terça-feira, 26 de setembro de 2023

Zygmunt Bauman - Ética Pós-moderna




 

Síntese: Paolo Cugini

 

 

A Moralidade na Perspectiva Moderna e Pós-Moderna

 

Seres esmagados são melhor representados por pedaços e peças.

Rainer Maria Rilke

 

 

A hipótese deste estudo é que o significado da pós-modernidade repousa precisamente na oportunidade que oferece ao sociólogo crítico de seguir a espécie, acima mencionada, de inquirição com um propósito maior do que nunca antes. (pág.7)

Se se veio a se distinguir a “moral” como o aspecto de pensar, sentir e agir do homem relativo à discriminação entre “certo” e “errado”, foi obra de modo geral da idade moderna. Na maior parte da história humana, fez-se pouca diferença entre padrões agora estritamente distintos da conduta humana, tais como “utilidade”, “verdade”, “beleza”, “propriedade”. (pág.8)

São as ações que a pessoa precisa escolher, ações que a pessoa escolheu dentre outras que podia escolher mas que não escolheu, que é preciso calcular, medir e avaliar. A avaliação é parte indispensável da escolha, da tomada de decisão; é necessidade sentida por humanos como tomadores de decisão, necessidade sobre a qual raramente refletem os que agem apenas por hábito. Uma vez que se fez a pergunta sobre os critérios da avaliação, as “dimensões” da mensuração começam a ramificar-se e crescer em direções cada vez mais distintas entre si. O “modo certo”, uma vez unitário e indivisível, começa a dividir-se em “economicamente sensato”, “esteticamente agradável”, “moralmente apropriado”. As ações podem ser certas num sentido, e erradas noutro. Que ação deve ser medida e por que critérios? E se numerosos critérios se aplicam, a qual dar prioridade? (pág.9)

Ouvimos muitas vezes que as pessoas adquiriram mentalidade individualista, interessando-se egocentricamente só por si mesmas, à medida que, com o advento da modernidade, ficaram sem Deus e perderam a fé em “dogmas religiosos”. A preocupação consigo mesmos, que marca os indivíduos modernos, é, segundo essa apresentação, produto da secularização, podendo-se reparar tanto suscitando de novo o credo religioso como estimulo uma idéia que, embora secular, pudesse pretender com sucesso compreensividade semelhante à das grandes religiões que gozaram de domínio quase total antes de serem assaltadas e aluídas pelo ceticismo moderno. É preciso, de fato, ver as conexões em ordem inversa. É porque os desenvolvimentos modernos forçaram os homens e as mulheres à condição de indivíduos que viram suas vidas fragmentadas, separadas em muitas metas e funções soltamente relacionadas, cada uma a ser buscada em contexto deferente e segundo pragmática diversa – que foi improvável que uma idéia “onicompreensiva” promovendo visão unitária do mundo servisse bem a suas tarefas e assim atraísse sua imaginação.

Esta é a razão pela qual legisladores e pensadores modernos sentiram que a moralidade, antes de ser “traço natural” da vida humana, é algo que se precisa planejar e inocular na conduta humana; e essa é a razão pela qual tentaram compor e impor uma ética onicompreensiva e unitária. (pág.10 e 11)

1.      As asserções (mutuamente contraditórias, se bem que amiúde afirmadas com a mesma força de convicção): “Os seres humanos são essencialmente bons, e apenas precisam de ajuda para agir segundo sua natureza”, e: “Os seres humanos são essencialmente maus, e devem ser prevenidos de agir segundo seus impulsos”, são ambas errôneas. De fato, os humanos são moralmente ambivalentes: a ambivalência reside no coração da “primeira cena” do humano face a face. (pág.16)

2.      Fenômenos morais são intrinsecamente “não-racionais”. Visto que só são morais se precedem à consideração de propósitos e cálculos de ganhos e perdas, não se ajustam ao esquema de fins e meios. Também escapam de explicações em termos de utilidade ou serviço que prestam ou são chamados a prestar ao sujeito moral, a um grupo ou a uma causa. Não são regulares, repetitivos, monótonos ou previsíveis de forma que lhes permitisse ser representados como guiados por regras. É principalmente por essa razão que não se podem exaurir por qualquer “código ético”. Pensa-se a ética segundo os padrões da Lei. Como faz a Lei, esforça-se ele para definir as ações “adequadas” e “inadequadas” em situações em que vigora. (pág.16)

3.      A moralidade é incuravelmente aporética. Poucas escolhas (e apenas as que são relativamente triviais a de menor importância existencial) são boas sem ambigüidade. A maior parte das escolhas morais são feitas entre impulsos contraditórios. O que, porém, é mais importante é que quase todo impulso moral, se se age sobre ele plenamente, leva a conseqüências morais (da maioria mais característica, o impulso de cuidar do Outro, quando levado ao extremo, conduz à aniquilação da autonomia do Outro, a dominação e opressão); todavia, não se pode implementar nenhum impulso moral a não ser que o agente moral seriamente se esforce para estender o esforço ao limite. O eu moral move-se, sente e age em contexto de ambivalência e é acometido pela incerteza. (pág.17)

4.      A moralidade não é universalizável. Essa afirmação não endossa necessariamente o relativismo moral, expresso na proposição, muitas vezes proposta e aparentemente semelhante, de que a moralidade não passa de costume local (e temporário), de que é certo que o que se crê ser moral em determinado lugar e tempo não se vê com bons olhos em outro, ocorrendo, portanto, que todas as formas de conduta moral até então praticadas são relativas a tempo e a lugar, afetadas por caprichos de histórias tribais e invenções culturais; essa proposição é feita muitas vezes mais no contexto de uma proibição de qualquer comparação entre moralidade e acima de tudo de qualquer exploração do outro do que no contexto de afirmação sobre fontes puramente acidentais e contingentes de moralidade. (pág.17 e 18)

5.      Desde a perspectiva da “ordem racional”, destina-se a moralidade a permanecer irracional. Porque toda totalidade social se inclina à uniformidade e a procurar ação disciplinada e coordenada a autonomia teimosa e elástica do eu moral constitui escândalo. Vê-se essa autonomia, desde a escrivaninha de controle da sociedade, como germe de caos e anarquia dentro da ordem; como o limite externo do que a razão (ou seus porta-vozes e agentes autonomeados) podem fazer para planejar e implementar o que quer que se tenha proclamado como o arranjo “perfeito” da convivência humana. Os impulsos morais, porém, são também um recurso indispensável na administração de qualquer desses arranjos “realmente existentes”: fornecem a matéria-prima da sociabilidade e do compromisso com outros com que se modelam todas as ordens sociais. (pág.18 e 19)

6.      Dado o impacto ambíguo dos esforços societários no campo da legislação ética, deve-se reter que a responsabilidade moral – sendo para o Outro antes de poder ser com o Outro – é a primeira realidade do eu, ponto de partida antes que o produto da sociedade. Precede a todo comprometimento com o Outro, seja mediante conhecimento, avaliação, sofrimento ou ação. (pág.19)

7.      O que é que, contrariamente à opinião popular e ao cálido triunfalismo do “tudo vai” de certos escritores pós-modernistas, a perspectiva pós-moderna acerca de fenômenos morais não revela o relativismo da moralidade. Nem deve ela invocar, ou recomendar indiretamente, um desarmamento do tipo “nada podemos fazer a esse respeito”, tendo em vista a variedade aparentemente irredutível de códigos éticos. Ocorre p contrário. (pág.20)

 

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RESPOSABILIDADES MORAIS, NORMAS ÉTICAS

 

Se o mundo natural é regulado pelo acaso e pela oportunidade, e o mundo técnico pela racionalidade e pela entropia, o mundo social só se pode caracterizar como existindo no medo e tremendo.

Daniel Bell  

 

 O dilema ético

 

Liberdade significa o direito (e a capacidade) de modelar-se a si mesmo. A sorte de alguém – que ainda ontem só se lamentava por sua tirania e a ela se entregava em relutância pela mesma razão – surgia de repente como maleável nas mãos do homem consciente de si como o era o barro nas mãos do hábil escultor. “Os homens podem fazer tudo se o quiserem”, prometeu tentadoramente Leão Batista Alberti; “Podemos nos tornar o que quisermos”, anunciou com satisfação Pico della Mirandola. Os “humanistas” do Renascimento, como John Carroll frisou em seu recente estudo dos altos e baixos de seu legado, “tentaram substituir Deus pelo homem, pôr o homem no centro do universo, deificá-lo”.[1] Sua ambição não era nada menos que fundar uma ordem inteiramente humana na terra, e uma ordem que se erigisse inteiramente apenas com a ajuda das capacidades e recursos humanos. (pág.30)

 

Pós-modernidade: moralidade sem código ético

 

A pós-modernidade, pode-se dizer, é a modernidade sem ilusões (o oposto disso é que a modernidade é a pós-modernidade que recusa aceitar sua própria verdade). As ilusões em questão concentram-se na cerca de que a “confusão” do mundo humano não passa de estado temporário e reparável, a ser substituído mais cedo ou mais tarde pelo domínio ordenado e sistemático da razão. A verdade em questão é que a “confusão” permanecerá, o que quer que façamos ou saibamos, que as pequenas ordens ou “sistemas” que cinzelamos no mundo são frágeis, temporários, e tão arbitrários e no fim tão contingentes como suas alternativas.

A pós-modernidade, também pode-se dizer, traz o “reencantamento” do mundo depois da moderna luta, longa e seríssima, se bem que no fim inconclusiva, para desencantá-lo (ou, mais exatamente, a resistência ao desencantamento, quase nunca posta para dormir, foi continuamente o “espinho pós-moderno”, na carne da modernidade).[2] A desconfiança na espontaneidade humana, nos impulsos e nas inclinações resistentes a predição e justificação racional foi quase substituída pela desconfiança na razão não-emocional e calculadora. Restitui-se dignidade às emoções; legitimidade às “inexplicáveis”, e mesmo irracionais, simpatias e lealdades que não se podem “explicar” em termos de utilidade e propósito. (pág.41 e 42)

Aprendemos de novo a respeitar a ambigüidade, a ter consideração pelas emoções humanas, a apreciar ações sem propósitos e recompensas calculáveis. Aceitamos que nem todas as ações, e particularmente nem todas entre as mais importantes das ações, precisam justificar-se e explicar-se para serem digmas de nossa estima.

Para uma mente moderna, esses sentimentos pós-modernos representam perigo mortal para a convivência humana. Tendo primeiro difamado e degradado os atos humanos que só têm “paixões” e inclinações espontâneas por causa, a mente moderna fica amedrontada pela perspectiva ético rigoroso e abrangente, de apostar na intuição moral humana e na capacidade humana de negociar o modo e os usos do viver juntos – antes que buscar apoio nas normas jurídicas e despersonalizadas amparadas por poderes coercitivos. Um resíduo suficiente de sentimentos modernos foi-nos transmitido a todos nós por treinamento, de forma que todos participamos, ocasionalmente, ou até certo ponto, desses medos e angústias.

A aceitação da contingência e do respeito pela ambigüidade não são fáceis; não há razão para depreciar seus custos psicológicos. E, no entanto, a margem clara dessa nuvem particular é incomumente densa. O reencantamento pós-moderno do mundo traz a oportunidade de encarar a capacidade moral humana sem rebuços, tal como é realmente, sem disfarces e sem deformações; de apagar a memória de difamação, o estigma deixado pelas desconfianças modernas. Não que o mundo se tornará em conseqüência necessariamente melhor ou mais habitável. Mas haverá ensejo de se chegar a termos com as proclividades ásperas e alásticas que ele evidentemente não conseguiu eliminar, e de começar daí. Talvez começar daí (de preferência a declarar esse começo nulo e vazio) até venha a tornar a esperança de um mundo mais humano mais realista, e isso em razão de sua modéstia. (pág.42 e 43)

Tirar a moralidade da couraça rígida dos códigos éticos artificialmente construídos (ou abandonar a ambição de mantê-la aí) significa repersonalizá-la. (pág.43)

 O que estamos aprendendo, e aprendendo duramente, é que a moralidade pessoal é que torna a negociação ética e o consenso possíveis, e não vice-versa. A moralidade pessoal certamente não garantiria o sucesso dessas negociações. Pode até torná-las mais difíceis e acrescentar obstáculos ao percurso, mas os caminhos não estarão mais marcados pela intimidação. (pág.43 e 44)

Repersonalizar a moralidade significa fazer voltar a responsabilidade moral da linha do fim (para a qual foi exilada) para o ponto de partida (onde ela se acha em casa) do processo ético. (pág.44)

É o “fato bruto” primário e originário do impulso moral, da responsabilidade moral, da intimidade moral que fornece a matéria da qual se faz a moralidade da convivência humana. Após séculos de tentativas de provar o contrário, uma vez mais se nos parece impossível eliminar o “mistério da moralidade dentro de mim” (Kant). (pág.45)

Na medida em que a obsessão moderna pela ausência de propósito e utilidade e a suspeição igualmente obsessiva de todas as coisas autotélicas (ou seja, que pretendem seu seus próprios fins, e não meios para qualquer outra a não ser para si mesmas) desaparecem, a moralidade retém a oportunidade de chegar finalmente ao que lhe é próprio. Ela pode parar de ser induzida ou forçada a apresentar suas credenciais; a justificar seu direito de existir apontando o benefício que traz para a sobrevivência, posição ou felicidade pessoais, ou para o serviço que presta para a segurança, lei e ordem coletivas. Esta é um ensejo seminal, uma vez que – como veremos mais tarde – a pergunta: “Por que devo ser moral?”, é o fim e não o começo da posição moral, uma posição que (bastante semelhante à Gemeinschaft de Tönnies) existe só no estado na sich, dura só enquanto não sabe de sua presença como presença moral e não se coisifica como objeto de análise, nem se sujeita a avaliação em termos de padrões que não são os seus. Se se aproveita a oportunidade, a moralidade ficará livre para admitir (ou, antes, não precisa absolutamente conceder acanhamento) sua não-racionalidade; seu ser sua própria razão, tanto necessária como suficiente. E será bom isso, visto que nenhum impulso moral pode sobreviver, e nem se diga, emergir incólume do teste ácido da utilidade ou do proveito. E visto que toda imoralidade começa pela exigência desse tipo – da parte do sujeito moral, ou do objeto de seu impulso moral, ou de ambos. (pág.45 e 46)

 

2

A Universalidade Ilusória

 

O laço estreito a obediência a normas morais e a manutenção da crença em sua universalidade foi com toda probabilidade sobretudo idéia de filósofos e preocupação de filósofos. Não se poderia postular e não se postularia tal laço a não ser que já se tivesse imputado aos homens e às mulheres comuns a busca de coerência e congruência que era a marca profissional dos filósofos; ou se já se tivesse projetado neles os interesses características dos poderes que cantam, que costumam promover suas ambições locais sob bandeiras universalistas. Mas era na verdade preocupação de filósofos, e preocupação aliás séria.

O fato as imagens de bem e mal diferirem de um lugar a outro, e que há pouco que se possa fazer quanto a isso, não tem sido segredo, pelo menos desde Montaigne.

À urgência de salvar a integridade da própria visão moral da derrota, que certamente deve vir uma vez que se descobriu que a visão não passa de uma no meio de muitas, atendeu-se melhor, pode-se argumentar, coma a idéia de progresso que dominou o pensamento moderno na maior parte de sua história. A alteridade (toda alteridade feita pelo homem, inclusive a ética) foi temporalizada de maneira característica da idéia de progresso: o tempo significava hierarquia – “mais tarde” identificava-se com “melhor”, e “mau” com “fora de moda” ou “ainda não desenvolvido adequadamente” (pág.48)

 

 

 

 

O universalismo e suas inquietações

 

A exigência de só reconhecer como morais as normas que passam pelo teste de certos princípios universais, extratemporais e extraterritoriais, significa primeiro e sobretudo a rejeição das pretensões comunais, ligadas a tempo e território, de fazer julgamentos morais com autoridade.[3] A espada, porém, usada para esse fim, logo se revelou ser o que fora desde o início – espada de dois gumes. É verdade, ela cortava fundo na carne dos nomeados adversários do paroquialismo desaprovado pelo estado, mas também feria lá onde não se tinha a intenção de ferir, prejudicando seriamente a própria soberania do estado que se esperava que ela defendesse. Com efeito, por que deveria “o eu não-sobrecarregado” admitir o direito da Lei do Estado, desse estado aqui e agora, de definir sua essência? Por que deveria aceitar o convite a se confiar no molde da cidadania modelado pelo estado?

Quando tomado de maneira séria (ou seja, da maneira como é tomado pelos filósofos, não pelos praticantes dos poderes legislativos), o postulado da universalidade não só alui as prerrogativas morais das comunidades agora transformadas em unidades administrativas da nação-estado homogênea, mas também torna inteiramente insustentável a pretensão por parte do estado de ser a suprema autoridade moral. (pág.50)

Essa não é, porém, a única razão pela qual a arma do universalismo pode virar contra os que a manuseam. Com as agências promotoras do universalismo destituídas de soberania verdadeiramente universal, o horizonte da universalidade “atualmente existente” (ou, antes, realisticamente buscada) tende a parar nas fronteiras do estado. As ambições universalistas de cada autoridade soberana levam existência precária no meio da pluralidade de autoridades soberanas. Só pode ser consistentemente universalista um poder que se incline a identificar a espécie humana em seu conjunto com a população sujeita a seu domínio atual ou em perspectiva. (pág.52)

Privada agora de sua passada fundamentação na “missão civilizadora” das nações-estado “culturalmente avançadas” ou “mais desenvolvidas”, a idéia de moralidade universal, se é que afinal deva sobreviver, só pode se apoiar nos impulsos morais inatos e pré-sociais comuns à espécie humana (enquanto opostos aos resultantes do processamento social; os produtos finais e os sedimentos da ação legisladora/ordenadora/educadora), ou nas estruturas elementares, igualmente comuns à existência dos humanos no mundo, que da mesma forma precedem a toda interferência societária. (pág.53 e 54)

 

O reenraizamento do eu desenraizado

 

A dificuldade das visões dos comunitários renascentes é que, à semelhança dos guardas do universalismo que se recusaram a confinar sua vigilância aos pontos perigosos erigidos ao longo das fronteiras das nações-estado, e eus “situados” recusaram-se a se confinarem só ao papel de guardas de fronteiras das “genuínas comunidades” (ou seja, comunidades tal como imaginadas pelo teóricos). Fronteiras de comunidades são notoriamente mais difíceis de traçar de maneira não-ambígua que os limites dos estados; essa, porém, não é a principal dificuldade. Se se deve definir a identidade de uma comunidade pela força com que mantém os eus que ela “situa” e conseqüentemente pela extensão do consenso moral que é capaz de gerar neles, então a própria idéia de fronteiras da comunidade (especialmente as fronteiras à prova d’água, policiadas e impermeáveis, experimentadas pelas nações-estado; mas também fronteiras no sentido um tanto mais solto de uma linha entalhada circunscrevendo uma população relativamente uniforme, homogênea cultural/moralmente) torna-se sempre tão difícil, se não impossível, de manter.

Não há nenhuma autoridade comunal com poder judiciário de julgar comparável aos das agências ligadas ao estado ou endossadas por ele. Na ausência dessa autoridade, uma comunidade verdadeiramente capaz de “situar” seus membros com algum grau de influência duradoura parece ser mais postulado metodológico que fato de vida. (pág.54 e 55)

A retirada corrente do estado da legislação moral (ou, antes, o abandono de anteriores ambições modernas de tornar essa legislação ubíqua e compreensiva) deixa o território livre para economia comunal. (pág.55)

O que se exige é uma espécie de lealdade que marginalize e torne nulas e vazias as exigências competitivas de obediência, ancoradas em outros aspectos da multifária identidade. O eu precisa primeiro ser podado, desbastado e dissecado, e depois reajuntado, para se tornar verdadeiramente “situado”. A teoria do eu situado e certa ideologia que serve à construção da comunidade que aquela teoria reflete e apóia revertem a verdadeira lógica do processo. Longe de ser “dado natural”, o “estar situado” é produzido social e controversamente; é sempre resultado de luta competitiva, e – o mais das vezes – de escolha individual.

A moralidade legislada pelo estado e as pressões morais difusas dos porta-vozes autonomeados das comunidades postuladas são unânimes num ponto: ambas negam ou pelo menos reduzem o juízo moral individual. (pág. 56)

 

Os limites morais da universalidade ética

 

A moralidade só pode ser coletiva de uma maneira ou outra – como resultado, quer da legislação autoritária, quer da “situação” comunal a priori presumidamente não-deliberada, porém, igualmente poderosa – é em conseqüência tautologicamente “evidente”. Sua verdade foi garantida de antemão pelo modo como fenômenos morais foram definidos e escolhidos. (pág.58)

 

A solidão do sujeito moral

 

Nenhum padrão universal, portanto. Nenhum olhar sobre os ombros das pessoas para ver o que fazem outras pessoas “como eu”. Nada de ouvir o que elas dizem que estão fazendo ou devem estar fazendo, seguindo depois seus exemplos, absolvendo-me por não fazer qualquer outra coisa, nada que os outros fariam, e gozar de consciência limpa no fim do dia. De fato olhamos e ouvimos, mas não adianta, pelo menos não adianta radicalmente. Apontando o dedo para fora de mim mesmo – “é isto que fazem as pessoas, é assim que são as coisas” – não me salva de noites indormidas e dias cheios de autodepreciação. “Fiz meu dever”, pode talvez tirar os juízes de meu encalço, mas não põe em debandada o júri daquilo que eu, por não ter sido capaz de apontar meu dedo a ninguém, chamo de consciência”. “O dever de todos nós”, que conheço, não parece ser a mesma coisa que minha responsabilidade que sinto.[4] Eu honestamente gostaria de me livrar daquele verme mordente da autodepreciação que alguns de nós chamam de culpa, e outros chamam de pecado. Dizem-me alguns amigos que nunca poderei me sentir novamente errado se eu aprender como ser sempre correto. Dizem-se outros que, embora nenhuma salvaguarda seja verdadeiramente confiável, posso ainda me arrepender e assim limpar de novo a lembrança do passado.[5] Todavia, por mais desesperadamente que me apegue à esperança que tais conselhos oferecem, essa esperança dificilmente emergirá incólume do próximo teste, ainda não tentado.

Só as normas podem ser universais. Pode-se legislar deveres universais ditados como normas, mas responsabilidade moral só existe na interpelação do indivíduo e no ser portada individualmente. Os deveres tendem a fazer os humanos iguais; a responsabilidade é o que os fazem indivíduos. A humanidade não é captada em denominadores comuns – aí ela se submerge e desvanece. A moralidade do sujeito moral não tem, portanto, o caráter de norma. Pode-se dizer que o moral é o que resiste a codificação, formalização, socialização, universalização. (pág.65 e 66)

Há vários atributos que a moralidade deve possuir para ser universalizável, mas que ela não tem.

Primeiro, um propósito. Ter um propósito divide as ações entre ações úteis e ações inúteis. O propósito fornece a medida e o critério de escolha. Converte as ações em alternativas e permite que sejam comparadas, que se estabeleça uma preferência e se aja segundo ela. O propósito permite que se melhore sua utilidade; ele leva a pessoa que pensa a optar por ações mais úteis e lutar contra a tentação de se empenhar em ações menos úteis. Muitos estados desejáveis sugeriram-se ou foram sugeridos como “propósitos da moralidade”. (pág.66 )

Então a reciprocidade é o atributo vital que moralidade não possui – mas deve possuir, se se quisesse que ela fosse universalizável. O dever de um parceiro não é o direito do outro parceiro; nem o direito de um parceiro exige dever equivalente do lado do outro. Uma posição não espera, para se tornar moral, até ter sido reciprocada, tornando-se assim ingrediente de um relacinamento dual ou múltiplo. Nem é a expectação, por vaga que seja, de ser reciprocado que o torna moral. O caso é bem o contrario: é a serenidade com que o sujeito visualiza a questão de pagamento de volta, de recompensa, ou padrão semelhante que o torna, enquanto dura essa serenidade, sujeito moral.

A reciprocidade pode ser imediata ou protelada; específica ou generalizada. (pág.68)

Em todo caso, porém, a expectativa de reciprocidade (mesmo se expectativa protraída, e de espécie difusa) está firmemente trancada do lado dos motivos, e, enquanto for esse o caso, a ação que inspira nasce de raízes diversas  do impulso moral; a circunstância não é fácil de detectar e reconhecer, uma vez que a conduta inspirada por considerações de reciprocidade generalizada pode parecer, para o observador externo, admiravelmente semelhante a generosidade desinteressada.

Também não se pode descrever a moralidade como contratual (outra ausência que faz não-universalizável), e por razões muito semelhantes. A essência do contrário é que os deveres das partes foram negociados, definidos e acordados antes de se empreender qualquer ação. O que espera que as partes façam, o que eles possam ser chamados a fazer, aquilo pelo qual elas possam ser censuradas por não fazer, é previamente definido e circunscrito. Requer-se de ambas as partes – não menos, mas também não mais – que cumpram suas respectivas “obrigações contratuais”. A atenção de ambas as partes deve-se focalizar nas tarefas à mão – a entrega de determinada mercadoria, a realização de determinado serviço, a troca de determinado serviço por certa soma de dinheiro – e não um sobre o outro. O interesse um pelo outro nem é preciso nem é encorajado a ir além da tarefa contratualmente acordada. Por mais que eles se queiram ou se suponha que se queiram, cada um não possa de agente ou portador ou operador dos serviços prestados ou artigos entregues. Não há nada de “pessoal” com referência a cada uma das partes. As partes não são pessoas nem indivíduos. Sua obrigação pode ser realizada por outros, se necessário for; se sou eu quem o faço, é meramente porque assinei o contrato. Não passo de uma criação jurídica, definida pelos parágrafos do acordo. Em sua capacidade impessoal, contratual, as partes não precisam estar, e costumam não estar, interessadas no bem-estar mútuo; nenhuma delas é chamada a cuidar do interesse do parceiro do contrato. Entra-se em contratos para salvaguardar o próprio bem-estar. A entrada tem propósito explicito, propósito inteiramente interesseiro. (pág.70 e 71)

Há um denominador comum a todos esses atributos que as ações propriamente chamadas “morais” não possuem. O que une propósito, reciprocidade e contratualidade é o fato de que todos três implicam calculabilidade da ação. Todos eles supõem que pensar precede o fazer; definição precede a tarefa; justificação precede o dever.  (pág.72)

Afirmo, ao contrário, que a moralidade é endêmica e irremissivelmente não-racional, no sentido de não ser calculável e conseqüentemente não se poder apresentar como seguindo regras impessoais, e não ser descritível como seguindo regras que são em princípios universalizáveis. O apelo moral é inteiramente pessoal; apelo a minha responsabilidade, e a urgência de cuidar assim elícita não pode ser suavizada e aplacada pela certeza de que outros o façam por mim, ou que já fiz a minha parte seguindo à letra o que outros costumam fazer. As regras me diriam o que fazer e quando; as regras me diriam onde meu dever começa e onde termina; as regras me permitiriam dizer que, a certo ponto, eu posso descansar agora que tudo o que tinha que se fazer foi feito, e assim me permitir trabalhar permanentemente e em todas as ocasiões rumo a esse ponto de descanso que, como se me diz, existe e pode ser alcançado. Se faltam, porém, regras, minha situação é muito mais difícil, uma vez que não posso ganhar segurança de seguir fielmente os padrões que posso ganhar segurança de seguir fielmente os padrões que posso observar em outros, memorizá-los e imitá-los. Como pessoa moral, eu estou só, embora como pessoa social eu esteja sempre com outros; da mesma forma que sou livre mas apanhado no denso tecido de prescrições e proibições. (Como o expressa Maurice Blanchot, “todo mundo aqui tem sua própria prisão, mas nessa prisão cada pessoa é livre”.)[6] “Estar com outros” pode-se regulamentar por regras codificáveis. “Ser pelo Outro” manifestamente não pode. Nos termos de Durkheim, embora em oposição a intuições de Durkheim, podemos dizer que a moralidade é a condução de anomia perpétua e irreparável. Ser moral significa ser abandonado à minha própria liberdade.

Sou moral antes de eu pensar. Não há nenhum pensamento sem conceitos (sempre gerais), padrões (mais uma vez gerais), regras (sempre potencialmente generalizáveis). Mas quando conceitos, padrões e regras entram no palco, o impulso moral faz sua saída; o raciocínio ético toma o seu lugar, mas a ética é feita à semelhança da Lei, não do impulso moral. (pág.72 e 73)

 

3

As Fundamentações Ilusórias

 

O humano constitui um escândalo no se, uma “doença” do ser para os realistas...

Emmanuel Lévinas

 

O eu moral é também um eu sem fundamentação. Tem com certeza seus impulsos morais como o fundamento sobre que se colocar, mas este é fundamento que tem. E o impulso moral dificilmente seria considerado por filósofos digno do nome de fundamentação. Para os que tem a seu encargo a Lei e a Ordem (os que distinguem, mediante suas leis, ordem de desordem), o impulso moral não é uma espécie de fundamentação sobre a qual possa se erigir qualquer coisa de importância e estabilidade: como um terreno pantanoso e lamacento, precisa primeiro ser inteiramente drenado para que se possa converter em lugar de edifício. Os filósofos não acreditariam que alguma coisa assim subjetiva, enganosa, errática como o impulso moral possa confiavelmente fundar qualquer coisa; se as pessoas se comportam de maneira que se pode descrever como moral, e continuam se comportado assim de maneira mais ou menos regular, deve haver alguma razão mais poderosa para ser assim.  (pág.75)

 

Construindo sobre a desconfiança

 

A busca febril de “fundamentações” das normas morais só se poderia suscitar e manter urgente pela última tarefa – a de convencer. Com efeito, a coerção pela lei só oferece ensejo de ser aceita com um mínimo de reclamação se se pudesse mostrar que a lei, em cujo nome a coerção tivesse sido ameaçada, é mais que mero arbítrio dos legisladores. Ela deve representar algo mais forte que o capricho, mesmo o capricho dos fortes; algo que não simplesmente deva ser aceito, mas que uma pessoa sã não possa não aceitar; algo que vincule com os mesmos poderes irresistíveis da necessidade os que são chamados a obedecer e os que os chamam a obedecer. O que é ainda mais importante (se bem que essa consideração seja raramente posta suficientemente à luz para fornecer motivos conscientes para a busca), podemos imaginar mandamentos morais como “fundamentados” somente se eles vêm à semelhança da Lei, isto é, na forma de princípios que se podem expressar, articular, arrolar, avaliar. É, afinal de contas, o próprio ato de concepção discursiva, a atividade de formular e detalhar, que fundamenta as prescrições e as proibições da Lei como princípios para guiar a ação, e por procuração fundamenta as próprias ações. Não poderia haver nenhuma moralidade sem princípios morais, como nenhum ato poderia ser moral a não ser que significasse agir segundo um princípio. (pág.78)

As fundamentações buscadas em geral eram concebidas à imagem da autoridade legal, habilitada a fazer pronunciamentos obrigatórios sobre o status legal das pessoas e seus atos; uma autoridade que tinha o poder de decidir os direitos e os erros do paciente, e discriminar assim os atos aprovados dos desaprovados. A aposta era feita principalmente na razão (postulada com atributo humano universal, ou antes atributo que cada homem era capaz de adquirir – não tendo então nenhuma escusa por não a ter adquirido) e nas regras, ou mais precisamente nas regras ditadas pela razão e pela razão guiadas pela regra (para todos os efeitos, razão e guia-da-razão tendiam a ser tratadas como sinônimas). (pág.80 e 81)

Quanto a aposta na razão foi incitada pelo desejo de amansar e domesticar os sentimentos morais de outra forma desregrados, colocando-os seguramente na camisa de força de regras formais (ou formalizáveis), mostra-se pela tendência, da balança entre razão e regras, de mudar constantemente para o lado das regras: para a concepção “deontológica” da moralidade, segundo a qual, para saber onde o ato foi ou não moralmente correto, não é necessário se preocupar com descobrir se as conseqüências do ato foram “boas” (definir o “bem” independentemente da questão se as regras foram seguidas ou não fielmente seria uma obrigação difícil de qualquer forma, dada a virtual identificação da conduta moral com governo pelas regras ); é suficiente saber se ação foi de acordo com as regras prescritas para aquela espécie de ação. Critérios de moralidade tendiam, portanto, para o outro “processualismo”, que em sua força extrema declarava a consciência moral do agente inteiramente excluída do julgamento e manejava para separar os meios dos fins, a bondade do comportamento da bondade de suas conseqüências, a questão da moralidade da questão de “fazer o bem”. Com efeito, a concepção consistentemente deontológica da moralidade, com sua ênfase no procedimento antes que nos efeitos e motivos, lançou a questão de “fazer o bem” inteiramente fora da agenda moral, substituindo-se pela questão da disciplina. Abriu amplamente a porta para a manipulação do impulso moral, par a expropriação do direito individual de juízo moral autônomo, e para o desabono da consciência moral – tudo isso com conseqüências desastrosas.  (pág.81 e 82)

 

Moralidade antes da liberdade

 

Mas a moralidade é dada, ainda que dada precariamente, numa postura que resiste à síntese, que não sobreviverá à síntese, que se dissipa e desaparece no ponto em que se realiza a síntese. O que é construído a partir da circunstância de “estar com” não é moralidade, embora os arquitetos e os construtores façam o melhor que podem para apresentá-lo como tal, de sorte que nenhuma coisa mais possa pretender o título. A moralidade é antes da ontologia. (pág.85)

A moralidade não tem nenhum “motivo”, nenhuma “fundamentação” (de novo, duas noções inflexivelmente, não tendo nenhum referente no mundo moral “antes” da ontologia, no “de outra forma do que o ser”). Ela nasce e morre no ato de transcendência, na auto-elevação sobre “realidades do ser” e “fatos”, em seu não-estar-presa por ambos. Confrontar o Outro não como pessoa (persona: a máscara recebida para significar o papel desempenhado, tendo sido este papel primeiro descrito e prescrito no enredo), mas como a face, já é o ato de transcendência, visto que tudo que diz respeito ao Outro em sua capacidade de ser está ausente do Outro como face. “A face não é uma força. É uma autoridade. A autoridade é com freqüência sem força”. A face “é o que resiste a mim por sua oposição e não o que é oposto a mim por sua resistência.... A absoluta nudez de uma face, a face absolutamente sem defesa, sem cobertura, veste ou máscara, é o que se opõe ao meu poder sobre ela, a minha violência, e opõe a eles de uma maneira absoluta, com uma oposição que é oposição em si mesma”.[7] O outro não tem nenhum poder sobre mim; ou, antes, se tivesse tal poder – se já tivesse pronunciado ordem a que devo obedecer – não seria mais uma face, mas um ser ontológico, a realidade rígida i inalterável de resistência e cabo de guerra. O Outro é uma face na medida em que mostro o caminho, lidero seu comando, antecipando-o ou provocando-o; quando eu o comando para comandar a mim. O Outro é uma autoridade desde que eu queira ouvir o comando antes de comando ter sido pronunciado, e seguir o comando antes de eu conhecer o que ele comanda que eu faça. “Por si mesmo” (se houver tal estado), o Outro é fraco, e é precisamente essa fraqueza que faz de meu posicioná-lo com a Face um ato moral: eu sou inteiramente e verdadeiramente pelo Outro, visto que sou eu que dou a ele o direito de comandar, faço o fraco forte, faço o silêncio falar, faço o não-ser ser, oferecendo-lhe o direito de me comandar. “Eu sou pelo outro” significa eu dou-me a mim mesmo como refém ao Outro. Eu tomo a responsabilidade pelo Outro. Mas eu tomo essa responsabilidade não da maneira como alguém assina um contrato e toma sobre si as obrigações que o contrato estipula. Sou eu que tomo a responsabilidade, e eu posso tomar essa responsabilidade ou eu posso rejeitá-la, mas como uma pessoa moral eu estou tomando essa responsabilidade como se não fosse eu que tomei, como se a responsabilidade não fosse para tomar ou rejeitar, como se ela “já” estivesse lá e “sempre”, como se ela fosse minha sem nunca ter sido tomada por mim. Minha responsabilidade, que constitui simultaneamente o Outro como a Face e eu como o eu moral, é incondicional. (pág. 87 e 88)

 

A fundamentação não-fundada

 

Sim, o leitor tem direito à incredulidade, da mesma forma que Caim estava no direito ao encolher os ombros e rejeitar como irrelevante ou absurda a inquirição Deus. Numa moralidade que vem antes de o ser existir não há nada para justificar minha responsabilidade, e ainda menos para determinar que eu sou responsável, que a responsabilidade é minha; a determinação e justificação são traços do ser, do ser ontológico; o único ser que há, afinal. E o leitor razoável estará certo ao apontar que “antes do ser” não existe nada, e, mesmo se existisse, não “sabemos” sobre “fatos”. Sim, tudo isso é evidentemente verdadeiro (com a ontologia fornecendo toda a evidência que fosse preciso). E, no entanto, não existe nenhum outro lugar para a moralidade senão antes do ser; isto é, repitamos, no campo-não-campo que é melhor que o ser. E este campo deve ser encontrado pela própria moral, visto que não há nenhum trilho batido e marcado que leve a ele. (pág.89)

Eticamente, a moralidade é antes do ser. Mas ontologicamente não há nada antes do ser, como ontologicamente também o “antes do ser” é outro ser. A moralidade é antes do ser somente em seu próprio sentido moral de “antes”; isto é, no sentido de ser “melhor”. Mas no sentido ontológico, o sentido que predomina sempre que os dois sentidos competem no campo do ser, o campo em que todos estamos, o ser é antes da moralidade; o eu moral não pode ser senão um eu moral. Ontologicamente, a moralidade só pode vir depois de ser, isto é, ou como determinado resultado do ser, ou como uma regra obrigada a admitir prioridade do ser por querer justifica-se a si mesma em termos de ser. E eus morais (aquele de outra forma que o ser, não outro ser) são ontologicamente inseparáveis dos objetos de carne, animados, chamados seres humanos. Ontologicamente, estes objetos vêm antes dos eus morais. “Por que devo me interessar pelos outro? ... Sou acaso o guarda de meu irmão? Essas perguntas só têm sentido se já se supôs que o ego só se interessa por si mesmo, é só um interesse por si mesmo. Nessa hipótese, de fato permanece incompreensível que o absoluto fora-de-mim, o outro, me afete”.[8] A estranha verdade acerca da moralidade é que ela não é inevitável, não determinada em qualquer sentido que se considerasse válido desde a perspectiva ontológica; ela carece de “fundamentações” no sentido que aquela perspectiva reconheceria. A ética que salta para o Grande Desconhecido do “antes do ser” não o faz para encontrar ou construir fundamentações que nenhuma expedição partindo do “ser” conseguiu revelar ou construir. A ética olha para o “antes” do ser não porque espera que as fundamentações buscadas aí se escondam, mas porque sabe que é precisamente o ato de buscar que funda o eu moral, sendo, por assim dizer, a única fundamentação que a moralidade pode ter e a única que ela suportará. (pág.89 e 90)

È essa responsabilidade – total e inteiramente não-heterônoma, radicalmente diversa da responsabilidade por injunção, ou de obrigações provenientes de dever contratual – que me converte em eu. Essa responsabilidade não “deriva” de qualquer outra coisa. Eu sou responsável não por causa do que eu sei do Outro, de suas virtudes, do que ele fez ou poderia ter feito a mim ou para mim. Não cabe ao Outro provar a mim que lhe devo minha responsabilidade. Somente naquela vigorosa e altiva recusa de “ter razão”, de “ter uma fundamentação”, é que a responsabilidade me faz livre. Essa emancipação não está contaminada com submissão, mesmo se ela resulta em dar-me a mim mesmo como refém do bem-estar e das dores do Outro. A ambivalência reside no coração da moralidade: sou livre na medida em que sou refém. Eu sou eu na medida em que sou para o Outro. Uma vez que esta ambivalência se oculta à vista ou é banida da vista, somente o egoísmo pode se colocar contra o altruísmo, o interesse próprio contra o bem-estar comum, o eu moral contra a norma ética socialmente endossada. (pág. 92)

 

O silêncio insuportável da responsabilidade

 

Voltar para a incurável ambivalência do “pelo Outro” significa, portanto, afastar-se da confortante segurança do ser para a temerosa insegurança da responsabilidade. Se deixo atrás a existência bem organizada e bem configurada dos interesses que se podem aprender e dos direitos que se podem testemunhar e defender nos tribunais, dispenso o conforto da vida assegurada contra a culpa, do afável envolvimento propício desintoxicado em convenções que não pedem mais que ser seguidas. (pág.93)

Os santos são santos porque não se escondem atrás dos ombros largos da Lei. Eles sabem, ou eles sentem, ou eles agem como se sentissem que nenhuma lei, por mais generosa  e humana seja, pode exaurir o dever moral, traçar as conseqüências do “ser para” até a seu fim radical, até a escolha extrema de vida ou morte. Não quer dizer que para ser moral se precise de santo. Não quer dizer também que escolhas morais sejam sempre, diariamente, questões de vida e morte: a maior parte da vida é levada em distância segura das escolhas extremas e últimas. Mas quer dizer que a moralidade, para ser eficaz na vida mundana não-heróica, deve-se talhar segundo o tamanho heróico dos santos; ou, antes, manter a santidade dos santos por seu único horizonte. Para ser o que ela é – a prática moral – ela deve estabelecer-se padrões que não pode alcançar. E ela nunca pode apaziguar-se a si mesma com auto-segurança, ou seguranças de outras pessoas, de que os padrões foram atingidos. É, em última análise, a falta de autojustificação, e a auto-indignação que essa produz, que são as trincheiras mais invencíveis da moralidade. (pág. 96)   

        

       



[1] Cf. John Carroll, Humanism: The rebirth and wreck of western culture, Fontana, Londres, Prólogo.

[2] Tratei desse caso mais extensamente em “Narrating Postmodernity”, em Zygmunt Bauman, Intimations of postmodernity, Routledge, Londres, 1992.

[3]  “Uma afirmação, que tem a forma verbal de um juízo moral para o qual se é incapaz de dar razões, não expressa absolutamente um genuíno juízo moral” – pode-se tomar como expressão prototípica dessa visão (de Marcus Singer, Generalization in ethics, citado segundo Neil Cooper, “Two concepts of morality”, em Philosophy [1966] pp.19-33). Cooper chama esse conceito de moralidade de “autônomo” e “independente”, como distinto de “positivo” ou “social”; essa versão de moralidade apresenta-se, por exemplo, na afirmação de H. L. A. Harts (em Legal and moral obligations: essays in moral philosophy), de que “só podemos entender a moralidade do individuo como desenvolvimento do fenômeno primário da moralidade de um grupo social”.

[4]  A condição de não ser perseguido por escrúpulos é bastante fácil de se obter, com certeza. De fato, nós todos a obtemos, e nela nos achamos a maior parte do tempo. Mas “na maior parte do tempo” nos movemos fora do campo da ação moral para a área onde bastarão convenções e etiquetas, indo pelas moções codificadas e assim facilmente aprendíveis e legíveis, assim como pela simples regra de respeitar a privacidade de outrem e tornando o respeito visível virando os olhos para o outro lado e não olhando o outro no rosto. O resto do tempo, porém, estamos em situações carregadas moralmente, e isso significa estarmos no que nos é próprio. É verdade, essas são situações-limite, e todavia elas são o solo em que morais germinam, crescem, florescem e murcham, como os extrema existenciais da morte, do amor e do parentesco, e todas as inúmeras situações sobre que elas lançam sua densa sombra gigantesca.

[5] É tentador sugerir que foi durante toda essa experiência inerradicável e inextinguível de “não ter feito o bastante”, da impossibilidade existencial de auto-satisfação sem nuvens, das exigências insaciáveis da responsabilidade, que se forneceu o material do qual se fundiu pela primeira vez a imagem de “pecado original”, e mais tarde a de trauma de nascimento” ou de outros igualmente teimosos “complexos psicológicos” dos inícios distantes e inatingíveis da meninice.

[6] Maurice Blanchot, Vicious circles, Station Hill, Nova York, 1985, p.10

[7] The paradox of morality: na interview with Emmanuel Lévinas by Tamara Wright, Peter Hayes and Alison Ainley”, em The provocation of Lévinas: Rethinking the Other, orgs. Robert Bernesconi e David Wood, Routledge, Londres, 1988, p. 169; Emmanuel Lévinas, “Freedom and command”, em Collected philosophical papers, org. Alphonso Lingis, Martinus Nijhoff, Haia, 1987, pp. 19, 21.

[8] Lévinas, Otherwise than being, p. 117.

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