o crepúsculo do dever e a ética indolor dos
novos tempos democráticos
1.
A consagração do dever
Síntese: Paolo Cugini
Nas épocas pré-modernas, a moral é essencialmente
teológica: não se concebe como uma esfera independente da religião. (pág.1)
O motivo que deve nos levar à pratica da virtude não é o
respeito moral ao homem, mas o desejo e a glória do Altíssimo. No prolongamento
de uma tradição milenar, a moral é parte integrante do culto que o homem deve
prestar a Deus. (pág.1 e 2)
Foi essa subordinação da moral à religião que os
modernos rejeitaram. A irrupção da modernidade não corresponde apenas à
elaboração de uma ciência emancipada do ensinamento bíblico e de uma concepção
de vida político-jurídica auto-suficiente, alicerçada tão-somente nas
aspirações humanas. Contém igualmente a afirmação de uma moral emancipada da
autoridade da Igreja e da crença religiosa, com sustentação meramente
humano-racional, sem recorrer às verdades reveladas. (pág.2)
A virtude sem Deus
Despojadas da religião, as virtudes são algo ilusório:
somente a revelação e a fé num Deus justiceiro são capazes de assegurar
eficazmente a moralidade. Esse axioma da cultura cristã tradicional foi negado
e destruído pela ofensiva dos modernos. Em outros termos, a religião do dever
desenvolveu-se à maneira de um dever sem religião. Uma nova cultura nasceu,
parte constitutiva da época de autonomia pós-teológica. A obrigação moral não é
mais uma prescrição que vem de fora, mas algo que provém exclusivamente do solo
profano da vida humana e social; por isso, o exercício dessa obrigatoriedade já
não irá exigir um auxílio transcendentes nem uma coerção do Céu. (pág.8)
No Iluminismo, os filósofos do interesse sabidamente
interpretado ou do sentimento e do dever rígidos empenham-se em provar que
seria possível calcar a virtude em razões de natureza laica, independentes de
qualquer revelação sobrenatural. No entender daqueles, o homem pode chegar à
prática da virtude sem ajuda divina, já que o interesse, o sentimento e a razão
ideal seriam suficientes para o cumprimento dos deveres[1].
(pág.8 e 9)
Os deveres morais impõem respeito por si, devem ser
objeto de uma exposição racional e se baseiam unicamente na razão humana
vivendo em sociedade. Mesmo se, por prudência ou estratégia, o nome de Deus não
tenha sido proscrito, Deus já não é o sustentáculo da moral, que pode ter vida
própria sem incutir temor dos castigos eternos. (pág.9)
A defesa de uma moral autônoma, dissociada da
dependência a um Deus justiceiro e aos dogmas religiosos, só se afirmou em meio
a fortes resistências e a vivas polêmicas. (pág.10)
Somente após a segunda metade da década de 1920 é que o
espírito de cruzada anti-laicista se atenua, para desaparecer em seguida.
Enquanto se descortinam as possibilidades de entendimento entre os setores
laico e católico da sociedade, a laicidade passa a adquirir direito de
cidadania até em meios católicos[2].
Após séculos de excomunhões, a “moral sem Deus” não foi mais tachada de escola
do crime e da ignomínia. (pág.10 e 11)
Apenas a responsabilidade pessoal entra em questão; todo
o mérito moral passa a residir nas ações e intenções de cada homem. (pág.11)
Soberania ética e dever absoluto
O processo de secularização da moral tem um sentido mais
amplo do que a simples afirmação de uma “moral independente”[3]:
ele comporta a preponderância das obrigações éticas sobre as da religião.
(pág.12)
Eis o conceito básico: a exigência ética suplantou a
adoração mística, os deveres para com os homens passaram à frente dos deveres
para com Deus. (pág.12)
O verdadeiro mérito, mesmo em matéria religiosa, não
está mais nos jejuns, nas penitências e nas orações, mas na obediência à lei da
razão moral. (pág.13)
A substituição de um suporte teológico por um suporte
laico não foi suficiente – muito ao contrário – para libertar a moral de
qualquer caráter religioso. Stirner e Schopenhauer, Nietzsche e Guyau não se
enganaram: o sentido determinante dos imperativos de ordem religiosa somente
foi deslocado, isto é, transferido daquele âmbito religioso para o âmbito dos
deveres individuais e coletivos. Contudo, não deixa de ser verdade que essa
reprodução do esquema religioso teve igualmente seu desdobramento segundo uma
lógica especificamente moderna, voluntarista e futurista. Não é possível
dissociar a religião do dever da confiança moderna na educação e na
perfectibilidade indefinida do gênero humano, da fé na difusão das Luzes e
também no aperfeiçoamento moral da humanidade. Homens mais bem instruídos
acerca de seus deveres serão mais justos e virtuosos; liberta das falsas
concepções religiosas, a moral pode se purificar e as naturais propensões
humanas para a benevolência adquirirão nova solidez. Só se inculcarmos no
espírito das pessoas os princípios de uma moral sábia, humana e social, é que
os comportamentos indesejáveis refluirão, dando lugar a um gênero humano mais
altruísta, mais sadio e mais laborioso. O triunfo moderno do dever manifestou
tanto a angústia do sentimento da “morte de Deus” quanto o anseio otimista de
fazer progredir o aperfeiçoamento moral da humanidade, ou a ambição de
regenerar o homem e a sociedade pelas luzes da retidão moral. A fé na dimensão
incomensurável do dever, de um lado, e no progresso das ciências e das
técnicas, de outro, fazem parte do mesmo contexto histórico; designa-se, em
conjunto, a época áurea da modernidade, o espírito de “construtivismo” otimista
da modernidade, aplicando tanto à natureza quanto à vida moral e social. É a
mesma profissão de fé incondicional na espécie humana que sustenta o rigorismo
ético, os messianismos revolucionários, os hinos ao desenvolvimento do saber e
da técnica presentes no primeiro ciclo democrático. (pág.15)
Moralismo Dos
Costumes
Moralismo sexual e familiarização
O Ocidente se caracterizou, desde o século XVI, pela
hostilidade em relação à sexualidade e por um crescente zelo moralizador[4].
Aliás, longe de haver invertido o curso dessa tendência multissecular, a
modernidade democrática conduziu-a a seu termo, e isso por outros caminhos,
isto é, principalmente por via do discurso normativo científico. (pág.16)
Esse prolongamento de uma tradição repressiva não pode
ser dissociado da ação persistente da influência da Igreja sobre as opiniões e
os comportamentos. Durante todo esse período, a instrução religiosa nunca
deixou de ser ministrada à grande maioria das crianças; a Igreja continuou a
ter uma presença marcante no campo da educação e da orientação moral. (pág.17)
A autonomia da moral em face da religião, embora fosse
defendida por muitas correntes de pensamento, não receberia adesão (nem teórica
nem prática) das massas. (pág.17)
Por maior que tenha sido o processo laicizador da
sociedade, a moral sexual continuou sob a tutela da moral cristã. (pág.18)
Assim como a sexualidade, também a esfera da família se
encontra sob a dependência do binômio forma-dever, sujeita às investidas da
moralização sanitarista e disciplinar. (pág.19)
O desejo de esmagar o vício também criou raízes no ideal
moderno das democracias liberais, ameaçadas pela decadência das “classes de
risco”. Como a democracia não era capaz de perdurar e progredir sem moralidade
pública e sem cidadãos esclarecidos e responsáveis, o saneamento dos costumes
despontava como um imperativo capital dos novos tempos, agora estruturados com
base na liberdade e no sufrágio universal. A fim de opor barreiras ao duplo
perigo representado, de um lado, pelo desmedido individualismo e, de outro,
pelo socialismo “despótico”, que concebia mais privilégios ao Estado, os
filantropos se aventuraram pelas vias da regeneração do povo, da direção das almas
e dos comportamentos, ao exigirem novas leis repressivas em matéria de
alcoolismo, pornografia ou libertinagem em logradouros públicos, além de
atribuírem um papel central à educação das massa. (pág.22)
Impulsionar a independência econômica dos podres, concorrer
para o incremento da previdência e higiene das famílias, estimular o senso de
responsabilidade individual: eis o objetivo mais importante para os
filantrópicos.( pág.23)
Apesar de ter suas raízes em bebidas de inspiração
cristã, o espírito filantrópico ilustra muito bem a mudança de resumo futurista
das sociedades modernas democráticas. Foi-se aquele tempo que via a imoralidade
como uma inevitável e impalpável realidade, algo de congênito à humanidade
decaída. (pág.23)
Uma evangelização laicizada entre em cena, para a qual a
ação moral possuiu uma autonomia intrínseca. Com efeito, distinguido-se das
preces, das pregações em favor do arrependimento, das exortações e das melodias
do cânticos, a iniciativa moralizada dos costumes adquiriu consistência e
eficácia específicas[5].
Por maior que tenha sido o zelo dos missionários cristãos, a partir de agora o
escopo moral é que direcionará e definirá as ações, à poupança e à temperança
será o preâmbulo para todos os progressos individuais e coletivos. A filantropia
concretizou, no terreno da ação reformadora, a supremacia moderna da moral e da
utilidade, herdada do Iluminismo. (pág.24)
2.
Éden, Éden
Na sociedade do pós-dever, o mal é transformado em
espetáculo atraente, e o ideal é subestimado. É bem verdade que os vícios ainda
inspiram censura; contudo, o heroísmo do bem perdeu vigor. Os valores que hoje
admitimos são mais de cunho negativo (“não faça isso”) do que positivo (“você é
obrigado a fazer tal coisa”). Por detrás de toda revitalização ética, vê-se o
triunfo de uma moral indolor, última fase da cultura individualista
democrática, desvinculada, em sua lógica mais profunda, tanto das conotações de
moralidade como de imoralidade.
A lógica pós-moralista é a tendência dominante de nossa
cultura ética, porém não exclusiva. Por isso, comporta também o aparecimento de
fenômenos contraditórios, como o crescimento de movimentos caritativos e
humanitários, a consolidação ou a ressurgimento de ações explicitamente
moralista, voltadas particularmente contra o aborto ou a pornografia. Na
sociedade do pós-dever, o espírito de virtuosismo ou rigorismo não cessa de
existir, mas deixa de ter preponderância social. (pág.27)
Em poucas décadas, passamos de uma civilização do dever
a uma cultura da felicidade subjetiva, do lazer e do sexo. É a cultura do
self-love que nos comanda, em vez do antigo sistema de repressão e de
planejamento calculado dos costumes. (pág.28)
A época atual derrubou a hierarquia moralista das
finalidades, e, uma vez que o prazer em boa medida se tornou um conceito
independente de regras morais, a noção de felicidade subjetiva passou a irrigar
em profundidade a cultura cotidiana.
Cultura pós-moralista não equivale a dizer pós-moral.
Precisamente quando o sacerdócio do dever e as restrições da era vitoriana
ficaram para trás, novas regulamentações sociais surgem, proibições são
renovadas, readmitem-se novos valores, manifestando-se aspectos bem diversos
dos que foram narrados pelos contemporâneos da “permissividade generalizada”.
Na verdade, o ritual do dever perdeu o direito de cidadania visível na
sociedade, muito embora os costumes não tenham mergulhado na anarquia. O
bem-estar e os prazeres são exaltados, mas a sociedade civil anseia por ordem e
moderação: os direitos subjetivos dominam nossa cultura, mas “nem tudo é
permitido”. (pág.28)
Que fique bem claro: a dissolução do sistema moralista
não conduz à devassidão total ou “ao extravasamento completo” da libido... O
neo-individualista é simultaneamente hedonista e regulamente, sedento de
autonomia e avesso aos excessos, hostil aos mandamentos sublimes e também ao
caos ou às transgressões da libertinagem pura e simples. (pág.28)
O Bem-Estar Como
Mundo E Como Representação
Do Bem ao bem-estar
Na era pós-moralista, o dever só pode ser expresso em
formas amenas: os supermercados, o marketing, o paraíso dos lazeres sepultaram
a religião das obrigações. (pág.29)
O Show pós-moralista da informação
A época pós-moralista é aquela em que a cultura
cotidiana está centrada não apenas nos objetos, no self-love e no psicologismo,
mas também na informação. A lógica do menosprezo ao dever é afim com a retorcia
do consumo e da comunidade de massa. Surgida com a grande imprensa moderna,
desenvolveu-se uma cultura especifica que, por principio, exclui o critério moral
em favor dos dados precisos, da imparcialidade e da objetividade. (pág.32)
Em outros termos, os princípios da neutralidade e da
objetividade desbancaram as lições de moral. O informe televisivo acentuou mais
ainda essa dimensão pós-moralizadora. (pág.32)
A primazia dos fatos sobre os juízos de valor é apenas
uma das facetas do pós-moralismo midiático. Em sua realidade concreta, a
informação também é uma mercadoria que se oferece, sempre em busca de uma faixa
de público mais extensa. Daí as componentes de neutralidade e sensacionalismo,
de objetividade e insólito, características marcantes da mídia envolvida numa
concorrência comercial constante. (pág.33)
A felicidade light
O conteúdo dos valores morais, sem dúvida, continua a
fazer parte de uma longa tradição religiosa; no entanto, é a forma de
moralidade social que se desvinculou do espírito de religião, mesmo quando de
inspiração laica. Deixou completamente de haver um ideal que obrigue (ou sequer
favoreça) o homem a se deixar apossar por um determinado ideal que o
transcenda: o dever entrou para o rol da livre opção! A cultura da
autodeterminação individualista tomou conta da esfera moral. A época da
felicidade narcisista não se equipara à da máxima “é proibido proibir” mas sim
a uma “moral sem obrigações nem sanções”[6].
(pág.36)
A Nova Ordem
Amorosa
O liberalismo sexual
Ao longo de meio século, cada vez mais o sexo foi sendo
dissociado das noções de mal e de pecado; uma vez que a cultura repressiva dos
sentidos se desacreditou, Eros se tornou uma das manifestações mais expressivas
do mundo do pós-dever. Em poucas décadas, os rígidos princípios da moral sexual
ficaram em estilhaços; o que era sinal característico da infâmia adquiriu, mais
ou menos, direito de cidadania; os estritos dispositivos morais se
metamorfosearam em livres opções; o sexo-pecado foi substituído pelo
sexo-prazer. (pág.37)
O movimento de libertação abarca todas as esferas da
vida sexual, mas em nenhuma parte é tão profundo quanto no que se refere à
heterossexualidade adulta. (pág.37)
Comedimento sexual, assédio sexual
Tenhamos em mente que a extinção da cultura do dever e o
enaltecimento social dos direitos subjetivos à vida livre e consumada não
induzem nem um pouco à total liberdade orgiástica. O desenvolvimento do
erotismo se opera sempre dentro de limites estritos: é bem mais alardeado que
praticado, bem mais estável que inconstante, bem mais contido que
paroxístico... “Liberdades particulares, ordem pública”: no contexto de nossa
sociedade liberta das restrições ao apetite carnal, as idiossincrasias
individuais, a heterogeneidade das inclinações pessoais, a preocupação com a
natureza das relações amorosas, com a comunicação, com a segurança efetiva
constituem elementos aptos a recriar uma nova forma – sem dúvida, complexa e
aberta – de regulamentação social dos prazeres, embora se encontre nos
antípodas da libertinagem. As obrigações e interdições ficaram encobertas,
estipulou-se um novo equilíbrio erótico coletivo: quanto maiores as liberdades
sexuais, tanto menor a incidência social de excessos libidinosos. (pág.41)
A sensibilidade pós-moralista não é permissiva, mas, ao
contrário, vem seguida de uma veemente exigência de respeito à proteção da
dignidade feminina. (pág.42)
Corresponderia a uma visão equivocada identificar a expansão
social dos direitos individuais à permissividade desenfreada, à devassidão dos
sentidos, às anomalias sexuais em sua brutal porfia. Com efeito, o
neo-individualismo atua no contexto de um Eros civilizado, consistente numa
rígida censura das formas de comportamento e do vocabulário masculinos.
(pág.44)
A fidelidade sem a virtude
O individualismo qualitativo toma o lugar do
individualismo quantitativo, do “fantasioso devaneio” anterior, pois o que
almejamos agora não é tanto a liberdade – esta, já temos! – e sim a máxima
qualidade nas relações íntimas. Ora, hoje a excelência no relacional se mede
pela autenticidade nos afetos, pelo respeito à pessoa, pela doação inteira dos
seres, mesmo que não seja para sempre. Em última análise: tudo, mas não sempre.
(pág.47)
A era da autonomia individualista também é a da
desestabilização generalizada, causa de estresse e de ansiedade crônica. O
engrandecimento da fidelidade vai ao encontro dessa civilização geradora de
angústia, e representa um fator de identificação pessoal em meio a um panorama
de poluição sonora, agitação e insegurança. Na base do valor atribuído à
fidelidade encontra-se fragilidade narcisista contemporânea, o desejo mais ou
menos implícito de conseguir uma identidade própria e certa estabilidade, a
esperança de ter uma vida íntima posta à margem das turbulências do mundo.
Simultaneamente, o triunfo da fidelidade caracteriza o
desejo de esquivar-se das conseqüências do processo de isolamento vigente.
Quanto maiores as possibilidades de escolha, maior é a fragmentação social;
quanto maior a autonomia subjetiva, tanto mais complexo, exigente e difícil é o
relacionamento pessoal. A preocupação obsessiva em torno do individualismo
narcisista tem muito mais a ver com o déficit relacional, a solidão, a incompreensão
do que com o próprio sexo. Fidelidade como um ideal: o que afirmamos a respeito
se coaduna com a angústia da divisão das consciências, com a aspiração à
transparência e à comunicação intrapessoal... Paradoxo: quanto mais Narciso se
retrai sobre si, tanto mais almeja uma vida compartilhada a dois. (pág.48 e 49)
3.
Busca moral individual desesperançada
A autonomia moderna da ética fez da pessoa humana o
valor primordial, cabendo a cada indivíduo a obrigação incondicional de
respeitar em si próprio a natureza humana, não agir contra os fins de sua
própria natureza e não se despojar de sua dignidade inata. Para além do
universo especificamente religioso, a moral individual foi objeto de uma
glorificação sistemática, principalmente no âmbito do ensino laico. (pág.60)
Escolher a Morte?
O suicídio e a culpa
Durante muito tempo, entre as prescrições da moral
individual, a supremacia do dever de preservar a vida figurou sempre como algo
inconteste. Como as obrigações perante si mesmo e perante a sociedade impunham
que o homem respeitasse sua própria vida, só se podia conceber o suicídio como
um ato indigno. O processo moderno de laicização dos valores, embora sem romper
por inteiro com a tradição religiosa de condenação do suicídio, alterou-lhe a
fundamentação: de violação dos deveres do homem para com Deus, transformou-se
em direito social e em erro moral no tocante à própria pessoa. (pág.62 e 63)
Grosso modo, o suicídio ficou isento da idéia do lastro
de culpa; nos diversos ambientes, já não tem conotação de algo imoral, uma vez
que se metamorfoseou em drama psicológico e em tragédia íntima. Desde que o ato
de autodestruição não desperta mais a condenação geral, a conservação do
próprio ser deixou ser vista como um dever absoluto para consigo. Em outras
palavras, o suicídio é uma tragédia de ordem pessoal, não é mais o
descumprimento de uma obrigação moral; ele suscita mais propriamente uma
interrogação do que uma condenação, mais compaixão do que rejeição. (pág.63 e
64)
O enfraquecimento da noção religiosa, a crescente
legitimação dos valores da liberdade pessoal, a generalização da chamada
cultura psicológica atuaram concomitantemente no sentido de privar de um
“sentido imoral intrínseco” a morte voluntária. Enquanto a era moralista
estigmatizava o suicídio como uma injúria ao dever individual e social, a era
pós-moralista discerne aí o sinal da desesperança extrema, uma manifestação
depressiva, a conseqüência de uma falta de espírito comunicativo e afetivo.
(pág.64)
O direito a uma morte tranqüila
Na situação atual, o movimento em favor da legalização
da eutanásia está longe de gozar de uma aceitação generalizada. A Igreja
Católica e o Conselho da Ordem se colocam oficialmente contra toda modificação
legislativa. (pág.66)
Escolher o
Próprio Corpo?
Paralelamente ao processo de legitimação social da
eutanásia-libertação, podemos atestar um conjunto de transformações relativas à
natureza clássica dos princípios éticos que comandam cada pessoa em relação a
seu próprio corpo. Mudança de sexo, transformação do corpo em objeto de consumo
e produção... eis outras tantas manifestações que indicam que os deveres
tradicionais estão perdendo força. De modo concomitante, o direito à
autodeterminação subjetiva e o direito individualista à livre utilização do corpo
obtêm aceitação crescente. (pág.70)
Mercado corporal e propriedade de si
A ampliação do direito individualista de dispor
livremente de seu próprio corpo e o esmaecimento dos deveres para consigo se
verificarem também, de forma típica, no recente fenômeno dos chamados “ventres
de aluguel”. Em certo número de países, com efeito, em nome do direito de livre
utilização do corpo, legitimou-se a prática de a mulher “alugar” seu útero para
gerar filhos, em troca de remuneração. Aqui e agora, parcelas da opinião
pública já não se revoltam contra essa operação, sendo tal procedimento
admitido hoje pelo ordenamento jurídico de várias nações. (pág.73)
Não é exato afirmar que a era neo-individualista caminha
para a anarquia moral. Ainda que se promova o tráfico de órgãos, nem por isso
tal prática deixa de ser positivamente ilegítima e vista como desumana pela
opinião pública das nações democráticas. Não obstante algumas poucas concessões
no que se refere a alguns aspectos do comércio do corpo, na realidade nem tudo é
moralmente aceito – restrições, barreiras, instrumentos de defesa são exigidos
pela consciência moral comum. A ampliação do direito de dispor de seu corpo não
conduz à pulverização de todas as proibições éticas. (pág.76)
Depois da vontade, a mobilização
Assim como a dissolução da moral individual corresponde
à segunda revolução individualista, também sua apoteose histórica veio em
seguida ao primeiro momento histórico do individualismo democrático, de índole
rígida e disciplinar. O culto dos deveres em relação a si foi uma expressão do
projeto moderno de desvinculação do homem da heteronímia religiosa e
tradicionalista, bem como do anelo de estabelecer regras morais imperativas em
consonância com o ideal de uma estrita autonomia humana. Indissociável do processo
histórico de edificação da auto-suficiência terrestre, a sagração dos deveres
individuais foi igualmente a sagração do valor fundamental atribuído pelos
modernos à formação da vontade, numa época em que isso foi tido como fato
gerador de anarquia das tendências, de dissipação das mentes, de
enfraquecimento do fluxo vital. Liberais e tradicionalistas, progressistas e
conservadores compartilham em larga medida esse mesmo diagnostico alarmista
sobre o novo gênero de “homem contemporâneo”, todo ele feito de “astenia da
vontade”, de laisser-aller, de condutas deléticas. (pág.10 e 101)
O ofuscamento da moral individual, que hoje
presenciamos, tem, precisamente o significado de saída da era de sacralização
do puro dever. Não que isso dizer que a vontade ou o esforço tenham perdido a
credibilidade social, mas sim que já deixamos de acreditar numa rigorosa
educação disciplinar da vontade. Já não será mediante a crença nos deveres
superiores em relação nós mesmos que poderemos bonificar nossas energias, e sim
mudando a natureza do trabalho e as relações humanas na empresa. Ao contrário
da antiga e firme disposição da vontade e regularidade dos comportamentos, hoje
damos atenção prioritária à flexibilidade e à autonomia criadoras. As formas
austeras de pedagogia da vontade perderam terreno para as pedagogias
comunicacionais da iniciativa, da autonomia, do “desenvolvimento pessoal”. Já
não damos tanta importância ao esforço penoso, à constância, à obediência
categórica, mas à implicação de si próprio e à capacidade de se formar.
O homem multifacetado, disposto a se reciclar, a se
adaptar e a inovar, tomou o lugar do homem “energético em face de si”. No mundo
da incerteza e da complexidade, é necessário que haja indivíduos de escala e
dimensão variadas, inteiramente dados à mudança e à comunicação. A imposição
dos deveres em relação a si, almejando, entre outras coisas, promover o
indivíduo de vontade férrea, regular, disciplinado, deixou de corresponder às
necessidades da sociedade pós-indutrial. Os valores de autonomia
individualista, o hedonismo do consumo de massa e, mais recentemente, a
concorrência econômica e as novas exigências da organização do trabalho,
interagiram no sentido de criar uma cultura em que o desempenho individual se
acha por toda parte, enquanto os deveres em relação si não aparecem em lugar nenhum. (pág.102 e
103)
4.
As metamorfoses da virtude
Paralelamente à depreciação social dos deveres
individuais, os ambientes pós-modernos também deixaram de acreditar, em larga
medida, no imperativo incondicional de honrar os deveres da moral
interindividual. Raros são hoje os locais e circunstâncias em que palpita o
sentido de consagrar sua vida ao próximo. Enquanto as injunções categóricas
para a prática do Bem são suplantadas pelas máximas do amor a si, os valores
altruístas deixaram de ser axiomáticos aos olhos dos indivíduos e das famílias.
(pág.104)
Embora a ética tenha readquirido foros de legitimidade,
não houve uma reinstalação da antiga e sólida moral de nossos antepassados no
cerne da vida social, mas apenas a emergência de uma regulamentação ética de um
gênero inusitado. A própria efervescência do zelo caritativo e humanitário
constitui uma forma de exteriorização do obscurecimento do senso do dever, pois
é sob a roupagem da velha moral que de fato se insere o sistema pós-moralista
de funcionamento social. Aquilo que muito impropriamente se denomina de
“retorno da moral” serve apenas para acelerar a saída da época moralista das
democracias, já que se trata do estabelecimento de uma “moral sem obrigações
nem sanções”, segundo as aspirações da massa, que se mostra inclinada por um
individualismo-hedonista democrático. (pág.105)
O Altruísmo
Indolor
A moral do ideal altruísta
A época pós-moralista é uma fase na qual a exigência de
elevação moral caiu no descrédito, e, mesmo no método de educação ministrado às
crianças, a transmissão dos princípios morais de ordem superior passou a
constituir apenas uma meta secundária. (pág.106)
Ao mesmo tempo em que, de todos os lados, se ergue o
clamor de angústia pela degenerescência moral, a época atual renegou a fé no
imperativo de viver para o próximo, no ideal preponderante de lhe prestar
serviço. O indivíduo contemporâneo não é mais egoísta que em outras eras, mas o
homem hodierno – despudoradamente agora – não mais titubeia em pôr a nu o
caráter individualista de suas preferências. A novidade está precisamente
nisto: pensar só em si não é mais tido como algo imoral. (pág.107)
A cultura pós-moralista exerce sua influência
manifestamente em sentido oposto: supervalorizava a legitimidade dos direitos
subjetivos e, correlatamente, solapa a noção do postulado da abnegação total. O
espírito de sacrifício, o ideal de dar precedência aos outros, são valores que
ficaram desacreditados. Hipertrofia do direito de cada qual viver só para si,
nenhuma obrigação de se dedicar aos outros... Francamente falando, é esta a
formula do individualismo consumado. (pág.108)
Uma ética minimalista
O individualismo contemporâneo não está em oposição
antagônica com as obras de beneficência, mas só com o ideal de se doar a si
mesmo. Há um desejo de ajudar os outros, mas sem se comprometer em excesso,
doando a si mesmo em demasia. Generosidade, vá lá, contanto que seja algo fácil
e distante, sem ligação com esta ou aquela forma superior de renúncia. Somos
tendentes à solidariedade, desde que não nos envolva por completo. (pág.109)
A Benevolência
Midiática
A emoção e o Show
Quanto mais se depaupera a realidade do dever, mais
consumimos generosidade; quanto mais os valores individuais ganham terreno,
mais proliferam e alcançam recordes de audiência as encenações midiáticas das
boas causas. A era pós-moralista não tem o sentido de uma recusa do referencial
ético, mas de uma superexposição midiática dos valores, isto é, de uma
reciclagem destes nas leis do espetáculo da comunicação de massa. Extingue-se o
sortilégio do dever rigorista, começa o reino encantado dos shows midiáticos
interativos de massa. Desponta uma nova era que, ao embaralhar as conexões
tradicionais de valores, leve à co-extensão dos conceitos de espírito generoso
e marketing, ética e sedução, ideal e personalização. (pág.110)
Moral do sentimento e mídia
Esses movimentos humanitários já não prescrevem a adoção
de uma forma de bem incondicional, mas simplesmente geram imagens, motivações,
periodicidades calculadas. Os meios de comunicação não desempenham o mesmo
papel que as instâncias tradicionais da moral; quer dizer, não dão origem a uma
consciência sistemática, compenetrada em relação ao deveres, mas apenas
“gerenciam” a opinião social em doses intermitentes e põem em evidência, de
modo seletivo, alguns “produtos” receptores. Essa atitude engendra delicados
problemas éticos, por exemplo: por que focalizar com maior destaque determinado
assunto, em detrimento de outro? Será moralmente justificável que, só por causa
de uma inusitada cobertura midiática, um certo tipo de infortúnio seja objeto
de uma maior atenção geral, em detrimento de outras realidades (não menos
prementes), às quais, entretanto, a mídia resolveu não conceder o mesmo
destaque? Os órgãos midiáticos desencadeiam grandes ímpetos de solidariedade;
porém, de forma correlata, descomprometem os indivíduos. Há casos de
associações cujos prospectos de publicidade são devolvidos pelos destinatários,
que alegam já haver contribuído para a campanha em âmbito nacional. (pág.114)
Que Tolerância?
O pós-niilismo
É grande a tentação de assimilar a cultura do pós-dever
com o grau zero de valores, isto é, com a apoteose do niilismo moderno.
(pág.122)
É um equívoco equiparar o crepúsculo do dever ao cinismo
e ao vazio dos valores. Para além da saturação ou desestabilização
incontestável de um certo número de referências, a sociedade atual vai
reconstruindo um núcleo sólido de valores compartilhados, os quais se apóiam
num consenso de valores éticos de base. (pág.123)
As ideologias da globalização perderam sua
credibilidade, mas não as exigências morais mínimas enquanto critérios
indispensáveis para a vida social e democrática. Os crimes de sangue, a
escravidão, a crueldade, o estupro, as sevícias psicológicas e físicas, eis os
muitos delitos que, mais do que nunca, provocam indignação coletiva. (pág.123)
A democracia contemporânea não professa o niilismo, pois
a desregulamentação pós-moralista é contida em limites escritos. Por maior que
tenha sido o abalo histórico suscitado pelo “fim do ciclo de dever”, a longa
continuidade da tradição moral sobrepuja os danos da descontinuidade – o senso
de indignação moral não está morto. O desaparecimento da fundamentação
metafísica da moral de nenhum modo apressou o descrédito dessa mesma moral.
Aliás, a moral deixou de ser estigmatizada como logro e mentira, não se pensa
mais em derrubá-la pela “transvaloração dos valores” ou pela revolução. Os
direitos humanos, sim, é que foram alcançados à condição de um absoluto...
Quanto menos se exorta em favor das imposições extremas, mais se consolida o
ecumenismo da ética democrática; quanto mais se discute a ética, mais se
fortalece a legitimidade social da seiva comum dos valores humanistas. (pág.124)
Tolerância e extremismo
Enquanto virtude ética, a tolerância é vista mais como
uma ampla ruptura em relação aos sistemas de forte densidade conceitual do que
como idéia de obrigação a ser cumprida. A tolerância adquire uma maior
fundamentação social não tanto pelo fortalecimento da compreensão dos deveres
de cada um perante o próximo, mas em razão de uma nova dimensão cultural que
rejeita os grandes projetos coletivos, exaurindo de sentido o moralismo
autoritário, diluindo o conteúdo das discussões ideológicas, políticas e
religiosas de toda conotação de valor absoluto, orientado cada vez mais os
indivíduos rumo à sua própria meta de realização pessoal. A tolerância de massa
é uma virtude indolor, seu crédito se sustenta pelo fluxo das ideologias ascéticas,
pelo declínio dos deveres relativos a elucidação, compenetração e conversão das
almas. Num ambiente social em que a prioridade de cada um está voltada para si
mesmo, todo indivíduo pode pensar e agir livremente, desde que não cause dano a
terceiros. Nossa moralidade é pós-moralista: exprime mais uma indiferença pelo
outro do que um preceito da razão; mais um ímpeto de introversão individualista
do qual um ideal que se dirige ao outro; mais um direito subjetivo do que um
dever categórico. Fixemos mais uma vez o paradoxo na memória: no momento em que
impera o culto do ego é que os valores de tolerância triunfam; no momento em
que perece a escola do dever, o ideal do respeito aos outros atinge sua
consagração suprema. A marcha da moral tem razões que a razão moral desconhece.
(pág.126 e 127)
O “retorno do religioso” muitas vezes é entendido como
um outro indício do viés intolerante de nossa sociedade democrática. (pág.130)
Nos ambientes democráticos abertos, movimentos
religiosos radicais ressurgem, mas de forma minoritária. Tolerância das massas,
refratárias às manifestações violentas e autoritárias, extremismo dogmático
marginal... O mais significativo, porém, é o caráter fortemente estanque
existente entre os dois pólos, quer dizer, a impenetrabilidade das maiores
silenciosas às investidas dos radicais. Doravante, os movimentos radicais se
mostram incapazes de abarcar o coletivo, de trazer atrás de si as massas,
ligadas aos valores de autonomia e de prudência. As porções periféricas
extremadas desfraldam vistosas suas bandeiras, mas em profundidade isso pouco
repercute. Não há mais corrente mística de nenhuma natureza em condições de
desviar o curso da sociedade civil de sua orientação global. Por todos os
lados, os extremistas conseguem semear a perturbação no seio do público, mas
fracassam na tentativa de subverter o ethos do individualismo tranqüilo,
amplamente tolerado pela grande maioria. (pág.133)
5.
A ordem moral ou Como se livrar desse estorvo?
Não há como ter dúvida. Presenciamos, de fato, um amplo
realinhamento cultural, uma reafirmação de referenciais, tão intimamente
marcada com o timbre do conservadorismo, que alguns não hesitam em estigmatizar
os dias presentes, identificando-os com a pecha do suposto mal que receiam
haver ressurgido. Por isso, atribuem a esse conjunto de transformações o
qualificativo de retorno da ordem moral. (pág.134)
Família Querida
A família ao gosto do freguês
Mais uma vez, parece supérfluo salientar que essa
“reabilitação” da família em nada condiz com a recomposição dos tradicionais
deveres prescritos pela moral burguesa e religiosa. As sociedades
contemporâneas têm um grande apreço pela família, mas não têm quase nenhum pelo
elenco de norma incondicionais. (pág.137)
Longe de ser um fim em si mesma, a família tornou-se uma
prótese individualista, uma instituição na qual direitos e aspirações
subjetivas preponderam sobre as obrigações categóricas. Durante muito tempo, os
valores da autonomia individual estiveram sujeitos à ordem da instituição
familiar. Essa época foi superada. O extraordinário crescimento dos direitos
individualistas depreciou tanto as obrigações morais do casamento quanto a da
prole numerosa. (pág.139)
Direitos dos filhos, deveres dos pais
O processo histórico que assegura a supremacia dos
direitos individuais sobre os deveres abrange até a esfera do respeito e
devotamento filiais. Sem dúvida nenhuma, o quarto mandamento do Delcálogo ainda
goza de ampla aceitação. Em cada dez europeus, seis admitem que os filhos devem
prestar respeito e obediência aos pais, independentemente de suas qualidades
entre os ideais apregoados e a realidade social existente. Nos dias atuais,
tanto a educação, em sua vertente liberal-psicológica, como os valores da
liberdade individual concorrem para amesquinhar o sentimento dos deveres
filiais. Atualmente, os filhos já não são ensinados a honrar os pais, mas a
buscar por vontade própria a felicidade, a procurar uma vida independente, a
escolher um rumo livre e as amizades de sua preferência. (pág.141)
Trabalhar Para Si
Da moral do trabalho ao gerenciamento da excelência
Cada vez menos a idéia de trabalho vem conjugada com a
de um dever individual e coletivo; já não se fazem as grandes exortações sobre
a obrigação de trabalhar. Não se exaltam mais as virtudes da paciência e
perseverança, quase não mais se ensina a coragem do dia-a-dia nem o imperativo
moral de ser útil à coletividade ou a obrigação social de realizar “sua
microscopia parcela de um trabalho conjunto”, por menor que seja o resultado
alcançado. O advento da sociedade de consumo de massa e suas normas relativas à
felicidade individualista tiveram nisso um papel fundamental. Em outras
palavras, o evangelho do trabalho foi preterido em favor da valorização social
do bem-estar, do lazer e do tempo livre; as aspirações coletivas se deslocaram
globalmente rumo à posse dos bens matérias, ao gozo das férias; à redução do
tempo de serviço. (pág.151)
Empresa, trabalho, vida privada
Na medida em que o trabalho se desvinculou da idéia de
dever para consigo mesmo, também se desvencilhou totalmente da idéia de
obrigação moral em face da coletividade. (pág.157)
Embora seja verdade que o trabalho perdeu o sentido de
dever moral diante da coletividade, está longe de ter deixado de ser um pólo de
motivação na existência, independentemente da força ascensional das aspirações
à felicidade particular. A esse respeito, presenciamos uma reviravolta nas
tendências que é marcantemente significativa dos novos rumos do individualismo
e, sem dúvida, de grande alcance no futuro de nossa sociedade democrática.
(pág.158)
A recusa do princípio da auto-renúncia e a exigência de
realização pessoal, após uma fase de ojeriza, levaram à revalorização da
atividade profissional em si mesma. Assim, agora, é a vida em seu conjunto – e
não mais só a vida privada – que deve tomar parte do lema “Defeito Zero”. A
nova fronteira do individualismo está na qualidade intrínseca do trabalho, no
reconhecimento do método individual, no incentivo a si próprio, mesmo que seja
no interior de uma empresa. A aspiração ao “homem total”, à “vida febricitante”,
esvaziou-se de seu conteúdo revolucionário, mas não desapareceu por inteiro. No
re-investimento contemporâneo no mundo do trabalho, é sempre a busca da
realização pessoal que está em jogo. A dinâmica do auto-absorção individualista,
portanto, não está em involução, mas passou da esfera privada para a esfera
profissional. Ao menos parcialmente, a era individualista pós-moralista se
revela auto-organizadora. O ego aparece em primeiro lugar, porém as aspirações
de autonomia e de afirmação pessoal vêm conjugadas para legitimar novamente a
atividade do trabalho, para injetar uma renovada motivação a despeito de todo
panegírico do dever social. (pág.160 e 161)
Cidadãos, ainda
um esforço
O desgaste da cidadania
Doravante, toda a esfera da cidadania se insere no
aggiornamento que consagra a preponderância dos direitos individuais sobre as
obrigações coletivas. (pág.179)
6.
A renovação ética
O princípio de responsabilidade emerge como a própria
essência da cultura pós-moralista. Se, de um lado, os chamamentos à
responsabilidade não podem ser desvinculados da idéia de dever moral, de outro,
têm isso de específico: em parte alguma conclamam à auto-renúncia sobre o altar
dos ideais superiores. Nossa ética de responsabilidade é uma ética “razoável”
inspirada não na imposição do desprendimento em relação aos fins pessoais, mas
num esforço de harmonização dos valores com as conveniências particulares, de
harmonização do princípio dos direitos individuais com as coerções da vida social,
econômica e científica. O intento é tão-somente compensar a ampliação da lógica
individualista pela legitimação de novas obrigações coletivas, visando à
obtenção de um ponto de equilíbrio entre o dia de hoje e o de amanhã, entre o
bem-estar individual e a proteção ao meio ambiente,e entre o progresso
científico e o humanismo, entre os direitos dos animais, entre a liberdade de
imprensa e o respeito ao direito das pessoas, entre a eficácia e a justiça.
Não é, em nenhuma hipótese, a cultura heróica da abnegação
pessoal que reassume o papel central; a responsabilidade pós-moralista é o
dever desonerado da noção de sacrifício. A ética da responsabilidade não
prescinde dos valores individualistas, mas expressa o esgotamento da cultura do
“é proibido proibir”[7].
Concomitantemente, porém, transparece a necessidade de estabelecer limites e
salvaguardas sócias, de estruturar socialmente o processo de autodeterminação
pessoal, que entregue a si mesmo, poria em risco a segurança, a liberdade e a
competitividade nos mais diversos contextos democráticos. É, pois, com a
recomposição da cultura individualista que nos deparamos. Em outras palavras,
embora o ideal de autodeterminação nunca tenha gozado de tão alto conceito como
agora, impõe-se, pela mesma razão, a necessidade de um contrapeso à tendência
individualista de eximir-se de qualquer obrigação coletiva, de não prever o
futuro, detendo-se meramente na consideração das paixões e interesses em
conflito no momento atual. (pág.186 e 187)
O ressurgimento ético é fruto da crise em nossa
representação do futuro, bem como do enfraquecimento da fé nas promessas de um
racionalismo tecnicista e positivista. (pág.188)
Mais do que nunca, a ética se afigura necessária mais do
que nunca se discernem seus contornos razoáveis e, por vezes, os riscos que lhe
são inerentes. (pág.189)
Não estamos precisando de exortação à prática da virtude
integral, mas de uma inteligência responsável e de um humanismo aplicado,
únicos meios capazes de enfrentar os desafios de nossa época. Em termos puramente
filosóficos, seria impossível superar a oposição entre moral e ética,
imperativo categórico e imperativo hipotético, boa vontade e ética do proveito
pessoal. Mas de que modo os “novos” encantamentos pela generosidade
desinteressada[8]
poderão dar sua contribuição (ainda que diminuta) para operar transformações em
nosso universo tecnológico, em nossas formas de organização social, em nossos
sistemas de informação e comunicação? Em que direção nos poderão conduzir tais
prédicas de caráter absoluto? Provavelmente, à desmoralização, ao desalento no
que concerne à entrada em cena das diversas formas de inovação institucional,
que, inevitavelmente, deverão estar em consonância com a lógica do mercado e do
lucro. Por isso, quando erguemos uma barreira intransponível entre moralidade e
eficácia, entre dever e interesse, certamente nos erigimos como um paradigma de
virtude. (pág.190)
Existem riscos inerentes à lógica utilitarista; contudo
merece um crédito de confiança muitíssimo maior a doação de uma ética realista
conjugada ao interesse e ao respeito, ao presente e ao futuro, do que a adoção
de um idealismo moral imperativo e sublime, mas totalmente inviável na ordem
prática. (pág.191)
A Consciência
Verde
A cidadania planetária
A idéia de que a Terra está em perigo de morte impôs uma
nova dimensão de responsabilidade, uma concepção inédita das obrigações
humanas, que vai além da ética tradicional, circunscrita às relações
inter-humanas imediatas. Agora, a responsabilidade humana recai também sobre as
coisas extrínsecas ao homem, englobando a totalidade de dimensão da biosfera,
pois o homem já é capaz de pôr em risco a vida futura no planeta. (pág.192)
Bioética e
Democracia
Uma ética dialogada
A busca de um justo equilíbrio entre idealismo e
realismo é um ideal deontológico. Na ordem concreta dos fatos, porém, não
haverá quem ignore que, sob a pressão da demanda experimental e dos interesses
científicos em jogo, sob a pressão da demanda experimental e dos interesses
científicos em jogo, algumas vezes poderá acontecer que apenas o ponto de vista
da eficácia venha a prevalecer, ainda que em detrimento do consentimento
consciente e à custa de altos riscos para os indivíduos. Outras vezes, em
sentido contrário, predominará o ponto de vista “absolutista”, quando, em nome
dos sentimentos nobres e do devotamento às boas causas, a deontologia ou a
norma legal houveram por bem coibir o financiamento a quaisquer experiências
congêneres. Põe-se a questão: uma ética da responsabilidade eficaz não deveria,
mais propriamente, tomar o lugar da transparência financeira nas exigências
mais ou menos claras de participação desinteressada na pesquisa? (pág.202)
A Mídia Em Sua
Alma E Consciência
A ética em evidência
A demanda ética não está circunscrita apenas aos campos
de atividade que exigem uma responsabilidade a longo prazo. Ela se concretiza
também na esfera representada pelo presente efêmero e espetaculoso, isto é,
mídia. Assim como os novos poderes da ciência técnica acarretaram a exigência
de uma ética futurista, do mesmo modo o poder decuplicado da mídia e os desvios
da imprensa reavivaram a necessidade de uma ética adaptada ao presente.
(pág.206 e 207)
A vontade social de uma ética da informação corresponde
à configuração dos vários modelos de sociedade pós-moderna: prioridade voltada
para as necessidades do presente e ausência de grandes aspirações coletivas e
históricas. A demanda de uma informação responsável caminha paralelamente à
falência de todas as religiões seculares. Com efeito, quanto menor a crença num
futuro radiante, mais se tonifica a importância da fiel observância dos
acontecimentos do momento presente. Quanto menor a presença de ideologias
messiânicas com a pretensão de dar uma explicação de conjunto ao mundo, mais
avulta a atenção pela coleta, seleção e exposição dos fatos pontuais. Quanto
menos se detêm os arcanos da história, mais se impõe o valor especifico da
imparcialidade na exposição quotidiana da informação. Quando as grandes
confrontações sobre o sentido da história estão superadas, os debates acerca da
responsabilidade dos veículos informativos e da cidadania midiática passam a
ter um caráter preponderante. O ressurgimento da aspiração ética na mídia está
em consonância com nossa época, na qual predomina o culto do momento atual, uma
vez que a dimensão social do porvir histórico definhou; prevalecem apenas os
atos e os pequenos episódios do dia-a-dia, cuja dimensão limitada nos impede de
conceber se será possível um futuro de melhor qualidade do que o presente.
(pág.211 e 212)
Doravante, a lógica da “comunicação” suplanta a da
informação; o dado imperativo é o efeito de contato e de presença maciça, de
hiper-realidade e fulgor instantâneo. (pág.213)
7.
O casamento da ética com os negócios
Também as ciências sociais e econômicas começam a se
preocupar com as questões morais, embora esses campos de atividade
habitualmente se orientem pelo sentido de objetividade técnica. Alguns não
hesitam em afirmar que, como os estudos referentes à empresa devem comportar
apreciações normativas, é necessário o empenho em demonstrar as conseqüências
morais das escolhas e iniciativas das organizações[9].
(pág.223)
A Empresa Em
Busca De Uma Alma
Códigos de ética e projetos de empresa
A época pós-moralista confunde-se, pois, com a difusão
universal de uma moda que absorveu a própria dimensão moral e aparelhou os
valores com seminários de desenvolvimento e testes de ética, incentivando a
“modética” e os eticistas profissionais até no recinto das empresas. Embora, no
caso, o charme estético das aparências quase não exerça atrativos, a lógica do
encantamento desdobra-se sempre sob o rótulo do novo, da identidade, da busca
de si mesmo. Num período de supervalorização da moda e de hiper-individualismo,
no qual todos os pontos de referência estabelecidos estão emaranhados, não há o
que não possa ressurgir (tradição, sagrado, moral) à guisa de instrumento de
busca pessoal para um diretor de empresa tomado de avidez pelo sentido das
coisas. O sucesso da moral nos negócios não deve ser creditado apenas às
promessas de eficiência, mas também a uma cultura desestabilizada num ritmo
desenfreado de busca de renovação que recicla a tradição em novidade,
metamorfoseando os ideais em meios de concorrência e em vetores de afirmação
pessoal. A ética dos negócios estigmatiza o individualismo contemporâneo, mas
ao mesmo tempo incorpora alguns de seus elementos pós-modernos. Atenção
concentrada no sentido das coisas, atenção concentrada na eficiência, atenção
concentrada em si: doravante, esses dados se interpenetram. Com efeito, o
sincretismo New Age, além de esotérico, é simultaneamente ético: a excelência
pós-moderna não é só tecnocientífica, mas almeja obter um sentido. (pág.229 e
230)
[1] Maurice Pellisson, “La sécularisation de la
morale au XVII siécle”, La Révolution françáise, t. XLV, nov. 1903, p.385-408. Essa matéria será desenvolvida detalhadamente por Jacques Domenech,
L’éthique dês Lumièes, Paris, Vrin, 1989.
[2] René Rémond, “Evolution de la notion de laïcité entre 1919 et
1939”, Cahiers d’histoire, t. IV, 1959.
[3] Uma coisa é verificar a existência de um movimento de emancipação
da moral em face das crenças religiosas; outra, bem diversa, seria admitir, a
exemplo de seus promotores, que a moral passa encontrar sustento unicamente na
razão, universal e invariável, fora de toda e qualquer raiz cristã. Nisso
reside o que se poderia chamar de ilusão original do espírito laico. Esse
aspecto será fortemente frisado, de modo especial por Nietzsche, que colocará
os valores morais na continuidade milenar da mensagem cristã.
[4] Jen-Louis Flandrin, Lê sexe et l’Occident, Paris, Seuil, 1981.
[5] Jean Baubérot, “L’action chrérienne sociale du Pasteur Élie
Gounelle à la ‘Solidarité de Roubaix’ (1898-1907)”, Bulletin de la Sociéte de
l’histoire du prostetantisme français, abril-maio-junho de 1974, p. 248-251.
[6] Para uma abordagem introdutória e estritamente filosófica do
assunto, remetemos ao consagrado estudo de Jean-Marie Guyau, Esquise d’une
morale sans obligation ni sanction, Paris, 1885.
[7] Alusão a uma das máximas da revolução estudantil de maio de 1968,
na Sorbonne de Paris. (N.T.)
[8] Alain Etchegoyen, La valse des éthiques, Paris, François Bourin,
1991.
[9] Willian C. Frederick, “Toward CSR 3: Why
Ethical Analisys is Indispensable and Unavoidable in Corporate Affairs”,
Califórnia Managment Review, vol. XXVIII, n. 2, 1986, p. 126-141.
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