sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Zygmunt Bauman – Modernidade-Líquida

 




 

 

Síntese: Paolo Cugini

Prefácio

 

Ser Leve E Líquido

 

Os líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade. Os fluidos, por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o tempo. Enquanto os sólidos têm dimensões espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou o tornam irrelevante), os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a mudá-la; assim, para ele, o que conta é o tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal, preenchem apenas “por um momento”. Em certo sentido, os sólidos suprimem o tempo; para os líquidos, ao contrário, o tempo é o que importa. Ao descrever os sólidos, podemos ignorar inteiramente o tempo; ao descrever os fluidos, deixar o tempo de fora seria um grave erro. Descrições de líquidos são fatos instantâneas, que precisam ser datadas. (pág.8)

A extraordinária mobilidade dos fluídos é o que os associa à idéia de “leveza”. Associamos “leveza” ou “ausência de peso” à mobilidade e à inconstância: sabemos pela prática que quanto mais leves viajamos, com maior facilidade e rapidez nos movemos. (pág.8)

Essa são razões para considerar “fluidez” ou “liquidez” como metáforas adequadas quando queremos captar a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras, na história da modernidade. (pág.9)

A nossa é, como resultado, uma versão individualizada e privatizada da modernidade, e o peso da trama dos padrões e a responsabilidade pelo fracasso caem principalmente sobre os ombros dos indivíduos. Chegou a vez da liquefação dos padrões de dependência e interação. Eles são agora maleáveis a um ponto que as gerações passadas não experimentaram e nem poderiam imaginar; mas, como todos os fluídos, eles não mantêm a forma por muito tempo. Dar-lhes forma é mais fácil que mantê-los nela. Os sólidos são moldados para sempre. Manter os fluidos em uma forma requer muita atenção, vigilância constante e esforço perpétuo – e mesmo o sucesso do esforço é tudo menos inevitável.

Seria imprudente negar, ou mesmo subestimar, a profunda mudança que o advento da “modernidade fluida” produziu na condição humana. O fato de que a estrutura sistêmica seja remota e inalcançável, aliado ao estado fluido e não-estruturado do cenário imediato da política-vida, muda aquela condição de um modo radical e requer que repensemos os velhos conceitos que costumavam cercar suas narrativas. Como zumbis, esses conceitos são hoje mortos-vivos. A questão prática consiste em saber se sua ressurreição, ainda que em nova forma ou encarnação, é possível; ou – se não for – como fazer com que eles tenham um enterro decente e eficaz. (pág.15)

O que leva tantos a falar do “fim da história”, da pós-modernidade, da “segunda modernidade” e da “sibremodernidade”, ou a articular a intuição de uma mudança radical no arranjo do convívio humano e nas condições sociais sob as quais a política-vida é hoje, é o fato de que o longo esforço para acelerar a velocidade do movimento chegou a seu “limite natural”. (pág.17 e 18)

 

  1. Emancipação

 

A bênçãos mistas da liberdade

 

A libertação é uma bênção é uma maldição? Uma maldição disfarçada de bênção, ou uma bênção temida como maldição? Tais questões assombraram os pensadores durante a maior parte da era moderna, que punha a “libertação” no topo da agenda da reforma política e a “libertação” no alto da lista de valores – quando ficou suficientemente claro que a liberdade custava a chegar e os que deveriam dela gozar relutavam em dar-lhe as boas-vindas. Houve dois tipos de resposta. A primeira lançava dúvidas sobre a prontidão do “povo comum” para a liberdade. Como o escritor norte-americano Herbert Sebastian Agar dizia: “a verdade que torna os homens livres é, na maioria dos casos, a verdade que os homens preferem não ouvir”. A segunda inclinava-se a aceitar que os homens podem não estar inteiramente equivocados quando questionam os benefícios que as liberdades oferecidas podem lhes trazer. (pág.26)

O indivíduo se submete à sociedade e essa submissão é a condição de sua libertação. Para o homem a liberdade consiste em não estar sujeito às forças físicas cegas; ele chega a isso opondo-lhes a grande e inteligente força da sociedade, ele se torna, até certo ponto, dependente dela. Mas é uma dependência libertadora; não há nisso contradição.[1] (pág.27)

Não só não há contradição entre dependência e libertação: não há outro caminho para buscar a libertação senão “submeter-se à sociedade” e seguir suas normas. A liberdade não pode ser ganha contra a sociedade. O resultado da rebelião contra as normas, mesmo que os rebelados não tenham se tornado bestas de uma vez por todas, e, portanto, perdido a capacidade de julgar sua própria condição, é uma agonia perpétua de indecisão ligada a um Estado de incerteza sobre as intenções e movimentos dos outros ao redor – o que faz da vida um inferno. (pág.28)

 

A casualidade e a arte cambiantes da crítica

 

O que está errado com a sociedade em que vivemos, disse Cornelius Castoriadis, é que ela deixou de se questionar. É um tipo de sociedade que não mais reconhece qualquer alternativa para si mesma e, portanto, sente-se absolvida do dever de examinar, demonstrar, justificar (e que dirá provar) a validade de suas suposições tácitas e declaradas.

Isso não significa, entretanto, que nossa sociedade tenha suprimido (ou venha a suprimir) o pensamento crítico como tal. Ela não deixou seus membros reticentes (e menos ainda temerosos) em lhe dar voz. Ao contrário: nossa sociedade – uma sociedade de “indivíduos livres’ – fez da crítica da realidade, da insatisfação com “o que aí está” e da expressão dessa insatisfação uma parte inevitável e obrigatória dos afazeres da vida de cada um de seus membros. (pág.30 e 31)

De alguma maneira, no entanto, essa reflexão não vai longe  suficiente para alcançar os complexos mecanismos que conectam nossos movimentos com seus resultados e os denominam, e menos ainda as condições que mantêm esses mecanismos em operação. Somos talvez mais “predispostos à crítica”, mais assertivos e intransigentes em nossa críticas, que nossos ancestrais em sua vida cotidiana, mas nossa crítica é, por assim dizer, “desdentada”, incapaz de afetar a agenda estabelecida para nossas escolhas na “política-vida”. A liberdade sem precedentes que nossa sociedade oferece a seus membros chegou, como há tempo nos advertia Leo Strauss, e com ela também uma impotência sem precedentes. (pág.31)

Essa modernidade pesada/sólida/condensada/sistêmica da “teoria crítica” era impregnada da tendência ao totalitarismo. A sociedade totalitária da homogeneidade compulsória, imposta e onipresente, estava constante e ameaçadoramente no horizonte – como destino último, como uma bomba nunca inteiramente desarmada ou um fantasma nunca inteiramente exorcizado. Essa modernidade era inimiga jurada da contingência, da verdade, da ambigüidade, da instabilidade, da idiossincrasia, tendo declarado uma guerra santa a todas essas “anomalias”; e esperava-se que a liberdade e a autonomia individuais fossem as primeiras vítimas da cruzada. Entre os princípios ícones dessa modernidade estavam a fábrica fordista, que reduzia as atividades humanas a movimentos simples, rotineiros e predeterminados, destinados a serem obediente e mecanicamente seguidos, sem envolver as faculdades mentais e excluindo toda espontaneidade e iniciativa individual. (pág.33 e 34)

Duas características, no entanto, fazem nossa situação – nossa forma de modernidade – nova e diferente.

A primeira é o colapso gradual e o rápido declínio da antiga ilusão moderna: da crença de que há um fim do caminho em que andamos, um telos alcançável da mudança histórica, um Estado de perfeição a ser atingido amanhã, no próximo ano ou no próximo milênio, algum tipo de sociedade boa, de sociedade justa e sem conflitos em todos ou alguns de seus aspectos postulados: do firme equilíbrio entre oferta e procura e a satisfação de todas as necessidades; da ordem perfeita, em que tudo é colocado no lugar certo, nada que esteja deslocado persiste e nenhum lugar é posto em dúvida; das coisas humanas que se tornam totalmente transparentes porque se sabe tudo o que deve ser sabido; do completo domínio sobre o futuro – tão completo que põe fim a toda contingência, disputa, ambivalência e conseqüências imprevistas das iniciativas humanas.

A segunda mudança é a desregulamentação e a privatização das tarefas e deveres modernizados. O que costumava ser considerado uma tarefa para a razão humana, vista como dotação e propriedade coletiva da espécie humana, foi fragmentado (“individualizado”), atribuído às vísceras e energia individuais e deixando à administração dos indivíduos e seus recursos. (pág.37 e 38)

 

O indivíduo em combate com o cidadão

 

A “individualização” agora significa uma coisa muito diferente do que significa há cem anos e do que implicava nos primeiros tempos da era moderna – os tempos da exaltada “emancipação” do homem da trama estreita da dependência, da vigilância e da imposição comunitárias. (pág.39 e 40)

A “individualização” consiste em transformar a “identidade” humana de um “dado” em uma “tarefa” e encarregar os atores da responsabilidade de realizar essa tarefa e das conseqüências (assim como dos efeitos colaterais) de sua realização. Em outras palavras, consiste no estabelecimento de uma autonomia de jure (independentemente de a autonomia de facto também ter sido estabelecida). (pág.40)

Para assumir o abismo entre a individualidade como fatalidade e a individualidade como capacidade realista e prática de auto-afirmação está aumentando. (Melhor ser afastado da “individualidade por atribuição”, como “individuação”: o termo escolhido por Beck para distinguir o indivíduo auto-sustentado e auto-impulsionado daquele que não tem escolha senão a de agir, ainda que contrafactualmente, como se a individualização tivesse sido alcançada). Saltar sobre esse abismo não é – isso é crucial – parte dessa capacidade. (pág.44)

A individualização chegou para ficar; toda elaboração sobre os meios de enfrentar seu impacto sobre o modo como levamos nossas vidas deve partir do reconhecimento desse fato. A individualização traz para um número sempre crescente de pessoas uma liberdade sem precedentes de experimentar – mas (timeo danaos et dana ferentes...) traz junto a tarefa também sem precedentes de enfrentar as conseqüências. O abismo que se abre entre o direito à auto-afirmação e a capacidade de controlar as situações sociais que podem tornar essa auto-afirmação algo factível ou irrealista parece ser a principal contradição da modernidade fluida – contradição que, por tentativa e erro, reflexão crítica e experimentação corajosa precisamos aprender a manejar coletivamente. (pág.47)

 

  1. Tempo/Espaço

 

Da modernidade pesada à modernidade leve

 

Na era do hardware, da modernidade pesada, que nos termos de Max Weber era também a era da racionalidade instrumental, o tempo era o meio que precisava ser administrado prudentemente para que o retorno de valor, que era o espaço, pudesse ser maximizado; na era do software, da modernidade leve, a eficácia do tempo como meio de alcançar valor tende a aproximar-se do infinito, como o efeito paradoxal de nivelar por cima (ou, antes, por baixo) o valor de todas as unidades no campo dos objetivos potenciais. O ponto de interrogação moveu-se do lado dos meios para o lado dos fins. Se aplicado à relação tempo-espaço, isso significa que, como todas as partes do espaço podem ser atingidas no mesmo período de tempo (isto é, em “tempo nenhum”), nenhuma parte do espaço é privilegiada, nenhum tem um “valor especial”. Se todas as partes do espaço podem ser alcançadas a qualquer momento, não há razão para alcançar qualquer uma delas num dado momento e nem tampouco razão para se preocupar em garantir o direito de acesso a qualquer uma delas. Se soubermos que podemos visitar um lugar em qualquer momento que quisermos, não há urgência em visitá-lo em gastar dinheiro em uma passagem válida para sempre. Há ainda menos razão para suportar o gasto da supervisão e administração permanentes, do laborioso e arriscado cultivo de terras que podem ser facilmente ocupadas e abandonadas conforme interesses de momentos e “relevâncias tópicas”. (pág.137)

 

A sedutora leveza do ser

 

O tempo instantâneo e sem substância do mundo do software é também um tempo sem conseqüências . “Instantaneidade” significa realização imediata , “no ato” – mas também exaustão e desaparecimento do interesse. A distância em tempo que separa o começo do fim está diminuindo ou mesmo desaparecendo; as duas noções, que outrora eram usadas para marcar a passagem do tempo, e portanto para calcular seu “valor perdido”, perderam muito de seu significado – que, como todos os significados, derivava de sua rígida oposição. Há apenas “momentos” – pontos sem dimensões. Mas, será ainda um tal tempo – tempo com a morfologia de um agregado de momentos – o tempo “como conhecimento”? A expressão “momento de tempo” parece, pelo menos em certos aspectos vitais, cometido suicídio? Não teria sido o espaço apenas a primeira baixa na corrida do tempo para a auto-aniquilação? (pág.137 e 138)

As pessoas que se movem e agem com maior rapidez, que mais se aproximam do momentâneo do movimento, são as pessoas que agora mandam. E são as pessoas que não podem se mover tão rápido – e, de modo ainda mais claro, a categoria das pessoas que não podem deixar seu lugar quando quiserem – as que obedecem. A dominação consiste em nossa própria capacidade de escapar, de nos desengajarmos, de estar “em outro lugar”, e no direito de decidir sobre a velocidade com que isso será feito – e ao mesmo tempo de destruir os que estão do lado dominado de sua capacidade de parar, ou de limitar seus movimentos ou ainda torná-los mais lentos. A batalha contemporânea da dominação é travada entre forças que empunham, respectivamente, as armas da aceleração e da procrastinação. (pág.139)

O trabalho sem corpo da era do software não mais amarra o capital: permite ao capital ser extraterritorial, volátil e inconstante. A descorporificação do trabalho anuncia a ausência de peso do capital. Sua dependência mútua foi unilateralmente rompida: enquanto a capacidade do trabalho é, como antes, incompleta e irrealizável isoladamente, o inverso não mais se aplica. O capital viaja esperançoso, contando com breves e lucrativas aventuras e confiante em que não haverá escassez delas ou de parceiros com quem compartilhá-las. O capital pode viajar rápido e leve, e sua leveza e mobilidade se tornam as fontes mais importantes de incerteza para todo o resto. Essa é hoje a principal base da dominação e o principal fator das divisões sociais. (pág.141)

 

Vida instantânea

 

Uma vez que a infinidade de possibilidades esvaziou a infinitude do tempo de seu poder sedutor, a durabilidade perde sua atração e passa de um recurso a um risco. Talvez seja mais adequado observar que a própria linha de demarcação entre o (durável” e o “transitório”, outrora foco de disputa e engenharia, foi substituída pela polícia de fronteiras e por batalhões de construtores.

A desvalorização da imortalidade não pode senão anunciar uma rebelião cultural, defensavelmente o marco mais decisivo na história cultural humana. A passagem do capitalismo pesado ao leve, da modernidade sólida à fluida, pode vir a ser um ponto de inflexão mais radical e rico que o advento mesmo do capitalismo e da modernidade, vistos anteriormente como os marcos cruciais da história humana, pelo menos desde a revolução neolítica. De fato, em toda a história humana o trabalho da cultura consistiu em peneirar e sedimentar duras sementes de perpetuidade a partir de transitórias vidas humanas e de ações humanas fugazes, em invocar a duração a partir da transitoriedade, a continuidade a partir da descontinuidade, e em assim transcender os limites impostos pela mortalidade humana, utilizando homens e mulheres mortais a serviço da espécie humana mortal. A demanda por esse tipo de trabalho está diminuindo hoje em dia. A demanda por esse tipo de trabalho está diminuindo hoje em dia. As conseqüências dessa demanda em queda estão para ser vistas e são difíceis de visualizar de antemão, pois não há precedentes a lembrar ou em que se apoiar.

A nova instantaneidade do tempo muda radicalmente a modalidade do convívio humano – e mais conspicuamente o modo como os humanos cuidam (ou não cuidam, se for o caso) de seus afazeres coletivos, ou antes o modo como transformam (ou não transformam, se for o caso) certas questões em questões coletivas. (pág.146 e 147)

4. Trabalho

 

Progresso e fé na história

 

Se, no entanto, a idéia de progresso em sua encarnação presente parece tão pouco familiar que chegamos a nos perguntar se ainda a mantemos, é porque o progresso, como tantos outros parâmetros da vida moderna, está agora “individualizado”; mais precisamente – desregulado e privatizado. Está agora desregulado – porque as ofertas de “elevar de nível” as realidades presentes são muitas e diversas e porque a questão “uma novidade particular significa de fato um aperfeiçoamento?” foi deixada à livre competição antes e depois de sua introdução, e permanecerá em disputa mesmo depois de feita a escolha. (pág.155)

No mundo humano labiríntico, os trabalhos humanos se dividem em episódios isolados como o resto da vida humana. E, como no caso de todas as outras ações que os humanos podem empreender, o objetivo de manter um curso próximo aos projetos dos atores é evasivo, talvez inatingível. O trabalho escorregou do universo da construção da ordem e controle do futuro em direção do reino do jogo; atos de trabalho se parecem mais com as estratégias de um jogador que se põe modestos objetivos de curto prazo, não antecipando imediatos de cada movimento; os efeitos devem ser passíveis de ser consumidos no ato. Suspeita-se que o mundo esteja repleto de pontes demasiado longínquas, o tipo de pontes que é melhor não pensar em atravessar até encontrá-las, o que não acontecerá tão cedo. Cada obstáculo deve ser negociado quando chegar sua vez; a vida é uma seqüência de episódios – cada um a ser calculado em separado, pois cada um tem seu próprio balanço de perdas e ganhos. Os caminhos da vida não se tornam mais retos por serem trilhados, e virar uma esquina não é garantia de que os rumos corretos serão seguidos no futuro. (pág.159 e 160)

 

Ascensão e queda do trabalho

 

A nova desigualdade global e a nova autoconfiança e sentimento de superioridade que se seguiram foram espetaculares e sem precedentes: novas noções, novos quadros cognitivos eram necessários para captá-las e assimilá-las intelectualmente. Essas noções e quadros foram fornecidos pela recém-nascida ciência da economia política, que veio a substituir as idéias fisiocratas e mercantilistas que acompanham a Europa em seu caminho para a fase moderna de sua história, até o limiar da Revolução Industrial.

Não “por caso” essas noções foram cunhadas na Escócia, país ao mesmo tempo envolvido e separado do curso principal da convulsão industrial, física e psicologicamente próximo do país que se tornaria o epicentro da emergente ordem industrial, mas que permaneceria por certo tempo relativamente imune a seu impacto econômico e cultural. As tendências em pleno movimento no “centro” são, em regra, mais prontamente detectadas e mais claramente articuladas em lugares temporariamente relegados às “margens”. Viver na periferia do centro civilizacional significa estar suficientemente próximo para ver as coisas com clareza, mas suficientemente longe para “objetivá-las” e assim moldar e condensar as percepções em conceitos. Não foi, portanto, “mera coincidência” que o evangelho tenha vindo da Escócia: a riqueza vem do trabalho, sua fonte principal, talvez única. (pág.162)

Essa nova ordem em que todos os fins presentemente soltos serão novamente amarrados, enquanto as cargas e destroços de fatalidades passadas, náufragos abandonos ou à deriva, serão recolocados e fixados em seus lugares corretos, deveria ser massiva, sólida, feita de pedra ou armada em aço: destinada a durar. Grande era belo, grande era racional; “grande’ queria dizer poder, ambição e coragem. O local de construção da nova ordem industrial era repleto de monumentos ao poder e à ambição, monumentos que, fossem ou não indestrutíveis, deveriam parecê-lo: fábricas gigantescas lotadas de maquinaria volumosa e multidões de operadores de máquinas, ou densas redes de canais, pontes e trilhos pontuados de majestosas estações dedicadas a emular os antigos templos erigidos para a adoração da eternidade e para a eterna glória dos adoradores. (pág.165)

 

Do casamento à coabitação

 

A presente versão “liquefeita”, “fluída”, dispersa, espalhada e desregulada da modernidade pode não implicar o divórcio e ruptura final da comunicação, mas anuncia o advento do capitalismo leve e flutuante, marcado pelo desengajamento e enfraquecimento dos laços que prendem o capital ao trabalho. Pode-se dizer que esse movimento ecoa a passagem do casamento para o “viver junto”, com todas as atitudes disso decorrentes e conseqüências estratégicas, incluindo a suposição da transitoriedade da coabitação e da possibilidade de que a associação seja rompida a qualquer momento e por qualquer razão, uma vez desaparecida a necessidade ou o desejo. Se manter-se juntos era uma questão de acordo recíproco e de mútua dependência, o desengajamento é unilateral: um dos lados da configuração adquiriu uma autonomia que talvez sempre tenha desejado secretamente mas que nunca havia manifestado seriamente antes. Numa medida nunca alcançada na realidade pelos “senhores ausentes” de outrora, o capital rompeu sua dependência em relação ao trabalho com uma nova liberdade de movimentos, impensável no passado. A reprodução e o crescimento do capital, dos lucros e dos dividendos e a satisfação dos acionistas se tornaram independentes da duração de qualquer comprometimento local com o trabalho. (pág.171)

 

Digressão: breve história da procrastinação

 

Resumindo: a procrastinação deriva seu sentido moderno do tempo vivido como uma peregrinação, como um movimento que se aproxima de um objetivo. Em tal tempo, cada presente é avaliado por alguma coisa que vem depois. Qualquer valor que este presente aqui e agora possa ter não passará de um sinal premonitório de um valor mais alto por vir. O uso – a tarefa – do presente é levar-nos mais perto desse valor mais alto. Em si mesmo, o tempo presente carece de sentido e de valor. É, por isso, falho, deficiente e incompleto. O sentido do presente está adiante; o que está à mão ganha sentido e é avaliado pelo noch-nicht-geworden, pelo que ainda não existe. (pág.179)  

Viver a vida como uma peregrinação é, portanto, intrinsecamente aporético. E obriga cada presente a servir a alguma coisa que ainda-não-é, e a servi-la diminuindo a distância desaparecesse e o objetivo fosse alcançado, o presente perderia tudo o que o fazia significativo e valioso. A racionalidade instrumental favorecida e privilegiada pela vida do peregrino leva à busca dos meios que podem realizar o estranho feito de manter o fim dos esforços sempre à vista sem nunca chegar lá, de trazer o fim cada vez mais para perto, mas impedindo ao mesmo tempo que a distância caia para zero. A vida do peregrino é uma viagem em direção à realização, mas “realização” nesta vida é equivalente à perda da sentido. Viajar em direção à realização dá sentido tem algo de um impulso suicida; esse sentido não pode sobreviver à chegada ao destino.

A procrastinação reflete essa ambivalência. O peregrino procrastina para estar mais bem preparado para captar as coisas que verdadeiramente importam. Mas captá-las sinalizará o fim da peregrinação, e assim também o fim de uma vida que dela deriva seu único sentido. Por essa razão, a procrastinação tem uma tendência a romper qualquer limite de tempo colocando de antemão e a estender-se indefinidamente – ad calendas graecas. A procrastinação tende a tornar-se seu próprio objetivo. A coisa mais importante deixada de lado no ato da procrastinação tende a ser o fim da própria procrastinação. (pág.179 e 180)

Como uma faca de dois gumes, a procrastinação pode servir à sociedade moderna tanto em seu estágio “sólido” como no “líquido”, tanto em seu estágio de produtor como no de consumidor, ainda que sobrecarregue cada estágio com tensões e conflitos de atitude e axiológicos não-resolvidos. A passagem para a sociedade de consumidores do presente significou portanto uma mudança de ênfase mais que uma mudança de valores. E, no entanto, levou o princípio da procrastinação ao ponto de ruptura. Esse princípio está hoje vulnerável, e perdeu o escudo protetor da proibição ética. O adiamento da satisfação da satisfação não é mais um sinal de virtude moral. É uma provação para e simples, uma problemática sobrecarga que sinaliza imperfeições nos arranjos sociais ou inadequação pessoal, ou nas duas ao mesmo tempo. Não uma exortação, mas uma admissão resignada e triste de um estado de coisas desagradável (mas remediável). (pág.182)

A procrastinação serve à cultura do consumidor pela sua autonegação. A fonte do esforço criativo não é mais o desejo, mas o desejo induzido de encurtar o adiamento ou aboli-lo de todo, acompanhando do desejo induzido de encurtar a duração da satisfação quando ela chega. A cultura em guerra com a procrastinação é uma novidade na história moderna. Ela não tem lugar para tomar distância, nem para reflexão, continuidade, tradição – essa Wiederholung (recapitulação) que, de acordo com Heidegger, era a moralidade do Ser como o conhecemos. (pág.183)

 

Os laços humanos no mundo fluido

 

Na falta de segurança de longo prazo, a “satisfação instantânea” parece uma estratégia razoável. O que quer que a vida ofereça, que o faça hic et nunc – no ato. Quem sabe o que o amanhã vai trazer? O adiamento da satisfação perdeu seu fascínio. É, afinal, altamente incerto que o trabalho e o esforço investidos hoje venham a contar como recursos quando chegar a hora da recompensa. Está longe de ser certo, além disso, que os prêmios que hoje parecem atraentes serão tão desejáveis quando finalmente forem conquistados. Todos aprendemos com amargas experiências que os prêmios podem se tornar riscos de uma hora para outra e prêmios resplandecentes podem se tornar marcas de vergonha. As modas vêm e vão com velocidade estonteante, todos os objetos de desejo se tornam obsoletos, repugnantes e de mau-gosto antes que tenhamos tempo de aproveitá-los. Estilos de vida que são “chiques” hoje serão amanhã alvos do ridículo. Citando Bourdieu uma vez mais: “Os que deploram o cinismo que marca os homens e mulheres de nosso tempo não deveriam deixar de relacioná-lo às condições sociais e econômicas que o favorecem...” Quando Roma pega fogo e há muito pouco ou nada que se possa fazer para controlar o incêndio, tocar violino não parece mais bobo nem menos adequado do que fazer qualquer outra coisa. (pág.185 e 186)

Num mundo em que o futuro é, na melhor das hipóteses, sombrio e nebuloso, porém mais provavelmente cheio de riscos e perigos, colocar-se objetivos distantes, abandonar o interesse privado para aumentar o poder do grupo e sacrificar o presente em nome de uma felicidade futura não parecem uma proposição atraente, ou mesmo razoável. Qualquer oportunidade que não for aproveitada aqui e agora é uma oportunidade perdida; não a aproveitar é assim imperdoável e não há desculpa fácil para isso, e nem justificativa. Como os compromissos de hoje são obstáculos para as oportunidades de amanhã, quanto mais forem leves e superficiais, menor o risco de prejuízos. “Agora” é a palavra-chave da estratégia de vida, ao que quer que essa estratégia se aplique e independente do que mais possa sugerir. Num mundo inseguro e imprevisível, o viajante esperto fará o possível para imitar os felizes globais que viajam leves; e não derramarão muitas lágrimas ao se livrar de qualquer coisa que atrapalhe os movimentos. Raramente param por tempo suficiente para imaginar que os laços humanos não são como peças de automóvel – que raramente vêm prontos, que tendem a se deteriorar e desintegrar facilmente se ficarem hermeticamente fechados e que não são fácies de substituir quando perdem a utilidade. (pág.186 e 187)

Em outras palavras, laços e parcerias tendem a ser vistos e tratados como coisas destinadas a serem consumidas, e não produzidas; estão sujeitas aos mesmos critérios de avaliação de todos os outros objetos de consumo. No mercado de consumo, os produtos duráveis são em geral oferecidos por um “período de teste”; a devolução do dinheiro é prometida se o comprador estiver menos que totalmente satisfeito. Se o participante numa parceria é “concebido” em tais termos, então não é mais tarefa para ambos os parceiros “fazer com que a relação funcione”, “na riqueza e na pobreza”, na saúde e na doença, trabalhar a favor nos bons e maus momentos, repensar, se necessário, as próprias preferências, conceder e fazer sacrifícios em favor de uma união duradoura. É, em vez disso, uma questão de obter satisfação de um produto pronto para o consumo; se o prazer obtido corresponder ao padrão prometido e esperado, ou se a novidade se acabar junto com o gozo, pode-se entrar com a ação de divórcio, com base nos direitos do consumidor. Não há qualquer razão para ficar com um produto inferior ou envelhecido em vez de procurar outro “novo e aperfeiçoado” nas lojas. (pág.187 e 188)

 

5. Comunidade

 

Em termos sociológicos, o comunitarismo é uma reação esperável à acelerada “liquefação” da vida moderna, uma reação antes e acima de tudo ao aspecto da vida sentido como a mais aborrecida e incômoda entre suas numerosas conseqüências penosas – o crescente desequilíbrio entre a liberdade e as garantias individuais. O suprimento de provisões e esvai rapidamente, enquanto o volume de responsabilidade individuais (atribuídas, quando não exercidas na prática) cresce numa escola sem precedentes para as gerações do pós-guerra. Um aspecto muito visível do desaparecimento das velhas garantias é a nova fragilidade dos laços humanos. A fragilidade e transitoriedade dos laços pode ser um preço inevitável do direito de os indivíduos perseguirem seus objetivos individuais, mas não pode deixar de ser, simultaneamente, um obstáculo dos mais formidáveis para perseguir eficazmente esses objetivos – e para a coragem necessária para persegui-los. Isso também é um paradoxo – e profundamente enraizado na natureza da vida na modernidade líquida. E nem é a primeira vez que situações paradoxais provocam e evocam respostas paradoxais. À luz da natureza paradoxal da “individualização” moderna-líquida, a natureza contraditória da resposta comunitária ao paradoxo não deve espantar: a primeira é uma explicação adequada da segunda, enquanto está é um efeito adequado da primeira.

O comunitarismo renascido responde à questão genuína e pungente de que o pêndulo oscila radicalmente – e talvez para longe demais – afastando-se do pólo da segurança na díade dos valores humanos fundamentais. Por essa razão, o evangelho comunitário tem uma grande audiência. Ele fala em nome de milhões: precarité, como insiste Bourdieu, est aujourd’hui partout – ela penetra cada canto da existência humana. Em seu recente livro Proteger ou disparaître,[2] um irado manifesto contra a indolência e a hipocrisia das elites do poder de hoje em face de “la montée des insecurités”, Philippe Cohen lista o desemprego (nove de cada dez novas vagas são estritamente temporárias e de curto prazo), as perspectivas incertas na velhice e os infortúnios da vida urbana como as principais fontes da difusa ansiedade em relação ao presente, ao dia de amanhã e ao futuro mais distante: a falta de segurança é o que une as três, e o principal apelo do comunitarismo é a promessa de um porto seguro, o destino dos sonhos dos marinheiros perdidos no mar turbulento da mudança constante, confusa e imprevisível. (pág.195 e 196)

 

Unidade – pela semelhança ou pela diferença?

 

O “nós” do credo patriótico/navionalista significa pessoas como nós, “eles” significa pessoas que são diferentes de nós. Não que “nós” sejamos idênticos em tudo; há diferenças entre “nós”, ao lado das características comuns, mas as semelhanças diminuem, tornam difuso e neutralizam seu impacto. O aspecto em que somos semelhantes é decididamente mais significativo que o que nos separa; significativo bastante para superar o impacto das diferenças quando se trata de tomar posição. E não que “eles” sejam diferentes de nós em tudo, mas eles diferem em um aspecto que é mais importante que todos os outros, importante o bastante para impedir uma posição comum e tornar improvável a solidariedade genuína, independente das semelhanças que existam. É uma situação tipicamente ou/ ou: as fronteiras que “nos” separam “deles” estão claramente traçadas e são fáceis de ver, uma vez que o certificado de “pertencer” só tem uma rubrica, e o formulário que aquele que requerem uma carteira de identidade devem preencher contém uma só pergunta, que deve ser respondida “sim ou não”. (pág. 202)

O nacionalismo tranca as portas, arranca as aldravas e desliga as campainhas, declarando que apenas os que estão dentro têm direito de aí estar e acomodar-se de vez. O patriotismo é, pelo menos aparentemente, mais tolerante, hospitaleiro e acessível – deixa a questão para os que pedem admissão. E no entanto o resultado último é, quase sempre, notavelmente semelhante. Nem o credo patriótico nem o nacionalista admitem a possibilidade de que as pessoas possam se unir mantendo-se ligadas às suas diferenças, estimando-as e cultivando-as, ou que sua unidade, longe de requerer a semelhança ou promovê-la como um valor a ser ambicionado e buscado, de fato se beneficia da variedade de estilos de vida, ideais e conhecimentos, ao mesmo tempo em que acrescenta força e substância ao que faz o que são – e isso significa ao que as faz diferentes. (pág.203)

 

Segurança a um certo preço

 

A imagem da comunidade é a de uma ilha de tranqüilidade caseira e agradável num mar de turbulência e honestidade. Ela tenta e seduz, levando os admiradores a impedir-se de examiná-la muito de perto, pois a eventualidade de comandar as ondas e domar os mares já foi retirada da agenda como uma proposição tanto suspeita quanto irrealista. Ser o único abrigo dá a essa visão da comunidade um valor adicional, e esse valor continua a crescer à medida que a bolsa onde se negociam outros valores da vida se torna cada vez mais caprichosas e imprevisível. (pág.208 e 209)

A nova primazia do corpo se reflete na tendência a formar a imagem da comunidade ( a comunidade dos sonhos de certeza com segurança, a comunidade como viveiro da segurança) no padrão do corpo idealmente protegido: a visualizá-la como uma entidade internamente homogênea e harmoniosa, inteiramente limpa de toda substância estranha, com todos os pontos de entrada cuidadosamente vigiados, controlados e protegidos, mas fortemente armada e envolta por armadura impenetrável. As fronteiras da comunidade postulada, como os limites exteriores do corpo, são para separar o domínio da confiança e do cuidado amoroso, da selva do risco, da suspeição e da perpétua vigilância. O corpo e também a comunidade postulada são aveludadas por dentro e ásperos e espinhosos por fora.

Corpo e comunidade são os últimos postos de defesa no campo de batalha cada vez mais deserto em que a guerra pela certeza, pela segurança e palas garantias é travada, diariamente e sem tréguas. Corpo e comunidade devem de agora em diante realizar as tarefas no passado divididas entre muitos bastiões e barricadas. O que depende deles agora é mais do que podem suportar, de tal forma que provavelmente aprofundarão, em vez de aliviar, os temores que levaram aqueles que andavam à procura de segurança a voltar-se para eles em busca de proteção.

A nova solidão de corpo e comunidade é o resultado de um amplo conjunto de mudanças importantes subsumidas na rubrica modernidade líquida. Uma mudança no conjunto é, contudo, de particular importância: a renúncia, adiamento ou abandono, pelo Estado, de todas as suas principais responsabilidades em seu papel como maior provedor (talvez mesmo monopolístico) de certeza, segurança e garantias, seguindo de sua recusa em endossar as aspirações de certeza, segurança e garantia de seus cidadãos. (pág.211)

 

Preencher o vazio

 

Para as multinacionais (isto é, empresas globais com interesse e compromissos locais dispersos e cambiantes), “o mundo ideal” “é um mundo sem Estados”, observou Eric Hobsbawm. “A menos que tenha petróleo, quanto menor o Estado, mais fraco ele é, e menos dinheiro é necessário para se comprar um governo”. (pág.219)

A falta de laços sociais com os membros “legítimos” da comunidade (ou a proibição de estabelecer tais laços) tem uma vantagem adicional: as vítimas “podem ser exposta à violência sem risco de vingança”,[3] pode-se puni-los com impunidade – ou pelo menos pode-se esperar por isso, manifestando, porém, a expectativa oposta, pintando a capacidade assassina das vítimas nas cores mais vivas e lembrando que a comunidade deve cerrar fileiras e manter seu vigor e vigilância no máximo.

A teoria de Girard parece fazer sentido da violência que é profusa e exaltada nas esgarçadas fronteiras das comunidades, especialmente comunidades cujas identidades são incertas ou contestadas, ou, mais precisamente, do uso comum da violência como instrumento para desenhar fronteiras quando estas estão ausentes, ou são porosas ou apagadas. (pág.222 e 223)

 

Posfácio

 

Escrever; Escrever Sociologia[4]

 

A sociedade é verdadeiramente autônoma quando “sabe, tem que saber, que não há significados ‘assegurados’, que vive na superfície do caos, que ela própria é um caos em busca de forma, mas uma forma que nunca é fixada de uma vez por todas”. A falta de significados garantidos – de verdades absolutas, de normas de conduta pré-ordenadas, de fronteiras pré-traçadas entre o certo e o errado, de regras de ação garantidas – é a conditio sine qua non de, ao mesmo tempo, uma sociedade verdadeiramente autônoma e indivíduos verdadeiramente livres; a sociedade autônoma e a liberdade de seus membros se condicionam mutuamente. A segurança que a democracia e a individualidade podem alcançar depende não de lutar contra a contingência e a incerteza da condição humana, mas de reconhecer e encarar de frente suas conseqüências. (pág.242 e 243)

Viver entre uma multidão de valores, normas e estilos de vida em competição, sem uma garantia firme e confiável de estarmos certos, é perigoso e cobra um alto preço psicológico. Não surpreende que a atração da segunda resposta, de fugir da escolha responsável, ganhe força. Como diz Julia Kristeva (em Noções sem nacionalismo), “é rara a pessoa que não invoca uma proteção primal para compensar a desordem pessoal”. E todos nós, em medida maior ou menor, às vezes mais e às vezes menos, nos encontramos em Estado de “desordem pessoal”. Vez por outra, sonhamos com uma “grande simplificação”; sem aviso, nos envolvemos em fantasias regressivas cuja principal inspiração são o útero materno e o lar protegido por  muros. A busca de um abrigo primal é o “outro” da responsabilidade, exatamente como o desvio e a rebelião eram o “outro” da conformidade. O anseio por um abrigo primal veio hoje a substituir a rebelião, que deixou de ser uma opção razoável; como diz Pierre Rosanvallon (em novo prefácio a seu clássico Lê capitalisme utopique), não há mais “uma autoridade no poder para depor e substituir. Parece não haver mais espaço para a revolta como atesta o fatalismo diante do fenômeno do desemprego”. (pág.243 e 244)

 



[1] De Sociologie et philosophie (1942). Aqui citado seguindo a tradução em Émile Durkheim: Selected Writings, Cambridge: Cambridge University Press, 1972, p.115.

[2] Philippe Cohen, proteger ou disparaîte: les elites face à la montée des insecurités, Paris: Gallimard, 1999, p. 7-9.

[3] René Girard, La violence et lê sacré, Paris: Grasset, 1972. Aqui citado na tradução inglesa de Patrick Gregory, Violence and the Sacred, Baltimore: Johns Hopkins Iniversity Press, 1979, p.8, 12, 13.

[4] Este ensaio foi publicado pela primeira vez em Theory, Culture and Society, 200, 1.

Zygmunt Bauman - Vidas Desperdiçadas

 




 

Síntese: Paolo Cugini

 

1

No começo era o projeto

Ou o refugo da construção da ordem

 

“Redundância” compartilhada o espaço semântico de “rejeitos”, “desejos”, “restos”, “lixo” – com refugo. O destino dos desempregados, do “exército de reserva da mão-de-obra”, era serem chamadas de volta ao serviço ativo. O destino do refugo é o depósito de desejos, o monte de lixo. Com muita freqüência, na verdade, rotineiramente, as pessoas declaradas “redundantes” são consideradas sobretudo um problema financeiro. Precisam ser “providas” – ou seja, alimentadas, calçadas e abrigadas. Não sobreviveriam por si mesmas – faltam-lhes os “meios de sobrevivência” (quer dizer, sobretudo a sobrevivências biológica, o oposto da morte por inanição ou abandono). A resposta à redundância é tão financeira quanto a definição do problema: esmolas fornecidas pelo Estado, reguladas pelo Estado ou por ele promovidas e testadas em relação aos meios (chamadas, de modo variado, mas sempre eufemístico, de benefícios da previdência, incentivos fiscais, isenções, concessões, pensões). (pág.20 e 21)

Desde o início dos tempos modernos, cada geração sucessiva tem sido seus naufrágios no vácuo social: as “baixas colaterais” do progresso. Enquanto muitos conseguiram pular para dentro do veículo em alta velocidade e aproveitar profundamente a viagem, muitos outros – menos sagazes, hábeis, espertos, musculosos ou aventureiros – ficaram para trás ou tiveram negado o acesso ao veículo superlotado, se é que não foram esmagados sob suas rodas. No carro do progresso, o número de assentos e de lugares em pé não é, em regra, suficiente para acomodar todos os passageiros potenciais, e a admissão sempre foi seletiva. Talvez por isso o sonho de se juntar a essa viagem fosse tão doce para tantos. O progresso era apregoado sob o slogan de mais felicidade para um número maior de pessoas. Mas talvez o progresso, marca registrada da era moderna, tivesse a ver, em última instância, com a necessidade de menos (e cada vez menos) pessoas manter o movimento, acelerar e atingir o topo, o que antes exigiria uma massa bem maior para negociar, invadir e conquistar. (pág.23 e 24)

Deixando por sua própria conta, fora do alcance dos holofotes da história e antes da primeira sessão de ajuste com os planejadores, o mundo não é ordenado nem caótico, nem limpo nem sujo. É o projeto humano que evoca a desordem juntamente com a visão da ordem, a sujeira juntamente com o plano da pureza. O pensamento ajusta primeiro a imagem do mundo, de modo a que o próprio mundo possa ser ajustado logo em seguida. Uma vez ajustada a imagem, o ajustamento do mundo ( o desejo de ajustá-lo, o esforço para isso – embora não necessariamente o ato concreto do ajuste) é uma conclusão previamente obtida. O mundo é administrável e exige ser administrado, já que tem sido refeito na medida da compreensão humana. A observação de Francis Bacon de que “a natureza, para ser comandada, deve ser obedecida” não foi uma intimação à humildade, muito menos um apelo à docilidade. Foi um ato de desafio. (pág.29)

Indagado sobre como obtinha a bela harmonia de suas esculturas, Michelangelo teria respondido: “É simples. É só você pegar um bloco de mármore e cortar todos os pedaços supérfluos”. No auge do Renascimento, Michelangelo proclamou o preceito que foi o guia da criação moderna. A separação e a destruição do refugo seriam comercial da criação moderna: cortando e jogando fora o supérfluo, o desnecessário e o inútil, seriam descoberto o belo, o harmonioso, o agradável e o gratificante.

A visão de uma forma perfeita oculta num bloco informe de pedra bruta precede seu ato de nascença. O refugo é o envoltório que esconde essa forma. Para desnudá-la, fazê-la emergir e ser, admirar sua harmonia e sua beleza sem mácula, deve-se destinar alguma coisa ao lixo. O envoltório – o refugo do ato criativo – deve ser posto de lado, retalhado e removido para não atulhar o chão e restringir os movimentos do escultor. Não pode haver oficina artística sem uma pilha de lixo.

Isso, porém, torna o lixo um ingrediente indispensável do processo criativo. Mais ainda: confere ao lixo um poder aterrorizante, verdadeiramente mágico, equivalente ao da “pedra filosofal” do alquimista – o poder de realizar a maravilhosa transmutação da matéria inferior, sem significação e desprezível num objeto nobre, belo e precioso. Também faz do lixo a encarnação da ambivalência. O lixo é ao mesmo tempo divino e satânico. É a parteira de toda criação – e seu mais formidável obstáculo. O lixo é sublime: uma mistura singular de atração e repulsa que produz um composto, também singular, de terror e medo. (pág.31 e 32)

A mente moderna nasceu justamente com a idéia de que o mundo pode ser transformado. A modernidade refere-se à rejeição do mundo tal como ele tem sido até agora e à decisão de transformá-lo. A moderna forma de ser consistente na mudança compulsiva, obsessiva: na refutação do que “meramente é” em nome do que poderia – e no mesmo sentido deveria – ser posto em seu lugar. O mundo moderno é um mundo que contém um desejo e uma determinação: desafiar sua mêmeté (como diria Paul Ricoeur) – sua mesmidade. O desejo de se fazer diferente do que se é, de se refazer, e de continuar se refazendo. A condição moderna é estar em movimento. A opção é modernizar-se ou perecer. A história moderna tem sido, portanto, a história da produção de projetos e um museu/túmulo de projetos tentados, usados, rejeitados e abandonados na guerra contínua de conquista e/ou desgaste que se trava contra a natureza. (pág.33 e 34)

A produção de projetos faz sentido à medida que nada no mundo existente é como deveria ser. Ainda mais importante, ela ganha uma fama merecida se esse mundo não é o que poderia ser, considerando-se os meios disponíveis ou esperados de tornar as coisas diferentes. O objetivo da produção de projetos é abrir mais espaço para “o bem”, e menos ou nenhum para “o mal”. É o bem que faz do mal aquilo que ele é: mal. “O mal” é o refugo do progresso.

A natureza, admite-se, é governada por suas leis. Estas não foram feitas pelos seres humanos, que assim também não podem desfazê-las. Seguindo o conselho de Bacon, só restaria aos seres humanos aprender essas leis de modo a poder utilizá-las em seu proveito. Um aspecto do mundo que a mente moderna considerou particularmente repugnante, inaceitável e insustentável era, contudo, a condição da humanidade. E a humanidade era uma parte do mundo que conseguia ignorar, para seu próprio risco, as leis da natureza e colocar em seu lugar as leis do homem.

Guiada pelas leis humanas, a humanidade seguiu em frente se arrastando, enquanto era fustigada, pressionada e atormentada pelas forças da irracionalidade, do preconceito e da superstição. Comparado com a parte inumana do universo que não conhece o “erro”, o passado humano só podia aparecer como uma estufa da estupidez e da malevolência, e como uma longa seqüência de crimes e erros crassos. A única “lei da história humana” que se podia imaginar era a necessidade de a razão onde a espontaneidade humana havia falhado de maneira espetacular. Essa conquista era tão inevitável quanto urgente. Foi uma inevitabilidade histórica. Estava falada a acontecer, graças à absoluta falta de opção, à indispensabilidade da descoberta de que em algum ponto a razão humana deve conquistar o controle da história, reprimir, domesticar ou amordaçar suas inclinações naturais e suas tendências básicas, e assumir a responsabilidade pela configuração da necessidade histórica. (pág.40 e 41)

Onde há projeto há refugo. Nenhuma casa está realmente concluída antes que os dejetos indesejados tenham sido varridos do local da construção. (pág.41)

Quando se trata de projetar as formas do convívio humano, o refugo são seres humanos. Alguns não se ajustam à forma projetada nem podem ser ajustados a ela, ou sua pureza é adulterada, e sua transparência, turva: os monstros e mutantes de Kafka, como o indefinível Odradek ou o cruzamento de gato com ovelha – singularidades, vilões, híbridos que desmascaram categorias supostamente inclusivas/exclusivas. Nódoas numa paisagem sob outros aspectos elegante e serena. Seres inválidos, cuja ausência ou obliteração só poderia beneficiar a forma projetada, tornando-a mais uniforme, mais harmoniosa, mais segura e ao mesmo tempo mais em paz consigo mesma. (pág.42)   

 

2

Serão eles demasiados?

Ou o refugo do progresso econômico

 

“Superpopulação” é uma ficção atuarial: um codinome para a aparição de um número de pessoas que, em vez de ajudarem a economia a funcionar com tranqüilidade, tornam muito mais difícil a obtenção, para não falar na elevação, dos índices pelos quais se mede e avalia o funcionamento adequado. A quantidade desses indivíduos parece crescer de maneira incontrolável, aumentando continuamente as despesas, mas não os ganhos. Numa sociedade de produtores, essas são as pessoas cuja mão-de-obra não pode ser empregada com utilidade, já que todos os bens que a demanda atual e futura é capaz de absorver podem ser produzidos – e produzidos com maior rapidez, maior lucratividade e de modo mais “econômico” – sem que elas sejam mantidas em seus empregos. Numa sociedade de consumidores, elas são os “consumidores falhos” – pessoas carentes do dinheiro que lhes permitiriam ampliar a capacidade do mercado consumidor, e que criam um novo tipo de demanda a que a indústria de consumo, orientada para o lucro, não pode responder nem “colonizar” de maneira lucrativa. Os consumidores são os principais ativos da sociedade de consumo, enquanto os consumidores falhos são os seus passivos mais irritantes e custosos.

A “população excedente” é mais uma variedade de refugo humano. (pág.52 e 53)

As pessoas supérfluas estão numa situação em que é impossível ganhar. Se tentam alinhar-se com as formas de vida hoje louvadas, são logo acusadas de arrogância pecaminosa, falsas aparências e da desfaçatez de reclamarem prêmios imerecidos – senão de intenções criminosas. Caso se queixem abertamente e se recusem a honrar aquelas formas que podem ser saboreadas pelos ricos, mas que, para eles, os despossuídos, são mais como veneno, isso é visto de pronto como prova daquilo que a “opinião pública” (mais corretamente, seu porta-vozes eleitos ou autoproclamados) “já tinha advertido” – que os supérfluos não são apenas um copo estranho, mas um tumor canceroso que corrói os tecidos sociais saudáveis e inimigos jurados do “nosso modo de vida” e “daquilo que respeitamos”. (pág.55)

“A produção de corpos supérfluos, não são mais exigidos para o trabalho, é conseqüência direta da globalização”, como aponta Hauke Brunkhorts. Ele acrescenta que a peculiaridade da versão globalizada da “superpopulação” é a maneira como ela combina, com grande rapidez, a crescente desigualdade com a exclusão dos “corpos supérfluos” do domínio da comunicação social. (pág.55)

É sempre o excesso deles que nos preocupa. Mais perto de casa, é a queda livre das taxas de fecundidade e sua inevitável conseqüência, o envelhecimento da população, que nos deixam impacientes e exaltados. Haverá um número suficiente de “nós” para sustentar “nosso modo de vida”? Haverá um número suficiente de lixeiros, coletores dos desejos que “nosso modo de vida” produz todo dia, ou – como pergunta Richard Rorty – um número suficiente de “pessoas que sujam as mãos limpando nossas privadas”, recebendo dez vezes menos que nós, “que nos sentamos atrás de escrivaninhas e dedilhamos teclados”?[1] Esse outro lado pouco sedutor da guerra contra a “superpopulação” – a perspectiva sinistra da necessidade “deles” de importar mais,e não menos, apenas para manter “o nosso modo de vida” à tona – assombra as terras dos abastados.

Essa perspectiva não seria tão assustadora – como tende a ser percebida em toda parte, com exceção das ultra-seguras salas de diretoria das empresas e dos salões em que se realizam tediosas conferências acadêmicas –, não fosse por uma nova utilização das pessoas expelidas, em particular as que conseguiram desembarcar nas terras dos riscos. (pág.60)

Vulnerabilidade e incerteza sã as duas qualidades da condição humana a partir das quais se molda o “medo oficial’: o medo do poder humano, do poder criado e manipulado pelo homem. Esse “medo oficial” é construído segundo o padrão do poder inumano refletido pelo (ou melhor, que emana do) “medo cósmico”.

Bakhtin aponta que o medo cósmico é usado por todos os sistemas religiosos. A imagem de Deus, supremo governante do universo e de seus habitantes, é moldada a partir da bem conhecida emoção do medo da vulnerabilidade e do temor em face da incerteza impenetrável e sem remédio. A religião, portanto, se justifica pelo papel de mediadora e eficaz, de intercessora que defende os vulneráveis e os amedrontados no início tribunal capaz de decretar o banimento dos reveses aleatórios do destino. A religião extrai seu poder sobre as almas humanas brandindo a promessa da segurança. Mas, para fazê-lo, teve primeiro de reprocessar o universo, transformando-o em Deus – forçando-o a falar... (pág.61 e 62)

A vulnerabilidade e a incerteza humanas são as principais razões de ser de todo poder político. E todo poder político deve cuidar da renovação regular de suas credenciais.

Numa sociedade moderna média, a vulnerabilidade e a insegurança da existência e a necessidade de perseguir os objetivos da vida em condições de incerteza aguda e irredimível são garantidas pela exposição desses objetivos às forças do mercado. Além de colocar em operação, monitorar e vigiar as condições jurídicas das liberdades de mercado, o poder político não tem necessidade de interferir mais para assegurar uma quantidade suficiente e uma provisão permanente de “medo oficial”. Ao exigir de seus súditos a disciplina e a obediência à lei, pode basear sua legitimidade na promessa de mitigar o grau de vulnerabilidade e incerteza já existente entre eles: limitar os danos e prejuízos perpetrados pelo livre jogo das forças de mercado, proteger os vulneráveis de golpes dolorosos demais e defender o incerto dos riscos que a livre competição necessariamente enseja. Tal legitimação encontra sua derradeira expressão na autodefinição da moderna forma de governo como um “Estado de bem-estar”. (pág.66)

Na visão de Hans – Jörg Albrecht, só a ligação entre a imigração e a inquietação pública com o crescimento da violência e os temores relativos à segurança é que é nova. Fora isso, não tem havido grandes mudanças desde os primórdios do Estado moderno – as imagens folclóricas de demônios que no passado eram usadas para incutir os difusos temores sobre segurança “foram transformadas em perigo e riscos”:

A demonização foi substituída pelo conceito e estratégia da “periculização”. A governança política, portanto, tornou-se em parte dependente do outro desviante e da mobilização do sentimento de segurança. O poder político e seu estabelecimento, assim como sua preservação, dependem hoje de temas de campanha selecionados com cuidado, entre os quais a segurança (e o sentimento de insegurança) se destaca.[2]

Os imigrantes, permitam-me observar, se ajustam melhor a esse propósito que qualquer outra categoria de vilões genuínos ou supostos. Há uma espécie de “afinidade eletiva” entre os imigrantes (aquele refugo humano proveniente de lugares distantes descarregado em “nosso próprio quintal”) e os menos toleráveis de nossos próprios temores domésticos. Quando todos os lugares e posições parecem balançar e não são mais considerados confiáveis, a presença de imigrantes joga sal na ferida. Os imigrantes, e em particular os recém-chegados, exalam o dor opressivo do depósito de lixo que, em seus muitos disfarces, assombra as noites das potenciais vítimas da vulnerabilidade crescente. Para aqueles que os detratam e odeiam, os imigrantes encarnam – de modo visível, tangível, em carne e osso – o pressentimento inarticulado, mas pungente e doloroso, de sua própria condição de descartável. Fica-se tentando a dizer que, se não houvesse imigrantes batendo às portas, eles teriam de ser inventados... De fato, eles fornecem aos governos um “outro desviante” ideal, um alvo muito bem-vindo para “temas de campanha selecionados com esmero”. (pág.72 e 73)

As pessoas cujas formas de subsistência ortodoxas e forçosamente desvalorizadas já foram marcadas para a destruição, e elas próprias assinaladas como refugo removível, não podem optar. Em seus sonhos noturnos podem moldar-se à semelhança dos consumidores, mas é a sobrevivência física, e não a orgia consumista, que lhes ocupa os dias. Está montado o palco para o encontro dos desejos humanos com as sobras das orgias consumistas – de fato, parecem ter sido feitos uns para os outros... Por trás da cortina colorida da livre competição e do comércio idem, o homo hierarquicus se arrasta. Na sociedade de castas, só os intocáveis podiam (e deviam) manusear coisas intocáveis. No mundo da liberdade e igualdade globais, as terras e a população foram arrumadas numa hierarquia de castas. (pág.76 e 77)

 

3

A cada refugo seu depósito de lixo

Ou o refugo da globalização

 

Daí a ansiedade – provocada pela dolorosa experiência de estar perdido e infeliz: não somos os únicos, ninguém está no comando, ninguém está por dentro. Não há como dizer quando e de onde virá o próximo ataque, até onde suas ondas vão chegar e qual será o grau do cataclismo. A incerteza e a angústia que dela nasce são produtos básicos da globalização. Os poderes de Estado não podem fazer quase nada para aplacar a incerteza, muito menos para eliminá-la. O máximo que podem fazer é mudar seu foco para objetos alcançáveis. Tirá-la dos objetos em relação aos quais nada podem fazer e colocá-la sobre aqueles que pelo menos lhes propiciam uma demonstração de sua capacidade de manejo e controle. Refugiados, pessoas em busca de asilo, imigrantes – os produtos rejeitados da globalização – se encaixam perfeitamente nesse papel. (pág.84) 

Mas agora o planeta está cheio. Isso significa, entre outras coisas, que típicos processos modernos, como a construção da ordem e o progresso econômico, ocorrem por toda parte, e assim por toda parte o “refugo humano” é produzido e germinado em quantidades sempre crescentes – agora, porém, na ausência de depósitos “naturais” adequados para sua armazenagem e potencial reciclagem. O processo previsto pela primeira vez por Rosa Luxemburgo um século atrás (embora descrito por ela sobretudo em termos econômicos, e não explicitamente sociais) atingiu o limite máximo. (pág.88)

Talvez a única indústria a prosperar nas terras dos retardatários (desonesta e enganosamente apelidadas de “países em desenvolvimento”) seja a produção maciça de refugiados. São os produtos cada vez mais prolíficos dessa indústria que o primeiro-ministro britânico propõe descarregar “perto de seus países natais”, em acampamentos temporários para toda vida (desonesta e enganosamente apelidados de “abrigos seguros”), exacerbando desse modo os já não-administráveis problemas de “excedente populacional” dos vizinhos próximos que dirigem a contragosto uma indústria semelhante. O objetivo é manter locais os “problemas locais” e cortar pela raiz todas as tentativas de os recém-chegados seguirem o exemplo dos pioneiros da modernidade procurando soluções globais (as únicas efetivas) para problemas manufaturados localmente. No momento em que escrevo estas palavras, numa outra variação sobre o mesmo tema, a Otan foi solicitada a mobilizar seus exércitos para ajudar a Turquia a fechar sua fronteira com o Iraque em vista de um iminente ataque ao país. Vários estadistas dos países pioneiros objetaram, levantando muitas reservas imaginosas – mas ninguém mencionou publicamente que o perigo contra o qual a Turquia devia ser protegida era o influxo de refugiados iraquianos recém-transformados em pessoas sem-teto, e não um ataque dos derrotados e pulverizados soldados do Iraque.[3]

Ainda que honestos, os esforços para represar a maré da “migração econômica” não são e nem podem ser cem por cento bem-sucedidos. A miséria prolongada leva milhões de pessoas ao desespero, e, na era da terra de fronteira global e do crime globalizado, dificilmente se poderia imaginar que houvesse uma carência de “empresas” ávidas por ganhar algum dinheiro, ou alguns milhões, se aproveitando desse desespero. Daí a segunda conseqüência formidável da atual transformação: milhões de migrantes vagam por estradas que já foram trilhadas pela “população excedente” descarregada pelas estufas da modernidade – só que na direção inversa, e desta vez desassistidas (pelo menos até agora) por exércitos de conquistadores, comerciantes e missionários. A dimensão plena dessa conseqüência e de suas repercussões ainda está por ser revelada e apreendida em todas as suas diversas ramificações. (pág.92 e 93)

Um dos efeitos mais sinistros da globalização é a desregulamentação das guerras. A maioria das ações belicosas de hoje, e as mais cruéis e sangrentas de todas, são conduzidas por entidades não-estatais, que não se sujeitam às leis do Estado nem às convenções internacionais. São ao mesmo tempo produtos e causas acessórias, mas poderosas, da contínua erosão da soberania do Estado e da permanente condição de terra de fronteira que caracteriza o espaço global “interestatal”. Os antagonismos intertribais nem à tona graças à debilitação do poder do Estado, ou, no caso dos “novos Estados”, do fato de não ter havido tempo para que esse poder se desenvolvesse. Quando desencadeados, eles tornam as leis promulgadas pelo Estado, sejam elas incipientes ou consolidadas, inaplicáveis e quase nulas.

A população como um todo se vê num espaço sem lei. A parte dela que decide e consegue fugir do campo de batalha encontra-se em outro tipo de lugar em que a lei não existe, a terra de fronteira global. Uma vez fora dos limites de seus países nativos, os fugitivos são privados do apoio de uma autoridade estatal reconhecida que poderia tomá-los sob sua proteção, reivindicar seus direitos e interceder por eles perante as potências estrangeiras. Os refugiados são destituídos de Estado, mas num novo sentido: sua condição de sem Estado é alçada a um nível totalmente inédito graças à inexistência de uma autoridade estatal à qual sua cidadania possa referir-se. (pág.95 e 96)

Os guetos, com ou sem este nome, são instituições antigas. Servem ao propósito da “estratificação compósita” (e ao mesmo tempo da “privação múltipla”), superpondo a separação territorial à diferenciação por casta ou classe. Os guetos podem ser voluntários ou involuntários (embora só estes últimos tendam a carregar o estigma do nome), e a principal diferença entre ambos é o lado da “fronteira assimétrica” com o qual se defrontam – os obstáculos empilhados, respectivamente, na entrada ou na saída da área do gueto. (pág.101)

A proximidade imediata de amplas e crescentes aglomerações de “pessoas refugadas”, que tendem a ser duradouras e permanentes, exige políticas segregacionistas mais estritas e medidas de segurança extraordinárias para que “saúde da sociedade” e o “funcionamento normal” do sistema social não sejam ameaçados. As notórias tarefas de “administração da tensão” e “manutenção do padrão”, que, segundo Talcott Parsons, todo sistema precisa desempenhar a fim de sobreviver, hoje se resumem quase totalmente em separar de modo estrito o “refugo humano” do restante da sociedade, excluí-lo do arcabouço jurídico em que se conduzem as atividades dos demais e “neutralizá-lo”. O “refugo humano” não pode mais ser removido para depósitos de lixo distantes e fixado firmemente fora dos limites da “vida normal”. Precisa, assim, ser lacrado em contêineres fechados com rigor. (pág.107)

Um imperativo da maior urgência enfrentado por todo governo que preside ao desmantelamento e ao recuo do Estado social é, portanto, a tarefa de encontrar ou construir uma nova “fórmula de legitimação” em que a auto-afirmação da autoridade do Estado e a exigência de disciplina se possam basear. Ser abatido como “baixa colateral” do progresso econômico, agora nas mãos de forças econômicas globais livremente flutuantes, não é uma sina que os governos dos Estados possam prometer afugentar com alguma fidedignidade. Mas alimentar os temores provocados pela ameaça à segurança pessoal com conspiradores terroristas caracterizados também pela livre flutuação global, e então prometer mais guardas de segurança, uma rede mais densa de máquinas de raio X e um escopo mais amplo de televisão em circuito fechado, além de novas checagens, outros ataques preventivos e mais prisões para averiguação a fim de proteger essa segurança – esta parece ser uma alternativa vantajosa.

Em contraste com a insegurança demasiado tangível e todo dia vivenciada que os mercados produzem, sm necessidade de ajuda dos poderes políticos senão para serem deixados à vontade, a mentalidade de “fortaleza sitiada” e de corpos individuais e bens privados sob ameaça deve ser ativamente cultivada. As ameaças devem ser pintadas nas cores mais sinistras, de modo que sua não-materialização, em lugar do advento do pressagiado apocalipse, possa ser apresentada ao público atemorizado como um evento extraordinário, e acima de tudo como o resultado das habilidades, da vigilância, da atenção e da boa vontade excepcionais dos órgãos de Estado. Quase diariamente, e pelo menos uma vez por semana, a CIA e o FBI advertem os norte-americanos de iminentes atentados contra a segurança, lançando-os e mantendo-os num estado de alerta constante, colocando firmemente a segurança individual no foco das tensões mais variadas e difusas – enquanto o presidente dos Estados Unidos relembra a seus eleitores que “bastaria um frasco, uma lata, um caixote introduzido neste país para provocar um dia de horror como nenhum de nós jamais conheceu”. Essa estratégia é copiada com avidez, ainda que até agora com um pouco menos de ardor (menos por falta de fundos que de vontade), por outros governos que supervisionam o enterro do Estado Social. A nova demanda popular por um poder de Estado vigoroso, capaz de ressuscitar as debilitadas esperanças de proteção contra o confinamento ao lixo, é construída sobre os pilares da vulnerabilidade e da segurança pessoais, e não da precariedade e da proteção sociais. (pág.112 e 113)

“Danos colaterais” é um termo que pode ter sido inventado em específico para denotar o refugo humano peculiar às novas condições de terra de fronteira planetária criadas pelo impetuoso e irrestrito impulso à globalização que até hoje resiste de fato a todas as tentativas de domesticação e regulamentação. Os temores relacionados à moderna variedade de produção de lixo parecem sobrepujar as apreensões e ansiedades que ela tradicionalmente evoca. Não admira que sejam empregados com avidez na construção (e também, portanto, nas tentativas de desconstrução) das novas hierarquias de poder de âmbito planetário. (pág.114)

A confiança é substituída pela suspeita universal. Presume-se que todos os vínculos sejam precários, duvidosos, semelhantes a armadilhas e emboscados – até prova em contrário. Mas, ma ausência de confiança, a própria idéia de “prova”, para não falar de prova segura e final, está longe de ser clara e convincente. Como seria uma prova fidedigna, confiável de verdade? Você não há conheceria se a visse. Mesmo se olhasse no rosto, não acreditaria que ela fosse o que afirmava ser. A aceitação da prova, portanto, deve ser adiada de modo indefinido. Os esforços para estabelecer e estreitar os vínculos alinham uma seqüência infinita de experimentos. Sendo experimentais, aceitos “na base da tentativa” e eternamente testados, sempre um provisório “vamos esperar para ver como funcionam”, não é provável que as alianças, compromissos e vínculos humanos se solidifiquem o suficiente para serem proclamados confiáveis de maneira verdadeira e integral. Nascidos da suspeita, geram suspeita. (pág.115)

 

4

A cultura do lixo

 

Se a vida pré-moderna era uma recitação diária da duração infinita de todas as coisas, com exceção da existência mortal, a vida líquido-moderna é uma recitação diária da transitoriedade universal. Nada no mundo se destina a permanecer, muito menos para sempre. Os objetos úteis e indispensáveis de hoje são, com pouquíssimas exceções, o refugo de amanhã. Nada é necessário de fato, nada é insubstituível. Tudo nasce com a marca da morte iminente, tudo deixa a linha de produção com um “prazo de validade” afixado. As construções não têm início sem que as permissões de demolição (se exigidas) tenham sido emitidas, e os contratos não são assinados a menos que se fixe a sua duração ou que se permita serem anulados, dependendo de sua sorte no futuro. Nenhum passo e nenhuma escolha é de uma vez para sempre, irrevogável. Nenhum compromisso dura o bastante para alcançar o ponto sem retorno. Todas as coisas, nascidas ou feitas, humanas ou não, são até segunda ordem e dispensáveis. Um espectro paira sobre os habitantes do mundo líquido-moderno e todos os seus esforços e criações: o espectro da redundância.

A modernidade líquida é uma civilização do excesso, da superfluidade, do refugo e de sua remoção. (pág.120)

Max Scheler observou as conseqüências da ampla aplicação do “estratagema diversionista”. Ao contrário de Pascal, porém, Scheler via a fuga pelo diversionismo como um evento na história, e não como um eterno apuro humano: um resultado da moderna revolução no modo de ser. Ele deplorava essa novidade como um perigo mortal para a necessidade humana de transcendência.

A morte foi afastada para longe da vista dos homens e mulheres contemporâneos, “não é mais visível”. Esse “não-ser-da morte” se tornou, na opinião de Scheler, a “ilusão negativa do tipo moderno de consciência”.[4] Não constituindo mais uma parte do destino humano que mereça ser encarada em toda sua majestade e devidamente respeitada, a morte foi rebaixada à condição de catástrofe deplorável, como um tiro de pistola ou um tijolo que cai de um telhado. Com o horizonte da mortalidade fora de sua vista, e não mais orientando os projetos a longo prazo, ou regulando as ações cotidianas, a vida perdeu sua coesão interna. Ela é vivida de um dia para o outro “até que, por curiosa coincidência, não há dia seguinte”. Mas quando o medo da morte recua ou desaparece da vida diária, ele deixa de trazer atrás de si a desejada quietude espiritual. É desde logo substituído pelo medo da vida, O outro medo, por sua vez, instiga uma “abordagem calculista da vida”, que se alimenta de uma insaciável sede de bens eternamente novos e do culto do “progresso” – em si mesmo uma idéia sem sentido, destituída de propósito. “Progredir” – e aqui Scheler cita o memorável veredicto de Werner Sombart – é seu único sentido prático. (pág.123 e 124)

A eternidade era um dos poucos universais genuínos da cultura. Para a mente sóbria, logicamente treinada, isso pode parecer estranho, pelo menos à primeira vista. Com efeito, é preciso muita imaginação até mesmo para conceber a “eterna permanência”, enquanto visualizá-la desafia o poder dos sentidos humanos. Não existe forma de extrair a “eternidade” do “interior” da experiência humana. Ela não pode ser vista, tocada, ouvida, cheirada ou saboreada. No entretanto seria inútil procurar uma população humana que não considerasse a eternidade quase auto-evidente. A consciência da eternidade (deveríamos dizer a crença nela) pode mesmo ser considerada um dos traços definidores da humanidade.

A solução desse paradoxo parece estar em outro universal: a linguagem. Ou antes, em outros paradoxo, associado de modo inextricável à posse da linguagem. (pág.124 e 125)

A invenção da eternidade é de fato uma mágica da linguagem. É uma invenção curiosa e extraordinária – e no entanto inevitável, algo que não poderia deixar de ser inventado. Inconcebível seria uma espécie semelhante à humana, dotada de linguagem, que deixasse de inventar a eternidade – inconcebível pela simples razão de ser capaz de permanecer inconsciente de sua própria mortalidade. Mas, em sua forma prístina, crua, não-preparada, a visão da eternidade só poderia contribuir para o desespero causado pela certeza da morte. Para embrulhar o medo e a esperança no mesmo pacote, era necessário um fio, uma liga, uma dobradiça – a unir uma vida destinada a terminar e, logo, a um mundo destinado a permanecer eternamente. (pág.126)

A “beleza” é um dos ideais que nos conduzem para além do mundo que já é. Seu valor está plenamente contido no seu poder de conduzir. Se já a tivéssemos atingido, ela teria perdido esse poder, e com ele seu valor. Nossa jornada teria chegado ao fim. Não haveria mais nada a transgredir ou transcender, e assim também não haveria vida humana tal como a conhecemos. Mas, graças à linguagem e à imaginação que ela torna tanto possível quanto inevitável, talvez não seja possível alcançar esse ponto.

Chamamos muitas coisas de “belas”, mas não há só objeto a que atribuímos esse nome do qual não possamos dizer que dispensa ser aperfeiçoado. A “perfeição” é um eterno “ainda não”, algo que está um ou mais passos à frente, que se pode alcançar, mas não realmente controlar. Com efeito, um estado de coisas em que nenhum aperfeiçoamento posterior será desejável só pode ser almejado por pessoas que têm muito a aperfeiçoar. A visão da perfeição pode ser um elogio à imobilidade, mas a tarefa dessa visão é puxar-nos e empurrar-nos para longe daquilo que é, impedir-nos de permanecer imóveis... Imobilidade é aquilo de que se ocupam os cemitérios – e, no entanto, paradoxalmente, é o sonho da imobilidade que nos mantém vivos e ocupados. Enquanto o sonho permanecer irrealizado, contamos os dias e os dias contam: existe um propósito, e também uma tarefa inconclusa a realizar... Como a grande cientista polonesa Marie Curie confidenciou ao irmão, com um misto de orgulho e vergonha: “Nunca se nota o que já foi feito, só conseguimos ver o que está por fazer...”

Não que essa tarefa – que se recusa, obstinada e furiosamente, a ser concluída – seja apenas uma bênção e traga uma felicidade não poluída. A condição de “negócio inacabado” tem muitos encantos, mas, tal como outras condições, carece de perfeição...

Como costumava dizer o grande sociólogo italiano Alberto Melucci: “Estamos contaminados pela fragilidade da condição presente, que exige um alicerce firme onde não existe alicerce algum”. E assim, “ao contemplar a mudança, sempre nos dividimos entre o desejo e o medo, a expectativa e a incerteza”.[5]É isso: a incerteza. Ou, como prefere Ulrich Beck, o risco: aquele companheiro (ou seria rastreador?) indesejado, desastrado e irritante, mas também obstinado, atrevido e inseparável, de toda expectativa – um espectro sinistro que assombra os inveterados tomadores de decisões que nós somos. Para nós, como Melucci afirmou energicamente, “a escolha tornou-se um destino”.

“Tornou-se” talvez não seja a expressão correta: afinal, pelos motivos já manifestados, os seres humanos são obrigados a fazer escolhas desde que se tornaram humanos. Mas podemos dizer que em nenhuma outra época foi necessário fazer escolhas que nos afetassem de modo tão profundo e com efeitos tão medonhos, todos os dias e sob condições de uma incerteza dolorosa mas incurável, com propósitos de ação e padrões de conduta que dificilmente duram o tempo necessário para serem atingidos e concluir a ação, sob a ameaça constante de sermos “deixados para trás”, “não estarmos à altura das novas exigências” e (horror do horrores) sermos expulso do jogo. O que separa a atual agonia da escolha dos desconfortos que atormentaram o homo eligens, o “homem que escolhe”, em todos os tempos é a angustiante suspeita ou a descoberta dolorosa de que não existem regras claras e confiáveis, objetivos aprovados de validade universal que possam aliviar de todo, ou pelo menos em parte, aqueles que devem fazer escolhas de sua responsabilidade pelas conseqüências adversas – equivocadas ou imprevistas – do que escolheram. Não há pontos de orientação inconfundíveis nem diretrizes à prova de falhas, e as diretrizes e pontos de referência hoje considerados confiáveis tendem a ser desmascarados amanhã como ilusórios ou viciados. (pág,141, 142 e 143)

O mercado de consumo e o padrão de conduta que ele exige e cultiva são adaptados à “cultura do cassino” líquido-moderna, que, por sua vez, é adaptada às pressões e seduções do mercado. Os dois se dão bem entre si, se abastecem e se reforçam mutuamente. Para não desperdiçar o tempo de seus limites, nem prejudicar ou impedir suas futuras mas imprevisíveis alegrias, o mercado de consumo oferece produtos destinados ao consumo imediato, de preferência para um único uso, seguindo de rápida remoção e substituição, de modo que os espaços de vida não fiquem congestionados quando os objetos hoje admirados e cobiçados saírem de moda. Os clientes, confusos pelo turbilhão da moda, pela atordoante variedade de ofertas e o ritmo vertiginoso de sua mudança, não podem mais recorrer à capacidade de aprender e gravar – e assim precisam (e o fazem com gratidão) aceitar as garantias de que o produto atualmente em oferta é “a coisa”, “a coisa mais quente”, o “must”, aquilo “(com/em) que devem ser vistos”. (pág.146)

Em nossa líquida sociedade moderna, a beleza encontrou o mesmo destino sofrido por todos os outros ideais que costumavam motivar a inquietude e a rebeldia humanas. A busca pela harmonia definitiva e pela permanência eterna foi redefinida simplesmente como uma preocupação equivocada. Os valores são valores desde que se ajustam ao consumo instantâneo, imediato. São atributos de experiências momentâneas. E assim é a beleza. E a vida consiste numa sucessão de experiências momentâneas.

“A beleza não tem uma utilidade óbvia, nem existe uma clara necessidade cultural para ela. No entanto a civilização não poderia passar sem ela”, refletiu Freud. “Essa coisa inútil que nós esperamos que a civilização valorize é a beleza. Exigimos que o homem civilizado reverencie a beleza onde quer que a veja e a crie em objetos artesanais na medida de sua habilidade”. A beleza, junto com a limpeza e a ordem, “ocupam obviamente uma posição especial entre os requisitos da civilização” .[6] (pág.150)

“Seu carro passa por uma revisão todo ano. Por que não seu relacionamento?”, indaga Hugh Wilson.[7] De fato. O que vale para os carros também vale para os relacionamentos. Ou seja, ambos só fazem sentido se atendem às suas necessidades e enquanto você estiver satisfeito com a forma como isso se dá... Seria tolo imaginar que eles continuarão desempenhando bem suas tarefas para sempre e que seu contentamento será eterno. (pág.151)

Somos consumidores numa sociedade de consumidores. A sociedade de consumidores é uma sociedade de mercado. Todos nos encontramos totalmente dentro dele, e ora somos consumidores, ora mercadorias. (pág.151)

Um número cada vez maior de observadores acredita, com sensatez, que amigos e amizades desempenham um papel vital em nossa sociedade tão individualizada. Com o desmantelamento das tradicionais estruturas de apoio fornecidas pela coesão social, as relações tecidas a partir da amizade poderiam transformar-se em nossas tábuas de salvação. (pág.152)

Na vida “moderna tardia” ou “líquido-moderna”, os relacionamentos são um assunto ambíguo e tendem a ser os focos de uma ambivalência mais aguda e exasperante: o preço da companhia que todos desejamos com tamanho ardor é invariavelmente a renúncia, ao menos parcial, à independência, não importa o quanto desejaríamos a primeira sem a segunda...

A ambivalência contínua resulta em dissonância cognitiva, estado mental notoriamente aviltante, desqualificador e difícil de suportar. Esta, por sua vez, atrai o usual repertório de estratagemas, dos quais o mais utilizado é reduzir, minimizar e desprezar um dos dois valores inconciliáveis. Submetidos a pressões contraditórias, muitos relacionamentos, de qualquer modo destinados a serem apenas “até segunda ordem”, acabarão se rompendo. O rompimento é uma expectativa razoável, algo que se deve prever e estar preparado para enfrentar. Desse modo, parceiros sensatos prefeririam (nas palavras de Wilson) “introduzir desde o início cláusulas que garantam uma ‘saída’ fácil”, “queremos que a parte da saída seja tão indolor quanto possível”.

Quando a elevada probabilidade do desgaste é calculada no processo de construir vínculos de relacionamento, a precaução e a prudência mandam que se cuide com antecedência da instalação de armazenamento de lixo. Afinal, planejadores urbanos sensatos não se arriscariam a dar início à construção de um prédio antes de obterem a permissão para demoli-lo, generais hesitariam em enviar suas tropas ao campo de batalha sem terem preparado um cenário viável para a fuga, e os empregadores em geral se queixam de que a adoção dos direitos trabalhistas e as restrições à demissão de empregados tornam quase impossível ampliar o nível de emprego. (pág.152 e 153)

O encontro veloz é apenas um de uma série crescente de estratagemas oferecidos no mercado “consumidor-amigo” das “relações humanas” (mais precisamente, de seus substitutos produzidos em massa e de qualidade inferior, porém mais baratos). Por exemplo, anúncios pessoais on line, que eliminam até mesmo o risco dos três minutos de exposição para as conseqüências de longo prazo advindas de uma escolha imprudente e extemporânea. Nas palavras de Emma Taylor e Lorelei Sharkey, “se sua vida amorosa fosse uma conta bancária, seu anúncio pessoal seria seu caixa eletrônico, proporcionando-lhe acesso fácil e instantâneo a qualquer coisa que você quisesse (sexo casual, amor verdadeiro, amizade colorida), quando quisesse”.[8]  Elas deveriam ter acrescentado que, ao usar o caixa eletrônico, você retira exatamente a quantia que está pronto a gastar e preparado para perder. Desse modo, a perda – embora não evitável de todo – será calculada por antecipação e, portanto, vai doer menos. Os parceiros não se queixarão dos custos e de sacrifícios extenuantes: tendo se conhecido por meio de anúncios pessoais, os dois saberão que são “ambos solteiros e procuram”, e assim – assinalam Taylon e Sharkey –, “você resolve marcar o encontro – e bum!”. (pág.155)

Parcerias assumidas de modo instantâneo, logo consumidas e removidas podem, contudo, ter seus efeitos colaterais, não menos dolorosos que o efeito da timidez que as empresas de encontro veloz prometem anular. O espectro da pilha de lixo nunca se afasta muito. Afinal, a velocidade e os serviços de remoção de lixo estão disponíveis para os dois lados. Você pode terminar na condição descrita por Oliver James: envenenado por “uma constante sensação de que faltam outras pessoas em sua vida, com sentimentos vazios e solidão semelhantes à privação”. Você pode ter “o medo eterno de ser abandonado por amantes e amigos”. A condição aqui diagnosticada parece ser uma conseqüência natural, lógica e racional de uma vida salpicada de parcerias estabelecidas de modo instantâneo e da mesma forma rompidas, mas James encontra sua causa na “depressão dependente”, uma doença orgânica ou física, clínica e curável, e afirma que “as origens desse problema se encontram muitas vezes na infância”. A “insensibilidade” gerada em sua infância pela “falta de empatia do responsável” “se incorpora ao seu cérebro como um conjunto de padrões elétricos e níveis químicos”.[9] Uma explicação científica como essa pode afastar a culpa do sofredor e reduzir o grau de auto-censura e auto-reprovação. Seu outro efeito, porém, é uma absolvição do modo de vida que fez da condição denominada “depressão dependente” u,a aflição tão comum. (pág.156 e 157)

 

 

 

 



[1] Richard Rorty, “Failed Prophecies, Glorious Hopes”, Philosophy and Social Hope,  Penguin, 1999, p.203.

[2] Hans-Jorg Albrecht, “Immigration, Crime and Safety”, in Adam Crawford (org.), Crime and Insecurity: The Governance of Safety in Europe, Willian, 2002, p.159-85.

[3] Na época da Guerra do Golfo, “quando Saddam voltou as armas de seu helicóptero contra os curdos do Iraque, eles tentaram fugir para o norte pelas montanhas, para a Turquia – mas os turcos se recusaram a deixá-los entrar. Chicotearam-nos fisicamente até voltarem às fronteiras. Ouvi um oficial turco dizer: ‘Nós odiamos essas pessoas. Eles são porcos filhos-da-mãe’. Desse modo, durante semanas, os curdos ficaram presos nas montanhas, a 10 graus abaixo de zero, às vezes somente com a roupa que tinha no corpo na hora da fuga. As crianças foram as que mais sofreram; disenteria, tifo e subnutrição...”; ver Maggie O’Kane, “The Most Pitful Sights I Have ever Seen” Guardian, 14 fev 2003, p.6-11.

[4] Max Scheler, Tod und Fortleben, aqui citado a partir da tradução polonesa de Adam Wegrzecki, Cierpienie Smierc, Dalsze Zycie, PWN, 1993.

[5] Ver AlbertoMelucci, The Playing Self: Person and Meaning in the Planetary Society, Cambridge University Press, 1996, p.43ss. Esta é uma visão mais ampla do original italiano publicado em 1991 sob o título de Il gioco dell1’io.

[6] Sigmund Freud, Civilization, Society and Religion, vol.12, The Pelican Freud Library, Pengyuin, 1991, p.271, 281 e 282.

[7] Aqui e adiante, ver Hugh Wilson, “This years’s love”, Observer Magazine, 10 nov 2002, p.74-5.

 

[8] Emma Taylon e Lorelei Sharkey, “Personal Ads Are for Lonely Hearts”, Guardian Weekend, 19 abr 2003, p.7.

[9] Ver Oliver James, “Constant craving”, Observer Magazine, 19 jan 2003, p.71.

IMMANUEL KANT: Crítica da razão pratica 1788

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