Síntese:
Paolo Cugini
A Moralidade na Perspectiva Moderna e Pós-Moderna
Seres esmagados são melhor representados por pedaços e
peças.
Rainer
Maria Rilke
A hipótese deste estudo é que o significado da pós-modernidade
repousa precisamente na oportunidade que oferece ao sociólogo crítico de seguir
a espécie, acima mencionada, de inquirição com um propósito maior do que nunca
antes. (pág.7)
Se se veio a se distinguir a “moral” como o aspecto de pensar,
sentir e agir do homem relativo à discriminação entre “certo” e “errado”, foi
obra de modo geral da idade moderna. Na maior parte da história humana, fez-se
pouca diferença entre padrões agora estritamente distintos da conduta humana,
tais como “utilidade”, “verdade”, “beleza”, “propriedade”. (pág.8)
São as ações que a pessoa precisa escolher, ações que a pessoa
escolheu dentre outras que podia escolher mas que não escolheu, que é preciso
calcular, medir e avaliar. A avaliação é parte indispensável da escolha, da
tomada de decisão; é necessidade sentida por humanos como tomadores de decisão,
necessidade sobre a qual raramente refletem os que agem apenas por hábito. Uma
vez que se fez a pergunta sobre os critérios da avaliação, as “dimensões” da mensuração
começam a ramificar-se e crescer em direções cada vez mais distintas entre si.
O “modo certo”, uma vez unitário e indivisível, começa a dividir-se em
“economicamente sensato”, “esteticamente agradável”, “moralmente apropriado”.
As ações podem ser certas num sentido, e erradas noutro. Que ação deve ser
medida e por que critérios? E se numerosos critérios se aplicam, a qual dar
prioridade? (pág.9)
Ouvimos muitas vezes que as pessoas adquiriram mentalidade
individualista, interessando-se egocentricamente só por si mesmas, à medida
que, com o advento da modernidade, ficaram sem Deus e perderam a fé em “dogmas
religiosos”. A preocupação consigo mesmos, que marca os indivíduos modernos, é,
segundo essa apresentação, produto da secularização, podendo-se reparar tanto
suscitando de novo o credo religioso como estimulo uma idéia que, embora
secular, pudesse pretender com sucesso compreensividade semelhante à das
grandes religiões que gozaram de domínio quase total antes de serem assaltadas
e aluídas pelo ceticismo moderno. É preciso, de fato, ver as conexões em ordem
inversa. É porque os desenvolvimentos modernos forçaram os homens e as mulheres
à condição de indivíduos que viram suas vidas fragmentadas, separadas em muitas
metas e funções soltamente relacionadas, cada uma a ser buscada em contexto deferente
e segundo pragmática diversa – que foi improvável que uma idéia
“onicompreensiva” promovendo visão unitária do mundo servisse bem a suas
tarefas e assim atraísse sua imaginação.
Esta é a razão pela qual legisladores e pensadores modernos sentiram
que a moralidade, antes de ser “traço natural” da vida humana, é algo que se
precisa planejar e inocular na conduta humana; e essa é a razão pela qual
tentaram compor e impor uma ética onicompreensiva e unitária. (pág.10 e 11)
1.
As asserções (mutuamente contraditórias,
se bem que amiúde afirmadas com a mesma força de convicção): “Os seres humanos
são essencialmente bons, e apenas precisam de ajuda para agir segundo sua
natureza”, e: “Os seres humanos são essencialmente maus, e devem ser prevenidos
de agir segundo seus impulsos”, são ambas errôneas. De fato, os humanos são
moralmente ambivalentes: a ambivalência reside no coração da “primeira cena” do
humano face a face. (pág.16)
2.
Fenômenos morais são
intrinsecamente “não-racionais”. Visto que só são morais se precedem à
consideração de propósitos e cálculos de ganhos e perdas, não se ajustam ao
esquema de fins e meios. Também escapam de explicações em termos de utilidade
ou serviço que prestam ou são chamados a prestar ao sujeito moral, a um grupo
ou a uma causa. Não são regulares, repetitivos, monótonos ou previsíveis de
forma que lhes permitisse ser representados como guiados por regras. É
principalmente por essa razão que não se podem exaurir por qualquer “código
ético”. Pensa-se a ética segundo os padrões da Lei. Como faz a Lei, esforça-se
ele para definir as ações “adequadas” e “inadequadas” em situações em que
vigora. (pág.16)
3.
A moralidade é incuravelmente
aporética. Poucas escolhas (e apenas as que são relativamente triviais a de
menor importância existencial) são boas sem ambigüidade. A maior parte das
escolhas morais são feitas entre impulsos contraditórios. O que, porém, é mais
importante é que quase todo impulso moral, se se age sobre ele plenamente, leva
a conseqüências morais (da maioria mais característica, o impulso de cuidar do
Outro, quando levado ao extremo, conduz à aniquilação da autonomia do Outro, a
dominação e opressão); todavia, não se pode implementar nenhum impulso moral a
não ser que o agente moral seriamente se esforce para estender o esforço ao
limite. O eu moral move-se, sente e age em contexto de ambivalência e é
acometido pela incerteza. (pág.17)
4.
A moralidade não é universalizável.
Essa afirmação não endossa necessariamente o relativismo moral, expresso na
proposição, muitas vezes proposta e aparentemente semelhante, de que a
moralidade não passa de costume local (e temporário), de que é certo que o que
se crê ser moral em determinado lugar e tempo não se vê com bons olhos em
outro, ocorrendo, portanto, que todas as formas de conduta moral até então
praticadas são relativas a tempo e a lugar, afetadas por caprichos de histórias
tribais e invenções culturais; essa proposição é feita muitas vezes mais no
contexto de uma proibição de qualquer comparação entre moralidade e acima de
tudo de qualquer exploração do outro do que no contexto de afirmação sobre
fontes puramente acidentais e contingentes de moralidade. (pág.17 e 18)
5.
Desde a perspectiva da “ordem
racional”, destina-se a moralidade a permanecer irracional. Porque toda
totalidade social se inclina à uniformidade e a procurar ação disciplinada e
coordenada a autonomia teimosa e elástica do eu moral constitui escândalo.
Vê-se essa autonomia, desde a escrivaninha de controle da sociedade, como germe
de caos e anarquia dentro da ordem; como o limite externo do que a razão (ou
seus porta-vozes e agentes autonomeados) podem fazer para planejar e
implementar o que quer que se tenha proclamado como o arranjo “perfeito” da
convivência humana. Os impulsos morais, porém, são também um recurso indispensável
na administração de qualquer desses arranjos “realmente existentes”: fornecem a
matéria-prima da sociabilidade e do compromisso com outros com que se modelam
todas as ordens sociais. (pág.18 e 19)
6.
Dado o impacto ambíguo dos
esforços societários no campo da legislação ética, deve-se reter que a
responsabilidade moral – sendo para o Outro antes de poder ser com o Outro – é
a primeira realidade do eu, ponto de partida antes que o produto da sociedade.
Precede a todo comprometimento com o Outro, seja mediante conhecimento,
avaliação, sofrimento ou ação. (pág.19)
7.
O que é que, contrariamente à
opinião popular e ao cálido triunfalismo do “tudo vai” de certos escritores
pós-modernistas, a perspectiva pós-moderna acerca de fenômenos morais não
revela o relativismo da moralidade. Nem deve ela invocar, ou recomendar
indiretamente, um desarmamento do tipo “nada podemos fazer a esse respeito”,
tendo em vista a variedade aparentemente irredutível de códigos éticos. Ocorre
p contrário. (pág.20)
1
RESPOSABILIDADES
MORAIS, NORMAS ÉTICAS
Se o
mundo natural é regulado pelo acaso e pela oportunidade, e o mundo técnico pela
racionalidade e pela entropia, o mundo social só se pode caracterizar como
existindo no medo e tremendo.
Daniel Bell
O dilema ético
Liberdade significa o direito (e a capacidade) de modelar-se a si
mesmo. A sorte de alguém – que ainda ontem só se lamentava por sua tirania e a
ela se entregava em relutância pela mesma razão – surgia de repente como
maleável nas mãos do homem consciente de si como o era o barro nas mãos do
hábil escultor. “Os homens podem fazer tudo se o quiserem”, prometeu
tentadoramente Leão Batista Alberti; “Podemos nos tornar o que quisermos”,
anunciou com satisfação Pico della Mirandola. Os “humanistas” do Renascimento,
como John Carroll frisou em seu recente estudo dos altos e baixos de seu
legado, “tentaram substituir Deus pelo homem, pôr o homem no centro do
universo, deificá-lo”.[1]
Sua ambição não era nada menos que fundar uma ordem inteiramente humana na
terra, e uma ordem que se erigisse inteiramente apenas com a ajuda das
capacidades e recursos humanos. (pág.30)
Pós-modernidade:
moralidade sem código ético
A pós-modernidade, pode-se dizer, é a modernidade sem ilusões (o
oposto disso é que a modernidade é a pós-modernidade que recusa aceitar sua
própria verdade). As ilusões em questão concentram-se na cerca de que a
“confusão” do mundo humano não passa de estado temporário e reparável, a ser
substituído mais cedo ou mais tarde pelo domínio ordenado e sistemático da
razão. A verdade em questão é que a “confusão” permanecerá, o que quer que
façamos ou saibamos, que as pequenas ordens ou “sistemas” que cinzelamos no
mundo são frágeis, temporários, e tão arbitrários e no fim tão contingentes
como suas alternativas.
A pós-modernidade, também pode-se dizer, traz o “reencantamento” do
mundo depois da moderna luta, longa e seríssima, se bem que no fim
inconclusiva, para desencantá-lo (ou, mais exatamente, a resistência ao
desencantamento, quase nunca posta para dormir, foi continuamente o “espinho
pós-moderno”, na carne da modernidade).[2]
A desconfiança na espontaneidade humana, nos impulsos e nas inclinações
resistentes a predição e justificação racional foi quase substituída pela
desconfiança na razão não-emocional e calculadora. Restitui-se dignidade às
emoções; legitimidade às “inexplicáveis”, e mesmo irracionais, simpatias e
lealdades que não se podem “explicar” em termos de utilidade e propósito. (pág.41
e 42)
Aprendemos de novo a respeitar a ambigüidade, a ter consideração
pelas emoções humanas, a apreciar ações sem propósitos e recompensas
calculáveis. Aceitamos que nem todas as ações, e particularmente nem todas
entre as mais importantes das ações, precisam justificar-se e explicar-se para
serem digmas de nossa estima.
Para uma mente moderna, esses sentimentos pós-modernos representam
perigo mortal para a convivência humana. Tendo primeiro difamado e degradado os
atos humanos que só têm “paixões” e inclinações espontâneas por causa, a mente
moderna fica amedrontada pela perspectiva ético rigoroso e abrangente, de
apostar na intuição moral humana e na capacidade humana de negociar o modo e os
usos do viver juntos – antes que buscar apoio nas normas jurídicas e
despersonalizadas amparadas por poderes coercitivos. Um resíduo suficiente de
sentimentos modernos foi-nos transmitido a todos nós por treinamento, de forma
que todos participamos, ocasionalmente, ou até certo ponto, desses medos e
angústias.
A aceitação da contingência e do respeito pela ambigüidade não são
fáceis; não há razão para depreciar seus custos psicológicos. E, no entanto, a
margem clara dessa nuvem particular é incomumente densa. O reencantamento
pós-moderno do mundo traz a oportunidade de encarar a capacidade moral humana
sem rebuços, tal como é realmente, sem disfarces e sem deformações; de apagar a
memória de difamação, o estigma deixado pelas desconfianças modernas. Não que o
mundo se tornará em conseqüência necessariamente melhor ou mais habitável. Mas
haverá ensejo de se chegar a termos com as proclividades ásperas e alásticas
que ele evidentemente não conseguiu eliminar, e de começar daí. Talvez começar
daí (de preferência a declarar esse começo nulo e vazio) até venha a tornar a
esperança de um mundo mais humano mais realista, e isso em razão de sua modéstia.
(pág.42 e 43)
Tirar a moralidade da couraça rígida dos códigos éticos
artificialmente construídos (ou abandonar a ambição de mantê-la aí) significa
repersonalizá-la. (pág.43)
O que estamos aprendendo, e
aprendendo duramente, é que a moralidade pessoal é que torna a negociação ética
e o consenso possíveis, e não vice-versa. A moralidade pessoal certamente não
garantiria o sucesso dessas negociações. Pode até torná-las mais difíceis e
acrescentar obstáculos ao percurso, mas os caminhos não estarão mais marcados
pela intimidação. (pág.43 e 44)
Repersonalizar a moralidade significa fazer voltar a
responsabilidade moral da linha do fim (para a qual foi exilada) para o ponto
de partida (onde ela se acha em casa) do processo ético. (pág.44)
É o “fato bruto” primário e originário do impulso moral, da
responsabilidade moral, da intimidade moral que fornece a matéria da qual se
faz a moralidade da convivência humana. Após séculos de tentativas de provar o
contrário, uma vez mais se nos parece impossível eliminar o “mistério da
moralidade dentro de mim” (Kant). (pág.45)
Na medida em que a obsessão moderna pela ausência de propósito e
utilidade e a suspeição igualmente obsessiva de todas as coisas autotélicas (ou
seja, que pretendem seu seus próprios fins, e não meios para qualquer outra a
não ser para si mesmas) desaparecem, a moralidade retém a oportunidade de
chegar finalmente ao que lhe é próprio. Ela pode parar de ser induzida ou
forçada a apresentar suas credenciais; a justificar seu direito de existir
apontando o benefício que traz para a sobrevivência, posição ou felicidade
pessoais, ou para o serviço que presta para a segurança, lei e ordem coletivas.
Esta é um ensejo seminal, uma vez que – como veremos mais tarde – a pergunta:
“Por que devo ser moral?”, é o fim e não o começo da posição moral, uma posição
que (bastante semelhante à Gemeinschaft de Tönnies) existe só no estado na
sich, dura só enquanto não sabe de sua presença como presença moral e não se
coisifica como objeto de análise, nem se sujeita a avaliação em termos de
padrões que não são os seus. Se se aproveita a oportunidade, a moralidade
ficará livre para admitir (ou, antes, não precisa absolutamente conceder
acanhamento) sua não-racionalidade; seu ser sua própria razão, tanto necessária
como suficiente. E será bom isso, visto que nenhum impulso moral pode
sobreviver, e nem se diga, emergir incólume do teste ácido da utilidade ou do
proveito. E visto que toda imoralidade começa pela exigência desse tipo – da
parte do sujeito moral, ou do objeto de seu impulso moral, ou de ambos. (pág.45
e 46)
2
A Universalidade
Ilusória
O laço estreito a obediência a normas morais e a manutenção da
crença em sua universalidade foi com toda probabilidade sobretudo idéia de
filósofos e preocupação de filósofos. Não se poderia postular e não se
postularia tal laço a não ser que já se tivesse imputado aos homens e às
mulheres comuns a busca de coerência e congruência que era a marca profissional
dos filósofos; ou se já se tivesse projetado neles os interesses características
dos poderes que cantam, que costumam promover suas ambições locais sob
bandeiras universalistas. Mas era na verdade preocupação de filósofos, e
preocupação aliás séria.
O fato as imagens de bem e mal diferirem de um lugar a outro, e que
há pouco que se possa fazer quanto a isso, não tem sido segredo, pelo menos
desde Montaigne.
À urgência de salvar a integridade da própria visão moral da
derrota, que certamente deve vir uma vez que se descobriu que a visão não passa
de uma no meio de muitas, atendeu-se melhor, pode-se argumentar, coma a idéia
de progresso que dominou o pensamento moderno na maior parte de sua história. A
alteridade (toda alteridade feita pelo homem, inclusive a ética) foi
temporalizada de maneira característica da idéia de progresso: o tempo
significava hierarquia – “mais tarde” identificava-se com “melhor”, e “mau” com
“fora de moda” ou “ainda não desenvolvido adequadamente” (pág.48)
O universalismo e suas
inquietações
A exigência de só reconhecer como morais as normas que passam pelo
teste de certos princípios universais, extratemporais e extraterritoriais,
significa primeiro e sobretudo a rejeição das pretensões comunais, ligadas a
tempo e território, de fazer julgamentos morais com autoridade.[3]
A espada, porém, usada para esse fim, logo se revelou ser o que fora desde o
início – espada de dois gumes. É verdade, ela cortava fundo na carne dos
nomeados adversários do paroquialismo desaprovado pelo estado, mas também feria
lá onde não se tinha a intenção de ferir, prejudicando seriamente a própria
soberania do estado que se esperava que ela defendesse. Com efeito, por que
deveria “o eu não-sobrecarregado” admitir o direito da Lei do Estado, desse
estado aqui e agora, de definir sua essência? Por que deveria aceitar o convite
a se confiar no molde da cidadania modelado pelo estado?
Quando tomado de maneira séria (ou seja, da maneira como é tomado
pelos filósofos, não pelos praticantes dos poderes legislativos), o postulado
da universalidade não só alui as prerrogativas morais das comunidades agora
transformadas em unidades administrativas da nação-estado homogênea, mas também
torna inteiramente insustentável a pretensão por parte do estado de ser a
suprema autoridade moral. (pág.50)
Essa não é, porém, a única razão pela qual a arma do universalismo
pode virar contra os que a manuseam. Com as agências promotoras do
universalismo destituídas de soberania verdadeiramente universal, o horizonte
da universalidade “atualmente existente” (ou, antes, realisticamente buscada)
tende a parar nas fronteiras do estado. As ambições universalistas de cada
autoridade soberana levam existência precária no meio da pluralidade de
autoridades soberanas. Só pode ser consistentemente universalista um poder que
se incline a identificar a espécie humana em seu conjunto com a população
sujeita a seu domínio atual ou em perspectiva. (pág.52)
Privada agora de sua passada fundamentação na “missão civilizadora”
das nações-estado “culturalmente avançadas” ou “mais desenvolvidas”, a idéia de
moralidade universal, se é que afinal deva sobreviver, só pode se apoiar nos
impulsos morais inatos e pré-sociais comuns à espécie humana (enquanto opostos
aos resultantes do processamento social; os produtos finais e os sedimentos da
ação legisladora/ordenadora/educadora), ou nas estruturas elementares,
igualmente comuns à existência dos humanos no mundo, que da mesma forma
precedem a toda interferência societária. (pág.53 e 54)
O reenraizamento do eu
desenraizado
A dificuldade das visões dos comunitários renascentes é que, à
semelhança dos guardas do universalismo que se recusaram a confinar sua
vigilância aos pontos perigosos erigidos ao longo das fronteiras das
nações-estado, e eus “situados” recusaram-se a se confinarem só ao papel de
guardas de fronteiras das “genuínas comunidades” (ou seja, comunidades tal como
imaginadas pelo teóricos). Fronteiras de comunidades são notoriamente mais
difíceis de traçar de maneira não-ambígua que os limites dos estados; essa,
porém, não é a principal dificuldade. Se se deve definir a identidade de uma
comunidade pela força com que mantém os eus que ela “situa” e conseqüentemente
pela extensão do consenso moral que é capaz de gerar neles, então a própria
idéia de fronteiras da comunidade (especialmente as fronteiras à prova d’água,
policiadas e impermeáveis, experimentadas pelas nações-estado; mas também
fronteiras no sentido um tanto mais solto de uma linha entalhada
circunscrevendo uma população relativamente uniforme, homogênea
cultural/moralmente) torna-se sempre tão difícil, se não impossível, de manter.
Não há nenhuma autoridade comunal com poder judiciário de julgar
comparável aos das agências ligadas ao estado ou endossadas por ele. Na
ausência dessa autoridade, uma comunidade verdadeiramente capaz de “situar”
seus membros com algum grau de influência duradoura parece ser mais postulado
metodológico que fato de vida. (pág.54 e 55)
A retirada corrente do estado da legislação moral (ou, antes, o
abandono de anteriores ambições modernas de tornar essa legislação ubíqua e
compreensiva) deixa o território livre para economia comunal. (pág.55)
O que se exige é uma espécie de lealdade que marginalize e torne
nulas e vazias as exigências competitivas de obediência, ancoradas em outros
aspectos da multifária identidade. O eu precisa primeiro ser podado, desbastado
e dissecado, e depois reajuntado, para se tornar verdadeiramente “situado”. A
teoria do eu situado e certa ideologia que serve à construção da comunidade que
aquela teoria reflete e apóia revertem a verdadeira lógica do processo. Longe
de ser “dado natural”, o “estar situado” é produzido social e controversamente;
é sempre resultado de luta competitiva, e – o mais das vezes – de escolha
individual.
A moralidade legislada pelo estado e as pressões morais difusas dos
porta-vozes autonomeados das comunidades postuladas são unânimes num ponto:
ambas negam ou pelo menos reduzem o juízo moral individual. (pág. 56)
Os limites morais da
universalidade ética
A moralidade só pode ser coletiva de uma maneira ou outra – como
resultado, quer da legislação autoritária, quer da “situação” comunal a priori
presumidamente não-deliberada, porém, igualmente poderosa – é em conseqüência
tautologicamente “evidente”. Sua verdade foi garantida de antemão pelo modo
como fenômenos morais foram definidos e escolhidos. (pág.58)
A solidão do sujeito moral
Nenhum padrão universal, portanto. Nenhum olhar sobre os ombros das
pessoas para ver o que fazem outras pessoas “como eu”. Nada de ouvir o que elas
dizem que estão fazendo ou devem estar fazendo, seguindo depois seus exemplos,
absolvendo-me por não fazer qualquer outra coisa, nada que os outros fariam, e
gozar de consciência limpa no fim do dia. De fato olhamos e ouvimos, mas não
adianta, pelo menos não adianta radicalmente. Apontando o dedo para fora de mim
mesmo – “é isto que fazem as pessoas, é assim que são as coisas” – não me salva
de noites indormidas e dias cheios de autodepreciação. “Fiz meu dever”, pode
talvez tirar os juízes de meu encalço, mas não põe em debandada o júri daquilo
que eu, por não ter sido capaz de apontar meu dedo a ninguém, chamo de
consciência”. “O dever de todos nós”, que conheço, não parece ser a mesma coisa
que minha responsabilidade que sinto.[4]
Eu honestamente gostaria de me livrar daquele verme mordente da autodepreciação
que alguns de nós chamam de culpa, e outros chamam de pecado. Dizem-me alguns
amigos que nunca poderei me sentir novamente errado se eu aprender como ser
sempre correto. Dizem-se outros que, embora nenhuma salvaguarda seja
verdadeiramente confiável, posso ainda me arrepender e assim limpar de novo a
lembrança do passado.[5]
Todavia, por mais desesperadamente que me apegue à esperança que tais conselhos
oferecem, essa esperança dificilmente emergirá incólume do próximo teste, ainda
não tentado.
Só as normas podem ser universais. Pode-se legislar deveres
universais ditados como normas, mas responsabilidade moral só existe na
interpelação do indivíduo e no ser portada individualmente. Os deveres tendem a
fazer os humanos iguais; a responsabilidade é o que os fazem indivíduos. A humanidade
não é captada em denominadores comuns – aí ela se submerge e desvanece. A
moralidade do sujeito moral não tem, portanto, o caráter de norma. Pode-se
dizer que o moral é o que resiste a codificação, formalização, socialização,
universalização. (pág.65 e 66)
Há vários atributos que a moralidade deve possuir para ser
universalizável, mas que ela não tem.
Primeiro, um propósito. Ter um propósito divide as ações entre ações
úteis e ações inúteis. O propósito fornece a medida e o critério de escolha.
Converte as ações em alternativas e permite que sejam comparadas, que se
estabeleça uma preferência e se aja segundo ela. O propósito permite que se
melhore sua utilidade; ele leva a pessoa que pensa a optar por ações mais úteis
e lutar contra a tentação de se empenhar em ações menos úteis. Muitos estados
desejáveis sugeriram-se ou foram sugeridos como “propósitos da moralidade”. (pág.66
)
Então a reciprocidade é o atributo vital que moralidade não possui –
mas deve possuir, se se quisesse que ela fosse universalizável. O dever de um
parceiro não é o direito do outro parceiro; nem o direito de um parceiro exige
dever equivalente do lado do outro. Uma posição não espera, para se tornar
moral, até ter sido reciprocada, tornando-se assim ingrediente de um relacinamento
dual ou múltiplo. Nem é a expectação, por vaga que seja, de ser reciprocado que
o torna moral. O caso é bem o contrario: é a serenidade com que o sujeito
visualiza a questão de pagamento de volta, de recompensa, ou padrão semelhante
que o torna, enquanto dura essa serenidade, sujeito moral.
A reciprocidade pode ser imediata ou protelada; específica ou
generalizada. (pág.68)
Em todo caso, porém, a expectativa de reciprocidade (mesmo se
expectativa protraída, e de espécie difusa) está firmemente trancada do lado
dos motivos, e, enquanto for esse o caso, a ação que inspira nasce de raízes
diversas do impulso moral; a
circunstância não é fácil de detectar e reconhecer, uma vez que a conduta
inspirada por considerações de reciprocidade generalizada pode parecer, para o
observador externo, admiravelmente semelhante a generosidade desinteressada.
Também não se pode descrever a moralidade como contratual (outra
ausência que faz não-universalizável), e por razões muito semelhantes. A
essência do contrário é que os deveres das partes foram negociados, definidos e
acordados antes de se empreender qualquer ação. O que espera que as partes
façam, o que eles possam ser chamados a fazer, aquilo pelo qual elas possam ser
censuradas por não fazer, é previamente definido e circunscrito. Requer-se de
ambas as partes – não menos, mas também não mais – que cumpram suas respectivas
“obrigações contratuais”. A atenção de ambas as partes deve-se focalizar nas
tarefas à mão – a entrega de determinada mercadoria, a realização de determinado
serviço, a troca de determinado serviço por certa soma de dinheiro – e não um
sobre o outro. O interesse um pelo outro nem é preciso nem é encorajado a ir
além da tarefa contratualmente acordada. Por mais que eles se queiram ou se
suponha que se queiram, cada um não possa de agente ou portador ou operador dos
serviços prestados ou artigos entregues. Não há nada de “pessoal” com
referência a cada uma das partes. As partes não são pessoas nem indivíduos. Sua
obrigação pode ser realizada por outros, se necessário for; se sou eu quem o
faço, é meramente porque assinei o contrato. Não passo de uma criação jurídica,
definida pelos parágrafos do acordo. Em sua capacidade impessoal, contratual,
as partes não precisam estar, e costumam não estar, interessadas no bem-estar
mútuo; nenhuma delas é chamada a cuidar do interesse do parceiro do contrato.
Entra-se em contratos para salvaguardar o próprio bem-estar. A entrada tem
propósito explicito, propósito inteiramente interesseiro. (pág.70 e 71)
Há um denominador comum a todos esses atributos que as ações
propriamente chamadas “morais” não possuem. O que une propósito, reciprocidade
e contratualidade é o fato de que todos três implicam calculabilidade da ação.
Todos eles supõem que pensar precede o fazer; definição precede a tarefa;
justificação precede o dever. (pág.72)
Afirmo, ao contrário, que a moralidade é endêmica e irremissivelmente
não-racional, no sentido de não ser calculável e conseqüentemente não se poder
apresentar como seguindo regras impessoais, e não ser descritível como seguindo
regras que são em princípios universalizáveis. O apelo moral é inteiramente
pessoal; apelo a minha responsabilidade, e a urgência de cuidar assim elícita
não pode ser suavizada e aplacada pela certeza de que outros o façam por mim,
ou que já fiz a minha parte seguindo à letra o que outros costumam fazer. As
regras me diriam o que fazer e quando; as regras me diriam onde meu dever
começa e onde termina; as regras me permitiriam dizer que, a certo ponto, eu
posso descansar agora que tudo o que tinha que se fazer foi feito, e assim me
permitir trabalhar permanentemente e em todas as ocasiões rumo a esse ponto de
descanso que, como se me diz, existe e pode ser alcançado. Se faltam, porém,
regras, minha situação é muito mais difícil, uma vez que não posso ganhar
segurança de seguir fielmente os padrões que posso ganhar segurança de seguir
fielmente os padrões que posso observar em outros, memorizá-los e imitá-los.
Como pessoa moral, eu estou só, embora como pessoa social eu esteja sempre com
outros; da mesma forma que sou livre mas apanhado no denso tecido de
prescrições e proibições. (Como o expressa Maurice Blanchot, “todo mundo aqui
tem sua própria prisão, mas nessa prisão cada pessoa é livre”.)[6]
“Estar com outros” pode-se regulamentar por regras codificáveis. “Ser pelo
Outro” manifestamente não pode. Nos termos de Durkheim, embora em oposição a
intuições de Durkheim, podemos dizer que a moralidade é a condução de anomia
perpétua e irreparável. Ser moral significa ser abandonado à minha própria
liberdade.
Sou moral antes de eu pensar. Não há nenhum pensamento sem conceitos
(sempre gerais), padrões (mais uma vez gerais), regras (sempre potencialmente
generalizáveis). Mas quando conceitos, padrões e regras entram no palco, o
impulso moral faz sua saída; o raciocínio ético toma o seu lugar, mas a ética é
feita à semelhança da Lei, não do impulso moral. (pág.72 e 73)
3
As Fundamentações
Ilusórias
O humano constitui um
escândalo no se, uma “doença” do ser para os realistas...
Emmanuel Lévinas
O eu moral é também um eu sem fundamentação. Tem com certeza seus
impulsos morais como o fundamento sobre que se colocar, mas este é fundamento
que tem. E o impulso moral dificilmente seria considerado por filósofos digno
do nome de fundamentação. Para os que tem a seu encargo a Lei e a Ordem (os que
distinguem, mediante suas leis, ordem de desordem), o impulso moral não é uma
espécie de fundamentação sobre a qual possa se erigir qualquer coisa de
importância e estabilidade: como um terreno pantanoso e lamacento, precisa
primeiro ser inteiramente drenado para que se possa converter em lugar de
edifício. Os filósofos não acreditariam que alguma coisa assim subjetiva,
enganosa, errática como o impulso moral possa confiavelmente fundar qualquer coisa;
se as pessoas se comportam de maneira que se pode descrever como moral, e
continuam se comportado assim de maneira mais ou menos regular, deve haver
alguma razão mais poderosa para ser assim. (pág.75)
Construindo sobre a
desconfiança
A busca febril de “fundamentações” das normas morais só se poderia
suscitar e manter urgente pela última tarefa – a de convencer. Com efeito, a
coerção pela lei só oferece ensejo de ser aceita com um mínimo de reclamação se
se pudesse mostrar que a lei, em cujo nome a coerção tivesse sido ameaçada, é
mais que mero arbítrio dos legisladores. Ela deve representar algo mais forte
que o capricho, mesmo o capricho dos fortes; algo que não simplesmente deva ser
aceito, mas que uma pessoa sã não possa não aceitar; algo que vincule com os
mesmos poderes irresistíveis da necessidade os que são chamados a obedecer e os
que os chamam a obedecer. O que é ainda mais importante (se bem que essa
consideração seja raramente posta suficientemente à luz para fornecer motivos
conscientes para a busca), podemos imaginar mandamentos morais como
“fundamentados” somente se eles vêm à semelhança da Lei, isto é, na forma de
princípios que se podem expressar, articular, arrolar, avaliar. É, afinal de
contas, o próprio ato de concepção discursiva, a atividade de formular e
detalhar, que fundamenta as prescrições e as proibições da Lei como princípios
para guiar a ação, e por procuração fundamenta as próprias ações. Não poderia
haver nenhuma moralidade sem princípios morais, como nenhum ato poderia ser moral
a não ser que significasse agir segundo um princípio. (pág.78)
As fundamentações buscadas em geral eram concebidas à imagem da
autoridade legal, habilitada a fazer pronunciamentos obrigatórios sobre o
status legal das pessoas e seus atos; uma autoridade que tinha o poder de
decidir os direitos e os erros do paciente, e discriminar assim os atos
aprovados dos desaprovados. A aposta era feita principalmente na razão
(postulada com atributo humano universal, ou antes atributo que cada homem era
capaz de adquirir – não tendo então nenhuma escusa por não a ter adquirido) e
nas regras, ou mais precisamente nas regras ditadas pela razão e pela razão
guiadas pela regra (para todos os efeitos, razão e guia-da-razão tendiam a ser
tratadas como sinônimas). (pág.80 e 81)
Quanto a aposta na razão foi incitada pelo desejo de amansar e
domesticar os sentimentos morais de outra forma desregrados, colocando-os
seguramente na camisa de força de regras formais (ou formalizáveis), mostra-se
pela tendência, da balança entre razão e regras, de mudar constantemente para o
lado das regras: para a concepção “deontológica” da moralidade, segundo a qual,
para saber onde o ato foi ou não moralmente correto, não é necessário se
preocupar com descobrir se as conseqüências do ato foram “boas” (definir o
“bem” independentemente da questão se as regras foram seguidas ou não fielmente
seria uma obrigação difícil de qualquer forma, dada a virtual identificação da
conduta moral com governo pelas regras ); é suficiente saber se ação foi de acordo
com as regras prescritas para aquela espécie de ação. Critérios de moralidade
tendiam, portanto, para o outro “processualismo”, que em sua força extrema
declarava a consciência moral do agente inteiramente excluída do julgamento e
manejava para separar os meios dos fins, a bondade do comportamento da bondade
de suas conseqüências, a questão da moralidade da questão de “fazer o bem”. Com
efeito, a concepção consistentemente deontológica da moralidade, com sua ênfase
no procedimento antes que nos efeitos e motivos, lançou a questão de “fazer o
bem” inteiramente fora da agenda moral, substituindo-se pela questão da
disciplina. Abriu amplamente a porta para a manipulação do impulso moral, par a
expropriação do direito individual de juízo moral autônomo, e para o desabono
da consciência moral – tudo isso com conseqüências desastrosas. (pág.81 e 82)
Moralidade antes da
liberdade
Mas a moralidade é dada, ainda que dada precariamente, numa postura
que resiste à síntese, que não sobreviverá à síntese, que se dissipa e
desaparece no ponto em que se realiza a síntese. O que é construído a partir da
circunstância de “estar com” não é moralidade, embora os arquitetos e os
construtores façam o melhor que podem para apresentá-lo como tal, de sorte que
nenhuma coisa mais possa pretender o título. A moralidade é antes da ontologia.
(pág.85)
A moralidade não tem nenhum “motivo”, nenhuma “fundamentação” (de
novo, duas noções inflexivelmente, não tendo nenhum referente no mundo moral
“antes” da ontologia, no “de outra forma do que o ser”). Ela nasce e morre no
ato de transcendência, na auto-elevação sobre “realidades do ser” e “fatos”, em
seu não-estar-presa por ambos. Confrontar o Outro não como pessoa (persona: a
máscara recebida para significar o papel desempenhado, tendo sido este papel
primeiro descrito e prescrito no enredo), mas como a face, já é o ato de
transcendência, visto que tudo que diz respeito ao Outro em sua capacidade de
ser está ausente do Outro como face. “A face não é uma força. É uma autoridade.
A autoridade é com freqüência sem força”. A face “é o que resiste a mim por sua
oposição e não o que é oposto a mim por sua resistência.... A absoluta nudez de
uma face, a face absolutamente sem defesa, sem cobertura, veste ou máscara, é o
que se opõe ao meu poder sobre ela, a minha violência, e opõe a eles de uma
maneira absoluta, com uma oposição que é oposição em si mesma”.[7]
O outro não tem nenhum poder sobre mim; ou, antes, se tivesse tal poder – se já
tivesse pronunciado ordem a que devo obedecer – não seria mais uma face, mas um
ser ontológico, a realidade rígida i inalterável de resistência e cabo de
guerra. O Outro é uma face na medida em que mostro o caminho, lidero seu
comando, antecipando-o ou provocando-o; quando eu o comando para comandar a
mim. O Outro é uma autoridade desde que eu queira ouvir o comando antes de
comando ter sido pronunciado, e seguir o comando antes de eu conhecer o que ele
comanda que eu faça. “Por si mesmo” (se houver tal estado), o Outro é fraco, e
é precisamente essa fraqueza que faz de meu posicioná-lo com a Face um ato
moral: eu sou inteiramente e verdadeiramente pelo Outro, visto que sou eu que
dou a ele o direito de comandar, faço o fraco forte, faço o silêncio falar,
faço o não-ser ser, oferecendo-lhe o direito de me comandar. “Eu sou pelo
outro” significa eu dou-me a mim mesmo como refém ao Outro. Eu tomo a
responsabilidade pelo Outro. Mas eu tomo essa responsabilidade não da maneira
como alguém assina um contrato e toma sobre si as obrigações que o contrato
estipula. Sou eu que tomo a responsabilidade, e eu posso tomar essa
responsabilidade ou eu posso rejeitá-la, mas como uma pessoa moral eu estou
tomando essa responsabilidade como se não fosse eu que tomei, como se a
responsabilidade não fosse para tomar ou rejeitar, como se ela “já” estivesse
lá e “sempre”, como se ela fosse minha sem nunca ter sido tomada por mim. Minha
responsabilidade, que constitui simultaneamente o Outro como a Face e eu como o
eu moral, é incondicional. (pág. 87 e 88)
A fundamentação
não-fundada
Sim, o leitor tem direito à incredulidade, da mesma forma que Caim
estava no direito ao encolher os ombros e rejeitar como irrelevante ou absurda
a inquirição Deus. Numa moralidade que vem antes de o ser existir não há nada
para justificar minha responsabilidade, e ainda menos para determinar que eu
sou responsável, que a responsabilidade é minha; a determinação e justificação
são traços do ser, do ser ontológico; o único ser que há, afinal. E o leitor
razoável estará certo ao apontar que “antes do ser” não existe nada, e, mesmo
se existisse, não “sabemos” sobre “fatos”. Sim, tudo isso é evidentemente
verdadeiro (com a ontologia fornecendo toda a evidência que fosse preciso). E,
no entanto, não existe nenhum outro lugar para a moralidade senão antes do ser;
isto é, repitamos, no campo-não-campo que é melhor que o ser. E este campo deve
ser encontrado pela própria moral, visto que não há nenhum trilho batido e
marcado que leve a ele. (pág.89)
Eticamente, a moralidade é antes do ser. Mas ontologicamente não há
nada antes do ser, como ontologicamente também o “antes do ser” é outro ser. A
moralidade é antes do ser somente em seu próprio sentido moral de “antes”; isto
é, no sentido de ser “melhor”. Mas no sentido ontológico, o sentido que
predomina sempre que os dois sentidos competem no campo do ser, o campo em que
todos estamos, o ser é antes da moralidade; o eu moral não pode ser senão um eu
moral. Ontologicamente, a moralidade só pode vir depois de ser, isto é, ou como
determinado resultado do ser, ou como uma regra obrigada a admitir prioridade
do ser por querer justifica-se a si mesma em termos de ser. E eus morais
(aquele de outra forma que o ser, não outro ser) são ontologicamente
inseparáveis dos objetos de carne, animados, chamados seres humanos. Ontologicamente,
estes objetos vêm antes dos eus morais. “Por que devo me interessar pelos
outro? ... Sou acaso o guarda de meu irmão? Essas perguntas só têm sentido se
já se supôs que o ego só se interessa por si mesmo, é só um interesse por si
mesmo. Nessa hipótese, de fato permanece incompreensível que o absoluto
fora-de-mim, o outro, me afete”.[8]
A estranha verdade acerca da moralidade é que ela não é inevitável, não
determinada em qualquer sentido que se considerasse válido desde a perspectiva
ontológica; ela carece de “fundamentações” no sentido que aquela perspectiva
reconheceria. A ética que salta para o Grande Desconhecido do “antes do ser”
não o faz para encontrar ou construir fundamentações que nenhuma expedição
partindo do “ser” conseguiu revelar ou construir. A ética olha para o “antes”
do ser não porque espera que as fundamentações buscadas aí se escondam, mas
porque sabe que é precisamente o ato de buscar que funda o eu moral, sendo, por
assim dizer, a única fundamentação que a moralidade pode ter e a única que ela
suportará. (pág.89 e 90)
È essa responsabilidade – total e inteiramente não-heterônoma,
radicalmente diversa da responsabilidade por injunção, ou de obrigações
provenientes de dever contratual – que me converte em eu. Essa responsabilidade
não “deriva” de qualquer outra coisa. Eu sou responsável não por causa do que
eu sei do Outro, de suas virtudes, do que ele fez ou poderia ter feito a mim ou
para mim. Não cabe ao Outro provar a mim que lhe devo minha responsabilidade.
Somente naquela vigorosa e altiva recusa de “ter razão”, de “ter uma
fundamentação”, é que a responsabilidade me faz livre. Essa emancipação não
está contaminada com submissão, mesmo se ela resulta em dar-me a mim mesmo como
refém do bem-estar e das dores do Outro. A ambivalência reside no coração da
moralidade: sou livre na medida em que sou refém. Eu sou eu na medida em que
sou para o Outro. Uma vez que esta ambivalência se oculta à vista ou é banida
da vista, somente o egoísmo pode se colocar contra o altruísmo, o interesse
próprio contra o bem-estar comum, o eu moral contra a norma ética socialmente
endossada. (pág. 92)
O silêncio insuportável da
responsabilidade
Voltar para a incurável ambivalência do “pelo Outro” significa,
portanto, afastar-se da confortante segurança do ser para a temerosa
insegurança da responsabilidade. Se deixo atrás a existência bem organizada e
bem configurada dos interesses que se podem aprender e dos direitos que se
podem testemunhar e defender nos tribunais, dispenso o conforto da vida
assegurada contra a culpa, do afável envolvimento propício desintoxicado em
convenções que não pedem mais que ser seguidas. (pág.93)
Os santos são santos porque não se escondem atrás dos ombros largos
da Lei. Eles sabem, ou eles sentem, ou eles agem como se sentissem que nenhuma
lei, por mais generosa e humana seja,
pode exaurir o dever moral, traçar as conseqüências do “ser para” até a seu fim
radical, até a escolha extrema de vida ou morte. Não quer dizer que para ser
moral se precise de santo. Não quer dizer também que escolhas morais sejam
sempre, diariamente, questões de vida e morte: a maior parte da vida é levada
em distância segura das escolhas extremas e últimas. Mas quer dizer que a
moralidade, para ser eficaz na vida mundana não-heróica, deve-se talhar segundo
o tamanho heróico dos santos; ou, antes, manter a santidade dos santos por seu
único horizonte. Para ser o que ela é – a prática moral – ela deve
estabelecer-se padrões que não pode alcançar. E ela nunca pode apaziguar-se a
si mesma com auto-segurança, ou seguranças de outras pessoas, de que os padrões
foram atingidos. É, em última análise, a falta de autojustificação, e a
auto-indignação que essa produz, que são as trincheiras mais invencíveis da
moralidade. (pág. 96)
[1] Cf. John Carroll, Humanism: The rebirth and
wreck of western culture, Fontana, Londres, Prólogo.
[2] Tratei desse caso mais extensamente em “Narrating Postmodernity”,
em Zygmunt Bauman, Intimations of postmodernity, Routledge, Londres, 1992.
[3] “Uma afirmação, que tem a
forma verbal de um juízo moral para o qual se é incapaz de dar razões, não
expressa absolutamente um genuíno juízo moral” – pode-se tomar como expressão
prototípica dessa visão (de Marcus Singer, Generalization in ethics, citado
segundo Neil Cooper, “Two concepts of morality”, em Philosophy [1966]
pp.19-33). Cooper chama esse conceito de moralidade de “autônomo” e
“independente”, como distinto de “positivo” ou “social”; essa versão de
moralidade apresenta-se, por exemplo, na afirmação de H. L. A. Harts (em Legal
and moral obligations: essays in moral philosophy), de que “só podemos entender
a moralidade do individuo como desenvolvimento do fenômeno primário da
moralidade de um grupo social”.
[4] A condição de não ser
perseguido por escrúpulos é bastante fácil de se obter, com certeza. De fato,
nós todos a obtemos, e nela nos achamos a maior parte do tempo. Mas “na maior
parte do tempo” nos movemos fora do campo da ação moral para a área onde
bastarão convenções e etiquetas, indo pelas moções codificadas e assim facilmente
aprendíveis e legíveis, assim como pela simples regra de respeitar a
privacidade de outrem e tornando o respeito visível virando os olhos para o
outro lado e não olhando o outro no rosto. O resto do tempo, porém, estamos em
situações carregadas moralmente, e isso significa estarmos no que nos é
próprio. É verdade, essas são situações-limite, e todavia elas são o solo em
que morais germinam, crescem, florescem e murcham, como os extrema existenciais
da morte, do amor e do parentesco, e todas as inúmeras situações sobre que elas
lançam sua densa sombra gigantesca.
[5] É tentador sugerir que foi durante toda essa experiência
inerradicável e inextinguível de “não ter feito o bastante”, da impossibilidade
existencial de auto-satisfação sem nuvens, das exigências insaciáveis da
responsabilidade, que se forneceu o material do qual se fundiu pela primeira
vez a imagem de “pecado original”, e mais tarde a de trauma de nascimento” ou
de outros igualmente teimosos “complexos psicológicos” dos inícios distantes e
inatingíveis da meninice.
[6] Maurice Blanchot, Vicious circles, Station
Hill, Nova York, 1985, p.10
[7] The paradox of morality: na
interview with Emmanuel Lévinas by Tamara Wright, Peter Hayes and Alison
Ainley”, em The provocation of Lévinas: Rethinking the Other, orgs. Robert
Bernesconi e David Wood, Routledge, Londres, 1988, p. 169; Emmanuel Lévinas,
“Freedom and command”, em Collected philosophical papers, org. Alphonso Lingis,
Martinus Nijhoff, Haia, 1987, pp. 19, 21.
[8] Lévinas, Otherwise than being, p.
117.
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