Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Ano: 2003 – (Coleção tópicos)
Síntese: Paolo Cugini
Primeira Parte
Capítulo I
Os Devaneios Da Intimidade Material
I
Em Lês secrets de la maturité [Os segredos da maturidade], Hans Carossa escreve (trad. Fr., p. 104): “O homem é a única criatura da terra que tem vontade de olhar para o interior de outra”. A vontade de olhar para o interior das coisas torna a visão aguçada, a visão penetrante. Transforma a visão numa violência. Ela detecta a falha, a fenda, a fissura pela qual se pode violar o segredo das coisas ocultas. A partir dessa vontade de olhar para o interior das coisas, de olhar o que não se vê, o que não se deve ver, formam-se estranhos devaneios tensos, devaneios que formam um vinco entre as sobrancelhas. (pág. 7)
III
O interior do objeto pequeno é grande. (pág. 11 e 12)
Assim que vamos sonhar ou pensar no mundo da pequenez, tudo engrandece. Os fenômenos do infinitamente pequenos assumem um aspecto cósmico. (pág.12)
Vemos assim desenvolver-se uma teoria do meteoro minúsculo que mostra bem a potência das analogias imaginárias. As forças no infinitamente pequeno são sempre sonhadas como cataclismos. (pág.12)
Se consentimos dar uma realidade primária à imagem, se não limitamos as imagens a simples expressões, sentimos subitamente que o interior da noz possui o valor de uma felicidade primitiva. Viveríamos felizes se reencontrássemos aí os sonhos primitivos da felicidade, da intimidade bem protegida. Decerto a felicidade é expansiva, tem necessidade de expansão. Mas também tem necessidade de concentração, de intimidade. Assim, quando a perdemos, quando a vida proporcionou “maus sonhos”, sentimos saudade da intimidade da felicidade perdida. Os primeiros devaneios ligados à imagem íntima do objeto são devaneios de felicidade. Toda intimidade objetiva seguida em um devaneio natural é um germe de felicidade.
Trata-se de uma grande felicidade porque é uma felicidade oculta. Todo interior é protegido por um pudor. (pág.13 e 14)
Tanto para o bem como para o mal, o interior um tanto pueril das coisas é sempre um interior bem arrumado. (pág.14)
Parece ao sonhador que, quanto menores os seres, mais ativas são as funções. Vivendo num espaço pequeno, eles vivem um tempo rápido. Fechando-se o onirismo, ele é dinamizado. (pág.15)
IV
Após essa contradição geométrica do pequeno que é intimamente grande, muitas outras contradições se manifestam no devaneio da intimidade. Para um certo tipo de devaneio, parece que o interior é automaticamente o contrário do exterior. (pág.16)
Às vezes um poeta tem tamanha confiança na imaginação dialética do leitor que apresenta apenas a primeira parte da imagem. (pág.17)
Essa perspectiva dialética do interno e do externo é por vezes uma dialética reversível de uma máscara tirada e recolocada. (pág. 18)
V
3) A terceira perspectiva de intimidade que queremos estudar é a que nos revela um interior maravilhoso, um interior esculpido e colorido com mais prodigalidade do que as mais belas flores. Tão logo a ganga é retirada, assim que o geodo é aberto, um mundo cristalino nos é revelado; a seção de um cristal bem polido revela flores, entrelaçamentos, figuras. Não se pára mais de sonhar. Essa escultura interna, esses desenhos íntimos em três dimensões, essas efígies e retratos estão ali como belezas adormecidas. Esse pancalismo em profundidade suscitou as mais diversas explicações que são outras tantas maneiras de sonhar. (pág.23)
Todo germe de ser é germe de sonhos. (pág.25)
VI
4) Ao lado desses devaneios de intimidade que multiplicam e magnificam todos os detalhes de uma estrutura, há um outro tipo de devaneios de intimidade material – o último dos quatros tipos que anunciamos – que valoriza a intimidade antes em intensidade substancial do que em figuras prodigiosamente coloridas. A intimidade descoberta é menos um estojo com muitas jóias do que um poder misterioso e contínuo, que desce, como um processo sem limite, ao infinitamente pequeno de substância. Para apresentar o nosso estudo com temas materiais, partiremos deliberadamente das relações dialéticas da cor e da tintura. Sente-se de imediato que a cor é uma sedução das superfícies, enquanto a tintura é uma verdade das profundezas. (pág.26)
VII
Em nosso estudo sobre o ar (Conclusão, parte II), já encontramos incidentalmente um devaneio da limpeza ativa, de uma limpeza conquistada contra a imundície insidiosa e profunda. É preciso que todo valor, a limpeza como os demais, seja conquistado de um anti-valor, sem o que não se vivencia a valorização . Então, como já indicamos, no onirismo da limpeza ativa se desenvolve uma dialética curiosa: suja-se primeiro para limpar melhor depois. A vontade de limpar deseja um adversário à sua altura. E, para uma imaginação material dinamizada, uma substância bem suja dá mais oportunidade à ação modificadora do que uma substância simplesmente embaciada. A sujeira é um mordente que retém o agente purificador. A dona de casa prefere limpar a mancha ao encardido. Parece portanto que a imaginação da luta pela limpeza necessita de uma provocação. Essa imaginação deve excitar-se em uma cólera maligna. Com que sorriso malvado passa-se a pasta de polir no cobre da torneira. Ela é atacada com a imundície do velho esfregão sujo e gorduroso, empastado de polidor. Amargador e hostilidade acumulam-se no coração do trabalhador. (pág.32)
VIII
Evidentemente, a valorização das cores límpidas denuncia a imundície diabólica das cores embaciadas, sujas, mescladas. (pág. 35)
De qualquer maneira, a beleza de uma cor material revela-se como uma riqueza em profundidade e em intensidade. É a marca da tenacidade mineral. E, por inversão muito usual no reino da imaginação, ela é sonhada tanto mais sólida quanto mais bela for. (pág.35)
X
Um estudo complexo das imagens materiais da intimidade deveria considerar longamente todos os valores do calor oculto. Se o empreendêssemos, teríamos de retomar toda a nossa obra sobre o fogo, sublinhando melhor alguns traços que permitem falar de uma verdadeira dialética do calor e do fogo. Quando o calor e o fogo recebem suas imagens distintas, parece que tais imagens podem servir para designar uma imaginação introvertida e uma imaginação extrovertida. O fogo exterioriza-se, expande-se, mostra-se. O calor interioriza-se, concentra-se, oculta-se. Mais precisamente que o fogo, é o calor que merece o nome de a terceira dimensão, conforme a metafísica sonhadora de um Schelling. (pág.39 e 40)
O interior sonhado é cálido, jamais ardente. O calor sonhado é sempre suave, constante, regular. Pelo calor, tudo é profundo. O calor é o signo de uma profundidade, o sentido de uma profundidade. (pág.40)
XI
Às vezes uma dialética de intimidade e de expansão adquire, num grande poeta, uma forma tão suave que esquecemos a dialética do grande e do pequeno que, no entanto, é a dialética básica. Então a imaginação já não desenha, ela transcende as formas desenhadas e desenvolve com exuberância os valores da intimidade. Em suma, toda riqueza íntima aumenta ilimitadamente o espaço interior onde ela se condensa. O sonho fecha-se aí e desenvolve-se no mais paradoxal dos gozos, na mais inefável das felicidades. (pág.40)
XIII
Limitar-nos-emos a uma observação vinculada ao nosso tema específico da determinação das imagens.
Essa volta à mãe, que se apresenta como uma das mais fortes tendências para a involução psíquica, é acompanhada, ao que parece, de um recalque das imagens. Entrava-se a sedução dessa volta involutiva ao precisar-lhe as imagens. Nessa direção, com efeito, encontramos as imagens do ser adormecido, as imagens do ser de olhos fechados ou semicerrados, sempre sem vontade de ver, as próprias imagens do inconsciente estritamente cego que forma todos os seus valores sensíveis com suave calor e bem-estar. (pág.42)
Capítulo II
A Intimidade Em Conflito
I
Mas eis o paradoxo recíproco. Basta olhar – ou – imaginar – um conjunto de corpos que se agitam em todos os sentidos para que lhe atribua um número que ultrapasse em muito a realidade: a agitação é multiplicidade. (pág.46)
II
Mas vejamos a intervenção de algumas idéias e algumas imagens nesses paradoxos. Perceberemos assim quão facilmente as imagens simples e fugidias tornam-se idéias “primárias”. (pág.46)
Por exemplo, a fermentação é geralmente descrita como um movimento formigante, e é isso que a torna como que o intermediário mais indicado entre o inerte e o vivo. Por causa de sua agitação intestina a fermentação é vida. (pág.46)
Como todas as imagens fundamentais, a imagem do formigueiro pode ser valorizada e desvalorizada. Pode transmitir tanto uma imagem da atividade quanto uma imagem da agitação. (pág.47)
III
Quando a imaginação é devolvida à sua função vital que é valorizar as trocas materiais entre o homem e as coisas, quando é verdadeiramente o comentário figurado de nossa vida orgânica, então a higiene encontra naturalmente suas imagens substanciais, tanto para o bem como para o mal. A respiração jovem e forte aspira a plenos pulmões um ar que a imaginação ditosa declara puro, e, diz a filosofia da vida, “um ar dotado de vida”. Ao contrário, um peito oprimido acha o ar “pesado”, conforme a locução tantas vezes empregadas pelos poetas que desenvolveram o tema do satanismo dos maus odores . Desde então, duas substâncias, a boca e a má, estão em luta no ar. (pág.51)
V
Queríamos mostrar que o sonho de hostilidade pode adquirir um dinamismo tão íntimo que provoca, de um uma maneira paradoxal, a divisão do simples, a divisão do elemento. No interior de qualquer substância, a imaginação da cólera materializada suscita a imagem de uma contra-substância. Parece então que a substância deve se manter contra uma substância hostil, no interior resumo de seu ser. (pág.56)
A imaginação que se compraz com tais imagens de oposição radical enraíza em si a ambivalência do sadismo e do masoquismo. Sem dúvida essa ambivalência é bem conhecida dos psicanalistas. Mas eles quase só estudam o seu aspecto afetivo, as suas reações sociais. A imaginação vai mais longe; ela faz filosofia, determina um materialismo maniqueísta, em que a substância de cada coisa torna-se o lugar de uma luta renhida, de uma fermentação de hostilidade. A imaginação aborda uma ontologia da luta em que o ser se formula em um contra-si, totalizando o algoz e a vítima, um algoz que não tem tempo de saciar-se em seu sadismo, uma vítima a quem não se deixa comprazer-se em seu masoquismo. O repouso é negado para sempre. A própria matéria não tem direito a isso. Afirma-se a agitação íntima. O ser que segue tais imagens conhece então um estado dinâmico que é inseparável da embriaguez: é agitação pura. É formigueiro puro. (pág.57)
Capítulo III
A Imaginação da Qualidade Ritmanálise e Tonalização
I
Todas as descrições psicológicas relativas à imaginação partem do postulado de que as imagens reproduzem mais ou menos fielmente as sensações, e quando uma sensação detectou numa substância uma qualidade sensível, um gosto, um odor, uma sonoridade, uma cor, um polimento, uma forma arredondada, não se vê bem como a imaginação poderia ultrapassar essa lição inicial. No reino das qualidades, a imaginação deveria então limitar-se a comentários. Em razão desse postulado indiscutido, chega-se a dar ao conhecimento da qualidade um papel preponderante e durável. De fato, todo problema colocado pelas qualidades das diversas substâncias é sempre resolvido pelos metafísicos, assim como pelos psicológicos, no plano do conhecer. Mesmo quando se delineiam temas existencialistas, a qualidade conserva o ser de um conhecido, de um experimentado, de um vivido. A qualidade é aquilo que conhecemos de uma substância. Por mais que se acrescente a esse conhecimento todas as virtudes de intimidade, todo o frescor de instantaneidade, deseja-se sempre que a qualidade, ao revelar um ser, o faça conhecer. E orgulhamos-nos de nossa experiência de um instante como de um conhecimento indestrutível. Transformamo-la na base dos reconhecimentos mais seguros. Assim o gosto e suas lembranças nos foram dados para que reconheçamos nossos alimentos. E nos maravilhamos, como Proust, da deliciosa fidelidade das mais simples lembranças ligadas deste modo, em profundidade, à matéria. (pág.61 e 62)
No entanto, essas objeções tão razoáveis, tão clássicas, nos parecem desconhecer o sentido e a função de nossa adesão apaixonada às substâncias que amamos. Em suma, a imaginação, a nosso ver, inteiramente positiva e primária, deve, quanto ao tema das qualidades, defender o existencialismo de suas lições, o realismo de suas próprias, a própria novidade de suas variações. Assim, de acordo com nossas teses gerais, devemos colocar o problema do valor imaginário da qualidade. Em outras palavras, a qualidade para nós é a ocasião de tão grandes valorizações que o valor passional da qualidade não tarda a suplantar o conhecimento da qualidade. A maneira pela qual amamos uma substância, pela qual lhe enaltecemos a qualidade, manifesta uma reatividade de todo o nosso ser. A qualidade imaginada nos revela a nós mesmos como sujeito qualificante. E a prova de que o campo da imaginação abarca tudo, de que ultrapassa em muito no campo da imaginação abarca tudo, de que ultrapassa em muito o campo das qualidades percebidas, é que a reatividade do sujeito se manifesta nos aspectos mais dialeticamente opostos: a exuberância ou a concentração – o homem de mil gestos de acolhida ou o homem recolhido em seu prazer sensível.
Assim, ao abordar o problema do valor subjetivo das imagens da qualidade, devemos nos convencer de que o problema de sua significação deixa de ser o problema principal. O valor da qualidade está em nós verticalmente; ao contrário, a significação da qualidade está no contexto das sensações objetivas – horizontalmente.
Podemos então formular uma revolução copernicana da imaginação, restringindo-nos cuidadosamente ao problema psicológico das qualidades imaginadas: ao invés de buscar a qualidade no todo do objeto, como o signo profundo da substância, será preciso buscá-la na adesão total do sujeito que se envolve a fundo naquilo que imagina. (pág.63)
As sensações não são muito mais do que as causas ocasionais das imagens isoladas. A causa real do fluxo de imagens é na verdade a causa imaginada; para nos servimos da dualidade das funções que invocamos nos livros anteriores, diríamos de bom grado que a função que invocamos nos livros anteriores, diríamos de bom grado que a função do irreal é a função que dinamiza verdadeiramente o psiquismo, ao passo que a função do real é uma função de tolhimento, uma função de inibição, uma função que reduz as imagens de modo a dar-lhes um simples valor do signo. Vemos portanto que ao lado dos dados imediatos da sensação é preciso considerar as contribuições imediatas da imaginação. (pág.63)
II
Uma dialética dos valores anima a imaginação das qualidades. Imaginar uma qualidade é dar-lhe um valor que ultrapassa ou contradiz o valor sensível, o valor real. Dá-se prova de imaginação ao refinar a sensação, ao desbloquear a grosseira sensível (cores ou perfumes) para realçar os matizes, os buquês. Busca-se o outro no interior do mesmo. (pág.64)
Cumpre portanto bem distinguir em literatura entre o adjetivo que se limita a designar mais precisamente um objeto e o adjetivo que envolve a intimidade do sujeito. Quando o sujeito entrega-se por inteiro às suas imagens, ele aborda o real com uma vontade de arúspice. O sujeito vem procurar no objeto, na matéria, no elemento, advertências e conselhos. Mas essas vozes não podem ser claras. Conservam o equívoco dos oráculos. Por isso esses pequenos objetos oraculares têm necessidade de uma pequena contradição de adjetivos para nos falarem. (pág.66)
III
Quando a imaginação põe em nós a mais atenta das sensibilidades, nos damos conta de que as qualidades representam para nós mais derives do que estados. Os adjetivos qualificativos vivenciados pela imaginação – e como seriam vivenciadas de outro modo? – aproximam-se mais dos verbos que dos substanciais. Vermelho aproxima-se mais de avermelhar que de vermelhidão. O vermelho imaginado ficará escuro ou pálido, conforme o peso de onirismo das impressões imaginárias. Toda cor imaginada torna-se um matiz frágil, efêmero, inapreensível. Ela tantaliza o sonhador que quer fixá-la. (pág.68)
Aliás, em muitos aspectos, a imagem literária é uma imagem polêmica. Escrever é agradar a alguns e desagradar a muitos. A imagem literária recebe as críticas contrárias. Por um lado é tachada de banalidade, por outro de preciosidade. Ela é lançada na discórdia do bom gosto e do mau gosto. Seja na polêmica, seja mesmo na exuberância, a imagem literária é uma dialética tão viva que dialetiza o sujeito que vive todos os seus ardores. (pág.71)
Segunda Parte
Capítulo IV
A Casa Natal e a Casa Onírica
I
A casa onírica é um tema mais profundo que a casa natal. Corresponde a uma necessidade mais remota. Se a casa natal põe em nós tais fundações, é porque responde a inspirações inconsciente mais profundas – mais íntimas – que o simples cuidado de proteção, que o primeiro calor conservado, que a primeira luz protegida. A casa da lembrança, a casa natal, é construída sobre a cripta da casa onírica. Na cripta encontra-se a raiz, o apego, a profundidade, o mergulho dos sonhos. Nós nos “perdemos” nela. Há nelas um infinito. Sonhamos com ela também como com um desejo, como uma imagem que às vezes encontramos nos livros. Ao invés de sonhar com o que foi, sonhamos com o que deveria ter sido, com o que teria estabilizado para sempre nossos devaneios íntimos. (pág.77)
Quem de nós, ao caminhar pelo campo, não foi tomado pelo súbito desejo de habitar “a casa dos contraventos verdes”? Por que a página de Rousseau é tão popular, tão psicologicamente verdadeira? Nosso devaneio deseja sua casa de retiro e deseja pobre e tranqüila, isolada no pequeno vale. Esse devaneio habitante adota tudo o que o real lhe oferece, mas logo adapta a pequena morada real a um sonho arcaico. É a este sonho fundamental que chamamos a casa onírica. (pág.78)
A casa oniricamente completa é a única onde se pode viver os devaneios de intimidade em toda a sua variedade. Nela se vive só, ou a dois, ou em família, mas sobretudo só. E em nosso sonho da noite, há sempre uma casa onde vivemos só. Assim o exigem certos poderes do arquétipo da casa no qual se juntam todas as seduções da vida recolhida. Todo sonhador tem necessidade de retornar à sua célula, é chamado por uma vida verdadeiramente celular. (pág.81)
Mas a célula não é tudo. A casa é um arquétipo sintético, um arquétipo que evolui. Em seu porão está a caverna, em seu sótão está o ninho, ela tem raiz e folhagem. (pág.81)
Tendo o porão como raiz, o ninho no telhado, a casa oniricamente completa é um dos esquemas verticais da psicologia humana.(pág.81 e 82)
III
Para começar, o medo é bem diferente. A criança está ali perto da mãe, vivendo na parte média da casa. Irá com a mesma coragem ao porão e ao sótão? Num e noutro os mundos são tão diversos. De um lado as trevas, do outro a luz; de um lado os ruídos surdos, do outro os ruídos claros. Os fantasmas de cima e os fantasmas de baixo não têm as mesmas vozes nem as mesmas sombras. A tonalidade de angústia varia de um lugar a outro. E é bastante raro encontrar uma criança que seja corajosa frente a ambos. Porão e sótão podem ser detectores de infelicidades imaginarias, dessas infelicidades que muitas vezes marcam, para o resto da vida, um inconsciente.
Mas vivemos apenas as imagens da vida tranqüilizada, em uma casa cuidadosamente exorcizada por bons pais.
Desçamos ao porão, como nos velhos tempos, com o castiçal na mão. O alçapão é um buraco negro no soalho; a noite e a friagem moram debaixo da casa. Quantas vezes, nos sonhos, recomeçamos essa descida a uma noite emparedada! As paredes também são escuras sob as teias cinzentas da aranha. Ah! por que são engorduradas? Por que a mancha no vestido é indelével: Uma mulher não deve descer ao porão. É tarefa do homem buscar o vinho fresco. (pág.83 e 84)
Eis finalmente a terra, a terra negra e úmida, a terra debaixo da casa, a terra da casa. Algumas pedras para calçar os barris. E debaixo da pedra, o ser imundo, o tatuzinho, que consegue – como tantos parasitas – ser gordo permanecendo achatado! Quantos sonhos, quantos pensamentos ocorrem no tempo apenas de encher um litro no barril!. (pág.84)
No sótão vivem-se as horas de longa solidão, horas tão diversas que vão da birra à contemplação. É no sótão que ocorre a birra absoluta, a birra sem testemunha. A criança escondida no sótão se delicia com a angústia das mães: onde andará aquele birrento?
Também no sótão as intermináveis leituras, longe daqueles que tomam os livros porque já lemos demais. No sótão, o disfarce com a roupa de nossos avós, com o xale e as fitas . Que museu para os devaneios é um sótão atulhado de coisa! Ali as velharias se ligam para sempre à alma da criança. Um devaneio torna vivos um passado familiar, a juventude dos ancestrais. (pág.84 e 85)
V
Uma casa onírica é uma imagem que, na lembrança e nos sonhos, se tornam uma força de proteção. Não é um simples cenário onde a memória reencontra suas imagens. Ainda gostamos de viver na casa que já não existe, porque nela revivemos, muitas vezes sem nos dar conta, uma dinâmica de reconforto. Ela nos protegeu, logo, ela nos reconforta ainda. O ato de habitar reveste-se de valores inconscientes, valores inconscientes que o inconsciente não esquece. Podemos lançar novas raízes de inconsciente, não o desenraizamos. Para além das impressões claras e das satisfações grosseiras do instinto de proprietário, há sonhos mais profundos, sonhos que querem enraizar-se. (pág.92)
VI
A volta à terra natal, o regresso à casa natal, com todo o onirismo que o dinamiza, foi caracterizada pela psicanálise clássica como uma volta à mãe. Essa explicação, por mais legítima que seja, é no entanto demasiado grosseira, apega-se precipitadamente a uma interpretação global, apaga muitas nuanças que devem esclarecer detalhadamente uma psicologia do inconsciente. Seria interessante apreender bem todas as imagens do regaço materno e examinar o pormenor de substituição das imagens. Veríamos então que a casa tem seus próprios símbolos, e se desenvolvêssemos toda a simbólica diferenciada do porão, do sótão, da cozinha, dos corredores, do depósito da lenha..., perceberíamos a autonomia dos diferentes símbolos, veríamos que a casa constrói ativamente seus valores, que reúne valores inconscientes. O próprio inconsciente tem uma arquitetura de sua predileção.
Uma psicanálise com imagens deve portanto estudar não apenas o valor de expressão, mas também o encanto de expressão. O onirismo é ao mesmo tempo uma força aglutinante e uma força de variação. Está em ação, em dupla ação, nos poetas que encontram imagens muito simples e no entanto novas. Os grandes poetas não se enganam a respeito das nuanças inconscientes. (pág.93 e 94)
VIII
Se, com um passo solitário, devaneando, numa casa que traz os grandes signos da profundidade, descemos pela estreita escada obscura que enrola seus altos degraus em torno do eixo de pedra, logo sentimos que descemos a um passado. Ora, para nós não há nenhum passado que nos dê o gosto de nosso passado, sem que logo se torne, em nós, um passado mais longínquo, mais incerto, esse passado enorme que já não tem data, que já não sabe as datas de nossa história.
Tudo então simboliza. Descer, devaneando, num mundo em profundidade, em uma casa que assinala a cada passo a sua profundidade, é também descer em nós mesmos. Se prestamos um pouco de atenção às imagens, às lentas imagens que se nos impõem nessa “decida”, nessa “dupla descida”, não podemos deixar de surpreender-lhes os traços orgânicos. (pág.96)
Capítulo V
O Complexo de Jonas
I
Às vezes também um sorriso inoportuno do narrador destrói uma crença lentamente edificada pelos sonhos. Uma história de outrora é subitamente desacreditada por um gracejo de hoje. Giraudoux pôs na moda essa mitologia mistificada, esses anacronismos de colegial. Para mostrar essa destruição das imagens pelo sorriso do narrador, esse déficit de qualquer credulidade, vamos estudar uma imagem que já não é capaz de fazer sonhar, tanto ela já foi ridicularizada. Trata-se da imagem de Jonas no ventre da baleia. Tentaremos encontrar nela alguns elementos oníricos mesclados com imagens claras.
Essa imagem pueril suscita um interesse ingênuo. Poderíamos chamá-la de bom grado uma imagem narradora, uma imagem que produz automaticamente um conto. Ela exige que se imagine um antes e um depois. Como Jonas entrou no ventre da baleia, como irá sair? (pág.102)
II
A imagem de Jonas no ventre da baleia terá algo a ver com a realidade?
Toda criança que teve a felicidade de nascer perto de um rio, toda criança cujo pai pescava com vara. Já se maravilhou ao encontrar o vairão ou a mugem no ventre do lúcio. À beira do rio, vendo o lúcio devorar sua presa, a criança sonha certamente com o triste fim reservado à criatura devorada. A forma do cadoz, tão delgado no seio das águas, destina-o finalmente a ir viver no estômago de outrem. Quantos objetos têm assim um perfil gastronômico! Ao contemplá-los, temos a explicação de numerosas tentações mórbidas. (pág.104)
III
Há contos em que um complexo de Jonas forma de certo modo a trama da narrativa. (pág.108)
VII
Os psicanalistas, pelo próprio fato de fornecerem novos tipos de explicação psicológica, têm uma certa tendência de responder com uma palavra às questões múltiplas colocadas por um psicológico comum. Se lhes perguntarem de onde vem o interesse, mais ou menos sério, pelas imagens de Jonas, responderão: é um caso particular do processo de identificação. O inconsciente tem, de fato, uma espantosa capacidade de assimilação. É animado por um desejo, que renasce a todo instante, de assimilar todos os acontecimentos, e essa assimilação é tão completa que o inconsciente é incapaz, ao contrário da memória, de separar-se de suas aquisições e trazer à tona o passado. O passado está inserido nele, mas ele não o lê. Isso aumenta a importância do problema da expressão dos valores inconscientes. Assim, quando relacionamos a imagem do Jonas com uma lei geral assimilação, resta por explicar como essas imagens se multiplicam, se diferenciam, por que buscam as mais variadas expressões. A psicanálise deveria portanto encarar esse problema da expressão, considerando finalmente a expressão como uma verdadeira dialética do processo de assimilação.
O caso do complexo de Jonas é muito favorável para estudar o problema da projeção das fantasias em uma imagem, pois a imagem tem traços diretamente objetivos. Pode-se dizer, com efeito, que a volta à mãe está delineada aqui. (pág.116 e 117)
Um elemento do mito também é freqüentemente esquecido pala psicanálise. Esquecem que Jonas é restituído à luz. Independentemente da explicação pelos mitos solares, há nessa “saída” uma categoria de imagens que merece atenção. A saída do ventre é automaticamente um regresso à vida consciente e mesmo a uma vida que quer uma nova consciência. É fácil relacionar essa imagem da saída de Jonas com os temas do nascimento real – com os temas do nascimento do iniciado após a iniciação – com os temas alquímicos de renovação substancial. (pág.117 e 118)
X
Dado seu sucesso, a imagem de Jonas no ventre da baleia deve ter raízes mais profundas do que uma tradição curiosa. Deve haver uma correspondência entre ela e devaneios mais íntimos, menos objetivos.
Esses devaneios, com efeito, advêm geralmente da confusão bem conhecida dos psicanalistas entre o ventre sexual e o ventre digestivo. Distingamos mais claramente essas duas regiões inconscientes.
Em sua forma digestiva, a imagem de Jonas corresponde a uma avidez de engolir sem perder o tempo necessário para mastigar. Parece que o glutão, animado por prazeres inconscientes primitivos, retorna ao período do sucking. Um observador fisionomista encontrará as suas características no rosto do comedor de ostras – rara iguaria que o ocidental engole viva. De fato, parece que é possível detectar dois estágios do inconsciente bucal: o primeiro corresponde à fase em que se engole, o segundo à fase em que se trinca. (pág.120)
XV
As grandes imagens que expressam as profundezas humanas, as profundezas que o homem sente em si mesmo, nas coisas ou no universo, são imagens isomorfas. Por isso servem tão naturalmente de metáforas umas das outras. Tal correspondência pode parecer muito mal designada pela palavra isomorfia, já que ela ocorre no mesmo instante em que as imagens isomorfas perdem sua forma. Mas essa perda de forma se deve ainda à forma, explica a forma. Com efeito, entre o sonho do refúgio na casa onírica e o sonho de uma volta ao corpo materno, subsiste a mesma necessidade de proteção. (pág.133)
Capítulo VI
A Gruta
I
Uma religião subterrânea traz uma marca indelével. Porém, uma vez mais, não é esse estudo em profundidade que nos cabe fazer. Cabe-nos apenas seguir sonhos, em particular sonhos expressos, e mais precisamente ainda sonhos que desejam a expressão literária; em suma, nosso pobre tema é apenas a gruta na literatura.
Essa limitação do tema apresenta porém um resultado que queremos salientar. Com efeito, parece que nos atendo às imagens literárias, podemos isolar uma espécie de mitologia debilitada que nada deve aos conhecimentos adquiridos. Mesmo quando o escritor está seguramente consciente de seus conhecimentos escolares, uma nuança súbita vem às vezes revelar a adesão pessoal à atividade de lenda à imaginação propriamente legendária. Basta para isso uma novidade de expressão, uma renovação de expressão, uma iluminação súbita da linguagem. Assim que a linguagem ultrapassa a realidade, há possibilidade de lenda. Pode-se então surpreender a mitologia no ato. Certamente, é raro que essa mitologia, ora ingênua ora astuciosa, sempre muito curta, atinja o centro das lendas. Ela fornece no entanto fragmentos da lenda experimentada que permitem estudas as tentativas da imaginação. Formulam-se então novas relações entre convicção e expressão. Mediante a literatura, parece que a expressão tende a uma autonomia, e mesmo que uma convicção – muito superficial e efêmera, é verdade – se forme em torno de uma imagem literária bem feita. Então, da pena mais hábil brotam assim imagens sinceras. (pág.141 e 142)
II
A gruta é um refúgio no qual se sonha sem cessar. Ela confere um sentido imediato ao sonho de um repouso protegido, de um repouso tranqüilo. Passado um certo limiar de mistério e pavor, o sonhador que entrou na caverna sente que poderia morar ali. Bastam uns poucos minutos de permanência para que a imaginação comece a ajeitar a casa. Vê o lugar da lareira entre duas grandes pedras, o recanto para o leito de samambaias, a guirlanda das lianas e das flores que decora e esconde a janela contra o céu azul. (pág.143)
II
À entrada da gruta trabalha a imaginação das vozes profundas, a imaginação das vozes subterrâneas. Todas as grutas falam. (pág.149)
Mas, já no limiar, sem padecerem imediatamente dessa “profundeza”, as grutas respondem por murmúrios ou ameaças, por oráculos ou facécias. Tudo depende do estado de espírito de quem as interroga. Elas produzem o mais sensível dos ecos, a sensibilidade dos ecos medrosos. É verdade que os geógrafos catalogaram as grutas de ecos assombrosos. Eles explicam tudo pelas formas. (pág.149)
As vozes da terra são consoantes. Os outros elementos são as vogais, sobretudo o ar, o sopro de uma boca feliz, docemente entreaberta. A fala de energia e de cólera necessita do tremor do solo, do eco do rochedo, dos fragores cavernosos. A voz cavernosa é aprendida, é aprofundada pelo conselho da caverna. Quando pudemos sistematizar os valores da voz voluntária, veremos que desejamos imitar toda a natureza. A voz áspera, a voz cavernosa, a voz trovejante são vozes da terra. (pág.151)
III
Diante do antro profundo, no umbral da caverna, o sonhador hesita. Primeiro olha o buraco negro. A caverna, por sua vez, olhar contra olhar, fixa o sonhador com seu olho negro. O antro é o olho do ciclope. (pág.152)
Por certo estamos habituados a esse jogo de inversão que fica o realismo da imagem ora no homem, ora no universo. Mas não costumamos notar que é esse mesmo jogo de inversão que constituí a dinâmica da imaginação. Com esse jogo, nosso psiquismo se anima. Ele constitui uma espécie de metáfora total que transpõe os dois termos filosóficos do sujeito e do universo.
Essa transposição deve ser vivida nas mais frágeis, nas mais fugidias imagens, nas imagens menos descritivas possível. Tal é a imagem do olhar da gruta. Com esse simples buraco negro pode dar uma imagem válida para um olhar profundo? Para isso é preciso uma grande quantidade de devaneios terrestres; uma meditação do negro em profundidade, do negro sem substância, ou pelo menos sem outra substância além de sua profundidade, (pág.152 e 153)
IV
Uma classificação das grutas acentuadas pela imaginação em grutas de pavor e em grutas de maravilhamento proporcionaria uma dialética suficiente para evidenciar a ambivalência de qualquer imagem do mundo subterrâneo. Já ao limiar podemos sentir uma síntese de pavor e maravilhamento, um desejo de entrar e um medo de entrar. É aqui que o limiar adquire seus valores de decisão grave.
Essa ambivalência fundamental é transposta a jogos de valores mais numerosos e mais sutis, que são propriamente valores literários. São tais valores que, para certas almas, animam páginas que, para outras, permanecem frias alegorias. Assim são as grutas românticas. Uma leitura desdenhosa as retira verdadeiramente da narrativa. E no entanto em geral é a gruta que confere sentido e funções à passagem romântica. (pág.153 e 154)
Na gruta reina uma luz repleta de sonhos e as sombras projetas sobre as paredes são facilmente comparadas às visões do sonho. (pág.156)
É curiosíssimo que os indivíduos muito inteligentes sejam em geral incapazes de traduzir as verdades do sono, as forças do inconsciente vegetante que, na cavidade perfeita, como uma semente, absorve “o segredo de um mundo inteiro em seus elementos”.
Desde que nos orientamos na sombra, longe das formas, esquecendo a preocupação com as dimensões, não podemos deixar de constatar que as imagens da casa, do ventre, da gruta, do ovo e da semente convergem para a mesma imagem profunda. Quando aprofundamos no inconsciente, essas imagens vão perdendo aos poucos sua individualidade para assumir os valores inconscientes da cavidade perfeita.
Como já assinalamos várias vezes, as imagens da profundeza polarizam sempre os mesmos interesses. (pág.158)
Se, aliás, pudesse ser fundada uma doutrina do inconsciente constituído, poderíamos pedir aos arqueólogos para manter um certo sincretismo das imagens. A gruta é uma morada. É a imagem mais clara. Mas exatamente por causa do apelo dos sonhos terrestres, essa morada é ao mesmo tempo a primeira e a última morada. Torna-se uma imagem da maternidade, da morte. O sepultamento na caverna é uma volta à mãe. A gruta é o túmulo natural, o túmulo preparado pela Mãe-Terra, a Mutter-Erde. Todos esses sonhos estão em nós e parece que a arqueologia poderia referir-se a eles. Pareceria então menos “paradoxal” que se possa ter falado do “túmulo de Zeus”. Essa palavra paradoxal prova suficientemente que se consideram as lendas sob a luz da lógica, por mais aberto que se seja às realidades da vida religiosa. “Salta aos olhos”, diz Rohde, “que, na lenda do túmulo do Zeus cretense, o ‘túmulo’ – que substitui simplesmente a caverna como lugar de morada eterna de um deus eternamente vivo – é uma expressão paradoxal, significando que esse deus está indissoluvelmente ligado a esse lugar. Isto naturalmente faz pensar nas tradições não menos paradoxais relacionadas ao túmulo de um deus em Delfos. Sob a pedra umbilical (omphalos) da deusa da Terra, no templo de Apolo, construção em forma de cúpula que lembra os túmulos mais antigos, estava sepultado um ser divino, que as fontes mais sérias dizem ser Píton, a adversária de Apolo...” Que um culto esteja assim enraizado num lugar particular, é certamente um tema que à história interessa estudar. Mas esse enraizamento nem sempre é uma simples metáfora. Por que então não dar atenção à síntese polivalente da vida e da morte?
Vemos pois a necessidade de estudar as lendas e os cultos no sentido dos devaneios naturais. Aliás, será que as lendas poderiam realmente ser transmitidas se não recebessem uma adesão imediata do inconsciente? Pelo inconsciente se estabelece uma ordem de verossemilhança que debilita qualquer aparência de paradoxo. A dialética da vida e da morte é então abafada em proveito de um estado sintético. O herói sepultado vive nas entranhas da Terra, uma vida lenta, adormecida, mas eterna.
Quando exploramos uma nova linha de imagens terrestres em nosso capítulo sobre a serpente, veremos sem surpresa uma outra síntese que transforma freqüentemente os heróis sepultados em serpentes. É o que diz Rodhe (p. 113): “Ereteu habita, eternamente vivo, uma cripta profunda desse templo, em forma de serpente, como os outros espíritos da terra”. Assim, uma espécie de destino das imagens leva a atribuir uma eternidade aos seres terrestres. Veremos posteriormente que a serpente tem, nas lendas, privilégios de longa vida, não só pelo símbolo claro do Uróboro (a serpente que morde a própria cauda), mas também de forma ainda mais material, mais substancial.
Assim a gruta acolhe sonhos cada vez mais terrestres. Morar na gruta é começar uma meditação terrestre, é participar da vida da terra, no próprio seio da Terra material. (pág. 159 e 160)
Capítulo VII
O Labirinto
I
Um estudo completo da noção de labirinto deveria levar em conta problemas bem diferentes, pois essa noção estende-se tanto à vida noturna quanto à vida diurna. E, naturalmente, tudo o que a vida clara nos ensina mascara as realidades oníricas profundas. O desnorteamento de um viajante que não encontra seu caminho nas veredas de um campo, o embaraço de um visitante que não encontra seu caminho nas veredas de um campo, o embaraço de um visitante perdido numa grande cidade parecem fornecer a matéria emotiva de todas as angústias do labirinto dos sonhos. Nessa perspectiva, bastaria intensificar os aborrecimentos para haver angústia. Mais um pouco e faríamos uma planta do labirinto de nossas noites, tal como o psicólogo, com divisórias em ziguezague, constrói um “labirinto” para estudar o comportamento dos ratos. E, continuando a seguir o ideal de intelectualização, muitos arqueólogos pensam ainda que tornariam mais fácil a compreensão da lenda se reencontrassem as plantas da construção de Décalo. Mas, por mais úteis que sejam as pesquisas dos fatos, não há boa arqueologia histórica sem uma arqueologia psicológica. Todas as obras claras têm uma margem de sombra. (pág. 161)
Em suma, nos nossos sonhos noturnos, retomamos inconscientemente a vida de nossos antepassados viajantes. Já disseram que no homem “tudo é caminho”; se nos referimos ao mais remoto dos arquétipos, cumpre acrescentar: no homem tudo é caminho perdido. Vincular sistematicamente o sentimento de estar perdido a todo caminhar inconsciente é encontrar o arquétipo do labirinto. Andar com dificuldades no sonho é estar perdido, é viver o infortúnio do estar perdido. Partindo do simplíssimo elemento de um caminho fácil, faz-se uma síntese dos infortúnios. Se fizermos uma análise mais perspicaz sentiremos que estamos perdidos ao dobrar qualquer esquina, que nos angustiamos ao menor estreitamento. Nos porões do sono, sempre nos estiramos: suavemente ou dolorosamente.
Compreenderemos melhor certas sínteses dinâmicas se considerarmos as imagens claras. Assim, na vida acordada, seguir uma longa passagem estreita ou encontrar-se numa encruzilhada determinam duas angústias de certo modo complementares. Podemos mesmo libertar-nos de uma pela outra. Entremos nesse estreito caminho, pelo menos são hesitaremos mais. Voltemos à encruzilhada, pelo menos não seremos mais arrastados. Mas o pesadelo do labirinto engloba essas duas angústias e o sonhador vive uma estranha hesitação: ele hesita no meio de um caminho único. Ele se torna matéria hesitante, uma matéria que subsiste hesitando. A síntese que é o sonho labiríntico acumula, ao que parece, a angústia de um passado de sofrimento e a ansiedade de um porvir de infortúnios. O individuo fica preso entre um passado bloqueado e um futuro obstruído. Fica aprisionado num caminho. Enfim, estranho fatalismo do sonho de labirinto: volta-se às vezes ao mesmo ponto, mas jamais se volta para trás.
Trata-se pois de uma vida arrastada e sofrida. É mister revelar suas imagens por seu caráter dinâmico, ou melhor, é mister mostrar como um movimento difícil provoca imagens contrastantes. Vamos tentar isolar algumas. Apresentaremos a seguir algumas observações sobre os mitos relacionados com antros como o antro de Trofônio. E procuraremos no final trazer alguma luz a essa zona intermediária em que se unem as experiências do sonho e as experiências da vida desperta. É sobretudo aí que se formam as imagens literárias que nos interessam mais de perto. (pág. 163 e 164)
II
O pesadelo tem sido caracterizado freqüentemente como um peso sobre o peito de quem dorme. O sonhador sente-se esmagado e debate-se sob o peso que o esmaga. Naturalmente, a psicologia clássica, inteiramente voltada para seu positivismo da experiência clara, procura saber qual é o objeto que esmaga: o acolchoado ou o cobertor? Ou quem sabe algum alimento pesado”? O higienista que proíbe carne à noite esquece que o alimento pesado não é senão a metáfora do peso de uma digestão. Um organismo que sabe digerir e gosta disso jamais sofreu de semelhantes “peso”: felizmente, há estômagos cheios que conhecem bons sonos.
Portanto, as causas ocasionais do sonho têm muito pouco interesse. É preciso considerar o sonho em sua produção de imagens e não num recebimento de impressões, pois precisamente no sonho não há um verdadeiro recebimento de impressões. O sonho labiríntico é muito favorável a esse estudo porque a dinâmica do sonho adere à sua produção de imagens. E o labirinto é apenas a história dessa produção. É oniricamente típico: é feito de acontecimentos que se alongam, que se fundem, que se curvam. Por isso o labirinto onírico não tem ângulos; tem apenas inflexões, e inflexões profundas que envolvem o sonhador como se ele fosse uma matéria sonhante .
Cumpre pois, uma vez mais, que o psicólogo disposto a compreender o sonho perceba a inversão do sujeito e do objeto: não é porque a passagem é estreita que o sonhador sente-se comprido – é por estar angustiado que o sonhador vê o caminho se estreitar. O sonhador ajusta imagens mais ou menos claras em devaneios obscuros, mas profundos. Assim, no sonho, o labirinto não é visto nem previsto, não se apresenta como uma perspectiva de caminhos. É preciso vivê-lo para vê-lo. As contorções do sonhador, seus movimentos contorcidos na matéria do sonho, têm por esteira um labirinto. Só depois, no sonho narrado, quando o adormecido retornou à terra dos clarividentes, quando se exprime no reino dos objetos sólidos e definidos, é que falará de caminhos complicados e de encruzilhadas. De uma maneira geral, a psicologia do sonho lucraria em bem distinguir os dois períodos do sonho: o sonho vivido e o sonho narrado. Compreender-se-iam melhor certas funções dos mitos. Assim, se nos permitem jogar com as palavras, podemos dizer que o fio de Ariadne é o fio do discurso. Ele é da ordem do sonho narrado. É um fio de volta.
Na prática da exploração de cavernas complicadas, é costume desenrolar um fio que guiará o visitante em sua viagem de volta. Bosio, querendo visitar as catacumbas debaixo da via Ápia, mune-se de um novelo de fio bastante grande para guiar uma viagem de vários dias debaixo da terra. Graças à simples marca do fio desenrolado, o visitante tem confiança, está seguro de voltar. Ter confiança é a metade da descoberta. É essa confiança que o fio de Ariadne simboliza. (pág. 164 e 165)
Às vezes, porém, a matéria que sonha em nós é mais fluida, menos apertada, menos oprimida, mais feliz. Há labirintos onde o sonhador já não se esforça, onde já não é animado pela vontade de se estirar. Por exemplo, o sonhador é simplesmente levado por rios subterrâneos. Esses rios têm as mesmas contradições dinâmicas que o sonho do labirinto. Eles não correm com regularidade, têm corredeiras e meandros. São impetuosos e sinuosos, pois todo movimento subterrâneo é curvo e difícil. Mas como o sonhador é levado, como abandona-se sem vontade, esses sonhos de rios subterrâneos deixam menos vestígios; só encontramos pobres relatos deles. Eles são oferecem essa explicação de angústia primitiva que marca um sonhador circulando à noite por estreitos desfiladeiros. (pág.166)
Em resumo: o labirinto é um sofrimento primário, um sofrimento da infância. Será um traumatismo de nascimento? Será, ao contrário, como acreditamos, um dos traços mais nítidos de um arcaísmo psíquico? O sofrimento imagina sempre os instrumentos de sua tortura. Por exemplo, poderemos fazer a casa mais iluminada, mais livre, mais acolhedora possível, certas angústias infantis acharão sempre uma porta estreita, um corredor um pouco escuro, um teto um pouco baixo, para transformá-los em imagens do estreitamento, imagens de uma física da opressão, de um subterrâneo. (pág.167)
IV
Compreenderíamos melhor a experiência imaginada do labirinto se nos lembrássemos de um dos princípios da imaginação. (pág.173)
X
Uma das características curiosíssimas das transformações intimas das imagens é que essas transformações raramente são frias. O indivíduo labirintado, por maiores que sejam seus tormentos, experimenta o bem-estar do calor. Os sonhos que estiram o sonhador o devolvem a felicidades protoplásmicas. (pág.188)
XII
Uma vez compreendidas todas as ambivalências que animam as imagens subterrâneas, todo o jogo dos valores negros e sujos, ficamos menos espantados diante do tratamento literário do tema do esgoto. (pág.190)
XIV
Na maior parte dos capítulos deste livro oferecemos esboços de uma série de monografias que poderiam estudar imagens isoladas. No entanto, por mais diferentes que sejam certas imagens consideradas em seu primeiro aspecto -, uma gruta, um estômago, um porão, um desfiladeiro -, pudemos mostrar que incontáveis metáforas passavam de uma para outra. Queríamos, como conclusão do capítulo, refletir sobre essa potência de metáforas mútuas e estabelecer, com maior abrangência do que o podíamos fazer no estudo das imagens particulares, a lei do isomorfismo das imagens da profundidade.
Recordemos inicialmente como pudemos, a partir das imagens particulares, designar um aprofundamento. Para tanto, não manteremos mais que quatro pontos de partida:
1. A caverna.
2. A casa.
3. “O interior” das coisas
4. O ventre
Para cada umas das quatro imagens, é preciso primeiramente considerar aprofundamentos claros. A terra oferece antros, tocas, grutas, vindo a seguir os poços e as minas onde se vai por coragem; aos devaneios do repouso sucedem vontades de escavar, de ir mais profundamente dentro da terra. Toda essa vida subterrânea – ou tranqüila ou ativa – causa em nós pesadelos de esmagamento, pesadelos de passagens estreitas. Estudamos alguns deles no presente capítulo sobre o labirinto. Assim, aos poucos, devaneios vão tornando-se pesadelos.
Também a casa escava por si própria, enraíza-se no solo, solicita-nos para uma descida; ela dá ao homem um sentido do secreto, do oculto. Depois vem o drama, a casa não é apenas um esconderijo mas também um cárcere. E não são raros os romances de emparedamento no porão. (pág.195)
A profundeza dentro das coisas procede da mesma dialética do aparente e do oculto. Mas essa dialética é logo trabalhada por uma vontade de segredo, por devaneios que reúnem segredos poderosos, substâncias condensadas, peçonhas e venenos no engaste dos anéis. O sonho da substância profunda é tentado por “valores infernais”. Decerto a substância tem profundezas boas. Assim como há venenos, há também bálsamos e remédios. Mas parece que a ambivalência não é equilibrada e que, aí também, o mal é a primeira substância. Quando se leva ao fundo o sonho da intimidade das substâncias, após ter percorrido os conhecimentos do mundo das aparências, descobre-se os sentidos do perigo. Toda intimidade fica então perigosa.
Servimo-nos do ventre como uma imagem para as intimidades fáceis. Reunindo imagens literárias em torno deste símbolo gasto, aparentemente privado de toda a potência onírica, fomos reconhecendo aos poucos que essa pobre imagem também podia “trabalhar”. Durante nossa pesquisa, nós mesmos nos admiramos de sua potência de aprofundamento. Ao segui-la, reencontramos a mesma linha já caracterizada no aprofundamento dos labirintos e dos porões; percebemos que também nosso corpo era um “esconderijo”.
Enfim, se prestássemos mais atenção em nossos pesadelos labirínticos, descobriríamos em nós numerosas realidades corporais que dão impressões de labirintos. Uma autoscopia mais atenta nos revela em seguida a condução de nossos condutores. Tudo o que é um pouco contínuo em nós é condutor. E toda uma hidrodinâmica íntima se oferece para nos proporcionar uma experiência de nossas imagens materiais. Sentimo-nos então a fundo.
A partir desse momento já não sabemos onde se formam as convicções. Formam-se na perspectiva de introversão ou na de extroversão? Será o poço profundo ou o ventre que não se sonda? Recordemos que para o inconsciente oral, para o inconsciente que engole, o ventre é oco. E mais ainda, os órgãos são cavernas. Como diz Ernest Fraenkel num ensaio de psicanálise digestiva que ele teve a gentileza de nos enviar em manuscrito: “Cada órgão é um espaço onde entra alguma coisa para sair em seguida”. Mas essa entrada e essa saída não são simétricas. Têm valores dinâmicos bem distintos. É nesses valores dinâmicos que se funda o que Ernest Fraenkel chama de “a alma gástrica”. Essa alma gástrica, diz muito bem Fraenkel, é “essencialmente ciclotímica”. Dia e noite, estômago cheio e estômago vazio, tais são as bases da ciclotimia normal e salutar .
Sobre esses temas do dinamismo de repleção e de excreção funcionam verdadeiras construções de espaço, construções reais ou imaginárias. Terá a natureza trabalhado imaginando? Para Fraenkel, “foi entre os ruminantes que a estomacidade fez o maior esforço de manejamento arquitetural do espaço”. A vaca de um conto de Grimm rumina “seu Jonas”. Um sonhador que imaginar uma ruminação construtiva irá compreender, à sua maneira, por que há tantas bolsas no estômago dos ruminantes. (pág.196 e 197)
Terceira Parte
Capítulo VIII
A Serpente
I
É muito interessante aliás ver que essas mitologias naturais formam-se no ato literário mais simples: na metáfora. Desde que a metáfora seja sincera, desde que envolva o poeta, recuperamos a tonalidade do encantamento, de modo que se pode dizer que a metáfora é o encantamento moderno.
Assim, retendo as simples variações de uma antiga imagem, poderemos mostrar que a imaginação literária continua uma função profundamente humana. (pág.202)
II
A serpente é um dos arquétipos mais importantes da alma humana. É o mais terrestre dos animais. É realmente a raiz animalizada e, na ordem das imagens, o traço de união entre o reino vegetal e o reino animal. No capítulo sobre a raiz daremos exemplos que provarão essa evolução imaginária, essa evolução ainda viva em toda imaginação. A serpente dorme embaixo da terra, na sombra, no mundo escuro. Sai da terra pela menor fissura, entre duas pedras. Torna a entrar com uma rapidez assombrosa. (pág.2002)
III
A esse medo unem-se mil repugnâncias de que nem sempre é fácil estabelecer a ordem de profundidade. Os psicanalistas certamente não tiveram dificuldade de detectar, a propósito da imagem da serpente, proibições da zona sexual ou da zona anal. (pág.203)
A serpente é naturalmente uma imagem complexa ou, para sermos mais exatos, um complexo da imaginação. Imaginamo-la trazendo a vida e trazendo a morte, maleável e dura, reta e arredondada, imóvel ou rápida. Por isso ela desempenha um papel tão grande na imaginação literária. A serpente, tão inerte na representação figurada, em pintura ou em escultura, é portanto, em primeiro lugar, uma imagem literária pura. Ela necessita da discursividade da imagem literária para que se atualizem todas as suas contradições, para que se mobilizem todos os símbolos ancestrais. (pág.205)
IX
Há uma forte tendência para julgar os símbolos do ponto de vistas das formas. Dizem rapidamente que a serpente que morde a cauda é um símbolo da eternidade. Aqui sem dúvida a serpente junta-se à enorme potência do devaneios do anel. O anel detém tamanha soma de imagens que seria preciso um livro inteiro para classificá-las e para determinar-lhes o movimento dos valores conscientes e inconscientes. A serpente ser, numa imagem rara, uma realização animal do anel, é o suficiente para que ele participe da eternidade de todo anel. (pág.214)
Tudo irá adquirir vida se buscarmos na imagem da serpente que morde a cauda o símbolo da eternidade viva, de uma eternidade que é causa de si, causa matéria de si. É preciso então entender a mordida ao mesmo tempo ativa e mortal numa dialética da vida e da morte.
Essa dialética intervirá com ainda mais clareza quando um de seus termos for mais fortemente dinamizado. Ora, o veneno é a própria morte, a morte materializada. A mordida mecânica não é nada, é essa gota de morte que é tudo. Gota de morte, fonte de vida! Empregado em horas apropriadas, na conjunção astrológica certa, o veneno proporciona cura e juventude. A serpente que morde a cauda não é um fio enrolado, um simples anel de carne, é a dialética material da vida e da morte, a morte que sai da vida e a vida que sai da morte, não como os contrários da lógica platônica, mas como uma inversão infindável da matéria de morte e da matéria de vida. (pág.214 e 215)
Capítulo IX
A Raiz
I
É privilégio filosófico das imagens primárias que, ao estudá-las, se possam desenvolver, a propósito de cada uma delas, quase todos os problemas de uma metafísica da imaginação. (pág.222)
Os valores dramáticos da raiz se condensam nesta única contradição: a raiz é o morto vivo. Essa vida subterrânea é sentida intimamente. A alma sonhante sabe que essa vida é um longo sono, uma morte enlanguescida, lenta. Mas a imortalidade da raiz tem uma prova evidente, uma prova clara muitas vezes invocada, como no Livro de Jô (cap. XIV, 7 e 8): “Pois se uma árvore é cortada, há esperança, ela reverdecerá, e novos ramos brotarão;
“Ainda que a sua raiz envelheça na terra, e seu tronco fique como morto no pó”.
São grandes as imagens ocultas que se manifestam assim. A imaginação quer sempre sonhar e compreender ao mesmo tempo, sonhar para melhor compreender, compreender para melhor sonhar.
Considerada como imagem dinâmica, a raiz recebe igualmente as forças mais diversas. É ao mesmo tempo força de manutenção e força terebrante. Nas fronteiras de dois mundos, do ar e da terra, a imagem da raiz anima-se de uma maneira paradoxal em duas direções, conforme sonhemos com uma raiz que leva ao céu os sucos da terra ou sonhemos com uma raiz que vai trabalhar entre os mortos, para os mortos. Por exemplo, se é comuníssimo sonhar com uma raiz que vai levar seu ato colorante à flor resplandecente, é possível entretanto encontrar belas e raras imagens que conferem uma espécie de força enraizante à flor contemplada. Florescer bem é então uma maneira segura de enraizar-se. (pág.223 e 224)
II
A raiz é sempre uma descoberta. Ela é mais sonhada do que vista. E, quando descoberta, surpreende: não é rocha e radícula, filamento flexível e madeira dura? Com ela, temos um exemplo de contradições nas coisas. A dialética dos contrários, no reino da imaginação, faz-se com a ajuda de objetos, em oposições de substâncias distintas, completamente reificadas. Como ativaríamos a imaginação se buscássemos sistematicamente os objetos que se contradizem! Veríamos então as grandes imagens, como a raiz, acumulam contradições de objetos. Neste caso a negação ocorre entre as coisas e não simplesmente entre a aceitação e a recusa de deixar um verbo funcionar. As imagens são realidades psíquicas primárias. Tudo começa, mesmo na experiência, por imagem.
A raiz é a árvore misteriosa, é a árvore subterrânea, a árvore invertida. Para ela, a terra mais sombria – como o lago, sem o lago – é também um espelho, um estranho espelho opaco que duplica toda realidade aérea com uma imagem subterrânea. Com esse devaneio, o filósofo que escreve estas páginas confessa a que excesso de metáforas obscuras pode ser levado ao sonhar com as raízes. Ele tem como desculpa o fato de que, várias vezes em suas leituras, encontrou a imagem de uma árvore que crescia ao contrário, cuja raízes, como uma leve folhagem, tremulavam nos ventos subterrâneos enquanto os ramos enraizavam-se fortemente no céu azul. (pág.224 e 225)
Todo sonhador bem dinamizado pela raiz recalcitrante admitirá então que a primeira charrua tenha sido ela própria uma raiz, a raiz arrancada da terra, a raiz dominada, domesticada. A raiz bifurcada retorna com seu gancho e sua madeira dura à luta contra as raízes selvagens; o homem, esse grande estrategista, faz com que os objetos lutem contra os objetos: a charrua-raiz desenraiza as raízes .
E, perante a gana de uma raiz, quem não compreenderá o sortilégio de mandrágora, da raiz que se vingava fazendo morrer aquele que a arrancava? Bastará fazer um cão puxá-la ou, como diz um velho livro, será suficiente “tapar com cera ou resina os ouvidos para não ouvir o grito da raiz, que causaria a morte daqueles que a escavam”? O desbravador já multiplicou as injúrias contra o mato, cujas raízes, costuma-se dizer, “agarram-se até no inferno”. Essas injúrias do trabalhador são elementos vivos de todas as maldições da lenda. O mundo intratável é nossa provocação. Ele nos devolve as injúrias e as maldições. Desenraizar requer violência, provocações e gritos. Aqui também, o trabalho falado, o trabalho gritado explica lendas, decerto não em toda sua profundidade, mas em grande parte de seu valor expressivo. Quanto à mandrágora, a psicanálise clássica explicará melhor do que conseguiríamos em poucas páginas; mas o objeto, a própria raiz, apresenta traços particulares à expressão. São esses traços particulares que um estudo das imagens da raiz deve levar em conta. (pág. 228 e 229)
III
Pareceu-nos curiosíssimo, em nossas pesquisas sobre a imagem do vegetal, ver surgir com muita freqüência uma árvore mutilada. De fato, a maioria dos sonhadores demonstra preferências por partes de árvore. Uns vivenciam a copa, as ramagens, as folhas, o galho, outros o tronco, outros enfim as raízes. O olho é tão analítico que obriga o sonhador a limitar-se. Mas então, nossa rápida adesão a uma imagem parcial, pareceu-nos várias vezes que a imaginação retraía-se ante o impulso das forças psíquicas. É também em exercícios fragmentários que nos acostumamos a ver nas imagens brilhos efêmeros, cores incoerentes, esboços jamais completados. Em reação contra esse atomismo das imagens figuradas, procuramos então, em nossas tentativas da psicossínteses imaginárias, encontrar as forças de integração, devolver às imagens sua totalidade.
Acreditamos, justamente, que há objetos que têm forças de integração, objetos que nos servem para integrar imagens. A nosso ver, a árvore é um objeto integrante. Ela é normalmente uma obra de arte. Assim, quando conseguíamos dar ao psiquismo aéreo da árvore o interesse complementar das raízes, uma vida nova animava o sonhador; o verso produzia uma estrofe, a estrofe produzia um poema. Umas das maiores verticais da vida imaginária do homem ganhava todo o alcance de seu dinamismo indutor. A imaginação captava então todas as forças da vida vegetal. Viver como uma árvore! Que crescimento! Que profundidade! Que retidão! Que verdade! No mesmo instante, dentro de nós, sentimos as raízes trabalharem, sentimos que o passado não está morto, que temos algo a fazer, hoje, em nossa vida obscura, em nossa vida subterrânea, em nossa vida solitária, em nossa vida aérea. A árvore está, em toda a parte ao mesmo tempo. A velha raiz – na imaginação não existem raízes jovens – vai produzir uma flor nova. A imaginação é uma árvore. Tem as virtudes integrantes da árvore. É raiz e ramagem. Vive entre o céu e a terra. Vive na terra e no vento. A árvore imaginada é insensivelmente a árvore cosmológica, a árvore que resume um universo, que faz um universo . (pág.229 e 230)
Capítulo X
O Vinho e a Videira dos Alquimistas
I
As belas matérias: o ouro e o mercúrio, o mel e o pão, o azeite e o vinho, acumulam devaneios que se coordenam tão naturalmente que é possível descobrir-se neles leis de sonho, princípios da vida onírica. Uma bela matéria, um belo fruto, nos ensinam freqüentemente a unidade de sonho, a mais sólida das unidades poéticas. Para um sonhador da matéria, uma uva bem composta já não é um belo sonho da videira, não foi formada pelas forças oníricas do vegetal? Em todos os seus objetos, a Natureza sonha. (pág.249 e 250)
II
Para quem sonha o vinho na natureza, com toda a história das influências celestes do ano, como o repertório dos atos do sol e dos astros, a chuva é uma doença da atmosfera viva. Ensombreando o vinhedo, ela embacia a cor de um vinho que já não terá sua cota de luz. Todo sonhador que vive na simpatia da videira sabe bem que a cepa, contra a água terrestre ou fluvial, está sempre vigilante. A cepa é um punho que impede qualquer água de subir até os grãos. Ela torce, em sua raiz, seivas quintessenciadas. E o sarmento, seco em todas as fibras de sua substância, impede que o ser úmido polua a uva. (pág.251)
V
Quantas vezes a Videira, rainha dos simples, adota assim o perfume de uma de suas doces acompanhantes como a framboesa, de uma de suas rudes servas como a pederneira! O vinho é realmente um universal que sabe tornar-se singular, quando encontra um filósofo que saiba bebê-lo. (pág.256)
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