sábado, 21 de dezembro de 2024

HANNAH ARENDT: O que é Política?

 



 O que é Política, Bertrand Brasil Rio de Janeiro,  2007

Sintese: pe Paolo Cugini

Digitação: Jaciara Souza Pereira

                  

        Fragmento1  Agosto de 1950

                                                                        

O que é Política? 

A política baseia-se na pluralidade dos homens. Deus criou os homens são um produto humano mundano, da natureza humana. (pag. 21)

A política trata da convivência entre diferentes. Os homens se organizam politicamente para certas coisas em comum, essenciais num caos absoluto, ou a partir do caos absoluto das diferenças. (pag. 21 e 22)

A ruína da política em ambos os lados surge do desenvolvimento de corpos políticos a partir da família. Aqui já está indicado o que se torna simbólico na imagem da Sagrada Família: Deus não criou tanto o homem como o fez com a família.([*Antiquado para: Deus não criou o homem tanto como criou a família]) (pag. 22)

Como se no homem houvesse algo político que pertencesse á sua essência – conceito que não procede; o homem é a-político. A política surge no entre-os-homens; portanto, totalmente fora dos homens. Por conseguinte, não existe nenhuma substancia política original. A política surge no intra-espaço e se estabelece como relação. Hobbes compreendeu isso.

A concepção monoteísta de Deus, em cuja imagem o homem deve ter sido criado. Daí só pode haver o homem, e os homens tornam-se sua repetição mais ou menos bem-sucedida. O homem, criado á imagem da solidão de Deus, serve de base ao state of nature as war of all against all, de Hobbes. É a rebelião de cada um contra todos os outros, odiados porque existem sem sentido – sem sentido exclusivamente para o homem criado á imagem da solidão de Deus.

A solução ocidental dessa impossibilidade da política dentro do mito ocidental da criação é a transformação ou a substituição da política pela História. Através da ideia de uma história mundial, a pluralidade dos homens é dissolvida em um indivíduo-homem, depois também chamada de Humanidade. Daí o monstruoso e desumano da História, que só em seu final se afirma plena e vigorosamente na política. (pag. 24)

Pode ser que a tarefa da política seja construir um mundo tão transparente para a verdade como a criação de Deus. No sentido do mito judaico-cristão, isso significa ria: ao homem, criado á imagem de Deus, foi dada capacidade genética para organizar os homens á imagem da criação divina. Provavelmente, um absurdo – mas seria a única demonstração e justificativa possível á ideia da lei da Natureza.

Na diversidade absoluta de todos os homens entre si – maior do que a diversidade relativa de povos, nações ou raças – a criação do homem por Deus está contida na pluralidade. Mas a política nada tem a ver com isso. A política organiza, de atenção, as diversidades absolutas de acordo com uma igualdade relativa e em contrapartida ás diferenças relativas. (pag. 24)

O que não pode servir para alcançar nossas preocupações ao constatarmos que, nas democracias de massa, sem nenhum terror e de modo quase espontâneo, por um lado toma vulto uma impotência do homem e por outro que girando em torno de si mesmo de forma continua, embora esses fenômenos continuem restritos, no mundo livre a não-arbitrário, á coisa política em seu sentido mais literal e á coisa econômica.  (pag. 27)

Mas o verdadeiro ponto principal do preconceito corrente contra a política é a fuga á impotência, o desesperado desejo de ser livre na capacidade de agir, outrora preconceito e privilegio de uma pequena camada que, como lorde Acton, achava que o poder corrompe e a posse do poder absoluto corrompe em absoluto ([¹]). O fato de essa condenação do poder corresponder por inteiro aos desejos ainda inarticulados das massas não foi visto por ninguém com tanta clareza como Nietzche, em sua tentativa de reabilitar o poder – se bem que ele também confundisse, ou seja identificasse, bem ao espírito da época, o poder impossível de um individuo ter visto ele surgir somente pelo agir em conjunto de muitos, com a força cuja posse qualquer pessoa pode deter. (pag. 28)

O espaço entre os homens que é o mundo, com certeza não pode existe sem eles e um mundo sem homens, ao contrário de um universo sem homens ou uma natureza sem homens, seria uma contradição em si – sem isso significar, porém, que o mundo e as catástrofes que nele ocorrem seriam reduzidos a um acontecer puramente humano, muito menos reduzidos a algo que acontece com ‘o homem’ ou com a natureza do homem. Pois o mundo e as coisas do mundo em cujo centro se realizam os assuntos humanos não são a expressão – a impressão como que formada para fora – da natureza humana, mas sim o resultado de algo que os homens podem produzir: que eles mesmos não são, ou seja, coisas, e que os pretensos ambitos espirituais ou intelectuais só se tornam realidades duradouras para eles, nas quais se podem mover, desde que existam objetivados enquanto mundo real. Os homens agem nesse mundo real e são condicionados por ele e exatamente por esse condicionamento toda catástrofe ocorrida e ocorrente nesse mundo é de neles refletida, co-determina-os. Seria inimaginável tal catástrofe ser tão monstruosa, tão aniquiladora do mundo a ponto de as capacidades formadoras do mundo e realizadores ([* No original: que a capacidade formadora do mundo e realizadora...]) do homem também serem afetadas, e o homem tornar-se tão ‘sem mundo’, como o animal. Podemos até imaginar que, no passado, tais catástrofes tenham acontecido em tempos pré-históricos e que certas tribos dos chamados povos primitivos sejam  seus resíduos, suas sobras ‘sem mundo’. Também podemos imaginar que uma guerra atômica, se permitisse a sobrevivência de alguma vida humana, poderia provocar uma catástrofe assim através da destruição do mundo interior. Mesmo assim, será sempre o mundo, bem como o curso do mundo – do qual os homens não [são] mais senhores, do qual se alhearam tanto que o automatismo inerente a todo processo pode realizar-se sem ser impedido – no qual os homens sucumbem. Tampouco trata-se daquelas possibilidades de preocupação com os homens acima mencionada. O pior e mais inquietante dela é essencialmente o fato de não se interessar mais, em absoluto, por esses perigos ‘externos’ e, por conseguinte, altamente reais, e desviá-los para um âmbito interior que pode no máximo ser refletido, mas não tratado nem modificado. (pag. 36 e 37.Para a pergunta sobre o sentido da política existe uma resposta tão simples e tão concludente em si que se poderia achar outras respostas dispensáveis por completo. Tal resposta seria: o sentido da política é a liberdade. Sua simplicidade e concludência residem no fato de ser ela tão antiga quanto a existência da coisa política – é na verdade, não como a pergunta, que já nasce de uma dúvida e é inspirada por uma desconfiança. Essa resposta não é, hoje, natural nem imediatamente obvia. Isso evidencia-se porque a pergunta de hoje não é simplesmente sobre o sentido da política, como antes se fazia, em essência, a partir de experiências não-políticas ou até mesmo antipolíticas. A pergunta atual surge a partir de experiências bem reais que se teve com a política, ela se inflama com a desgraça que  ameaça resultar delas. Por conseguinte, a pergunta é muito mais radical, muito mais agressiva, muito mais desesperada: tem a política algum sentido ainda? (pag. 38)

Na pergunta assim formulada – e essa é a forma que ela assume pouco a pouco todo mundo – mesclam-se dois elementos bem distintos: por um lado, a experiência com as formas totalitárias de Estado nas quais toda a vida dos homens foi politizada por completo, tendo como resultado o fato de liberdade não existe não existe mais nelas. Visto a partir daí, sob condições especificamente modernas, surge a pergunta se a política e liberdade são compatíveis entre si, se a liberdade não começa apenas onde cessa a política, de modo a não existir mais liberdade onde a coisa política não encontra seu fim e seu limite em parte alguma. Talvez, desde a Antiguidade – para a qual política e liberdade eram idêntica – as coisas tenham mudado tanto que, nas condições modernas, precisam ser distinguidas por completo uma da outra. (pag. 38 e 39)

Portanto, se esperar um milagre for um traço característico da falta de saída em que nosso mundo chegou, então essa expectativa não nos remete, de modo nenhum, para fora do âmbito político original. Se o sentido da política é a liberdade, isso significa que nesse espaço – e em nenhum outro – temos de fato o direito de esperar milagres. Não porque fôssemos crentes em milagres, mais sim porque os homens, enquanto puderem agir, estão em condições de fazer o improvável e o incalculável e, saibam eles ou não, estão sempre fazendo. A pergunta se a política ainda tem algum sentido nos remete. Justamente quando ela termina na crença em milagres – e onde mais deveria senão aí – de volta forçosamente á pergunta sobre o sentido da política. (pag. 44 e 45)

O que distingue o convívio dos homens na polis de todas as outras formas de convívio dos humano que eram bem conhecidas dos gregos, era a liberdade. Mas isso não significa entender-se aqui a coisa política ou política justamente como um meio para possibilitar aos homens a liberdade, uma vida livre. Ser-livre e viver-numa-polis eram, num certo sentido, a mesma e única coisa. A propósito, apenas num certo sentido; posto que para poder viver numa polis, o homem já devia ser livre em outro sentido – ele não devia estar subordinado como escravo á coação de um outro nem como trabalhador á necessidade do ganha-pão diário. Primeiro, o homem precisava ser livre ou se libertar para a liberdade, e esse ser livre do ser forçado pelo necessidade da vida era o sentido original do grego schole ou do romano otium, o ócio, como dizemos hoje. Essa libertação, diferente da liberdade, era um objetivo que podia e devia ser atingido através de determinados meios. (pag. 47 e 48)

Portanto, se quiserem entender a coisa política no sentido da categoria meio-objetivo, ela era, tanto na acepção grega como na acepção de Aristóteles, antes de mais nada um objetivo e não um meio. E o objetivo não era pura e simplesmente a liberdade tal como ela se realiza na polis, mais sim a libertação pré-política para a liberdade na polis. O sentido da coisa política aqui, mas não seu objetivo, é os homens terem relações entre si em liberdade, para além da força, da coação e do domínio. Iguais com iguais que só em caso de necessidade, ou seja, em tempos de guerra, davam ordens e obedeciam uns aos outros; porém, exceto isso, regulamentavam todos os assuntos por meio da conversa mutua e do convencimento recíproco.

A coisa política entendida nesse sentido grego está, portanto, centrada em torno da liberdade, sendo liberdade entendida negativamente como o não-ser-dominado e não-dominar, e positivamente como um espaço que só pode ser produzido por muitos, onde cada qual se move entre iguais. Sem esses outros que são meus iguais não existe liberdade alguma e por isso aquele que domina outros e, por conseguinte, é diferente dos outros em princípio, é mais feliz e digno de inveja que aqueles a quem ele domina, mas não é mais livre em coisa alguma. (pag. 48 e 49)



A política não é necessária, em absoluto – seja no sentido de uma necessidade imperiosa da natureza humana como a fome ou o amor, seja no sentido de um instituição indispensável do convívio humano. Aliás, ele só começa – onde cessa o reino das necessidades materiais e da força física. Como tal, a coisa política existiu sempre e em toda parte tão pouco que, falando em termos históricos, apenas poucas grandes épocas a conhecerem e realizaram. Esses poucos e grandes acasos felizes da História são, porém, decisivos; é só neles que se manifesta de cheio o sentido da política e, na verdade, tanto o bem quanto a desgraça da coisa política. Com isso, eles tornam-se determinantes, mas não a ponto de poder ser copiadas as formas de organização que lhes são inerentes, e sim porque certas ideias e conceitos que se tornaram plena realidade para um curto período de tempo, também co-determinem as épocas para as quais seja negada uma experiência plena com a coisa política. (pag. 50 e 51)

Apenas as formas de Estado totalitárias e as ideologias correspondentes – não o marxismo que proclamava o reino da liberdade e compreendia a ditadura do proletariado, no sentido romano, como uma instituição temporária da revolução – ousaram cortar essa linha, mas o verdadeiro novo e assustador desse empreendimento não é a negação da liberdade ou a afirmação que a liberdade não é boa nem necessária para o homem, e sim a concepção segundo a qual a liberdade dos homens precisam ser sacrificada para o desenvolvimento histórico, cujo processo só pode ser impedido pelo homem quando este age e se move em liberdade. (pag. 51)

Essa concepção, de que só pode ser livre quem está disposto a arriscar sua vida, nunca mais desapareceu de todo de nossa consciência; o mesmo vale para a ligação entre a coisa política e perigo e risco. A coragem é a mais antiga das virtudes políticas e ainda hoje pertence ás poucas virtudes cardeais da política, porque só podemos chegar no mundo público – se nos distanciarmos de nossa existência privada e da conexão familiar com a qual nossa vida está ligada. (pag. 53)

A liberdade de externar opinião, o direito de ouvir opiniões de outros e de também ser ouvido, que para nós constitui também parte indispensável da liberdade política, suplantou a liberdade não em contradição com ela, mas que possui uma natureza bem diferente, característica do agir e do falar, desde que seja uma ação. Essa liberdade consiste naquilo que chamamos de espontaneidade que, segundo Kant, se baseia no fato de cada homem ser capaz de começar uma série de novo por si mesmo. O fato de que liberdade de agir é equivalente a estabelecer-um-início-e-começar-alguma-coisa é ilustrado, da melhor maneira dentro do âmbito político grego, porque a palavra archein tanto significas começar como dominar. É evidente que esse duplo significado indica que originalmente era chamado de guia aquele que começava uma coisa, procurava companheiros a fim de poder levá-la a cabo; e esse levar a cabo e levar-ao-fim-a-coisa-comecada era o significado original da palavra para agir, prattein. (pag. 57)

A liberdade de externar opinião, determinante para a organização da polis, distingue-se da liberdade característica do agir, do fazer um novo começo, porque numa medida muitíssimo maior não pode prescindir da presença de outros e do ser-confrontado com suas opiniões. É verdade que o agir também jamais pode realiza-se em isolamento, porquanto aquele que começa alguma coisa só pode levá-la a cabo se ganhar outros que o ajudem. (pag. 58)

A partir desse espaço da política, que como tal realizava e garantia tanto a realidade por muitos discutida e testemunhada como a liberdade de todos, só se pode indagar por um sentido situado no outro lado da esfera política se, como os filósofos da polis, conferir-se preferência ao trato com poucos e não ao trato com muitos e chegar-se á convicção de que livre-conversar-sobre-alguma-coisa-com-outros não produz a realidade, mas sim o engano; não a verdade, mas a mentira.  (pag. 61)

Tal libertação através do domínio, a libertação de poucos para a liberdade do filosofar através da dominação sobre muitos, foi proposta, de fato, por Platão na forma do rei-filósofo, mas essa proposta não foi admitida por nenhum filósofo depois dele e permaneceu sem nenhum efeito político. Em contrapartida, a fundação da academia, justamente porque não objetivava sobretudo a educação para política, como as escolas dos sofistas e oradores, teve uma importância extraordinária para aquilo que ainda entedemos por política. O próprio Platão ainda podia acreditar que um dia a academia fosse conquistar e dominar a polis. Para seus sucessores, para os filósofos que vieram a seguir, só continuou determinante o fato de a academia garantir institucionalmente um espaço de liberdade para a minoria, e essa liberdade ser estendida desde o inicio em completa contradição com a liberdade política da praça do mercado; ao mundo das opiniões mentirosas e do falar enganador devia ser oposto um mundo contrario da verdade e do falar adequado á verdade; á arte da retórica, a ciência da dialética. O que se impôs e até hoje determina nossa concepção de liberdade acadêmica não é esperança de Platão de a partir da academia determinar a polis, a partir da filosofia determinar a política, mas sim o afastamento da polis, a apolitia, ([* A palavra não tem comprovação léxica, tampouco como “apolitéia”.]) a indiferença contra a política. (pag. 64 e 65)

Justamente esse efeito político já direto da liberdade da política, da qual a liberdade acadêmica se aproveitou de maneira extraordinária, remonta a outras experiências mais radicais – no que diz respeito á coisa política – do que as dos filósofos.. no caso dos cristãos não se tratava de se produzir um espaço da minoria junto ao espaço da maioria, tampouco de se fundar um contra-espaço para todos contra o espaço oficial, mas sim que um espaço publico, não importava se para a minoria ou para a maioria, era insuportável por causa de sua publicidade. (68)

Assim, no caso do afastamento dos primeiros cristãos da política não se tratava, como no caso do afastamento dos filósofos, de um abandono do âmbito dos assuntos humanos. Tal afastamento, comum nas formas extremas de vida eremita nos primeiros séculos da era cristã, estaria em retumbante contradição como o sermão de Jesus e foi sentida bem cedo como uma heresia pela Igreja. Tratava-se muito mais de uma proposição da mensagem cristã para um caminho de vida, no qual os assuntos humanos deviam ser deslocados do âmbito público para um âmbito intermédio entre homem e homem. O fato de ter-se identificado e talvez confundido esse âmbito intermédio como a esfera privada, porquanto em evidencia oposição ao âmbito público-político, encontra-se na natureza da situação histórica. (pag. 69)

Não importa como sejam essas possibilidades e alternativas hipotéticas, o decisivo é que desde o fim da Antiguidade e com o nascimento de um espaço eclesiástico-público, a política secular continuou vinculada ás necessidades da vida resultantes do convívio dos homens e com a defesa de uma esfera mais elevada, que até o fim da Idade Média estava espacial e palpavelmente na existência das igrejas. A igreja precisava da política e, na verdade, tanto da política mundana dos poderes seculares como da própria política religiosa ligada ao âmbito eclesiástico, para poder manter-se e afirmar-se na terra e neste mundo do lado de cá – enquanto Igreja visível,ou seja, ao contrário da invisível cuja existência apenas acreditada continuou sem ser molestada, em absoluto, pela política. A política precisava da Igreja – não apenas da religião, mas sim da existência especial palpável das instituições religiosas – a fim de provar sua razão de ser mais elevada, por causa de sua legitimação. O que mudou com o despontar dos tempos modernos não foi uma modificação de função da coisa política; não é como se, de repoente, á política fosse ajudicada uma nova dignidade própria só dela. O que mudou foram, pelo contrario, os âmbitos pelos quais a política parecia ser necessária. O âmbito do religioso recaiu no espaço do privado, ao passo que o âmbito da vida e de suas necessidades – que tanto na Antiguidade como na Idade Média valera por excelência como âmbito privado – recebeu nova dignidade e, na forma da sociedade, apareceu em público. (pag. 72 e 73)

O que hoje entendemos por governo constitucional, não importa se de natureza monárquica ou republicana, é, em essência, um governo controlado pelos governados, restrinforça. É indiscutível que a restrição e controle  ocorrem em nome da liberdade, tanto da sociedade como do individuo; trata-se de estabelecer limites, os mais amplos possíveis e necessários, para o espaço estatal do governar, a fim de possibilitar a liberdade fora de seu espaço. Portanto, não se trata, em todo caso, de possibilitar a liberdade de agir e de atuar politicamente; ambos continuam sendo prerrogativa do governo e dos políticos profissionais que se oferecem ao povo como seus representantes no sistema de partidos, para representar seus interesses dentro do Estado e, se for o caso, contra o Estado. A relação entre política e liberdade, em outras palavras, também é entendida nos tempos modernos de modo a ser a política um meio e a liberdade seu objetivo mais elevado; portanto, a relação em si não mudou, embora o conteúdo e a extensão da liberdade se tenham modificado de forma bastante extraordinária. Assim, a pergunta sobre o sentido da política é respondida por categorias e conceitos que são extraordinariamente antigos e por conseguinte também extraordinariamente veneráveis. Embora os tempos modernos se diferenciem, de forma tão decisiva, em seus aspectos políticos, de todos os tempos anteriores, assim como também nos aspectos espirituais e materiais. Só o fato da emancipação das mulheres e da classe operaria, quer dizer de grupos de homens que nunca antes podiam mostrar-se na vida pública, dá um rosto radicalmente novo a todas as questões políticas. (pag. 75)

A pergunta sobre que papel cabe á força no trato inter-estatal dos povos, e sobre como dele se pode eliminar o uso dos meios de força, está hoje, desde a invenção das armas atômicas, no primeiro plano de toda a política. Mas o fenômeno de tornar-se-superior da força ás custas de todos os outros fatores políticos é mais antigo; já se mostrou na Primeira Guerra Mundial e nas grandes batalhas materiais no teatro de guerra ocidental. O notável é que esse novo papel funesto de uma força que se desenvolve de maneira automática e aumenta sem cessar, de parte de todos os praticantes, pegou os povos, os estadistas e a opinião publica de forma totalmente despreparada e de surpresa. De fato, o aumento da força no espaço público-estatal consumou-se pelas costas dos homens atuantes, por assim dizer – num século que supostamente é tido como um dos mais pacíficos e menos violentos da História. O tempos modernos que viam como mais firmeza do que nunca a política apenas como um meio para a conversão e fomento da vida da sociedade e, em consequência disso, desenvolveu um esforço para limitar as competências da coisa política ao mais necessário, puderam imaginar, não sem razão, que lidariam como o problema da força de melhor forma que todos os séculos anteriores. O que fizeram, de fato, foi eliminar, por completo, a violência e o domínio direto do homem sobre o homem da esfera na vida social que se alarga sem cessar. A emancipação da classe operária das mulheres, quer dizer, de duas categorias que em toda a história pré-moderna foram submetidas á força, indica, da maneira mais clara, o ponto culminante desse desenvolvimento. (pag. 79 e 80)

Quando a primeira bomba atômica caiu sobre Hiroshima, provocando um fim rápido e inesperado da Segunda Guerra Mundial, um horror percorreu o mundo. Naquela época ainda não se podia saber quão justificado era esse horror. Uma única bomba atômica arrasou uma cidade, fazendo em apenas poucos minutos o que o emprego sistemático de ataques aéreos precisaria de semanas ou mesmo meses. Que a condução da guerra, de novo como na Antiguidade, podia dizimar não apenas os povos com ela relacionados, mas também podia transformar num deserto o mundo por eles habitado, era do conhecimento dos especialistas desde o bombardeio de Coventry e do conhecimento de todo o mundo desde os ataques em massa, com bombas, ás cidades alemãs. A Alemanha já era um campo de ruínas, a capital do país um monte de escombros, e a bomba atômica tal como a conhecemos da Segunda Guerra Mundial – se bem que já representasse algo absolutamente novo na história da ciência – estava no cardápio da moderna condução da guerra e dai no âmbito dos assuntos humanos, ou melhor, inter-humanos, dos quais a política trata. Não mais como o ponto culminante, alcançável por um salto ou num curto-circuito, através dos quais por assim dizer, o acontecer avança com velocidade sempre alucinante. (pag. 85 e 86)

Tem-se duvidado, com certa razão, que o homem, em meio a esse processo do progresso por ele mesmo desencadeado, que transcorre necessariamente de maneira catastrófica, ainda possa continuar sendo senhor e mestre do mundo por ele construído e dos assuntos humanos. Nisso, permanece sendo consternador o surgimento das ideologias totalitárias, nas quais o homem já se entende como expoente desse processo catastrófico por ele mesmo desencadeado, cuja função essencial consiste em estar a serviço do processo do progresso e propulsioná-lo cada vez mais rápido.(pag. 88 e 89)

Essa condução da guerra total, como se diz hoje em dia, tem sua origem, como se sabe, nas formas de domínio totalitário, com as quais está forçosamente associada; a guerra de extermínio é a única guerra conveniente ao sistema totalitário. Foram países de governo totalitário que proclamaram a guerra total, mas com ela impingiram necessariamente a lei de seu agir ao mundo não-totalitário. Mas quando um principio de tamanha envergadura vem ao mundo, é quase impossível limitá-lo a talvez um conflito entre países totalitários e não-totalitários. Isso ficou patente quando a bomba atômica foi empregada contra o Japão e não contra a Alemanha de Hitler, para a qual ela foi originalmente produzida. O revoltante nesse caso foi, entre outras coisas, o fato de que se lidava, na verdade, com uma potência imperialista, mas não com uma potência totalitária. (pag. 92)

O que sucumbe aqui é um mundo de relações humanas, surgindo não por meio do produzir, mas sim do agir e do falar, que em si jamais chega a um fim e que – embora tecido com a coisa mais fugida que existe, a palavra passageira e o fato rapidamente esquecido – é próprio de uma solidez tão terrivelmente tenaz que, em certas circunstancias como talvez no caso do povo judeu, pode sobreviver milênios á perda do palpável mundo produzido. Isso, porém, é uma exceção e, em geral, só pode existir dentro do mundo produzido, através do sistema de relações surgidas a partir do agir, no qual o passado continua vivendo na forma da História que fala e sempre persuade, em cujo mundo pedras se aninham até também falarem, testemunharem falando – mesmo que se tenha que desenterrá-las do seio da terra. É verdade que todo esse âmbito verdadeiramente humano que forma a coisa política no sentido mais estreito pode sucumbir através da forca, mas ele não surgiu da forca e a derterminacao nele contida não é um fim por meio de força. (pag. 94)

O que em Homero manifesta-se ainda não-separada – a violenta força dos grandes feitos e a forca irresistível das grandes palavras que os acompanham e que justamente por isso convencem a reunião de homens, que veem e ouvem – encontramos mais tarde, já separadas com bastante clareza uma da outra, nas competições – as únicas ocasiões em que a Grécia inteira se reunia para admirar as forças desenvolvidas sem violência – e nos desafios de oratória e no incessante falar mutuo dentro da polis. Nisso, a bilateralidade das coisas que em Homero se deu imediatamente no duelo, recai exclusivamente no âmbito do falar, onde toda vitoria torna-se tão ambígua quanto a vitoria de Aquiles, e uma derrota pode tornar-se tão gloriosa quanto a de Heitor. Mas nos desafios de oratório não se fica nos dois lados dos oradores que se manifestam neles como pessoas, se bem que é inerente a cada discurso, de maneira imperiosa, não importa o quão ‘objetivo’ possa apresentar-se, ele também revelar-se para o orador, de uma forma difícil de se apreender, mas nem por isso menos penetrante e essencial. Aqui, a bilateralidade com a qual Homero pôde poetar a Guerra de Troia como um todo, torna-se uma infinita variedade dos assuntos discutidos: desde que discutidos por tantos na presença de muitos outros, são atraídos para a luz da publicidade, onde outros, são atraídos para a luz da publicidade, onde são forçados, por assim dizer, a revelarem todos seus lados. Somente em tal universalidade uma única e mesma coisa pode revelar-se em toda sua realidade, sendo preciso ter presente que cada coisa possui tantos lados e pode revela-se em tantos perspectivas quantos homens nela participam. (pag. 99 e 100)

Assim, a liberdade era para o pensamento grego enraizada, ligada a uma posição e limitada especialmente, e as fronteiras do espaço da liberdade coincidiam com os muros da cidade, da polis ou, dito de forma mais exata, da ágora nela encerrada. Fora dessas fronteiras situava-se, por um lado, o estrangeiro no qual não se poderia ser livre, posto que nele não se era mais um cidadão ou, melhor, um homem político; e por outro, a casa particular na qual tampouco se poderia ser livre porque faltavam os demais com igualdade de direitos, que juntos constituíam o espaço da liberdade. Esse último era de importância ainda mais decisiva para o conceito romano moldado de maneira bem diferente, sobre o que é a coisa política, a coisa pública, a res publica ou republica. Para os romanos, a família caía tanto no âmbito dos não-livres que Mommsen traduziu a palavra família, de maneira sumária, por “servidão”. ([³5]). Porém, a razão para essa servidão é dupla; em primeiro lugar, residia em que o pater famílias, o dono da casa, reinava como um verdadeiro monarca ou déspota sozinho sobre sua casa multiforme, composta de mulher, filhos e escravos; portanto, faltavam-lhe as pessoas com igualdade de direitos diante das quais ele poderia aparecer em liberdade. Em segundo lugar, esse casa dominada por um não podia ser admitida em nenhum certame ou competição, porque precisava forma uma unidade que só poderia ser destruída por interesses, posições e pontos de vista antagônicos. Com isso, deixava de existir, de maneira automático, aquela multiplicidade de aspectos nos quais o verdadeiro conteúdo do ser-livre, do agir-e-conversar-em-liberdade estava livre para se mover. Resumindo, a não-liberdade era o pressuposto de uma unidade que não foi fendida, tão constitutiva para a vida em comum na família quanto a liberdade e a luta de um com o outro para a vida em comum na polis. Com isso, o espaço livre da coisa política apresenta-se como uma ilha, na qual o principio da força e da coação é eliminado das relações dos homens. O que fica de fora desse estreito espaço, a família, por um lado, e as relações da polis com outras unidades políticas, por outro, continua sujeito ao principio da coação e ao direito do mais forte. Assim, segundo a concepção da Antiguidade, o status do individuo é tão exclusivamente dependente do espaço no qual ele se move de cada vez que o mesmo homem, como filho crescido de um pai romano, “era subordinado a seu próprio pai... na condição de cidadão [poderia] cair no caso de dar-lhe ordens como senhor” ([³4]) (pag. 104)

Somente a partir dessa perspectiva determinada como romano, na qual o fogo é atiçado de novo para abolir o extermínio, talvez possamos compreender o que é em si, de verdade, a guerra de extermínio e por que não deve ter nenhum lugar na política, independente de todas as considerações morais. Se for correto que uma coisa só realmente no mundo do histórico-político, assim como no mundo do físico, quando mostrar-se e puder ser percebida de todos os lados, então ela sempre precisará ser observada e definida por uma pluralidade de homens ou de povo, ou de uma pluralidade de ângulos, para se fazer realidade possível e garantir sua continuidade. Em outras palavras, só surge mundo porque há perspectivas, e só existe por causa de uma correspondente ordem de coisas. Se um  povo, ou um Estado, ou apenas um determinado grupo de homens, é exterminado porque, em todo caso, tem uma posição qualquer no mundo que ninguém pode duplicar sem dificuldade, que apresenta uma visão de mundo só realizável por ele – então não é apenas um povo, um Estado ou uma certa quantidade de homens que morre, senão que uma parte do mundo comum é aniquilada – um lado do mundo mostrado antes, mas que jamais poderá mostrar-se de novo. (pag. 108)

Essa solução da questão da guerra – quer tenha sido originalmente própria dos romanos ou tenha surgido apenas posteriormente no recordar e no adornar da guerra de extermínio de Troia – é a origem tanto do conceito de lei como da importância extraordinária que a lei e a formação da lei experimentaram no pensamento político romano. Pois, a Lex romana, em completa diferença e até mesmo em oposição áquilo que o gregos conheciam por nomos, significa originalmente “ligação duradoura” e, em seguida, contrato tanto no direito de Estado como no privado. Portanto, uma lei é algo que liga os homens entre si e se realiza não através de um ato de força ou de um ditado, mas sim através de um arranjo ou acordo mútuo. O fazer da lei, essa ligação duradoura que se segue á guerra violenta, é ele mesmo totalmente ligado á conversa e á réplica daí a algo que, tanto na opinião dos gregos como na dos romanos, estava no centro de tudo que é política. (pag. 111 e 112)

Não importa como possa aparecer essa justificação: em nosso contexto, é decisivo que justamente a justificação não correspondia ao pensamento romano e não pôde ser imposta pelos historiadores romanos. Teria sido romano deixar a cidade inimiga existir na condição de adversária, da maneira como tentou o mais velho Cipião, o vitorioso sobre Aníbal; ([*No original: o vencedor de Aníbal.]) romano foi lembrar o destino dos antepassados e, como o destruidor da cidade, Emiliano Cipião, desfazer-se pranto sobre as ruínas da cidade e, pressentido a própria desgraça, citar Homero: “Virá o dia em que a santa Ílion cairá,/ o próprio Priamo e o povo do rei derrubado á lança”; ([5²]) por fim, romano foi deduzir o começo do declínio a partir dessa vitoria, que terminou com um aniquilamento que tornou Roma uma potência mundial, dedução essa que costumavam fazer quase todos os historiadores romanos até Tácito. Em outras palavras, romano foi saber que o outro lado da própria existência, justamente quando se revelou como tal na guerra, deve ser poupado e mantido vivo – não por misericórdia para com os outros, mas sim por causa do amento da cidade que a partir de então devia abranger também esse estrangeiro numa nova aliança. Então, esse bom-senso determinou que os romanos lutassem, a despeito de todos os seus interesses imediatos, de maneira decidida em favor da liberdade e independência dos gregos, mesmo que tal procedimento, em vista da situação existente de fato nas poleis gregas, se apresentasse muitas vezes como imprudência sem sentido. Não porque se quisesse reparar na Grécia aquilo que se pecou em Cartago, mas porque se julgava justamente o caráter grego como o verdadeiro reverso correspondente ao romano. Para os romanos era como se Heitor encontrasse Aquiles mais uma vez e lhe oferecesse a aliança depois da guerra travada. Só que, infelizmente, nesse meio tempo Aquiles ficou velho e implicante. (pag. 117 e 118)

É inevitável que essa pergunta coloque-se para todos os que começam a refletir sobre política hoje. A era de guerras e revoluções prognosticadas por Lênin para este século – e na revolução prognosticadas por Lênin para este século – e na qual vivemos, de fato – transformou, é verdade, numa medida até aqui quase desconhecida, o suceder-político num fator elementar do destino pessoal de todos os homens na face da terra. Mas esse destino foi uma calamidade em toda parte em que atuou de fato e onde os homens foram realmente arrebatados no turbilhão dos acontecimentos. Não existe nenhum consolo para essa calamidade que a política lançou sobre os homens, bem como para a calamidade maior com a qual ela ameaça a Humanidade como um todo. Pois verificou-se que, em nosso século, as guerras não são “tormentas de aço” ([55]) que limpam o ar político, nem são a “continuidade da política por outros meios”, ([56]) mas sim tremendas catástrofes que podem transformar o mundo num deserto e a Terra numa matéria sem vida. As revoluções, por outro lado, se vistas a sério, com Marx, como “locomotivas da história”, ([57]) dificilmente demonstraram com mais clareza ser evidente – longe de poderem pôr termo á calamidade – apenas aceleram tremendamente a velocidade de seu desenvolvimento. (pag. 124 e 125)

Essas são as perguntas invariavelmente formuladas por qualquer um que comece a refletir sobre política em nosso tempo. Assim, da maneira como as perguntas se colocam, não podem ser respondidas: são, em certa medida, questões retóricas ou, melhor dizendo, exclamatórias que necessariamente permanecem contidas no marco de experiência no qual nasceram, determinado e limitado pelas categorias e concepções da força. Está na essência do objetivo que ele justifique os meios necessários para alcançá-lo; mas que objetivos poderiam justificar meios que, em certas circunstancias, poderiam exterminar a Humanidade e a vida orgânica na face da Terra? Está na essência das metas limitar tanto os objetivos como os meios e assim isolar o próprio agir contra um perigo do descomedimento sempre inerente a ele. Mas, se isso é assim, então as metas já falharam antes de se constata que o agir conveniente tornou-se sem objetivo; pois jamais deveria ter chegado ao ponto de se colocarem a serviço do agir  político os meios de força, dos quais dispõem hoje as grandes potências e que, num futuro não muito distante, poderão estar na posse de todos os Estados soberanos. (pag.130).


Nenhum comentário:

Postar um comentário

O CONTRATO LIBERAL DE JOHN LOCKE

  Anotações de Paolo Cugini Poder político: direito de formular leis que contemplem a pena de morte e todas as penas menores, em vista de u...