quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Zygmunt Bauman - Identidade

 




 

Síntese: Paolo Cugini

 

Entrevista a Benedetto Vecchi

 

 

 

A idéia de “ter uma identidade” não vai ocorrer às pessoas enquanto o “pertencimento” continuar sendo o seu destino, uma condição sem alternativa. Só começarão a ter essa idéia na forma de uma tarefa a ser realizada, e realizada vezes e vezes sem conta, e não de uma só tacada. (pág.18)

A descoberta de que a identidade é um monte de problemas, e não uma campanha de tema único, é um aspecto que compartilho com um número muito maior de pessoas, praticamente com todos os homens e mulheres da nossa era “líquido-moderna”. (pág.18)

Em nossa época líquido-moderna, o mundo em nossa volta está repartido em fragmentos mal coordenados, enquanto as nossas existências individuais são fatiadas numa sucessão de episódios fragilmente conectados. (pág.18 e 19)

A “identidade” só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço, ‘um objetivo”; como uma coisa que ainda se precisa construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-la lutando ainda mais – mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa, a verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da identidade deva ser, e tenda a ser, suprimida e laboriosamente oculta. (pág.21 e 22)

Como apontou recentemente Phillippe Robert, “durante a maior parte da história das sociedades humanas, as relações sociais têm se mantido firmemente concentradas nos domínios da proximidade”.[1] Lembre-se de que, no século XVIII, a viagem de, digamos, Paris a Marselha durava tanto tempo quanto na época do Império Romano. Para maioria das pessoas, a “sociedade”, entendida como a maior totalidade da cobitação humana (se é que elas pensavam nesses termos), era igual à vizinhança adjacente. “Pode-se falar de uma sociedade de conhecimento mútuo”, surge Robert. No interior dessa rede de familiaridade do berço ao túmulo, o lugar de cada pessoa era evidente demais para ser avaliado, que dirá negociado. (pág.24)

Foram necessárias a lenta desintegração e a redução do poder aglutinador das vizinhanças, complementadas pela revolução dos transportes, para limpar a área, possibilitando o nascimento da identidade – como problema e, acima de tudo, como tarefa. As margens incharam rapidamente, invadindo as áreas centrais da coabitação humana. De súbito, era preciso colocar a questão da identidade, já que nenhuma resposta óbvia se oferecia.

O nascente Estado moderno, que enfrentou a necessidade de criar uma ordem não mais reproduzida automaticamente pelas “sociedades de familiaridade mútua”, bem estabelecidas e firmemente consolidadas, incorporou essa questão e a apresentou em seu trabalho de estabelecer os alicerces de suas novas e desconhecidas pretensões à legitimidade.

Parecia natural supor que, em seguida à rápida expansão, o “problema da identidade” seria mais bem confrontado por uma expansão paralela dos ofícios de monitoramento da ordem, tais como os praticados e testados pelo maréchaussé. O Estado-nação, como observou Giorgio Agamben, é um Estado que faz da “natividade ou nascimento” o “alicerce de sua própria soberania”. “A ficção aqui implícita”, destaca, “é que o nascimento [nascita] vem à luz imediatamente como nação, de modo que não pode haver diferença alguma entre os dois momentos”.[2] Os infelizes alvos do questionamento do censo polonês simplesmente deixaram de assimilar essa ficção como um “fato inquestionável” auto-evidente. Ficaram atônitos quando lhes disseram que todos não só deviam ter uma “identidade nacional” como podiam ser indagados a respeito de sua nacionalidade.

Não que se tratasse de pessoas particularmente obtusas e de imaginação limitada. Afinal de contas, perguntar “quem é você é” só faz sentido se você acredita que possa ser outra coisa além de você mesmo; só se você tem uma escolha, e só se o que você escolhe depende de você; ou seja, só se você tem de fazer alguma coisa para que a escolha seja “real” e se sustente. Mas foi justamente isso que não ocorreu aos moradores das aldeias atrasadas e dos povoados da floresta – que nunca tiveram a oportunidade de pensar em mudar de lugar, muito menos procurar, descobrir ou inventar algo tão nebuloso (na verdade, tão impensável) como uma “outra identidade”. Sua forma de estar no mundo eliminava da questão da “identidade” o significado tornado óbvio por outros modos de vida – modos que nossos usos lingüísticos nos estimulam a chamar de “modernos”. (pág.24, 25 e 26)

A idéia de “identidade”, e particularmente de “identidade nacional”, não foi “naturalmente” gestada e incubada na experiência humana, não emergiu dessa experiência como um “fato da vida” auto-evidente. Essa idéia foi forçada a entrar na Lebenswelt de homens e mulheres modernos – e chegou como uma ficção. Ela se solidificou num “fato”, num “dado”, precisamente porque tinha sido uma ficção, e graças à brecha dolorosamente sentida que se estendeu entre aquilo que essa idéia sugeria, insinuava ou impelia, e ao status quo ante (o estado de coisas que precede a intervenção humana, portanto inocente em relação a esta). A idéia de “identidade” nasceu da crise do pertencimento e do esforço que esta desencadeou no sentido de transpor a brecha entre o “deve” e o “é” e erguer a realidade ao nível dos padrões estabelecidos pela idéia – recriar a realidade à semelhança da idéia.

A identidade só poderia ingressar na Lebenswelt como uma tarefa – uma tarefa ainda não realizada, incompleta, um estímulo, um dever e um ímpeto à ação. E o nascente Estado moderno fez o necessário para tornar esse dever obrigatório a todas as pessoas que se encontravam no interior de sua soberania territorial. Nascida como ficção, a identidade precisava de muita coerção e convencimento para se consolidar e se concretizar numa realidade (mais corretamente: na única realidade imaginável) – e a história do nascimento e da maturação do Estado moderno foi permeada por ambos. (pág.26)

A “identidade nacional” foi desde o início, e continuo sendo por muito tempo, uma noção agonística e um grito de guerra. Uma comunidade nacional coesa sobrepondo-se ao agregado de indivíduos do Estado estava destinada a permanecer não só perpetuamente incompleta, mas eternamente precária. (pág.27)

Quando a identidade perde as âncoras sociais que a faziam parecer “natural”, predeterminada e inegociável, a “identificação” se torna cada vez mais importante para os indivíduos que buscam desesperadamente um “nós” a que possam pedir acesso. (pág.30)

Permita-me assimilar já neste estágio (esperando por uma oportunidade posterior de abordar o assunto com mais detalhes, como ele merece) que os “grupos” que os indivíduos destituídos pelas estruturas de referência ortodoxas “tentam encontrar ou estabelecer” hoje em dia tendem a ser eletronicamente mediados, frágeis “totalidades virtuais” em que é fácil entrar e ser abandonados. Absortos em perseguir e capturar as ofertas do tipo “entre agora” que piscam nas telas de computador, estamos perdendo a capacidade de estabelecer interações espontâneas com pessoas reais.[3] “Engraçadas podem ser, essas comunidades virtuais, mas elas criam apenas uma ilusão de intimidade e um simulacro de comunidade”.[4] Não podem ser um substituto válido de “sentar-se a uma mesa, olhar o rosto das pessoas e ter uma conversa real”. Tampouco podem essas “comunidades virtuais” dar substância à identidade pessoal – a razão básica para procurá-las. Pelo contrário, elas tornam mais difíceis para a pessoa chegar a um acordo com o próprio eu. (pág.31)

Em aeroportos e outros espaços públicos, pessoas com telefones celulares equipados com fones de ouvidos ficam andando para lá e pra cá, falando sozinhas e em voz alta, como esquizofrênicos paranóicos, cegas ao ambiente ao seu redor. A introspecção é uma atitude em extinção. Defrontadas com momentos de solidão em seus carros, na rua ou nos caixas de supermercados, mais e mais pessoas deixam de se entregar a seus pensamentos para, em vez disso, verificarem as mensagens deixadas no celular em busca de algum fiapo de evidência de que alguém, em algum lugar, possa desejá-las ou precisas delas.[5] (pág.31 e 32)

É nisso que nós, habitamos do líquido mundo moderno, somos diferentes. Buscamos, construímos e mantemos as referências comunais de nossas identidades em movimento – lutando para nos juntarmos aos grupos igualmente móveis e velozes que procuramos, construímos e tentamos manter vivos por um momento, mas não por muito tempo. Para isso, não precisamos estudar e dominar o código de Goffman. Os celulares são suficientes. Podemos comprá-los, junto com todas as habilidades de que possamos precisar para esse fim, numa loja da principal rua do centro da cidade. Com os fones de ouvido devidamente ajustados, exibimos nossa indiferença em relação à rua em que caminhamos, não mais precisando de uma etiqueta rebuscada. Ligados no celular, desligamo-nos da vida. A proximidade física não se choca mais com a distância espiritual. (pág.32 e 33)

No admirável mundo novo das oportunidades fugazes e das seguranças frágeis, as identidades ao estilo antigo, rígidas e inegociáveis, simplesmente não funcionam. (pág.33)

O anseio por identidade vem do desejo de segurança, ele próprio um sentimento ambíguo. Embora possa parecer estimulante no curto prazo, cheio de promessas e premonições vagas de uma experiência ainda não vivenciada, flutuar sem apoio num espaço pouco definido, num lugar teimosamente, perturbadoramente, “nem-um-nem-outro”, torna-se a longo prazo uma condição enervante e produtora de ansiedade. Por outro lado, uma posição fixa dentro de uma infinidade de possibilidades também não é uma perspectiva atraente. Em nossa época líquido-moderna, em que o indivíduo livremente flutuante, desimpedido, é o herói popular, “estar fixo” – ser “identificado” de modo inflexível e sem alternativa – é algo cada vez mais malvisto. (pág.35)

Na coluna “Viver” de um dos dois mais prestigiados jornais ingleses, podiam-se ler poucos meses atrás as palavras de um respeitado “especialista em relacionamentos” informando que “ao se comprometerem, ainda que sem entusiasmo, lembre-se de que possivelmente estarão fechando a porta a outras possibilidades românticas talvez mais satisfatórios e completas.” Outro especialista mostrou-se ainda mais insensível: “A longo prazo, as promessas de compromisso são irrelevantes... Como outros investimentos, elas alternam períodos de alta e baixa.” E assim, se você deseja “relacionar-se” ou “pertencer” por motivo de segurança, mantenha distância. Se espera e deseja realizar-se com o convívio, não assuma nem exija compromissos. Deixe todas as portas sempre abertas.(pág.36)

Resumindo: “identifica-se com...” significa dar abrigo a um destino desconhecido que não se pode influenciar, muito menos controlar.  (pág.36)

Daí a crescente demanda pelo que poderíamos chamar de “comunidades guarda-roupa” – invocadas a existirem, ainda que apenas na aparência, por pendurarem os problemas individuais, como fazem os freqüentadores de teatros, numa sala. As comunidades guarda-roupa são reunidas enquanto dura o espetáculo e prontamente desfeitas quando os espectadores apanham os seus casacos nos cabides. Suas vantagens em relação à “coisa genuína” são precisamente a curta duração de seu ciclo de vida e a precariedade do compromisso necessário para ingressar nelas e (embora por breve tempo) aproveitá-las. (pág.37)

Quando a qualidade o deixa na mão ou não está disponível, você tende a procurar a redenção na quantidade. Se os compromissos, incluindo aqueles em relação a uma identidade particular, são “insignificantes” (como o especialista anteriormente citado proclamou com autoridade), você tende a trocar uma identidade, escolhida de uma vez para sempre, por uma “rede de conexões”. Tendo feito isso, contudo, assumir um compromisso e torná-lo seguro parece muito fácil (e assim mais desconcertante, até mesmo assustador) do que antes. Agora lhe faltam as habilidades que o fariam, ou pelo menos poderiam fazê-lo, funcionar. Estar em movimento, antes um privilégio e uma conquista, não é mais, portanto, uma questão de escolha: agora se tornou um “must”. Manter-se em alta velocidade, antes uma divertida aventura, transforma-se em uma tarefa exaustiva. O que é mais importante, aquela incerteza desagradável e aquela confusão aflitiva, das quais você pensava ter se livrado graças à velocidade, se recusam a abandoná-lo. (pág.37 e 38)

Num dos pólos da hierarquia global emergente estão aqueles que constituem e desarticulam as suas identidades mais ou menos à própria vontade, escolhendo-as no leque de ofertas extraordinariamente amplo, de abrangência planetária. No outro pólo se abortam aqueles que tiveram negado o acesso à escolha da identidade, que não têm direito de manifestar as suas preferências e que no final se vêem oprimidos por identidades aplicadas e impostas por outros – identidades de que eles próprios se ressentem, mas não têm permissão de abandonar nem das quais conseguem se livrar. Identidades que estereotipam, humilham, desumanizam, estigmatizam...

A maioria de nós paira desconfortavelmente entre esses dois pólos, sem jamais ter certeza do tempo de duração de nossa liberdade de escolher o que desejamos e rejeitar o que nos desagrada, ou se seremos capazes de manter a posição de que atualmente desfrutamos pelo tempo que julgarmos satisfatório e desejável. Na maior parte do tempo, o prazer de selecionar uma identidade estimulante é corrompido pelo medo. Afinal, sabemos que, se os nossos esforços fracassarem por escassez de recursos ou falta de determinação, uma outra identidade, intrusa e indesejável, pode ser cravada sobre aquela que nós mesmos escolhemos e construímos. (pág.44 e 45)

Há um espaço ainda mais abjeto – um espaço abaixo do fundo. Nele caem (ou melhor, são empurradas) as pessoas que têm negado o direito de reivindicar uma identidade distinta da classificação atribuída e imposta. Pessoas cuja súplica não será aceita e cujos protestos não serão ouvidos, ainda que pleiteiem a anulação do veredicto. Sã as pessoas recentemente denominadas de “subclasse”: exiladas nas profundezas além dos limites da sociedade – fora daquele conjunto no interior do qual as identidades (e assim também o direito a um lugar legítimo na totalidade) podem ser reivindicadas e, uma vez reivindicadas, supostamente respeitadas. Se você foi destinado à subclasse (porque abandonou a escola, é mãe solteira vivendo da previdência social, viciado ou ex-viciado em drogas, sem-teto, mendigo ou membro de outras categorias arbitrariamente excluídas da lista oficial dos que são considerados adequados e admissíveis), qualquer outra identidade que você possa ambicionar ou lutar para obter lhe é negada a priori. O significado da “identidade da subclasse” é a ausência de identidade, a abolição ou negação da individualidade, do “rosto” – esse objeto do dever ético e da preocupação moral. Você é excluído do espaço social em que as identidades são buscadas, escolhidas, construídas, avaliadas, confirmadas ou refutadas.

A “subclasse” é um grupo heterogêneo de pessoas que – como diria Giorgio Agamben – tiveram o seu “bios” (ou seja, a vida de um sujeito socialmente reconhecido) reduzindo a “zoe” (a vida puramente animal, com todas as ramificações reconhecidamente humanas podadas ou anuladas). Outra categoria que está encontrando o mesmo destino são os refugiados – os sem-Estado, os sans-papiers -, os desterritorializados num mundo de soberania territorialmente assentada.(pág.45 e 46)    

O deslocamento das responsabilidades de escolha para os ombros do indivíduo, a destruição dos sinalizadores e a remoção dos marcos históricos, rematadas pela crescente indiferença dos poderes superiores em relação à natureza das escolhas feitas e à sua viabilidade, foram duas tendências presentes desde o início no “desafio da auto-identificação”. No decorrer do tempo, as duas tendências, fortemente interligados e mutuamente revigorantes, ganharam força – ainda que desaprovadas, deploradas e censuradas como desenvolvimentos preocupantes e até mesmo patológicos. (pág.57)

A principal força motora por trás desse processo tem sido desde o princípio a acelerada “liquefação” das estruturas e instituições sociais. Estamos agora passando da fase “sólida” da modernidade para a fase “fluida”. E os “fluidos” são assim chamados porque não conseguem manter a forma por muito tempo e, a menos que sejam derramados num recipiente apertado, continuam mudando de forma sob a influência até mesmo das menores forças. Num ambiente fluido, não há como saber se o que nos espera é uma enchente ou uma seca – é melhor estar preparado para as duas possibilidades. Não se deve esperar que as estruturas, quando (se) disponíveis, durem muito tempo. (pág.57)

Para a grande maioria dos habitantes do líquido mundo moderno, atitudes como cuidar da coesão, apegar-se às regras, agir de acordo com os procedentes e manter-se fiel à lógica da continuidade, em vez de flutuar na onda das oportunidades mutáveis e de curta duração, não constituem opções promissoras. Se outras pessoas as adotam (raramente de bom grado, pode-se estar certo!), são prontamente apontadas como sintomas da privação social e um estigma do fracasso na vida da derrota, da desvalorização, da inferioridade social. Na percepção popular, elas tendem a estar associadas à vida numa prisão ou num gueto urbano, a ser classificadas como pertencentes à detestada e abominada “subclasse”, ou a ser confinadas nos campos de refugiados sem pátria. (pág.60)

As relações interpessoais, com tudo o que as acompanha – amor, parcerias, compromissos, direitos e deveres mutuamente reconhecidos -, são simultaneamente objetos de atração e apreensão, desejo e medo; locais de ambigüidade e hesitação, inquietação, ansiedade. (pág.68 e 69)

Amar significa estar determinado a compartilhar e fundir duas biografias, cada qual portando uma carga diferente de experiências e recordações, e cada qual seguindo o seu próprio rumo. Justamente por isso, significa um acordo sobre o futuro e, portanto, sobre o grande desconhecido. Em outras palavras, como Lucan observou dois milênios atrás e Francis Bacon repetiu muitos séculos depois, significa fornecer reféns ao destino. Também significa fazer-se dependente de outra pessoa dotada de igual liberdade de escolha e da vontade de seguir essa escolha – e portanto cheia de surpresas, imprevisível.

Meu desejo de amar e ser amado só pode ser realizar se for confirmado por uma genuína disposição a entrar no jogo para o que der e vier, a comprometer a minha própria liberdade, caso necessário, para que a liberdade da pessoa amada não seja violada. (pág.69)

Anthony Giddens declarou brilhantemente que a antiga idéia romântica de amor como uma parceira exclusiva “até que a morte nos separe” foi substituída, no decorrer da libertação individual, pelo “amor confluente” – uma relação que só dura enquanto permanecer a satisfação que traz a ambos os parceiros, e nem um minuto mais. No caso dos relacionamentos, você deseja que a “permissão de entrar” venha acompanhada da “permissão de sair” no momento em que não veja mais razão para ficar.

Giddens considera libertadora essa mudança na natureza dos relacionamentos: os parceiros agora estão livres para saírem em busca de satisfação em outro lugar se não conseguem obtê-la, ou não a obtêm mais, com a relação atual. (pág.71 e 72)

Levando-se tudo isso em consideração, o que aprenderíamos com os especialistas em relacionamentos é que o comprometimento, particularmente a longo prazo é que o comprometimento, particularmente a longo prazo, é uma armadilha a ser evitada, mais que qualquer outro perigo, por aqueles que buscam “relacionar-se”. O breve instante da atenção humana escolheu – porém mais seminal ainda é o encolhimento do tempo disponível para prever e planejar. O futuro sempre foi incerto, mas o seu caráter inconstante e volátil nunca pareceu tão inextricável como no líquido mundo moderno da força do trabalho “flexível”, dos frágeis vínculos entre os seres humanos, dos humores fluidos, das ameaças flutuantes e do incontrolável cortejo de perigos camaleônicos. (pág.74)

Num mundo em que o desprendimento é praticado como uma estratégia comum da luta pelo poder e da auto-afirmação, há poucos pontos firmes da vida, se é que há algum, cuja permanência se possa prever com segurança. Assim, o “presente” não compromete o “futuro”, e não há nada nele que nos permita adivinhar, muito menos visualizar, a forma das coisas que estão por vir. O pensamento e, mais ainda, os compromissos e as obrigações de longo prazo parecem, de fato “sem sentido”. Pior ainda, parecem contraproducentes, realmente perigosos, um caminho tolo a se seguir, um lastro que precisa ser atirado ao mar e que teria sido melhor, afinal de contas, nem ter sido trazido a bordo. (pág.74)

Quando se trata de iniciar e manter um do outro. Lutamos veementemente pela segurança que apenas um relacionamento com compromisso (e, sim, um compromisso de longo prazo!) pode oferecer – e no entanto tememos a vitória não menos que a derrota. Nossas atitudes em relação aos vínculos humanos tendem a ser penosamente ambivalentes, e as chances de resolver essa ambivalência são hoje em dia exíguas. (pág.75)

Se não é possível confiar na qualidade, quem sabe a salvação não está na quantidade? Se todo relacionamento é frágil, quem sabe o recurso de multiplicar a acumular relacionamentos não vai tornar o terreno menos traiçoeiro? Graças a Deus você pode acumulá-los – justamente porque eles são, todos eles, frágeis e descartáveis! E assim buscamos a salvação nas “redes”, cuja vantagem sobre os laços fortes e apertados é tornarem igualmente fácil conectar-se e desconectar-se. (pág.75 e 76)

E nós usamos nossos celulares para bater papo e enviar e receber mensagens, de modo que possamos sentir permanentemente o conforto de “estar em contato” sem os desconfortos que o verdadeiro “contato” reserva. Substituímos os poucos relacionamentos profundos por uma profusão de contatos pouco consistentes e superficiais. (pág.76)

O que esses milhões anseiam é mais bem atendido pelo “envio e recepção de mensagens”, que elimina da troca a simultaneidade e continuidade, impedindo-a de se tornar um diálogo genuíno e, portanto, arriscado. O contato auditivo vem em segundo lugar. É um diálogo, mas felizmente livre do contato visual, aquela ilusão de intimidade portadora de todos os perigos de traição involuntária (por gestos, mímica, expressão do olhar) que os interlocutores prefeririam manter excluída do “relacionamento”. Esse modo reduzido de relacionar-se, “menos importuno”, se ajusta a todo o resto – ao líquido mundo moderno das identidades fluidas, o mundo em que o aspecto mais importante é acabar depressa, seguir em frente e começar de novo, o mundo de mercadorias gerando a alardeando sempre novos desejos tentadores a fim sufocar e esquecer os desejos de outrora.

O prêmio é a liberdade de seguir adiante, mas uma opção que não temos a liberdade de fazer é parar de nos movimentar. (pág.76 e 77)

O que a mente moderna fez, contudo, foi tornar Deus irrelevante para os assuntos humanos na Terra. (pág.79)

Os “grandes temas” não foram resolvidos, mas suspensos, postos de lado, removidos da ordem do dia. Não bem esquecidos, mas raramente lembrados. A preocupação como o “agora” não deixa espaço para o eterno nem tempo para refletir sobre ele. Num ambiente fluido, em constante mudança, a idéia de eternidade, duração perpétua ou valor permanente, imune ao fluxo do tempo, não tem fundamento na experiência humana. (pág.79 e 80)

A velocidade da mudança dá um golpe mortal no valor da durabilidade: “antigo” ou “de longa duração” se torna sinônimo de fora de moda, ultrapassado, algo que “sobreviveu à sua utilidade” e portanto está destinado a acabar em breve numa pilha de lixo.

Quando comparada ao tempo de vida dos objetos que servem à existência humana e às instituições que a estruturam, assim como ao próprio estilo de vida, a existência humana (corpórea) parece ter a maior expectativa de duração – na verdade, parece ser a única entidade com uma expectativa de vida crescente, e não em processo de rápido encurtamento. Há cada vez menos coisas à nossa volta – tirando aquelas que são recortadas da vida quotidiana e mumificadas para o prazer dos turistas em momentos de lazer – que tenham visto o tempo anterior ao nascimento do indivíduo. Menos ainda que, tendo entrado em cena posteriormente, possam ter a expectativa razoável de sobreviver e seus espectadores. (pág.80)

O cristianismo imbuiu a jornada humana sobre a Terra, risivelmente curta, da importância extraordinária de ser a única oportunidade de determinar a qualidade da existência espiritual eterna. (pág.81)

A idéia de que nada na condição humana é dado de uma vez por todas ou imposto sem direito de apelo ou reforma – de que tudo que é precisa primeiro ser “feito” e, uma vez feito, pode ser mudado infinitamente – acompanhou a era moderna desde o início. De fato, a mudança obsessiva e compulsiva (chamada de várias maneira: “modernização”, “progresso”, “aperfeiçoamento”, “desenvolvimento”, “atualização”) é a essência do modo moderno de ser. Você deixa de ser “moderno” quando pára de “modernizar-se”, quando abaixa as mãos e pára de remendar o que você é e o que é o mundo a sua volta.

A história moderna também foi (e ainda é) um esforço contínuo para afastar os limites do que pode ser mudado à vontade pelos seres humanos e “aperfeiçoado” para melhor se adequar às necessidades ou desejos destes. Foi também uma busca incessante por ferramentas e know-how que permitissem que os derradeiros limites fossem cancelados e abolidos completamente. (pág.90)

A liberdade de alterar qualquer aspecto e aparência da identidade individual é algo que a maioria das pessoas hoje considera prontamente acessível, ou pelo menos vê como uma perspectiva realista para o futuro próximo. (pág.91)

Por outro lado, o verdadeiro problema e atualmente a maior preocupação é a incerteza oposta: qual das identidades alternativas escolher e, tendo-se escolhido uma, por quanto tempo se apegar a ela? Se no passado a “arte da vida” consistia principalmente em encontrar os meios adequados para atingir determinados fins, agora se trata de testar, um após o outro, todos os (infinitamente numerosos) fins que se possam atingir com a ajuda dos meios que já se possui ou que estão al alcance. A construção da identidade assumiu a forma de uma experimentação infindável. Os experimentos jamais terminam. Você assume uma identidade num momento, mas muitas outras, ainda não testadas, estão na esquina esperando que você as escolha. Muitas outras identidades não sonhadas ainda estão por ser inventadas e cobiçadas durante a sua vida. Você nunca saberá ao certo se a identidade que agora exibe é a melhor que pode obter e a que provavelmente lhe trará maior satisfação. (pág 91 e 92)

A três grandes religiões – cristianismo, islamismo e judaísmo – têm, todas elas, os seus fundamentalismos. E podemos presumir que o fundamentalismo religioso contemporâneo seja um efeito combinado de dois desenvolvimentos em parte relacionados, em parte distintos.

Um deles é a erosão – e a ameaça de mais erosão – da essência, do rígido cânone que mantinha unida a congregação de fiéis. Esse cânone está cada vez mais desgastado e borrado em suas bordas, sua costura se desfazendo e até se despedaçando. As seitas, que as igrejas vêem com apreensão como, comprovadamente, a maior ameaça à sua unidade, se multiplicam – e as igrejas são forçadas a assumir a posição de fortalezas sitiadas e/ou instituições em “contra-reforma permanente”. (pág.92)

O outro desenvolvimento talvez possa ter as mesmas raízes (ou seja, a nova forma líquida que a vida moderna assumiu), mas diz respeito basicamente aos selecionadores involuntários/compulsivos que todos nós nos tornamos em nosso ambiente social desregulamentado, fragmentado, indefinido, indeterminado, imprevisível, desconjuntado e amplamente incontrolável. Já enfatizei algumas vezes que, com todas as suas cobiçadas vantagens, a condição de vida de um selecionador-por-necessidade é também uma experiência totalmente desalentadora. A sua vida é uma vida insegura. O valor conspicuamente ausente é o da fé e o da confiança, e assim também o da auto-afirmação. O fundamentalismo (incluindo o religioso) oferece esse valor. Invalidando antecipadamente todas as proposições concorrentes e recusando o diálogo e a discussão com dissidentes e “heréticos”, ele instila um sentimento de certeza e elimina todas as dúvidas do código de comportamento simples, de fácil absorção, que oferece. Transmite uma confortável sensação de segurança a ser ganha e saboreada dentro dos muros altos e impenetráveis que isolam o caos reinante lá fora. (pág.93)

A globalização atingiu agora um ponto em que não há volta. Todos nós dependemos uns dos outros, e única escolha que temos é entre garantir mutuamente a vulnerabilidade de todos e garantir mutuamente a nossa segurança comum. Curto e grosso: ou nadamos juntos ou afundamos juntos. Creio que pela primeira vez na história da humanidade o auto-interesse e os princípios éticos de respeito e atenção mútuos de todos os seres humanos apontam na mesma direção e exigem a mesma estratégia. De maldição, a globalização pode até transformar-se em bênção: a “humanidade” nunca teve uma oportunidade melhor! Se isso vai acontecer, se a chance será aproveitada antes que se perca é, porém, uma questão em aberto. A resposta depende de nós. (pág.95)

Esse nosso mundo fluido, comprometer-se com uma única identidade para toda a vida, ou até menos do que a vida toda, mas por um longo tempo à frente, é um negócio arriscado. As identidades são para usar e exibir, não para armazenar e manter. Isso tudo já se segue ao que conversamos até aqui. Mas se é essa a condição em que todos nós temos de conduzir, a contragosto, os nossos assuntos do dia-a-dia, seria insensato culpar os recursos eletrônicos, como os grupos de bate-papo da Internet ou as “redes” de telefones celulares, pelo estado das coisas. É justamente o contrário: é porque somos incessantemente forçados a torcer e moldar as nossas identidades, sem ser permitido que nos fixemos a uma delas, mesmo querendo, que instrumentos eletrônicos para fazer exatamente isso nos são acessíveis e tendem a ser entusiasticamente adotados por milhões. (pág.96 e 97)

Se falamos compulsivamente sobre redes e tentamos obsessivamente evocá-las (ou pelo menos evocar os seus fantasmas), a partir dos “namoros rápidos” e dos encantamentos mágicos dos “sistemas de mensagens” dos telefones celulares, é porque sentimos dolorosamente a falta das redes seguras que as verdadeiras redes de parentesco, amizade e irmandade de destino costumavam oferecer de maneira trivial, com ou sem os nossos esforços. As agendas dos celulares ocupam o lugar da comunidade que nos falta, e a esperança é que substituam a intimidade perdida. (pág.100 e 101)

Tendemos a pegar os celulares e apertar furiosamente as suas teclas e escrever mensagens a fim de escaparmos de ser transformados em reféns do destino – no intuito de escaparmos de interações complexas, confusas, imprevisíveis, difíceis de interromper e de abandonar com as “pessoas reais” que estão fisicamente à nossa volta. Quanto mais amplas (ainda que mais superficiais) são as nossas comunidades fantasmas, mais atemorizante parece a tarefa de construir e manter as verdadeiras. (pág.101)

Em nenhum momento dos últimos dois séculos, mais ou menos, as linguagens faladas respectivamente pelas elites instruídas e abastadas e pelo resto do “povo”, assim como as experiências relatadas nessas linguagens, foram tão diferentes entre si. (pág.103)

 

 



[1] “Une généalogie de I’insecurité contemporaine”, entrevista com Philippe Robert, Esprit (dez. 2002), p.35-58.

[2] Giorgio Agamben, Means without Ends, trad. de Vincenzo Binetti e Cesare Casarino (University of Minnesota Press, 200), p.21.

[3] Clifford Stoll, Silicon Silicon Snakeoil (Doubleday, 1995), p.58.

[4] Charles Handy, The Elephant and the Flea (Hutchinson, 2001), p.204.

[5] Andy Hargreaves, Teaching the Knowledge Society: Education in the Age of Insecurity (Open University Press, 2003), p.25.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

IMMANUEL KANT: Crítica da razão pratica 1788

    Kant foi influenciado por Rousseau sobre a necessidade de encontrar uma moral para o sujeito e o Estado. A filosofia crítica de Kant ten...