Síntese:
Paolo Cugini
Prefácio
Ser Leve E Líquido
Os líquidos,
diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade. Os fluidos,
por assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o tempo. Enquanto os sólidos
têm dimensões espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem
a significação do tempo (resistem efetivamente a seu fluxo ou o tornam
irrelevante), os fluidos não se atêm muito a qualquer forma e estão
constantemente prontos (e propensos) a mudá-la; assim, para ele, o que conta é
o tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar; espaço que, afinal,
preenchem apenas “por um momento”. Em certo sentido, os sólidos suprimem o
tempo; para os líquidos, ao contrário, o tempo é o que importa. Ao descrever os
sólidos, podemos ignorar inteiramente o tempo; ao descrever os fluidos, deixar
o tempo de fora seria um grave erro. Descrições de líquidos são fatos
instantâneas, que precisam ser datadas. (pág.8)
A extraordinária
mobilidade dos fluídos é o que os associa à idéia de “leveza”. Associamos
“leveza” ou “ausência de peso” à mobilidade e à inconstância: sabemos pela
prática que quanto mais leves viajamos, com maior facilidade e rapidez nos
movemos. (pág.8)
Essa são razões
para considerar “fluidez” ou “liquidez” como metáforas adequadas quando
queremos captar a natureza da presente fase, nova de muitas maneiras, na
história da modernidade. (pág.9)
A nossa é, como
resultado, uma versão individualizada e privatizada da modernidade, e o peso da
trama dos padrões e a responsabilidade pelo fracasso caem principalmente sobre
os ombros dos indivíduos. Chegou a vez da liquefação dos padrões de dependência
e interação. Eles são agora maleáveis a um ponto que as gerações passadas não
experimentaram e nem poderiam imaginar; mas, como todos os fluídos, eles não
mantêm a forma por muito tempo. Dar-lhes forma é mais fácil que mantê-los nela.
Os sólidos são moldados para sempre. Manter os fluidos em uma forma requer
muita atenção, vigilância constante e esforço perpétuo – e mesmo o sucesso do
esforço é tudo menos inevitável.
Seria imprudente
negar, ou mesmo subestimar, a profunda mudança que o advento da “modernidade
fluida” produziu na condição humana. O fato de que a estrutura sistêmica seja
remota e inalcançável, aliado ao estado fluido e não-estruturado do cenário
imediato da política-vida, muda aquela condição de um modo radical e requer que
repensemos os velhos conceitos que costumavam cercar suas narrativas. Como
zumbis, esses conceitos são hoje mortos-vivos. A questão prática consiste em
saber se sua ressurreição, ainda que em nova forma ou encarnação, é possível;
ou – se não for – como fazer com que eles tenham um enterro decente e eficaz.
(pág.15)
O que leva
tantos a falar do “fim da história”, da pós-modernidade, da “segunda modernidade”
e da “sibremodernidade”, ou a articular a intuição de uma mudança radical no
arranjo do convívio humano e nas condições sociais sob as quais a política-vida
é hoje, é o fato de que o longo esforço para acelerar a velocidade do movimento
chegou a seu “limite natural”. (pág.17 e 18)
- Emancipação
A bênçãos mistas da liberdade
A libertação é
uma bênção é uma maldição? Uma maldição disfarçada de bênção, ou uma bênção
temida como maldição? Tais questões assombraram os pensadores durante a maior
parte da era moderna, que punha a “libertação” no topo da agenda da reforma
política e a “libertação” no alto da lista de valores – quando ficou
suficientemente claro que a liberdade custava a chegar e os que deveriam dela
gozar relutavam em dar-lhe as boas-vindas. Houve dois tipos de resposta. A
primeira lançava dúvidas sobre a prontidão do “povo comum” para a liberdade.
Como o escritor norte-americano Herbert Sebastian Agar dizia: “a verdade que
torna os homens livres é, na maioria dos casos, a verdade que os homens
preferem não ouvir”. A segunda inclinava-se a aceitar que os homens podem não
estar inteiramente equivocados quando questionam os benefícios que as
liberdades oferecidas podem lhes trazer. (pág.26)
O indivíduo se
submete à sociedade e essa submissão é a condição de sua libertação. Para o
homem a liberdade consiste em não estar sujeito às forças físicas cegas; ele
chega a isso opondo-lhes a grande e inteligente força da sociedade, ele se
torna, até certo ponto, dependente dela. Mas é uma dependência libertadora; não
há nisso contradição.[1]
(pág.27)
Não só não há
contradição entre dependência e libertação: não há outro caminho para buscar a
libertação senão “submeter-se à sociedade” e seguir suas normas. A liberdade
não pode ser ganha contra a sociedade. O resultado da rebelião contra as
normas, mesmo que os rebelados não tenham se tornado bestas de uma vez por
todas, e, portanto, perdido a capacidade de julgar sua própria condição, é uma
agonia perpétua de indecisão ligada a um Estado de incerteza sobre as intenções
e movimentos dos outros ao redor – o que faz da vida um inferno. (pág.28)
A casualidade e a arte cambiantes da crítica
O que está
errado com a sociedade em que vivemos, disse Cornelius Castoriadis, é que ela
deixou de se questionar. É um tipo de sociedade que não mais reconhece qualquer
alternativa para si mesma e, portanto, sente-se absolvida do dever de examinar,
demonstrar, justificar (e que dirá provar) a validade de suas suposições
tácitas e declaradas.
Isso não
significa, entretanto, que nossa sociedade tenha suprimido (ou venha a
suprimir) o pensamento crítico como tal. Ela não deixou seus membros reticentes
(e menos ainda temerosos) em lhe dar voz. Ao contrário: nossa sociedade – uma
sociedade de “indivíduos livres’ – fez da crítica da realidade, da insatisfação
com “o que aí está” e da expressão dessa insatisfação uma parte inevitável e
obrigatória dos afazeres da vida de cada um de seus membros. (pág.30 e 31)
De alguma
maneira, no entanto, essa reflexão não vai longe suficiente para alcançar os complexos
mecanismos que conectam nossos movimentos com seus resultados e os denominam, e
menos ainda as condições que mantêm esses mecanismos em operação. Somos talvez
mais “predispostos à crítica”, mais assertivos e intransigentes em nossa críticas,
que nossos ancestrais em sua vida cotidiana, mas nossa crítica é, por assim
dizer, “desdentada”, incapaz de afetar a agenda estabelecida para nossas
escolhas na “política-vida”. A liberdade sem precedentes que nossa sociedade
oferece a seus membros chegou, como há tempo nos advertia Leo Strauss, e com
ela também uma impotência sem precedentes. (pág.31)
Essa modernidade
pesada/sólida/condensada/sistêmica da “teoria crítica” era impregnada da
tendência ao totalitarismo. A sociedade totalitária da homogeneidade
compulsória, imposta e onipresente, estava constante e ameaçadoramente no
horizonte – como destino último, como uma bomba nunca inteiramente desarmada ou
um fantasma nunca inteiramente exorcizado. Essa modernidade era inimiga jurada
da contingência, da verdade, da ambigüidade, da instabilidade, da
idiossincrasia, tendo declarado uma guerra santa a todas essas “anomalias”; e
esperava-se que a liberdade e a autonomia individuais fossem as primeiras
vítimas da cruzada. Entre os princípios ícones dessa modernidade estavam a
fábrica fordista, que reduzia as atividades humanas a movimentos simples,
rotineiros e predeterminados, destinados a serem obediente e mecanicamente
seguidos, sem envolver as faculdades mentais e excluindo toda espontaneidade e
iniciativa individual. (pág.33 e 34)
Duas
características, no entanto, fazem nossa situação – nossa forma de modernidade
– nova e diferente.
A primeira é o
colapso gradual e o rápido declínio da antiga ilusão moderna: da crença de que
há um fim do caminho em que andamos, um telos alcançável da mudança histórica,
um Estado de perfeição a ser atingido amanhã, no próximo ano ou no próximo
milênio, algum tipo de sociedade boa, de sociedade justa e sem conflitos em
todos ou alguns de seus aspectos postulados: do firme equilíbrio entre oferta e
procura e a satisfação de todas as necessidades; da ordem perfeita, em que tudo
é colocado no lugar certo, nada que esteja deslocado persiste e nenhum lugar é
posto em dúvida; das coisas humanas que se tornam totalmente transparentes
porque se sabe tudo o que deve ser sabido; do completo domínio sobre o futuro –
tão completo que põe fim a toda contingência, disputa, ambivalência e
conseqüências imprevistas das iniciativas humanas.
A segunda
mudança é a desregulamentação e a privatização das tarefas e deveres
modernizados. O que costumava ser considerado uma tarefa para a razão humana,
vista como dotação e propriedade coletiva da espécie humana, foi fragmentado
(“individualizado”), atribuído às vísceras e energia individuais e deixando à
administração dos indivíduos e seus recursos. (pág.37 e 38)
O indivíduo em combate com o cidadão
A
“individualização” agora significa uma coisa muito diferente do que significa
há cem anos e do que implicava nos primeiros tempos da era moderna – os tempos
da exaltada “emancipação” do homem da trama estreita da dependência, da
vigilância e da imposição comunitárias. (pág.39 e 40)
A
“individualização” consiste em transformar a “identidade” humana de um “dado”
em uma “tarefa” e encarregar os atores da responsabilidade de realizar essa
tarefa e das conseqüências (assim como dos efeitos colaterais) de sua
realização. Em outras palavras, consiste no estabelecimento de uma autonomia de
jure (independentemente de a autonomia de facto também ter sido estabelecida).
(pág.40)
Para assumir o
abismo entre a individualidade como fatalidade e a individualidade como
capacidade realista e prática de auto-afirmação está aumentando. (Melhor ser
afastado da “individualidade por atribuição”, como “individuação”: o termo
escolhido por Beck para distinguir o indivíduo auto-sustentado e
auto-impulsionado daquele que não tem escolha senão a de agir, ainda que
contrafactualmente, como se a individualização tivesse sido alcançada). Saltar
sobre esse abismo não é – isso é crucial – parte dessa capacidade. (pág.44)
A
individualização chegou para ficar; toda elaboração sobre os meios de enfrentar
seu impacto sobre o modo como levamos nossas vidas deve partir do
reconhecimento desse fato. A individualização traz para um número sempre
crescente de pessoas uma liberdade sem precedentes de experimentar – mas (timeo
danaos et dana ferentes...) traz junto a tarefa também sem precedentes de
enfrentar as conseqüências. O abismo que se abre entre o direito à auto-afirmação
e a capacidade de controlar as situações sociais que podem tornar essa
auto-afirmação algo factível ou irrealista parece ser a principal contradição
da modernidade fluida – contradição que, por tentativa e erro, reflexão crítica
e experimentação corajosa precisamos aprender a manejar coletivamente. (pág.47)
- Tempo/Espaço
Da modernidade pesada à modernidade leve
Na era do
hardware, da modernidade pesada, que nos termos de Max Weber era também a era
da racionalidade instrumental, o tempo era o meio que precisava ser administrado
prudentemente para que o retorno de valor, que era o espaço, pudesse ser
maximizado; na era do software, da modernidade leve, a eficácia do tempo como
meio de alcançar valor tende a aproximar-se do infinito, como o efeito
paradoxal de nivelar por cima (ou, antes, por baixo) o valor de todas as
unidades no campo dos objetivos potenciais. O ponto de interrogação moveu-se do
lado dos meios para o lado dos fins. Se aplicado à relação tempo-espaço, isso
significa que, como todas as partes do espaço podem ser atingidas no mesmo
período de tempo (isto é, em “tempo nenhum”), nenhuma parte do espaço é
privilegiada, nenhum tem um “valor especial”. Se todas as partes do espaço
podem ser alcançadas a qualquer momento, não há razão para alcançar qualquer
uma delas num dado momento e nem tampouco razão para se preocupar em garantir o
direito de acesso a qualquer uma delas. Se soubermos que podemos visitar um
lugar em qualquer momento que quisermos, não há urgência em visitá-lo em gastar
dinheiro em uma passagem válida para sempre. Há ainda menos razão para suportar
o gasto da supervisão e administração permanentes, do laborioso e arriscado
cultivo de terras que podem ser facilmente ocupadas e abandonadas conforme
interesses de momentos e “relevâncias tópicas”. (pág.137)
A sedutora leveza do ser
O tempo
instantâneo e sem substância do mundo do software é também um tempo sem
conseqüências . “Instantaneidade” significa realização imediata , “no ato” –
mas também exaustão e desaparecimento do interesse. A distância em tempo que
separa o começo do fim está diminuindo ou mesmo desaparecendo; as duas noções,
que outrora eram usadas para marcar a passagem do tempo, e portanto para
calcular seu “valor perdido”, perderam muito de seu significado – que, como
todos os significados, derivava de sua rígida oposição. Há apenas “momentos” –
pontos sem dimensões. Mas, será ainda um tal tempo – tempo com a morfologia de
um agregado de momentos – o tempo “como conhecimento”? A expressão “momento de
tempo” parece, pelo menos em certos aspectos vitais, cometido suicídio? Não
teria sido o espaço apenas a primeira baixa na corrida do tempo para a
auto-aniquilação? (pág.137 e 138)
As pessoas que
se movem e agem com maior rapidez, que mais se aproximam do momentâneo do
movimento, são as pessoas que agora mandam. E são as pessoas que não podem se
mover tão rápido – e, de modo ainda mais claro, a categoria das pessoas que não
podem deixar seu lugar quando quiserem – as que obedecem. A dominação consiste
em nossa própria capacidade de escapar, de nos desengajarmos, de estar “em
outro lugar”, e no direito de decidir sobre a velocidade com que isso será
feito – e ao mesmo tempo de destruir os que estão do lado dominado de sua
capacidade de parar, ou de limitar seus movimentos ou ainda torná-los mais
lentos. A batalha contemporânea da dominação é travada entre forças que
empunham, respectivamente, as armas da aceleração e da procrastinação.
(pág.139)
O trabalho sem
corpo da era do software não mais amarra o capital: permite ao capital ser
extraterritorial, volátil e inconstante. A descorporificação do trabalho
anuncia a ausência de peso do capital. Sua dependência mútua foi
unilateralmente rompida: enquanto a capacidade do trabalho é, como antes,
incompleta e irrealizável isoladamente, o inverso não mais se aplica. O capital
viaja esperançoso, contando com breves e lucrativas aventuras e confiante em
que não haverá escassez delas ou de parceiros com quem compartilhá-las. O
capital pode viajar rápido e leve, e sua leveza e mobilidade se tornam as
fontes mais importantes de incerteza para todo o resto. Essa é hoje a principal
base da dominação e o principal fator das divisões sociais. (pág.141)
Vida instantânea
Uma vez que a
infinidade de possibilidades esvaziou a infinitude do tempo de seu poder sedutor,
a durabilidade perde sua atração e passa de um recurso a um risco. Talvez seja
mais adequado observar que a própria linha de demarcação entre o (durável” e o
“transitório”, outrora foco de disputa e engenharia, foi substituída pela
polícia de fronteiras e por batalhões de construtores.
A desvalorização
da imortalidade não pode senão anunciar uma rebelião cultural, defensavelmente o
marco mais decisivo na história cultural humana. A passagem do capitalismo
pesado ao leve, da modernidade sólida à fluida, pode vir a ser um ponto de
inflexão mais radical e rico que o advento mesmo do capitalismo e da
modernidade, vistos anteriormente como os marcos cruciais da história humana,
pelo menos desde a revolução neolítica. De fato, em toda a história humana o
trabalho da cultura consistiu em peneirar e sedimentar duras sementes de
perpetuidade a partir de transitórias vidas humanas e de ações humanas fugazes,
em invocar a duração a partir da transitoriedade, a continuidade a partir da
descontinuidade, e em assim transcender os limites impostos pela mortalidade
humana, utilizando homens e mulheres mortais a serviço da espécie humana
mortal. A demanda por esse tipo de trabalho está diminuindo hoje em dia. A
demanda por esse tipo de trabalho está diminuindo hoje em dia. As conseqüências
dessa demanda em queda estão para ser vistas e são difíceis de visualizar de
antemão, pois não há precedentes a lembrar ou em que se apoiar.
A nova
instantaneidade do tempo muda radicalmente a modalidade do convívio humano – e
mais conspicuamente o modo como os humanos cuidam (ou não cuidam, se for o
caso) de seus afazeres coletivos, ou antes o modo como transformam (ou não
transformam, se for o caso) certas questões em questões coletivas. (pág.146 e
147)
4. Trabalho
Progresso e fé na história
Se, no entanto,
a idéia de progresso em sua encarnação presente parece tão pouco familiar que
chegamos a nos perguntar se ainda a mantemos, é porque o progresso, como tantos
outros parâmetros da vida moderna, está agora “individualizado”; mais precisamente
– desregulado e privatizado. Está agora desregulado – porque as ofertas de
“elevar de nível” as realidades presentes são muitas e diversas e porque a
questão “uma novidade particular significa de fato um aperfeiçoamento?” foi
deixada à livre competição antes e depois de sua introdução, e permanecerá em
disputa mesmo depois de feita a escolha. (pág.155)
No mundo humano
labiríntico, os trabalhos humanos se dividem em episódios isolados como o resto
da vida humana. E, como no caso de todas as outras ações que os humanos podem
empreender, o objetivo de manter um curso próximo aos projetos dos atores é
evasivo, talvez inatingível. O trabalho escorregou do universo da construção da
ordem e controle do futuro em direção do reino do jogo; atos de trabalho se parecem
mais com as estratégias de um jogador que se põe modestos objetivos de curto
prazo, não antecipando imediatos de cada movimento; os efeitos devem ser
passíveis de ser consumidos no ato. Suspeita-se que o mundo esteja repleto de
pontes demasiado longínquas, o tipo de pontes que é melhor não pensar em
atravessar até encontrá-las, o que não acontecerá tão cedo. Cada obstáculo deve
ser negociado quando chegar sua vez; a vida é uma seqüência de episódios – cada
um a ser calculado em separado, pois cada um tem seu próprio balanço de perdas
e ganhos. Os caminhos da vida não se tornam mais retos por serem trilhados, e
virar uma esquina não é garantia de que os rumos corretos serão seguidos no
futuro. (pág.159 e 160)
Ascensão e queda do trabalho
A nova desigualdade
global e a nova autoconfiança e sentimento de superioridade que se seguiram
foram espetaculares e sem precedentes: novas noções, novos quadros cognitivos
eram necessários para captá-las e assimilá-las intelectualmente. Essas noções e
quadros foram fornecidos pela recém-nascida ciência da economia política, que
veio a substituir as idéias fisiocratas e mercantilistas que acompanham a
Europa em seu caminho para a fase moderna de sua história, até o limiar da
Revolução Industrial.
Não “por caso”
essas noções foram cunhadas na Escócia, país ao mesmo tempo envolvido e
separado do curso principal da convulsão industrial, física e psicologicamente
próximo do país que se tornaria o epicentro da emergente ordem industrial, mas
que permaneceria por certo tempo relativamente imune a seu impacto econômico e
cultural. As tendências em pleno movimento no “centro” são, em regra, mais
prontamente detectadas e mais claramente articuladas em lugares temporariamente
relegados às “margens”. Viver na periferia do centro civilizacional significa
estar suficientemente próximo para ver as coisas com clareza, mas
suficientemente longe para “objetivá-las” e assim moldar e condensar as
percepções em conceitos. Não foi, portanto, “mera coincidência” que o evangelho
tenha vindo da Escócia: a riqueza vem do trabalho, sua fonte principal, talvez
única. (pág.162)
Essa nova ordem
em que todos os fins presentemente soltos serão novamente amarrados, enquanto
as cargas e destroços de fatalidades passadas, náufragos abandonos ou à deriva,
serão recolocados e fixados em seus lugares corretos, deveria ser massiva,
sólida, feita de pedra ou armada em aço: destinada a durar. Grande era belo,
grande era racional; “grande’ queria dizer poder, ambição e coragem. O local de
construção da nova ordem industrial era repleto de monumentos ao poder e à
ambição, monumentos que, fossem ou não indestrutíveis, deveriam parecê-lo:
fábricas gigantescas lotadas de maquinaria volumosa e multidões de operadores
de máquinas, ou densas redes de canais, pontes e trilhos pontuados de
majestosas estações dedicadas a emular os antigos templos erigidos para a
adoração da eternidade e para a eterna glória dos adoradores. (pág.165)
Do casamento à coabitação
A presente
versão “liquefeita”, “fluída”, dispersa, espalhada e desregulada da modernidade
pode não implicar o divórcio e ruptura final da comunicação, mas anuncia o
advento do capitalismo leve e flutuante, marcado pelo desengajamento e
enfraquecimento dos laços que prendem o capital ao trabalho. Pode-se dizer que esse
movimento ecoa a passagem do casamento para o “viver junto”, com todas as
atitudes disso decorrentes e conseqüências estratégicas, incluindo a suposição
da transitoriedade da coabitação e da possibilidade de que a associação seja
rompida a qualquer momento e por qualquer razão, uma vez desaparecida a
necessidade ou o desejo. Se manter-se juntos era uma questão de acordo
recíproco e de mútua dependência, o desengajamento é unilateral: um dos lados
da configuração adquiriu uma autonomia que talvez sempre tenha desejado
secretamente mas que nunca havia manifestado seriamente antes. Numa medida
nunca alcançada na realidade pelos “senhores ausentes” de outrora, o capital
rompeu sua dependência em relação ao trabalho com uma nova liberdade de
movimentos, impensável no passado. A reprodução e o crescimento do capital, dos
lucros e dos dividendos e a satisfação dos acionistas se tornaram independentes
da duração de qualquer comprometimento local com o trabalho. (pág.171)
Digressão: breve história da procrastinação
Resumindo: a
procrastinação deriva seu sentido moderno do tempo vivido como uma
peregrinação, como um movimento que se aproxima de um objetivo. Em tal tempo,
cada presente é avaliado por alguma coisa que vem depois. Qualquer valor que
este presente aqui e agora possa ter não passará de um sinal premonitório de um
valor mais alto por vir. O uso – a tarefa – do presente é levar-nos mais perto
desse valor mais alto. Em si mesmo, o tempo presente carece de sentido e de
valor. É, por isso, falho, deficiente e incompleto. O sentido do presente está
adiante; o que está à mão ganha sentido e é avaliado pelo noch-nicht-geworden,
pelo que ainda não existe. (pág.179)
Viver a vida
como uma peregrinação é, portanto, intrinsecamente aporético. E obriga cada
presente a servir a alguma coisa que ainda-não-é, e a servi-la diminuindo a
distância desaparecesse e o objetivo fosse alcançado, o presente perderia tudo
o que o fazia significativo e valioso. A racionalidade instrumental favorecida
e privilegiada pela vida do peregrino leva à busca dos meios que podem realizar
o estranho feito de manter o fim dos esforços sempre à vista sem nunca chegar
lá, de trazer o fim cada vez mais para perto, mas impedindo ao mesmo tempo que
a distância caia para zero. A vida do peregrino é uma viagem em direção à
realização, mas “realização” nesta vida é equivalente à perda da sentido.
Viajar em direção à realização dá sentido tem algo de um impulso suicida; esse
sentido não pode sobreviver à chegada ao destino.
A procrastinação
reflete essa ambivalência. O peregrino procrastina para estar mais bem
preparado para captar as coisas que verdadeiramente importam. Mas captá-las
sinalizará o fim da peregrinação, e assim também o fim de uma vida que dela
deriva seu único sentido. Por essa razão, a procrastinação tem uma tendência a
romper qualquer limite de tempo colocando de antemão e a estender-se
indefinidamente – ad calendas graecas. A procrastinação tende a tornar-se seu
próprio objetivo. A coisa mais importante deixada de lado no ato da procrastinação
tende a ser o fim da própria procrastinação. (pág.179 e 180)
Como uma faca de
dois gumes, a procrastinação pode servir à sociedade moderna tanto em seu
estágio “sólido” como no “líquido”, tanto em seu estágio de produtor como no de
consumidor, ainda que sobrecarregue cada estágio com tensões e conflitos de
atitude e axiológicos não-resolvidos. A passagem para a sociedade de
consumidores do presente significou portanto uma mudança de ênfase mais que uma
mudança de valores. E, no entanto, levou o princípio da procrastinação ao ponto
de ruptura. Esse princípio está hoje vulnerável, e perdeu o escudo protetor da
proibição ética. O adiamento da satisfação da satisfação não é mais um sinal de
virtude moral. É uma provação para e simples, uma problemática sobrecarga que
sinaliza imperfeições nos arranjos sociais ou inadequação pessoal, ou nas duas
ao mesmo tempo. Não uma exortação, mas uma admissão resignada e triste de um
estado de coisas desagradável (mas remediável). (pág.182)
A procrastinação
serve à cultura do consumidor pela sua autonegação. A fonte do esforço criativo
não é mais o desejo, mas o desejo induzido de encurtar o adiamento ou aboli-lo
de todo, acompanhando do desejo induzido de encurtar a duração da satisfação
quando ela chega. A cultura em guerra com a procrastinação é uma novidade na
história moderna. Ela não tem lugar para tomar distância, nem para reflexão,
continuidade, tradição – essa Wiederholung (recapitulação) que, de acordo com
Heidegger, era a moralidade do Ser como o conhecemos. (pág.183)
Os laços humanos no mundo fluido
Na falta de
segurança de longo prazo, a “satisfação instantânea” parece uma estratégia
razoável. O que quer que a vida ofereça, que o faça hic et nunc – no ato. Quem
sabe o que o amanhã vai trazer? O adiamento da satisfação perdeu seu fascínio.
É, afinal, altamente incerto que o trabalho e o esforço investidos hoje venham
a contar como recursos quando chegar a hora da recompensa. Está longe de ser
certo, além disso, que os prêmios que hoje parecem atraentes serão tão
desejáveis quando finalmente forem conquistados. Todos aprendemos com amargas
experiências que os prêmios podem se tornar riscos de uma hora para outra e
prêmios resplandecentes podem se tornar marcas de vergonha. As modas vêm e vão
com velocidade estonteante, todos os objetos de desejo se tornam obsoletos,
repugnantes e de mau-gosto antes que tenhamos tempo de aproveitá-los. Estilos
de vida que são “chiques” hoje serão amanhã alvos do ridículo. Citando Bourdieu
uma vez mais: “Os que deploram o cinismo que marca os homens e mulheres de
nosso tempo não deveriam deixar de relacioná-lo às condições sociais e
econômicas que o favorecem...” Quando Roma pega fogo e há muito pouco ou nada
que se possa fazer para controlar o incêndio, tocar violino não parece mais
bobo nem menos adequado do que fazer qualquer outra coisa. (pág.185 e 186)
Num mundo em que
o futuro é, na melhor das hipóteses, sombrio e nebuloso, porém mais
provavelmente cheio de riscos e perigos, colocar-se objetivos distantes,
abandonar o interesse privado para aumentar o poder do grupo e sacrificar o
presente em nome de uma felicidade futura não parecem uma proposição atraente,
ou mesmo razoável. Qualquer oportunidade que não for aproveitada aqui e agora é
uma oportunidade perdida; não a aproveitar é assim imperdoável e não há
desculpa fácil para isso, e nem justificativa. Como os compromissos de hoje são
obstáculos para as oportunidades de amanhã, quanto mais forem leves e
superficiais, menor o risco de prejuízos. “Agora” é a palavra-chave da estratégia
de vida, ao que quer que essa estratégia se aplique e independente do que mais
possa sugerir. Num mundo inseguro e imprevisível, o viajante esperto fará o
possível para imitar os felizes globais que viajam leves; e não derramarão
muitas lágrimas ao se livrar de qualquer coisa que atrapalhe os movimentos.
Raramente param por tempo suficiente para imaginar que os laços humanos não são
como peças de automóvel – que raramente vêm prontos, que tendem a se deteriorar
e desintegrar facilmente se ficarem hermeticamente fechados e que não são
fácies de substituir quando perdem a utilidade. (pág.186 e 187)
Em outras
palavras, laços e parcerias tendem a ser vistos e tratados como coisas
destinadas a serem consumidas, e não produzidas; estão sujeitas aos mesmos critérios
de avaliação de todos os outros objetos de consumo. No mercado de consumo, os
produtos duráveis são em geral oferecidos por um “período de teste”; a
devolução do dinheiro é prometida se o comprador estiver menos que totalmente
satisfeito. Se o participante numa parceria é “concebido” em tais termos, então
não é mais tarefa para ambos os parceiros “fazer com que a relação funcione”,
“na riqueza e na pobreza”, na saúde e na doença, trabalhar a favor nos bons e
maus momentos, repensar, se necessário, as próprias preferências, conceder e
fazer sacrifícios em favor de uma união duradoura. É, em vez disso, uma questão
de obter satisfação de um produto pronto para o consumo; se o prazer obtido
corresponder ao padrão prometido e esperado, ou se a novidade se acabar junto
com o gozo, pode-se entrar com a ação de divórcio, com base nos direitos do
consumidor. Não há qualquer razão para ficar com um produto inferior ou
envelhecido em vez de procurar outro “novo e aperfeiçoado” nas lojas. (pág.187
e 188)
5. Comunidade
Em termos
sociológicos, o comunitarismo é uma reação esperável à acelerada “liquefação”
da vida moderna, uma reação antes e acima de tudo ao aspecto da vida sentido
como a mais aborrecida e incômoda entre suas numerosas conseqüências penosas –
o crescente desequilíbrio entre a liberdade e as garantias individuais. O
suprimento de provisões e esvai rapidamente, enquanto o volume de
responsabilidade individuais (atribuídas, quando não exercidas na prática)
cresce numa escola sem precedentes para as gerações do pós-guerra. Um aspecto
muito visível do desaparecimento das velhas garantias é a nova fragilidade dos
laços humanos. A fragilidade e transitoriedade dos laços pode ser um preço
inevitável do direito de os indivíduos perseguirem seus objetivos individuais,
mas não pode deixar de ser, simultaneamente, um obstáculo dos mais formidáveis
para perseguir eficazmente esses objetivos – e para a coragem necessária para
persegui-los. Isso também é um paradoxo – e profundamente enraizado na natureza
da vida na modernidade líquida. E nem é a primeira vez que situações paradoxais
provocam e evocam respostas paradoxais. À luz da natureza paradoxal da
“individualização” moderna-líquida, a natureza contraditória da resposta
comunitária ao paradoxo não deve espantar: a primeira é uma explicação adequada
da segunda, enquanto está é um efeito adequado da primeira.
O comunitarismo
renascido responde à questão genuína e pungente de que o pêndulo oscila
radicalmente – e talvez para longe demais – afastando-se do pólo da segurança
na díade dos valores humanos fundamentais. Por essa razão, o evangelho
comunitário tem uma grande audiência. Ele fala em nome de milhões: precarité,
como insiste Bourdieu, est aujourd’hui partout – ela penetra cada canto da
existência humana. Em seu recente livro Proteger ou disparaître,[2]
um irado manifesto contra a indolência e a hipocrisia das elites do poder de
hoje em face de “la montée des insecurités”, Philippe Cohen lista o desemprego
(nove de cada dez novas vagas são estritamente temporárias e de curto prazo),
as perspectivas incertas na velhice e os infortúnios da vida urbana como as
principais fontes da difusa ansiedade em relação ao presente, ao dia de amanhã
e ao futuro mais distante: a falta de segurança é o que une as três, e o principal
apelo do comunitarismo é a promessa de um porto seguro, o destino dos sonhos
dos marinheiros perdidos no mar turbulento da mudança constante, confusa e
imprevisível. (pág.195 e 196)
Unidade – pela semelhança ou pela diferença?
O “nós” do credo
patriótico/navionalista significa pessoas como nós, “eles” significa pessoas
que são diferentes de nós. Não que “nós” sejamos idênticos em tudo; há
diferenças entre “nós”, ao lado das características comuns, mas as semelhanças
diminuem, tornam difuso e neutralizam seu impacto. O aspecto em que somos
semelhantes é decididamente mais significativo que o que nos separa;
significativo bastante para superar o impacto das diferenças quando se trata de
tomar posição. E não que “eles” sejam diferentes de nós em tudo, mas eles
diferem em um aspecto que é mais importante que todos os outros, importante o
bastante para impedir uma posição comum e tornar improvável a solidariedade
genuína, independente das semelhanças que existam. É uma situação tipicamente
ou/ ou: as fronteiras que “nos” separam “deles” estão claramente traçadas e são
fáceis de ver, uma vez que o certificado de “pertencer” só tem uma rubrica, e o
formulário que aquele que requerem uma carteira de identidade devem preencher
contém uma só pergunta, que deve ser respondida “sim ou não”. (pág. 202)
O nacionalismo
tranca as portas, arranca as aldravas e desliga as campainhas, declarando que
apenas os que estão dentro têm direito de aí estar e acomodar-se de vez. O
patriotismo é, pelo menos aparentemente, mais tolerante, hospitaleiro e
acessível – deixa a questão para os que pedem admissão. E no entanto o
resultado último é, quase sempre, notavelmente semelhante. Nem o credo
patriótico nem o nacionalista admitem a possibilidade de que as pessoas possam
se unir mantendo-se ligadas às suas diferenças, estimando-as e cultivando-as,
ou que sua unidade, longe de requerer a semelhança ou promovê-la como um valor
a ser ambicionado e buscado, de fato se beneficia da variedade de estilos de
vida, ideais e conhecimentos, ao mesmo tempo em que acrescenta força e
substância ao que faz o que são – e isso significa ao que as faz diferentes.
(pág.203)
Segurança a um certo preço
A imagem da
comunidade é a de uma ilha de tranqüilidade caseira e agradável num mar de
turbulência e honestidade. Ela tenta e seduz, levando os admiradores a
impedir-se de examiná-la muito de perto, pois a eventualidade de comandar as
ondas e domar os mares já foi retirada da agenda como uma proposição tanto
suspeita quanto irrealista. Ser o único abrigo dá a essa visão da comunidade um
valor adicional, e esse valor continua a crescer à medida que a bolsa onde se
negociam outros valores da vida se torna cada vez mais caprichosas e
imprevisível. (pág.208 e 209)
A nova primazia
do corpo se reflete na tendência a formar a imagem da comunidade ( a comunidade
dos sonhos de certeza com segurança, a comunidade como viveiro da segurança) no
padrão do corpo idealmente protegido: a visualizá-la como uma entidade
internamente homogênea e harmoniosa, inteiramente limpa de toda substância
estranha, com todos os pontos de entrada cuidadosamente vigiados, controlados e
protegidos, mas fortemente armada e envolta por armadura impenetrável. As
fronteiras da comunidade postulada, como os limites exteriores do corpo, são
para separar o domínio da confiança e do cuidado amoroso, da selva do risco, da
suspeição e da perpétua vigilância. O corpo e também a comunidade postulada são
aveludadas por dentro e ásperos e espinhosos por fora.
Corpo e
comunidade são os últimos postos de defesa no campo de batalha cada vez mais
deserto em que a guerra pela certeza, pela segurança e palas garantias é
travada, diariamente e sem tréguas. Corpo e comunidade devem de agora em diante
realizar as tarefas no passado divididas entre muitos bastiões e barricadas. O
que depende deles agora é mais do que podem suportar, de tal forma que
provavelmente aprofundarão, em vez de aliviar, os temores que levaram aqueles
que andavam à procura de segurança a voltar-se para eles em busca de proteção.
A nova solidão de
corpo e comunidade é o resultado de um amplo conjunto de mudanças importantes
subsumidas na rubrica modernidade líquida. Uma mudança no conjunto é, contudo,
de particular importância: a renúncia, adiamento ou abandono, pelo Estado, de
todas as suas principais responsabilidades em seu papel como maior provedor
(talvez mesmo monopolístico) de certeza, segurança e garantias, seguindo de sua
recusa em endossar as aspirações de certeza, segurança e garantia de seus
cidadãos. (pág.211)
Preencher o vazio
Para as
multinacionais (isto é, empresas globais com interesse e compromissos locais
dispersos e cambiantes), “o mundo ideal” “é um mundo sem Estados”, observou
Eric Hobsbawm. “A menos que tenha petróleo, quanto menor o Estado, mais fraco
ele é, e menos dinheiro é necessário para se comprar um governo”. (pág.219)
A falta de laços
sociais com os membros “legítimos” da comunidade (ou a proibição de estabelecer
tais laços) tem uma vantagem adicional: as vítimas “podem ser exposta à
violência sem risco de vingança”,[3]
pode-se puni-los com impunidade – ou pelo menos pode-se esperar por isso,
manifestando, porém, a expectativa oposta, pintando a capacidade assassina das
vítimas nas cores mais vivas e lembrando que a comunidade deve cerrar fileiras
e manter seu vigor e vigilância no máximo.
A teoria de
Girard parece fazer sentido da violência que é profusa e exaltada nas
esgarçadas fronteiras das comunidades, especialmente comunidades cujas
identidades são incertas ou contestadas, ou, mais precisamente, do uso comum da
violência como instrumento para desenhar fronteiras quando estas estão
ausentes, ou são porosas ou apagadas. (pág.222 e 223)
Posfácio
Escrever; Escrever Sociologia[4]
A sociedade é
verdadeiramente autônoma quando “sabe, tem que saber, que não há significados
‘assegurados’, que vive na superfície do caos, que ela própria é um caos em
busca de forma, mas uma forma que nunca é fixada de uma vez por todas”. A falta
de significados garantidos – de verdades absolutas, de normas de conduta
pré-ordenadas, de fronteiras pré-traçadas entre o certo e o errado, de regras
de ação garantidas – é a conditio sine qua non de, ao mesmo tempo, uma
sociedade verdadeiramente autônoma e indivíduos verdadeiramente livres; a
sociedade autônoma e a liberdade de seus membros se condicionam mutuamente. A
segurança que a democracia e a individualidade podem alcançar depende não de
lutar contra a contingência e a incerteza da condição humana, mas de reconhecer
e encarar de frente suas conseqüências. (pág.242 e 243)
Viver entre uma
multidão de valores, normas e estilos de vida em competição, sem uma garantia
firme e confiável de estarmos certos, é perigoso e cobra um alto preço
psicológico. Não surpreende que a atração da segunda resposta, de fugir da
escolha responsável, ganhe força. Como diz Julia Kristeva (em Noções sem
nacionalismo), “é rara a pessoa que não invoca uma proteção primal para
compensar a desordem pessoal”. E todos nós, em medida maior ou menor, às vezes
mais e às vezes menos, nos encontramos em Estado de “desordem pessoal”. Vez por
outra, sonhamos com uma “grande simplificação”; sem aviso, nos envolvemos em
fantasias regressivas cuja principal inspiração são o útero materno e o lar
protegido por muros. A busca de um
abrigo primal é o “outro” da responsabilidade, exatamente como o desvio e a
rebelião eram o “outro” da conformidade. O anseio por um abrigo primal veio
hoje a substituir a rebelião, que deixou de ser uma opção razoável; como diz
Pierre Rosanvallon (em novo prefácio a seu clássico Lê capitalisme utopique),
não há mais “uma autoridade no poder para depor e substituir. Parece não haver
mais espaço para a revolta como atesta o fatalismo diante do fenômeno do
desemprego”. (pág.243 e 244)
[1] De Sociologie et philosophie (1942). Aqui citado seguindo a
tradução em Émile Durkheim: Selected Writings, Cambridge: Cambridge University
Press, 1972, p.115.
[2] Philippe Cohen, proteger ou disparaîte: les elites face à la montée
des insecurités, Paris: Gallimard, 1999, p. 7-9.
[3] René Girard, La violence et lê sacré, Paris: Grasset, 1972. Aqui
citado na tradução inglesa de Patrick Gregory, Violence and the Sacred,
Baltimore: Johns Hopkins Iniversity Press, 1979, p.8, 12, 13.
[4] Este ensaio foi publicado pela primeira vez em Theory, Culture and
Society, 200, 1.