consequência de um “renascimento do alto” (ou seja, do dom do Espírito, porque
é o Espírito quem regenera “do alto”) é que se torna possível compreender a
linguagem que Jesus fala. Isto é confirmado pelo facto de os seus discípulos,
até ao momento em que o Espírito é derramado, até à hora da glorificação,
continuarem a cair em mal-entendidos. Isto acontece precisamente porque não se
trata de boa vontade, nem de boa disposição para com Jesus, mas do sinal de que
deve intervir algo que só Deus, através do seu Espírito, é capaz de produzir.
Esta conaturalidade, que permite a compreensão, não é produto de esforços
humanos, mas só pode surgir como regeneração.
3.2. O amor de João pela ironia
A ironia é um fenômeno mais amplo do que o
mal-entendido. Quando surge a ironia, da qual João faz grande uso? A ironia
surge onde há contraste; é o resultado de um contraste, de uma oposição. A
ironia ocorre quando um acontecimento ou uma palavra pode ser compreendido em
diferentes níveis de profundidade e o leitor consegue ver uma profundidade que,
no entanto, o personagem da história não capta. Portanto o leitor percebe algo
que o outro não tem consciência, e isso gera um sorriso. A ironia gera um
sorriso, não uma risada sarcástica. Sarcasmo, isso é uma ironia feroz, ele não
é João; a de João é uma bela ironia, que suscita – precisamente – um sorriso em
quem a acolhe.
Vejamos um exemplo da AT. No livro de Tobit, quando
Tobit, tendo ficado cego, quer enviar seu filho Tobit para recolher o dinheiro
que sobrou na Média, Tobit sai em busca de alguém que o acompanhe naquela longa
viagem. Ele se depara com um cara que – vejam só! – conhece bem os caminhos
para chegar à Média; na verdade, ele é até parente do homem a quem deve ir
buscar o dinheiro. Então Tobias volta para casa com esse rapaz e o apresenta ao
pai, que lhe diz: “Meu filho, o anjo do Senhor esteja contigo” (cf. Tb 5,17).
Aqui o leitor não pode deixar de sorrir: Tobi não tem consciência do
significado que suas palavras realmente têm, enquanto o leitor entende, pois
sabe que o personagem é, na verdade, o anjo Rafael (5,4), que irá acompanhá-lo.
o filho nesta jornada. O QE apresenta muitas situações deste tipo. A ironia é a
percepção de um conflito (percebido pelo leitor), mas também é um conflito de
percepções. O leitor percebe que, na história que está lendo, há um conflito de
percepções e percebe que é assim. Vejamos dois exemplos.
Nas palavras de Caifás em João 11: aqui é fácil identificar a ironia, pois o narrador
faz uma intrusão e comenta que Caifás fez uma profecia inconsciente. Claramente
há alguma ironia aqui. Frases de Caifás: «11.49(…) «Você não entende nada!
50E não considereis que nos convém que um só homem morra pelo povo, e não que
pereça toda a nação!”” (11,49-50). Há aqui uma ironia, porque logo a seguir
o narrador continua: «51Mas isto ele mesmo não disse, mas, sendo sumo
sacerdote naquele ano, profetizou que Jesus devia morrer pela nação», ou
seja: sem saber Caifás falou uma verdade profunda; já que ele era sumo
sacerdote naquele ano, profetizou, mas o fez inconscientemente, porque para ele
aquelas palavras significavam: "É melhor que alguém seja eliminado e assim
se poupe a catástrofe para o povo". Contudo, involuntária e
inconscientemente, as suas palavras transmitem uma verdade muito profunda:
Jesus morrerá realmente pelo povo. Nos dois níveis de significação muda o
sentido da preposição “para”: Jesus não morrerá “no lugar do povo” (que é o
sentido pensado por Caifás), mas morrerá “em benefício do povo”. Esta é a
verdade que Caifás não consegue compreender nesta passagem irônica. Também pode
estar sobrecarregado, pois há aqui uma dupla ironia. Caifás que a
eliminação desse personagem preservará o povo da destruição: é mais uma ironia.
Na verdade, quando João escreve o seu evangelho, Jerusalém já foi destruída, o
povo foi cruelmente massacrado pela própria Roma (!). Portanto há pelo menos
uma dupla ironia neste texto, pois acontecerá exatamente o oposto do que Caifás
pensa que acontecerá. Também pode ser que, para João (como para os outros
evangelistas), a catástrofe de 70 não esteja isenta de ligações com o fracasso
anterior em reconhecer Jesus como o messias.
Mesmo no texto seguinte revela-se a mestria de João,
que não se contenta com apenas um nível de ironia, mas usa pelo menos dois:
«7,33 Jesus
disse então: «Por mais um pouco de tempo estou convosco; e eu vou para aquele
que me enviou. 34Vocês me procurarão e não me encontrarão; e onde eu vou, você
não pode vir. 35Os judeus disseram então uns aos outros: “Para onde vai este
homem que não o encontraremos? Talvez ele vá para a diáspora dos gregos e
ensine os gregos? 36Qual é esta palavra que ele disse: “Vocês me procurarão e
não me encontrarão” e: “Para onde eu vou vocês não podem ir”?”” (Jo
7,33-36).
Trata-se de um mal-entendido que contém, portanto, um
elemento de ironia. Jesus disse uma palavra misteriosa, para a qual não é dada
nenhuma explicação, consistente com o facto de os interlocutores não serem os
discípulos. Mas o leitor é capaz de compreender: a frase misteriosa de Jesus
fala da sua passagem para o Pai, através da cruz. Este é o mal-entendido: a
frase é entendida a nível material: «Evidentemente este sujeito, dados os
poucos sucessos que alcançou, pensa em emigrar para o estrangeiro para fazer
mais fortuna. Talvez ele vá para a diáspora grega, para ensinar os
gregos." Pensemos nesta palavra depois do ano 70, em Éfeso, onde se
estabeleceu a comunidade de João. Esta palavra contém uma profecia incrível; Há
uma verdade nesta palavra sarcástica. A palavra é irónica, há um elemento de
ironia porque os judeus não compreenderam o que Jesus queria dizer; mas há
também outro elemento de ironia, ainda mais profundo. Na verdade, esta palavra
contém uma verdade misteriosa, da qual o interlocutor desconhece absolutamente:
um dia acontecerá exatamente isto, que o judeu Jesus irá para a diáspora (ou
seja, para a diáspora judaica entre os gregos) e lá ele ensinará o Gregos. Aqui
devemos pesar cada palavra: esta é a experiência que a comunidade de João está
fazendo. Não se trata de Jesus fisicamente, mas de Jesus no testemunho que o
Evangelho segundo João dá a ele, o “discípulo amado”, com a sua palavra e a sua
comunidade. O QE é todo assim: está repleta de situações como essa, nas quais
se encontram muitas profecias involuntárias. Portanto a ironia está relacionada
com o mal-entendido, mas também tem um alcance maior.
Até agora vimos palavras irônicas, mas a ironia também
pode dizer respeito a situações. Um exemplo é o modo como o evangelista fala do
julgamento de Jesus: que Jesus sofreu um julgamento é relatado por todos os
evangelistas; mas João levou este tema ao extremo: segundo ele, toda a história
de Jesus pode ser contada em forma de provação. Este fato vem sendo observado
há muito tempo: desde a primeira página, quando os levitas e os sacerdotes vêm
de Jerusalém para interrogá-lo (Jo 1,19ss), o QE coloca a história de Jesus sob
o signo de uma provação. Num nível superficial, Jesus é o acusado, é aquele
cuja culpa queremos verificar. Por isso procuram-se testemunhas: o que diz dele
o cego de nascença? E João Batista? Em última análise, este processo produzirá
um resultado condenatório: chegará realmente o dia em que Jesus será condenado.
Contudo, um leitor do Evangelho, instruído pelo evangelista, sabe bem que este
é apenas o nível superficial da história que se desenrola. Na verdade, existe
um nível muito mais profundo, que nem todos compreendem, mas é o nível último:
aquele que parece ser o arguido é, na realidade, o juiz. Porém, ele não é um
juiz que precisa emitir um veredicto, porque aqueles que aparecem como
acusadores são, na verdade, aqueles que se condenam. Este é o grande tema
joanino do julgamento: o julgamento é sempre um autojulgamento. É sempre um
julgamento que a pessoa pronuncia sobre si mesma com base na escolha que faz
diante do dom de Deus. Todo o tema do julgamento é um tema altamente irônico:
num nível superficial Jesus é o condenado, mas num nível No nível mais
profundo, os condenados (na verdade: os autocondenados) são aqueles que o levam
a julgamento. Tentamos mostrar que essas duas técnicas não são absolutamente
periféricas ou peculiares. Pelo contrário, são elementos profundamente
enraizados na visão de João, segundo a qual toda a realidade tem um duplo nível
de leitura e é necessário nascer do Espírito para se tornar capaz de lê-la no
seu nível mais profundo.
3.3. O amor de Giovanni por usar imagens como símbolos
João usa muitas imagens, assim como os sinópticos (as
parábolas de Jesus estão cheias de imagens). João usa imagens como símbolos. Façamos
uma comparação entre um símbolo e uma alegoria, sublinhando as diferenças. As
alegorias também são uma forma de usar imagens, mas é uma forma diferente dos
símbolos. Uma imagem é usada alegoricamente quando certas características são
encontradas nela.
1. A forma como uma alegoria conecta a imagem à
realidade é através de correspondência múltipla ponto a ponto. Portanto, cada elemento da imagem deve ter uma
contrapartida precisa na realidade que o narrador tem em mente. Esta é a
alegoria. O livro de Daniel está cheio de alegorias, vemos uma: a grande
estátua de Nabucodonosor (Dan 2,31-35). É uma alegoria: cada elemento da imagem
tem um correspondente preciso na realidade que o narrador tem em mente. A
cabeça, os ombros e o peito, a barriga e as coxas, as pernas e os pés: cada um
tem uma contrapartida num reino. O facto de os metais terem um valor
decrescente em termos de nobreza e preciosidade também deve ser descodificado.
Mesmo o facto de o ferro e o barro não se misturarem exige uma correspondência
precisa na realidade que o narrador tem em mente: os selêucidas, os Ptolomeus,
ou em todo o caso os sucessores dos diadochi de Alexandre o Grande, tentam
unir-se através de casamentos, mas não alcançam o resultado desejado, porque
ferro e barro não combinam. Isto é uma alegoria.
2. Outra característica da alegoria é que a imagem é
como o papel que embrulha o doce (!). Então, assim como se você quiser comer um doce, tem que retirar o
papel externo, da mesma forma, depois de entender o que o autor quer dizer, a
imagem deve ser jogada fora, não é mais necessário, é como um embrulho vazio.
Não existe uma relação orgânica entre a imagem utilizada e o conteúdo veiculado
pela imagem.
3. A alegoria não é necessariamente coerente: desenha
uma imagem que, na realidade, não existe. Por exemplo, a estátua ciclópica contada em Daniel
também poderia existir; porém a alegoria continua: uma pequena pedra se
desprende da montanha, não pelas mãos de um homem, e começa a rolar e, à medida
que rola, vai se aproximando dos pés da estátua, até bater neles, então a
estátua desmorona e vira pó. É muito claro que este não é um evento que pode
acontecer na realidade. Em vez disso, o símbolo apela a uma experiência da vida
comum.
4. Por fim, para compreender uma alegoria, é
necessário que quem a compôs indique o que quer dizer; caso contrário, não é compreensível. É necessária
uma interpretação, caso contrário a alegoria se presta a inúmeros significados
diferentes. É equívoco e pode ser decodificado de infinitas maneiras. Portanto
é necessário que o autor indique o que quer dizer. Pelo contrário, um uso
simbólico de imagens é um uso compacto e global de uma imagem, não consiste na
decomposição de elementos individuais. No símbolo a imagem é essencial para
compreender a realidade que o escritor quer comunicar. Se você perder o contato
com a imagem, você não entende nada. Além disso, o símbolo apela diretamente ao
leitor: não necessita de interpretação. O símbolo não é nada e tudo. Nada é um
símbolo em si, mas tudo pode tornar-se um. O processo de simbolização é operado
pelo ser humano. Diz-se que o homem é um ser simbólico justamente pela sua
capacidade de pegar uma experiência concreta e inserir nela um “extra” de
significado. Um exemplo simples: a miopia é uma experiência conhecida por
todos, direta ou indiretamente. É um facto, não é um símbolo: é a
impossibilidade de focar os contornos, portanto conduz também a uma certa
insegurança, a um medo objetivo de entrar em ambientes desconhecidos. A miopia
pode ser resolvida com um par de óculos. Acabamos de descrever uma situação
real, que, no entanto, pode estar sobrecarregada de significado, porque tudo
pode se tornar um símbolo. Assim, a miopia pode tornar-se um símbolo de uma
certa forma de atitude perante a realidade das coisas.
Novamente: comer é uma experiência humana fundamental.
Porém, comer facilmente se torna um símbolo, que diz como o ser humano não tem
recursos para sobreviver dentro de si: ou engole algo de fora, ou morre. A
comida indica a dependência radical dos seres humanos em relação aos outros.
Dito assim, já se tornou um símbolo, pois diz algo que vai além da
materialidade da situação, mas que nunca deve ser esquecido. Na verdade, se
perdermos o contacto com a ideia do que é o alimento para a vida quotidiana, já
não compreendemos o que Jesus diz quando fala do “pão da vida”. É claro que
Jesus, quando fala do “pão da vida”, pressupõe o conhecimento da experiência
ordinária da alimentação na vida quotidiana de cada um. E o que está ligado à
alimentação deve permanecer vivo na mente do leitor se ele quiser compreender o
que Jesus está dizendo. O símbolo é uma forma de utilização de imagens que
pressupõe que a força e a consistência que a matéria possui sejam preservadas! Com
isso já dissemos porque João adora usar imagens como símbolos. O pão, a luz, o
caminho, o alto e o baixo, o pastor e as ovelhas, etc.; todos são usos
simbólicos de imagens. Vejamos o caso do pão: ele pressupõe uma experiência
humana fundamental, ou seja: para se manter vivo, há necessidade de alimento.
Para que a existência terrena recebida dos pais se prolongue é preciso comer.
Portanto, a ligação entre o pão e a vida é uma experiência humana elementar e
fundamental. Jesus o assume, o pressupõe, precisa que ele permaneça vivo no
leitor e o sobrecarrega de sentido, dizendo: «A vida que você vive (a psyché)
é, na realidade, a transparência de uma vida que tem uma consistência mais
radical, para nutrir o que precisa de pão. O sarx na verdade, dá um vislumbre
de uma vida de qualidade mais radical e mais definitiva (a zoé)”. É evidente
que para João a vida também é simbólica: para ele a vida humana terrena é algo
que se torna capaz de falar da vida num sentido mais radical. Mas seremos
talvez capazes de compreender o que é a vida no sentido último, se ignorarmos a
vida humana terrena? Não, é impossível.
Permanecendo na questão do “pão da vida”, todos
experimentam continuamente a necessidade de alimento para permanecerem vivos;
Jesus aproveita esta experiência para falar de um alimento que nutre a vida tal
como Deus a possui. Depois fala do “pão da vida”, cujos contornos são
explicados em João 6. João adora esta forma de usar imagens (e não outra): a
raiz última é a sua visão da encarnação. João adora símbolos, assim como a
Bíblia em geral. Existe uma raiz remota no amor pelos símbolos: toda a
Escritura indica que a realidade nunca é apenas a materialidade das coisas. A
partir da primeira página do livro do Gênesis, o leitor da Bíblia é educado
para compreender que as coisas nunca são apenas a sua materialidade. Por
exemplo, quando dizemos que a realidade é “criada”, lemos a realidade
simbolicamente e é isso que a Bíblia nos ensina a fazer desde a primeira
página. Portanto, há uma raiz muito profunda no amor pelos símbolos: toda a
realidade, tudo o que é material contém também uma dimensão espiritual mais
profunda. No caso do QE, em particular, existe a teologia da encarnação, a
cristologia da encarnação (Jo 1.14):
«E o Logos se fez carne e ele colocou a tenda entre
nós e vimos a sua glória, glória como do Unigênito do Pai, cheio de graça e de
verdade" (esta é outra hendiadys: "a graça da verdade").
“Vimos”: o quê? Carne". «O Logos se fez carne e
vimos a sua glória»; portanto o autor afirma ter visto “sua glória”. «Ver a
glória» significa compreender o mistério profundo de uma realidade. A “glória”
nada mais é do que o elemento de visibilidade e manifestação daquilo que tem
uma dimensão misteriosa e oculta. A glória de Deus não é diferente de Deus: é
Deus naquilo que pode ser conhecido sobre Ele. «Vimos a sua glória» significa:
«Compreendemos o que se pode saber sobre Ele (o que se pode saber sobre a sua
identidade profunda)», e diz assim: «Compreendemos que Ele é o Unigênito do Pai
». Onde ele conseguiu isso? Ele pegou na carne: olhando para a carne,
tocando-a, ouvindo-a. Para João existe uma proporcionalidade direta: a
experiência do divino é diretamente proporcional à quantidade da carne. A ideia
de João (a partir de 1.14 e transmitida em todas as páginas do seu evangelho) é
que o transcendente e o concreto não se repelem. Não acontece que, para
apreender o transcendente, seja necessário reduzir a espessura da carne, para
que se tenha a máxima experiência do transcendente onde a carne desapareceu; é
exatamente o oposto. Isto é: quanto mais experiência da carne do Logos houver,
mais experiência do mistério de Deus.
Esta é a raiz do amor de Giovanni pelos símbolos: o
símbolo é a forma de usar as imagens em que está sempre salvaguardada a sua
concretude, ou seja, a dimensão da carne. Portanto a ideia de João é que não há
oposição entre o material e o espiritual, mas que vamos para o espiritual
através do que é material. É evidente que existe um risco: o material ficar tão
“espesso” que se torne opaco. Então não vamos mais ao espiritual, mas paramos
no que é material; isso não é um símbolo. Se você nos disser o que é miopia e
nada mais, estará simplesmente dando uma descrição médico, a miopia não está
sendo simbolizada. Portanto, o risco de parar na materialidade das coisas está
sempre presente.
Mas existe também o risco oposto: pensar em captar o
mistério de Deus na medida em que se elimina o que é material e concreto, o que
é carne. Em vez disso, João ensina que a experiência do divino, a experiência
do transcendente, é diretamente proporcional à possibilidade que se tem de
experimentá-lo na carne. Então pode-se afirmar que, para João, Jesus é o
protosímbolo; não porque seja evanescente, mas precisamente pela razão oposta.
Para João, Jesus é o símbolo primeiro e fundamental, porque Jesus é, ao mesmo
tempo, a concretude da carne do homem de Nazaré e de Deus que se faz presente nele. Este é o
significado do símbolo: não se pode chegar a Deus independentemente da
concretude da sua humanidade; há necessidade de que a humanidade permaneça como
a única forma de vivenciar o transcendente. Portanto, o Encarnado é também o
símbolo fundamental, porque é verdadeiramente homem e, ao mesmo tempo,
verdadeiramente presença de Deus, verdadeiramente Deus presente na terra.
Nenhum comentário:
Postar um comentário