Texto de: Robert Louis Wilken
Síntese e tradução: Paolo Cugini
Uma das práticas mais difundidas no Cristianismo Antigo era o culto aos mortos e a veneração dos ossos de mártires e santos. No final do século IV, as cidades do mundo romano estavam repletas de santuários que abrigavam relíquias de santos e santas zelosamente guardadas e os cristãos mais devotos iam regularmente a esses lugares para rezar. Já no século II os cristãos começaram a homenagear os mortos reunindo-se nos seus túmulos em sinal de reverência e para efeitos de intercessão.
Nos santuários havia geralmente um altar e bancos nos quais os fiéis podiam sentar-se para olhar o sarcófago contendo o corpo do Santo. Os ossos não só serviam para lembrar aos visitantes que o corpo de alguém jazia naquele local, mas tornavam a presença do falecido quase palpável.
Gregório de Nissa: “quando os fiéis contemplam as relíquias é como se com os olhos, a boca, os ouvidos e todos os sentidos abraçassem um corpo ainda palpitante de vida com lágrimas de reverência e emoção. Oferecem orações de intercessão como se o santo estivesse ali diante deles”.
segundo Gregório de Nissa é prova de superficialidade e preguiça pensar que a fé cristã é apenas um conjunto de ensinamentos, consiste também em fazer o sinal da cruz. Se estes sinais sacramentais são subestimados e se pensa que o cristianismo pode ser reduzido a doutrina de precisão, o mistério cristão se reduz a contar histórias.
As artes visuais, assim como a poesia, logo desempenharam um papel na história da igreja por causa da encarnação. O Cristianismo aceita sem esforço a ideia de uma ligação estreita entre as realidades concretas e o Deus vivo. Na igreja primitiva acreditava-se que conhecemos a Deus contemplando um rosto humano, o rosto de Jesus Cristo.
No encontro com o cego de Gerico, narrado no capítulo 9 do Evangelho de João, Jesus se refere à realidade do seu corpo, um corpo que pode ser visto com os olhos significa mais do que ver com os olhos, mas a grande originalidade do Cristianismo consiste em sustentar que, o conhecimento espiritual, começa daquilo que podemos ver com os olhos e tocar com as mãos.
Nas paredes das catacumbas os cristãos reproduziam imagens de pessoas e acontecimentos lembrados nas escrituras. A arte cristã mais antiga preservada até hoje, vem dos túmulos das catacumbas ou consiste em objetos como lâmpadas, cerâmicas, anéis. A partir do século IV Graças a Constantino, as comunidades cristãs começaram a construir igrejas, estas foram decoradas com pinturas e mosaicos representando Cristo, a Virgem e santos e os episódios mais famosos da Bíblia.
Um dos motivos da colocação de pinturas e mosaicos nos locais de culto era a sua função didática, ofereciam aos fiéis uma imagem para guardar na memória e funcionavam quase como livros para quem não sabia ler. Era habitual não só observar essas representações, mas até tocá-las, beijá-las, acender velas diante das pessoas e até dirigir-lhes orações. Os ícones acabaram sendo tratados com o mesmo respeito que teria sido dispensado à pessoa real.
Enquanto o culto cristão aos ícones se tornava mais fervoroso, alguns temiam que a veneração das imagens conduzisse à idolatria. No início do século VIII, em Constantinopla, o imperador Leão III, com o apoio de um grupo eclesiástico, promoveu uma campanha contra a veneração dos ícones. O partido era chamado de iconoclastas, ou seja, destruidores de imagens. Segundo os iconoclastas a representação autêntica de Cristo deveria ser buscada na Eucaristia e, a verdadeira imagem de um santo ou de uma santa, não consistia em seus traços Mas em sua vida virtuosa. O desafio representado por um ponto de vista diferente torna-se a oportunidade de esclarecer o que se acredita.
João de Damasco (Damasceno) nasceu na segunda metade do século VII. Apesar de viver na Palestina islamizada, João de Damasco está envolvido na polêmica sobre a veneração de imagens que assola a distante Constantinopla. Segundo João, a proibição de imagens sagradas pode prejudicar um aspecto fundamental da fé cristã: a crença na encarnação, ou seja, a consciência de que o Deus que além do espaço e de tempo se deu a conhecer num ser humano Jesus de Nazaré, que nasceu de uma mulher e viveu num lugar e época específica. É porque Deus se deu um corpo humano foi possível pintar a imagem dele.
Se fosse proibido representar Cristo como um ser humano, pergunta João, quem poderia então afirmar que Deus está encarnado? Na controvérsia sobre a iconoclastia, os riscos são, portanto, muito maiores do que a legalidade das representações de Cristo, da Virgem e dos Santos. Em épocas anteriores não era possível ver Deus, portanto, as imagens sagradas só podiam levar à idolatria. Mas agora que Deus apareceu em forma humana, as imagens são indispensáveis para a plena devoção cristã. Deus foi visto na terra várias vezes. João fala sobre isso e define a visão como o primeiro dos nossos sentidos: só olhando podemos entrar numa relação íntima com Deus. Agora podemos ver Deus como visível na forma humana e a imagem de Deus está impressa com fogo em nossa alma.
A veneração das imagens é a forma mais concreta de proclamar que Deus apareceu em forma humana na pessoa de Jesus Cristo. Além disso, a assunção da forma humana por Cristo não é um fato acidental. A carne de Cristo permanece sua carne mesmo depois da volta ao Pai e a identidade do logos está sempre ligada à carne, ou seja, à matéria e é por isso que no final é possível retratar o logos divino pintando a imagem de Cristo.
Aquilo que é representado pela imagem sagrada de Cristo não é simplesmente o Jesus humano nem o deus invisível, mas a imagem do deus encarnado em um determinado plano. Um ícone de Cristo é a representação de Cristo como ele foi visto por aqueles que o encontraram durante sua vida. quando João afirma que uma imagem de Cristo pode ser feita, ele quer dizer que é possível pintar um retrato de Cristo assim como alguém pintaria um retrato de qualquer outra pessoa, mas ele também quer dizer que, quando olhamos para o rosto de Cristo, nós vemos algo que não é dado para ver com os olhos da carne, pós Ele é aquele que existe na forma de Deus.
No Segundo Concílio de Nicéia, em 787, em que o ensinamento da Igreja sobre o tema das imagens sagradas recebeu a sua forma definitiva, os bispos sublinharam que um ícone de Cristo é mais do que a representação do Jesus histórico: só vê o homem Cristo, mas o logos torna-se carne e quando olhamos para uma representação da Natividade vemos Deus tornar-se homem para a nossa salvação. Portanto, o ícone nos convida a confessar que, aquele que não é carne se tornou carne; o incriado tornou-se criatura o impalpável foi tocado. Um ícone da Natividade não se limita a lembrar a quem o olha um episódio do passado: é um ícone da encarnação do mistério de Deus, que assume uma forma humana. Para Cirilo de Alexandria a carne de Cristo é a carne do deus invisível.
Segundo Gregório de Nissa, os Lugares Santos receberam a marca da própria vida e por isso devem ser amados e venerados. Muitas vezes se esquece que os acontecimentos da salvação tiveram um lugar e um tempo e que os acontecimentos sobre os quais o cristão se baseia sobre uma realidade concreta. Os fundamentos da fé foram verificados não apenas em um determinado momento da história, mas também em lugares específicos. Não há melhor maneira de gravar um evento ou uma pessoa em sua mente do que visitar o local onde o evento ocorreu ou a pessoa viveu de forma tangível. A maneira misteriosa é como as coisas tangíveis têm a capacidade de despertar o olhar interior. Entre as muitas coisas que impressionaram o peregrino na Terra Santa foi o fato de a liturgia ter acontecido nos mesmos lugares onde ocorreram os acontecimentos da salvação. O túmulo de Cristo, a montanha. das Oliveiras;
Viver no deserto da Judéia, a poucos quilômetros de Belém, Jerusalém e frequentar frequentemente os Lugares Santos, permitiu a João de Damasco uma melhor compreensão da sacralidade do espaço, mais do que qualquer outro autor de sua época. Ele entendeu que o caráter histórico do Cristianismo está ligado a. espaço não menos do que na época em que ele escreveu os lugares onde Deus realizou nossa salvação são uma imagem de Cristo não menos que os ícones através deles as coisas que aconteceram são lembradas.
Reproduzir a pessoa real de Cristo num episódio de sua vida: a imagem sagrada coloca a pessoa de Cristo diante de quem a olha de uma forma conforme à história do Evangelho. Segundo uma fórmula inserida no decreto do Concílio de Nicéia em 787 só o ícone pode representar acontecimentos. Ao olhar para um ícone de Cristo estamos de alguma forma diante da pessoa viva e, ao venerar o ícone, veneramos o próprio Cristo. A estreita identificação entre imagem e pessoa está implícita nos escritos de João Damasceno.
Os iconoclastas argumentavam que uma verdadeira imagem sagrada deve ter a mesma substância que a original, assim como Cristo tem a mesma substância que seu pai, mas um ícone é pintado de madeira e não tem nenhuma relação intrínseca com Cristo, mesmo que, portanto, o represente. De acordo com o iconoclastas a Eucaristia é a única imagem verdadeira de Cristo. Diodoro admite que um ícone de Cristo é por natureza algo diferente do Cristo representado pelo ícone.
Citando alguns episódios do Antigo Testamento, Teodoro afirma que não é errado ver a pessoa retratada no ícone, mesmo que o ícone seja feito de madeira, pedra ou ouro, o ícone direciona a atenção não para si mesmo, mas para o original. Teodoro baseia-se em ideias desenvolvidas durante o debate sobre a pessoa de Cristo após o Concílio de Calcedônia em 451. Em Calcedônia a Igreja argumentou que Cristo era conhecido em duas naturezas, a tese do Concílio ensinava que Cristo é divino e humano e que as duas naturezas estão unidas numa unidade íntima e indissolúvel. Por isso não é possível falar da natureza Divina de Cristo sem referir-se à sua natureza humana ou referir-se ao homem Cristo sem ver nele também o encarnado Deus. Se as duas naturezas não podem ser separadas, um retrato de Cristo não retrata apenas sua natureza humana, mas Deus que se fez o homem. Teodoro estava convencido de que os iconoclastas raciocinavam sobre Cristo de uma forma muito abstrata.
Segundo João de Damasco, se não tivesse havido a encarnação não poderia haver imagem de Cristo, mas Teodoro vira a questão de cabeça para baixo, argumentando que não haveria protótipo se não houvesse imagem. O protótipo tem uma relação necessária com a imagem porque cada um dos dois tem seu ser no outro. Se Cristo não pode existir sem a sua imagem há impotência e a imagem subsiste no protótipo antes de ser reproduzida pelo artista. Então, quem não reconhece que na veneração dele e venera também a sua imagem abole a veneração de Cristo. Como a sombra é inseparável do corpo, assim a imagem produzida é inseparável do protótipo. Segundo Teodoro não podemos conhecer a natureza de Deus em si; se é sobre a natureza de Deus em si que queremos falar. Qualquer referência a semelhanças de imagens deve ser abandonada.
Segundo Teodoro, é porque Deus assumiu nossa natureza e viveu entre nós que é possível criar uma imagem que retrata Cristo como Deus encarnado. Segundo Teodoro, se apenas a contemplação mental fosse suficiente, Deus poderia ter chegado até nós de uma forma puramente mental.
O cristianismo também é feito de concretude. No seio da liturgia cristã há muito material e palpável o pão e o vinho consagrados da Eucaristia, a água do batismo com que se é acolhido na igreja: são testemunhos da vinda de Deus ao mundo em forma humana. Sem o ícone, sem a imagem da pessoa de Cristo a encarnação se tornaria uma ilusão.
A teologia da imagem nas primeiras comunidades cristãs envolve uma série de desafios que refletem tanto a influência cultural da época quanto o desenvolvimento inicial das crenças cristãs. No período pós-apostólico, as comunidades estavam em um contexto onde imagens e ídolos eram comuns em outras religiões e culturas ao redor do Império Romano, o que trazia questões complexas.
ResponderExcluirNeste sentido nota-se que essa abordagem revela que esses desafios foram determinantes na formação de uma tradição visual e teológica que buscou equilibrar a necessidade de expressar a fé e os limites da representação do sagrado. As discussões sobre o uso das imagens continuam a evoluir dentro do cristianismo, mas as bases estabelecidas nas primeiras comunidades foram cruciais para as práticas visuais da igreja nos séculos seguintes.